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  Texto selecionado
erro medico
alfredo jose dias

ERRO MÉDICO.
Robin Cook.
© 1990 by Robin Cook.
Agradecimentos.
Como acontece com todos os meus projetos, fui significativamente
beneficiado pela experiência e perícia de amigos, colegas e amigos de
amigos na tarefa de escrever Harmful Intent. Como a história vincula
duas profissões, é compreensivel que as fontes básicas tenham sido os
respectivos profissionais. Desejo particularmente agradecer aos
seguintes:
Médicos: Tom Cook
Chuck Karpas
Stan Kessler
Advogados: Joe Cox
Victoria Ho
Leslie McClellan
Juiz: Tom Trettis
Terapeuta baseada na escola: Jean Reeds
Todos doaram generosamente muitas horas do seu valioso tempo.
Mais uma vez para Audrey Cook, minha maravilhosa mãe.
"A primeira coisa que temos a fazer é matar todos os advogados."
- Henrique VI, Parte II.
PRÓLOGO:
9 DE SETEMBRO DE 1988, 11:45, BOSTON, MASSACHUSETTS.
Desde que as câimbras começaram, em torno das nove e meia da manhã,
Patty Owen adquiriu certeza. Estivera preocupada com o fato de que,
quando chegasse a hora, não seria capaz de distinguir entre as
contrações que assinalam o começo do trabalho de parto e os pontapés e o
desconforto do último trimestre da gravidez. Mas a apreensão revelou-se
exagerada; a dor violenta que estava sentindo era bem diferente de
qualquer aflição anterior, familiar apenas no fato de corresponder tão
classicamente, em sua natureza e regularidade, ao que diziam os manuais
especializados. A cada vinte minutos, regular como um relógio, atacava-a
uma dolorosa pontada na parte inferior das costas.
Nos intervalos a dor ia sumindo, mas depois voltava com toda a
força.
A despeito da agonia cada vez mais aguda que começava a
enfrentar, não pôde reprimir um sorriso fugidio. Sabia que o pequeno
Mark estava a caminho para ingressar neste mundo.


Tentando permanecer calma, Patty procurou, entre os papéis
espalhados na pequena mesa da cozinha, o telefone do hotel que Clark lhe
dera na véspera. Ele teria preferido não fazer aquela viagem de
negócios, com Patty tão próxima à hora do parto, mas o banco não lhe
dera muita escolha. Seu chefe insistira no prosseguimento das transações
que fechariam o negócio no qual estivera trabalhando há três meses. Numa
solução de compromisso, os dois homens concordaram em que, fosse qual
fosse o estado das negociações, Clark ficaria ausente apenas dois dias.
Continuara detestando a idéia da viagem, mas pelo
menos estaria de volta uma semana antes da data em que Patty devia dar à
luz...
Patty encontrou o número do hotel. Discou e foi transferida ao
quarto de Clark por uma amável telefonista. Quando ele não atendeu ao
segundo toque, presumiu que já havia saído para a reunião. Só para não
haver dúvidas, deixou o telefone tocar mais cinco vezes, na esperança de
que talvez estivesse no chuveiro e respondesse logo mais, meio sem
fôlego. Estava desesperada para ouvir sua voz animadora.
Enquanto o telefone chamava, Patty sacudiu a cabeça, lutando
contra as lágrimas. Pois por mais feliz que se tivesse sentido com
aquela gravidez, a sua primeira, desde o início fora perturbada pela
vaga premonição de que alguma coisa errada iria acontecer. Quando Clark
chegara em casa com a notícia de que precisava ausentar-se da cidade
numa conjuntura especial, sentira confirmar-se o pressentimento. Após
todas as lições e exercícios Lamaze praticados juntos, teria que
enfrentar o problema sozinha. Clark assegurara que ela se preocupava
demais, o que era natural, mas que estaria de volta com tempo de sobra
para acompanhá-la no parto.
A telefonista do hotel entrou de novo na linha e perguntou se
Patty queria deixar recado. Patty disse que queria que o marido ligasse
para ela o mais depressa possível. Deixou o número do Boston Memorial
Hospital. Sabia que um recado tão vago ia deixar Clark preocupado, mas
era bem feito por ter viajado numa hora daquelas.
Em seguida ligou para o consultório do Dr. Ralph Simarian. A voz
retumbante e animada do médico abrandou, momentaneamente, seus receios.
Ele a instruiu dizendo que Clark a levasse ao BM, como, bem-humorado, se
referia ao Boston Memorial, e tratasse de interná-la. Veria a ambos em
duas horas. E informou que intervalos de vinte minutos significavam
tempo à beça.
- Dr. Simarian? - murmurou Patty, quando o médico ia desligar. Clark está fora da cidade, numa viagem de negócios. Eu mesma vou
providenciar minha internação.
- Ele calculou bem! - exclamou o Dr. Simarian com uma risada. Bem típico dos homens. Gostam de se divertir e desaparecem quando há um
pouco de trabalho a ser feito.


- Clark pensou que ainda ia demorar mais uma semana - explicou
Patty, achando que devia defender o marido. Ela podia irritar-se com
Clark, mas ninguém mais.
- Estou brincando - afirmou o Dr. Simarian. - Tenho certeza de
que vai deplorar a ausência. Quando voltar, teremos uma pequena
surpresa para ele. Agora, não fique nem um pouquinho alarmada. Tudo vai
dar certo. Como é que você vai para o hospital?
Patty explicou que uma vizinha concordara em levá-la, no caso de
alguma surpresa enquanto Clark estivesse fora.
- Dr. Simarian - acrescentou, hesitante -, como meu parceiro de
Lamaze está fora, acho que realmente estou nervosa demais para enfrentar
sozinha a situação. Não quero fazer nada que possa prejudicar o bebê,
mas se o senhor achar que posso ser anestesiada, do modo como
aventamos...
- Não há problema algum - atalhou o Dr. Simarian, sem deixá-la
terminar a frase. - Não sobrecarregue sua linda cabecinha com esses
detalhes. Cuidarei de tudo. Vou ligar para a cirurgia agora mesmo e
avisar que você quer uma anestesia peridural, OK?
Patty agradeceu e desligou, mordendo os lábios ao sentir o
inicio de outra contração.
Não havia razão para se preocupar, consolou-se com alguma
aspereza. Ainda dispunha de tempo mais que suficiente para chegar ao
hospital. O Dr. Simarian tinha tudo sob controle. Ela sabia que seu bebê
era saudável. Insistira em fazer exames de ultra-som e do líquido
amniótico, mesmo o Dr. Simarian lhe assegurando que não precisava, pois
tinha apenas vinte e quatro anos de idade. Mas entre a premonição
agourenta e a preocupação genuína, a determinação de Patty venceu os
obstáculos. Os resultados dos exames foram extremamente satisfatórios: a
criança que estava gerando era um menino saudável e normal. Menos de uma
semana depois de receberem os resultados, Patty e Clark estavam pintando
de azul o quarto do bebê e decidindo o nome, que acabou sendo Mark.
Tudo considerado, não havia motivo para esperar nada além de uma
gravidez e um parto normais.
Quando Patty se voltou para apanhar a mala já pronta no armário
do quarto de dormir, notou a impressionante mudança do tempo. O
brilhante sol de setembro que vinha se infiltrando pela janela fora
encoberto por uma grande nuvem que subitamente surgira do oeste,
mergulhando o quarto numa pesada penumbra. O ronco distante de um trovão
fez Patty sentir um calafrio na espinha.
Não sendo supersticiosa, Patty recusou-se a tomar a tempestade
como mau presságio. Resolveu descansar um pouco no sofá do quarto,
pensando em chamar a vizinha logo que aquela contração chegasse ao fim.
Estaria praticamente no hospital na hora de começar a seguinte.
Quando a dor apertou ainda mais, a confiança que o Dr. Sima-


rian lhe transmitira desapareceu. A ansiedade varreu-lhe a cabeça ao
mesmo tempo que uma súbita lufada de vento varreu o quintal, fazendo
vergar as bétulas e trazendo as primeiras gotas de chuva. Patty
estremeceu. Como seria bom se tudo já tivesse acabado! Podia não ser
supersticiosa, mas estava assustada. Aquela seqüência de eventos - a
tempestade, a viagem de Clark, o trabalho de parto uma semana mais cedo
- parecia-lhe desfavorável. Lágrimas rolaram pelo seu rosto enquanto se
animava para telefonar à vizinha. Só queria não estar sentindo tanto
medo.
- Mas que maravilha! - comentou o Dr. Jeffrey Rhodes sarcasticamente ao
examinar o quadro de programações de anestesia na sala do setor.
Aparecera um novo caso: Patty Owen, um parto em que se requeria
especificamente uma peridural. Jeffrey sacudiu a cabeça, sabendo muito
bem que era o único anestesista disponível naquele momento. Todos os
outros do turno do dia estavam ocupados. Jeffrey telefonou à obstetrícia
para se informar sobre o estado da paciente e lhe disseram que não havia
pressa, pois a mulher ainda nem havia chegado à recepção.
- Algum problema que eu deva conhecer? - perguntou, quase com
medo de ouvir a resposta. As coisas não estavam correndo bem para ele
naquele dia.
- Parece coisa de rotina - disse a enfermeira. - Primípara.
Vinte e quatro anos. Saudável.
- Qual é o médico que a atende.
- Simarian - foi a resposta da enfermeira.
Jeffrey disse que logo estaria a postos e desligou o telefone.
Simarian, pensou. Um tanto tagarela. Um tipo tecnicamente bom, mas
Jeffrey considerava o modo benévolo como tratava suas clientes um pouco
irritante. Mas graças a Deus por não ser Braxton ou Hicks. Queria que
tudo corresse bem, e, se possível, depressa; o que não seria o caso com
qualquer um desses dois.
Deixando a sala da anestesia, percorreu o corredor onde ficavam
as salas de cirurgia, passando pela mesa de programação onde havia um
tumulto característico. O turno da noite devia assumir em poucos
minutos; a mudança de equipe sempre se traduzia por um caos momentâneo.
Jeffrey empurrou as portas duplas de vaivém da ante-sala da
cirurgia e arrancou a máscara frouxamente pendurada no seu peito,
puxando-a pelo elástico. Atirou-a, aliviado, no receptáculo de roupa
suja; estivera respirando através daquela maldita coisa durante seis
horas seguidas.
A sala era um burburinho só, os membros da equipe vinham
chegando em grupos. Jeffrey ignorou-os e passou direto para o vestiário,
que estava igualmente apinhado. Parou diante do espelho, curioso para
ver se tinha a aparência tão ruim quanto o modo como se sentia. Tinha.
Seus olhos estavam muito fundos. Debaixo de cada um deles havia uma


nítida mancha escura com a forma de um quarto crescente. Até o bigode
parecia torto, embora não pudesse esperar outra coisa após tê-lo deixado
sob as dobras da máscara cirúrgica por seis horas.
Como a maior parte dos médicos, ao resistir à hipocondria
crônica induzida pela faculdade de medicina, Jeffrey freqüentemente
exorbitava na direção contrária: negava ou ignorava todos os sintomas de
doença ou sinais de fadiga até ameaçarem esmagá-lo. Aquele dia não fora
exceção. Desde o despertar, às seis da manhã, sentia-se péssimo. Embora
estivesse passando mal há alguns dias, primeiro atribuíra as tonteiras e
calafrios a algo comido na noite anterior. Quando as ondas de náusea
surgiram no curso da manhã, Jeffrey logo culpou o excesso de café tomado
no desjejum. E quando a diarréia e a dor de cabeça começaram no início
da tarde, pôs a culpa na sopa que ingerira na lanchonete do hospital.
Só quando avaliou seu semblante desfigurado no esrelho do
vestiário, finalmente admitiu que devia estar doente. Era provavelmente
a gripe que se espalhara pelo hospital no último mês. Encostou o pulso
na testa para uma avaliação aproximada da temperatura. Não havia dúvida
agora - estava com febre.
Afastando-se da pia, aproximou-se do seu armário, grato pelo dia
estar quase terminando. A idéia de uma cama era a visão mais atraente
que podia ter.
Sentou-se no banco, indiferente à algaravia daquela gente, e
começou a girar o segredo do cadeado. Sentia-se pior que nunca. O
estômago regurgitava desagradavelmente; os intestinos estavam em agonia.
Uma cólica passageira trouxe-lhe gotículas de suor à testa. A menos que
alguém pudesse substitui-lo, estaria ainda de serviço por um par de
horas.
Acertado o número final, Jeffrey abriu o armário. Enfiando a mão
no interior cuidadosamente arrumado, apanhou um frasco de elixir
paregórico, remédio antigo que sua mãe o obrigava a tomar quando
criança. Ela diagnosticava constantemente prisão de ventre ou diarréia
como os males que afetavam o filho. Só depois de passar
para o ginásio Jeffrey percebeu que tais diagnósticos eram simples
desculpas para fazê-lo tomar a panacéia favorita. Com o passar dos anos,
desenvolveu certa confiança no elixir, mesmo não acreditando no talento
materno para diagnosticar. Conservava sempre um frasco à mão.
Retirando a tampa, inclinou a cabeça para trás e tomou um farto
gole. Ao esfregar a mão na boca, notou um servente que, ao lado,
observava os seus movimentos.
- Quer um pouco? - perguntou, sorrindo e estendendo o vidro na
direção do homem. - É uma parada.
O outro esboçou um olhar de nojo, levantou-se e foi embora.
Jeffrey sacudiu a cabeça ante aquela evidente demonstração de
obtusidade. Pelo modo como reagira, podia-se pensar que lhe tivesse


oferecido veneno. Com inusitada lentidão, despiu o avental. Massageando
rapidamente as têmporas, obrigou-se a ficar de pé e entrou no chuveiro.
Depois de se ensaboar, ficou debaixo d'água durante cinco minutos; em
seguida saiu e se enxugou energicamente. Escovou o ondulado cabelo
castanho-claro, vestiu um avental limpo e pôs uma máscara e um gorro
novos. Sentia-se consideravelmente melhor. Exceto por um ruído
ocasional, até mesmo suas tripas pareciam estar cooperando - pelo menos
por enquanto.
Jeffrey refez seus passos através da ante-sala, percorreu o
corredor das salas de cirurgia e passou pela porta que levava à seção de
obstetrícia. A decoração ali era um bem-vindo antídoto ao árido piso de
cerâmica dos centros de operação. As salas de parto individuais podiam
ser tão assépticas quanto as outras, mas tanto elas quanto aquelas onde
as parturientes ficavam em trabalho de parto eram pintadas em tons
pastel, com estampas impressionistas nas paredes. As janelas tinham até
cortinas. A sensação era mais de um hotel que de um grande hospital
urbano.
Jeffrey foi até a mesa de recepção e perguntou sobre sua
paciente.
- Patty Owen está no quinze - informou uma negra alta e bonita.
Chamava-se Monica Carver e era supervisora de enfermagem do turno da
noite.
Jeffrey inclinou-se sobre a mesa, grato pelo descanso
momentâneo.
- Como é que ela está indo? - perguntou.
- Bem - respondeu Monica. - Mas ainda vai demorar um bocado. As
contrações não são fortes nem freqüentes, e a dilatação é de apenas
quatro centímetros.
Jeffrey aquiesceu, balançando a cabeça. Teria preferido uma previsão para mais tarde. O procedimento padrão era esperar que a dilatação
chegasse aos seis centímetros para aplicar a peridural. Monica
entregou-lhe a prancheta de Patty. Jeffrey examinou-a rapidamente. Não
havia muita coisa escrita. A mulher era obviamente saudável. Isso, pelo
menos, era bom.
- Vou bater um papo com ela - disse Jeffrey - e depois voltarei
para a sala de cirurgia. Se houver alguma mudança, me chame pelo
telefone.
- Sem dúvida - concordou Monica, prestimosa.
Jeffrey dirigiu-se para o quarto quinze. Próximo ao centro do
corredor sentiu outra pontada no intestino. Teve que parar e se apoiar
na parede. Que chatice, pensou. Quando tornou a se sentir bem,
prosseguiu no seu rumo e bateu à porta. Uma voz agradável mandou-o
entrar.
- Sou o Dr. Jeffrey Rhodes - apresentou-se, estendendo a mão. -


Vou ser o seu anestesista.
Patty Owen apertou a mão estendida. A palma da mão dela estava
úmida, os dedos frios. Parecia ter bem menos que vinte e quatro anos. O
cabelo era louro, e os olhos grandes lembravam os de uma criança
vulnerável. Jeffrey podia ver perfeitamente que estava assustada.
- Que bom vê-lo aqui! - disse Patty, parecendo não querer largar
a mão de Jeffrey imediatamente. - Devo lhe dizer logo que sou covarde.
Não sou realmente muito boa em suportar dores.
- Tenho certeza de que poderemos ajudá-la - prometeu Jeffrey,
procurando tranqüilizá-la.
- Quero uma peridural - pediu Patty. - Meu médico disse que
seria viável.
- Compreendo - disse Jeffrey. - Você terá a sua peridural. Tudo
sairá muito bem. Temos muitos partos no Boston Memorial. Cuidaremos
direitinho de você, e depois que tudo acabar, você nem vai entender por
que se sentiu apreensiva.
- É mesmo?
- Se não tivéssemos tantas clientes satisfeitas, acha que muitas
voltariam para uma segunda, terceira ou até uma quarta vez?
Patty sorriu, abatida.
Jeffrey passou um quarto de hora com ela, indagando sobre sua
saúde e alergias. Simpatizou com sua posição quando soube que o marido
estava fora da cidade, numa viagem de negócios. A familiaridade dela com
a anestesia peridural o surpreendeu. Patty confidenciou-lhe
que não só lera a respeito, como também sua irmã fora submetida a essa
anestesia em dois partos. Jeffrey explicou por que não devia aplicar-lhe
a anestesia imediatamente. E quando disse que, se ela quisesse, podia
dar-lhe Demerol nesse meio-tempo, Patty relaxou. Antes de sair, acentuou
que qualquer remédio que ela tomasse, o bebê também tomaria. Depois
garantiu de novo que não havia razão para se preocupar; estava em boas
mãos.
Ao sair do quarto onde Patty estava em trabalho de parto, sentiu
outra cólica intestinal. Jeffrey então deu-se conta de que devia tomar
providências mais drásticas contra seus próprios sintomas, se pretendia
mesmo estar presente no parto de Patty. A despeito do elixir paregórico,
vinha se sentindo cada vez pior.
Passando novamente pelas portas do centro de cirurgia, Jeffrey
retornou à seção de anestesia, que ficava ao lado, onde passara a maior
parte do dia. A sala estava vazia e provavelmente já não seria usada
senão na manhã seguinte.
Olhando para um lado e outro do corredor, para se certificar de
que não havia ninguém, Jeffrey abaixou a cortina. Embora finalmente
reconhecesse que estava mesmo doente, não pretendia admitir isso para
ninguém mais.


Na gaveta do aparelho de anestesia Narcomed III, Jeffrey apanhou
uma agulha intravenosa de pequeno calibre e os ingredientes para uma
infusão. Pegou um frasco de Ringer lactato intravenoso no fundo da
prateleira e retirou o alumínio que cobria a tampa de borracha. Com um
gesto decidido empurrou o tubo da injeção dentro do frasco, que pendurou
no gancho acima do aparelho de anestesia. Fez o fluido correr através do
tubo até ficar livre de bolhas de ar, e por fim fechou a válvula de
plástico.
Jeffrey havia aplicado injeções intravenosas em si próprio
apenas umas poucas vezes, mas tinha prática suficiente. Usando os dentes
para segurar uma extremidade do torniquete, passou-o em volta do bíceps
e observou as veias começarem a se distender.
O que lhe ocorrera fazer era um truque que aprendera como
residente. Naquele tempo, ele e seus colegas, especialmente os
residentes da cirurgia, se recusavam a tirar licença por motivo de
saúde, com medo de se prejudicarem na competição. Se pegavam um
resfriado ou sentiam sintomas como os de agora, simplesmente arranjavam
um tempinho para se aplicarem um litro de soro na veia. Os resultados
eram quase garantidos, sugerindo que a maioria dos sintomas de gripe se
deviam à desidratação. Com um litro de Ringer lactato correndo nas
veias, era difícil não se sentir melhor. Já fazia séculos desde a última
vez que Jeffrey recorrera áquilo. Agora esperava que o efeito fosse tão
seguro quanto no tempo de residente. Agora, com 42 anos, mal podia crer
que, na última vez, tinha quase vinte anos menos.
Estava prestes a espetar a agulha quando a cortina foi aberta.
Ergueu os olhos e deu com o rosto espantado de Regina Vinson, uma das
enfermeiras da noite.
- Ui! - exclamou Regina. - Desculpe.
- Não tem problema. - Jeffrey ia começando a se desculpar, mas
ela desapareceu tão depressa quanto tinha aparecido. Já que,
inadvertidamente, o surpreendera no ato, Jeffrey chegara a pensar em
pedir-lhe uma ajuda, prendendo o tubo à agulha de escalpo tão logo
encontrasse a veia. Adiantou-se, puxou a cortina na esperança de vê-la,
mas Regina já estava longe, no corredor apinhado. Deixou a cortina cair
de volta no seu lugar. Estaria bem mesmo sem ajuda.
Uma vez o tubo adaptado à agulha, abriu a válvula. Quase
imediatamente sentiu a frescura do líquido fluindo rapidamente no seu
organismo. Quando quase todo o conteúdo do frasco já estava na corrente
sanguínea, sentiu a parte superior do braço ficando fria. Tirou a
agulha, pôs uma mecha de algodão com álcool em cima do lugar da injeção
e dobrou o braço. Jogou toda a parafernália usada no lixo e levantou-se.
Aguardou um momento para avaliar como se sentia. A tonteira e a dor de
cabeça tinham sumido. Só restava a náusea. Satisfeito com os rápidos
resultados, abriu a cortina e voltou ao vestiário. Agora só as tripas


ainda o incomodavam.
O turno da noite assumira seus postos e o pessoal que trabalhava
de dia começava a partir. O vestiário estava cheio de gente animada.
Primeiro Jeffrey usou o toalete. Depois pegou o vidro de elixir
paregórico e tomou mais um gole avantajado. Fez uma careta e
perguntou-se por que motivo teria ficado tão amargo. Atirou o vidro
vazio na cesta de lixo. Depois tomou um segundo banho de chuveiro e
vestiu outro conjunto limpo de roupa esterilizada.
Quando entrou na ante-sala da cirurgia, sentia-se quase normal.
Tencionava sentar-se ali por uma meia hora, mais ou menos, e ler o
jornal, mas nesse momento seu bipe disparou. Observou o número.
Obstetrícia.
- A Sra. Owen pede-lhe que vá vê-la - disse Monica Carver quando
ele telefonou.
- Como ela vai indo?
- Tudo bem. Só está um pouco apreensiva, mas nem mesmo pediu um analgésico, embora suas contrações agora sejam mais freqüentes. A
dilatação está entre cinco e seis centímetros.
- Ótimo - comentou Jeffrey. Sentiu-se satisfeito. - Já estou
indo.
A caminho da obstetrícia, deteve-se na sala da anestesia para
dar uma olhada no quadro e ver como andavam os trabalhos previstos para
a noite. Conforme esperava, todo mundo estava ocupado, cada qual com seu
caso. Com um pedaço de giz escreveu que, quem quer que se visse livre,
deveria procurá-lo na obstetrícia para substitui-lo.
Quando chegou à sala de pré-parto número quinze, Patty estava em
meio a uma contração. Uma enfermeira experiente estava com ela, e as
duas mulheres funcionavam como uma equipe treinada. Havia gotas de suor
na testa de Patty. Seus olhos estavam fortemente cerrados, e ela
agarrava as mãos da enfermeira com as suas. Amarrado ao seu abdome
estava o monitor de borracha que acompanhava o progresso do trabalho de
parto, assim como as batidas do coração do feto.
- Oi, meu branco cavaleiro de azul - disse Patty quando a dor
cedeu e ela abriu os olhos e viu Jeffrey ao pé da cama. Ela sorriu.
- Que tal aquela peridural? - sugeriu Jeffrey.
- Que tal! - ecoou Patty.
Todo o equipamento de que Jeffrey precisava encontrava-se num
carrinho que ele trouxe logo a seguir. Após colocar o medidor de pressão
arterial em posição, removeu o monitor de borracha do abdome de Patty e
ajudou-a a ficar de lado. Com as mãos enluvadas, esfregou-lhe as costas
com uma solução anti-séptica.
- Primeiro lhe darei a anestesia local de que falamos - disse,
enquanto preparava a injeção. Fez um pequeno vinco com a minúscula
agulha no centro da base das costas de Patty. Ela se sentiu tão aliviada


que nem mesmo estremeceu.
A seguir, pegou uma agulha Touhey na bandeja da penidural e
certificou-se de que o estilete estava no lugar. Então, usando ambas as
mãos, empurrou a agulha nas costas de Patty, avançando lenta mas
deliberadamente até ter certeza de haver atingido os ligamentos que
cobriam o canal espinhal. Retirando o estilete, prendeu uma seringa de
vidro vazia e pressionou de leve o êmbolo. Sentindo resistência, recuou
habilmente a agulha. De repente a resistência ao êmbolo desapareceu.
Jeffrey ficou satisfeito; sabia que estava no espaço penidural.
- Você está bem? - perguntou Jeffrey, usando a seringa para
sugar uma dose de teste, dois mililitros de água estéril contendo uma
quantidade insignificante de adrenalina.
- Já terminou?
- Ainda não - respondeu Jeffrey. - Só mais alguns minutos.
Injetou a dose de teste e imediatamente verificou a pressão
arterial e o pulso de Patty. Não houve mudança. Se a agulha tivesse
pegado um vaso sanguíneo, sua pulsação teria aumentado imediatamente em
reação à adrenalina.
Só então Jeffrey pegou o pequeno cateter peridural. Com cuidado
profissional, prendeu-o na agulha Touhey.
- Estou sentindo uma coisa esquisita na minha perna - queixou-se
Patty, nervosa.
Jeffrey parou de empurrar o cateter. Estava enfiado apenas cerca
de um centímetro a partir da ponta da agulha. Perguntou a Patty que
espécie de sensação era, e depois explicou que comumente o cateter
peridural tocava em nervos periféricos. Talvez fosse a causa do que
estava sentindo. Ao cessar a parestesia, ele avançou agilmente o cateter
mais um centímetro e meio. Patty não se queixou.
Finalmente retirou a agulha Touhey, deixando em posição o
pequeno cateter de plástico. Em seguida preparou um segundo teste,
usando dois mililitros de Marcaína para a raque a 0,250/o, com
adrenalina. Após injetar essa segunda dose, checou a pressão arterial de
Patty e sua sensibilidade nos membros inferiores. Vendo que não ocorriam
mudanças mesmo após vários minutos, teve certeza absoluta de que o
cateter estava em local apropriado. Finalmente, injetou a dose
terapêutica de anestésico: cinco mililitros de Marcaína a 0,25%. A
seguir isolou o cateter.
- Tudo terminado - disse Jeffrey, pondo uma bandagem estéril
sobre o local da punção. - Mas quero que fique de lado por mais algum
tempo.
- Mas eu não sinto nada - queixou-se Patty.
- A idéia é essa mesmo - disse Jeffrey, com um sorriso.
- Tem certeza de que está funcionando?
- Espere só até a próxima contração - afirmou ele, confiante.


Jeffrey instruiu a enfermeira sobre com que freqüência queria a
pressão arterial de Patty verificada. Depois ajudou-a a repor no lugar o
monitor de trabalho de parto. Permaneceu no quarto até a contração
seguinte de Patty, aproveitando o tempo para completar seu habitualmente
meticuloso registro da anestesia. Patty sentiu-se confiante. O
desconforto que experimentara até então se atenuara muito, e ela
agradeceu efusivamente a Jeffrey.
Depois de informar a Monica Carver e à enfermeira onde estaria,
Jeffrey entrou num dos quartos de trabalho de parto vazio e às escuras,
para se deitar. Sentia-se melhor, mas ainda não no seu estado normal.
Fechando os olhos pelo que pensou fossem apenas alguns minutos, e
embalado pelo tamborilar da chuva na janela, acabou caindo no sono
rapidamente. Teve uma vaga consciência da porta sendo aberta e fechada
diversas vezes, enquanto pessoas diferentes o olhavam, mas ninguém o
perturbou até Monica entrar e, delicadamente, sacudi-lo pelo ombro.
- Temos um problema - disse ela.
Jeffrey desceu as pernas para o lado da cama e esfregou os
olhos.
- O que há de errado?
- Simanian decidiu realizar uma cesariana em Patty Owen.
- Tão cedo?
Jeffrey deu uma olhada no relógio e piscou diversas vezes. O
quarto parecia mais escuro que antes. Ficou surpreso ao ver que dormira
cerca de hora e meia.
- O bebê está em posição occipital posterior e não progride
explicou Monica. - Mas o pior é que o coração dele demora para voltar ao
ritmo normal após cada contração.
- Hora de fazer uma cesariana - concordou Jeffrey, pondo-se de
pé um tanto inseguro. Esperou por um instante até desaparecer a leve
tonteira.
- Você está bem? - admirou-se Monica.
- Perfeito - respondeu Jeffrey. Sentou-se numa cadeira para
enfiar os protetores de sapatos usados nas salas de cirurgia. - Qual é o
esquema de tempo?
- Simanian vai chegar nos próximos vinte minutos - respondeu
Monica, examinando a expressão no rosto de Jeffrey.
- Alguma coisa está errada? - perguntou Jeffrey. Passou os dedos
pelos cabelos, receoso de que estivessem de pé.
- Você está pálido - observou Monica. - Ou talvez seja a falta
de luz neste quarto.
Lá fora a chuva caía agora com mais força.
- Como vai indo Patty? - perguntou Jeffrey, encaminhando-se para
o banheiro.
- Está apreensiva - disse Monica, da porta. - No que diz


respeito à dor, vai bem, mas você podia estudar a idéia de dar-lhe um
tranqüilizante qualquer, só para mantê-la calma.
Jeffrey balançou afirmativamente a cabeça quando acendeu a luz.
Não tinha o menor entusiasmo por tranqüilizantes, mas ante as
circunstâncias ia pensar no caso.
- Certifique-se de que esteja recebendo oxigênio - disse a
Monica. - Estarei lá num segundo.
- Ela está no oxigênio - exclamou Monica por cima do ombro ao
sair do quarto.
Jeffrey examinou-se no espelho. Sua aparência estava mesmo
pálida. Depois observou algo mais: tinha as pupilas tão contraídas que
pareciam duas pontas de lápis. Nunca as vira tão pequenas. Não era de
admirar que tivesse encontrado dificuldade para enxergar as horas no
relógio.
Jogou água fria no rosto, esfregando-o vigorosamente. Pelo menos
isso o acordara. Examinou as pupilas de novo. Ainda estavam pequenas.
Respirou fundo e prometeu a si mesmo que, tão logo terminasse aquele
parto, iria para casa e se enfiaria na cama. Após ajeitar o cabelo com
as pontas dos dedos, dirigiu-se para o aposento quinze.
Monica tinha razão. Patty estava confusa, assustada e nervosa
com a proximidade da cesariana. Considerava-se culpada pelo fracasso no
trabalho de parto. Seus olhos encheram-se de lágrimas quando, mais uma
vez, exprimiu a raiva que sentia pela ausência do marido. Jeffrey teve
pena e fez um esforço enorme para convencê-la de que tudo ia dar certo,
e de que ela certamente não tinha a menor culpa pelo que acontecia.
Aplicou-lhe também cinco miligramas de diazepam na veia, o que, na sua
opinião, não iria afetar a criança que estava por nascer. Teve um rápido
efeito calmante sobre Patty.
- Estarei dormindo durante a cesariana? - quis saber Patty.
- Você se sentirá muito à vontade - respondeu Jeffrey, fugindo à
pergunta. - Um dos grandes méritos da anestesia penidural é que posso
prolongá-la agora que precisamos de um nível mais alto, sem perturbar a
pequenina Patty.
- É um menino - corrigiu Patty. - E o nome é Mark.
Ele sorriu fracamente. As extremidades dos seus lábios relaxaram
um pouco. O tranqüilizante estava agindo.
A transferência da Obstetrícia para a sala de cirurgia foi
realizada sem incidentes. Jeffrey manteve Patty com a máscara de
oxigênio durante a curta viagem.
O pessoal da cirurgia fora avisado quanto à decisão de realizar
uma cesariana. Quando Patty chegou, a sala estava praticamente pronta
para a intervenção. A enfermeira instrumentadora, com sua assepsia já
feita, punha em ordem os instrumentos. A enfermeira auxiliar ajudou a
conduzir a maca para dentro da sala e a transferir Patty para a mesa de


cirurgia. Ela ainda estava com o monitor fetal ligado, e assim iria
ficar por mais algum tempo.
Jeffrey não conhecia bem o pessoal da noite, e nunca tinha
trabalhado com aquela enfermeira auxiliar. O crachá dela dizia: Sheila
Dodenhoff.
- Vou precisar de um pouco de Marcaína a 0,50/o - disse Jeffrey
a Sheila quando passou Patty da garrafa de oxigênio portátil para o
oxigênio fornecido pela Narcomed III. Depois reaplicou o aparelho de
medir pressão arterial no braço esquerdo de Patty.
- Já vai - disse Sheila, animada.
Jeffrey trabalhou depressa mas com segurança. Escreveu todos os
procedimentos no seu registro de anestesista, ao realizá-los. Em agudo
contraste com a maioria dos outros médicos, ele se orgulhava de uma
caligrafia bem legível. Após registrar as indicações do
eletrocardiograma, colocou o oxímetro no dedo indicador esquerdo de
Patty. Estava substituindo o conduto intravenoso por um cateter mais
seguro quando Sheila voltou.
- Aqui está - disse ela, entregando a Jeffrey um frasco de vidro
com 30 mililitros de Marcaína a 0,5%. Jack pegou-o e, como sempre fazia,
checou o rótulo. Colocou o vidro no suporte superior do aparelho de
anestesia. Na gaveta, apanhou uma ampola com dois mililitros de Marcaína
a 0,50/o com adrenalina e sugou-a para dentro de uma seringa. Manobrando
Patty de modo a colocá-la sobre o lado direito, injetou os dois
mililitros no cateter penidural.
- Como vão indo as coisas? - perguntou uma voz ruidosa na
entrada do quarto.
Jeffrey virou-se para ver o Dr. Simanian pondo uma máscara no
rosto enquanto mantinha a porta aberta.
- Estaremos prontos num minuto - disse Jeffrey.
- Como vai o coraçãozinho da criança?
- Por enquanto, ótimo - respondeu Jeffrey.
- Vou me lavar e logo poremos esse show na rua.
A porta foi fechada. Jeffrey apertou o ombro de Patty enquanto
estudava o eletrocardiograma e a pressão arterial.
- Você está bem? - perguntou, afastando para o lado a máscara de
oxigênio.
- Acho que sim - respondeu ela.
- Quero que me informe qualquer coisa que sinta. Está
entendendo? Seus pés estão normais?
Patty fez que sim. Jeffrey deu a volta e testou a sensibilidade
dela. Voltando à cabeceira da cama e checando os monitores de novo,
certificou-se de que o cateter peridural não se movera e não penetrara
no canal espinhal ou numa das veias de Bateson, dilatadas pela gravidez.
Satisfeito por ver que tudo estava em ordem, agarrou o frasco de


Marcaína que Sheila lhe trouxera. Com o polegar, retirou a tampa do
vidro selado. Uma vez mais conferiu o rótulo, depois sugou 12
mililitros. Queria que a anestesia se estendesse até a vértebra T6, e
preferencialmente a 14.
Súbito, seus olhos surpreenderam os de Sheila. Estava de pé, à
sua esquerda, encarando-o fixamente.
- Alguma coisa errada? - perguntou ele.
Sheila sustentou o olhar por mais um segundo, girou nos
calcanhares e deixou a sala de cirurgia em silêncio. Jeffrey voltou-se
para ver se atraía a atenção da enfermeira encarregada da assepsia, mas
ela continuava ocupada. Deu de ombros. Estava acontecendo alguma coisa,
mas não sabia o que era.
Retornando para o lado de Patty, injetou a Marcaína. Depois
cobriu o cateter e voltou à cabeceira. Após descansar a seringa, anotou
no registro a hora e a quantidade exata da injeção. Uma ligeira
aceleração do bipe atraiu seus olhos para o monitor do
eletrocardiograma. Se ia haver qualquer mudança no ritmo cardíaco,
esperava uma ligeira redução a partir do bloqueio progressivo do sistema
nervoso simpático. Mas estava ocorrendo o oposto. O pulso de Patty se
acelerava. Foi o primeiro sinal do desastre iminente.
A reação inicial de Jeffrey foi mais de curiosidade que de
preocupação. Sua mente analítica precisava de uma explicação lógica para
o que ele estava testemunhando. Deu uma olhada na medida da pressão
arterial e no LED do oxímetro. Ambos estavam bem. Verificou de novo o
monitor de ECG. O pulso continuava batendo mais depressa, e, o que era
ainda mais perturbador, havia uma batida cardíaca irregular, ectópica.
Naquelas circunstâncias, não era um bom sinal.
Engoliu em seco quando o medo trancou sua garganta. Haviam
decorrido apenas alguns segundos desde que injetara a Marcaína. Poderia
ter sido intravenosa, a despeito do resultado da dose de teste? Tivera
outra reação adversa à anestesia local da sua carreira profissional. O
incidente fora horrível.
A freqüência das batidas ectópicas aumentou. Por que o ritmo
cardíaco mais intenso, e por que irregular? Se a dose do anestésico
tivesse penetrado na veia, por que a pressão arterial não estava caindo?
Jeffrey não tinha respostas imediatas para essas perguntas, mas seu
sexto sentido médico, fruto de anos de experiência, disparou sinos de
alarme na sua mente. Algo de anormal estava ocorrendo. Algo que não
conseguia explicar, e nem mesmo compreender.
- Não estou me sentindo bem - disse Patty, virando a cabeça para
falar do lado da máscara.
Jeffrey examinou seu rosto. Viu que estava mais uma vez anuviado
pelo medo.


- O que há com você? - perguntou, intrigado com a rapidez
daqueles eventos. Tocou-lhe o ombro.
- Estou me sentindo esquisita - disse Patty.
- Esquisita, como? - Os olhos de Jeffrey voltaram para os
monitores. Sempre há o receio do desenvolvimento de uma reação alérgica
quando se aplica anestesia local, embora o fato de já terem decorrido
duas horas desde a primeira dose tornasse essa hipótese um tanto
forçada. Notou que a pressão arterial subira ligeiramente.
- Ahhh! - gritou Patty.
Os olhos de Jeffrey voaram para o rosto dela. As feições de
Patty estavam retorcidas numa careta horrível.
- O que é, Patty? - quis saber.
- Sinto uma dor no estômago - Patty conseguiu responder, com a
voz muito rouca por entre os dentes cerrados. - Lá em cima, debaixo das
costelas. Diferente da dor do trabalho de parto. Por favor... - e sua
voz desapareceu.
Patty começou a se contorcer na mesa, contraindo as pernas.
Sheila apareceu com um enfermeiro musculoso, que deu uma ajuda tentando
contê-la.
A pressão arterial, que subira ligeiramente, começou a cair.
- Quero um calço sob o lado direito dela - gritou Jeffrey, ao
mesmo tempo em que apanhava efedrina na gaveta e preparava uma injeção.
Mentalmente, calculava até que ponto poderia deixar cair a pressão para
aplicar o agente vasoconstritor. Ainda não tinha idéia do que estava
acontecendo, e preferia não agir enquanto não soubesse exatamente o que
devia combater.
Um gorgolejo atraiu sua atenção para o rosto de Patty.
Arrancoulhe a máscara de oxigênio. Para sua surpresa e horror, ela
salivava como um cão danado. Ao mesmo tempo, chorava profusamente;
lágrimas deslizavam pelo seu rosto. A tosse em estertor sugeria que
estivesse acumulando secreções traqueobronquiais.
Jeffrey agiu o mais profissionalmente possível. Fora treinado
para enfrentar situações de emergência. Sua mente disparou, coletando
todas as informações, fazendo hipóteses e abandonando-as. Enquanto isso, tratava os sintomas que significavam risco de vida. Primeiro
sugou a nasofaringe de Patty, depois injetou atropina por via
intravenosa seguida de efednina. Fez nova sucção e depois injetou nova
dose de atropina. As secreções se reduziram, a pressão arterial
estacionou, a oxigeflaçãO permaneceu normal, mas Jeffrey ainda não
identificara a causa. Só COnseguia pensar numa reação alérgica à
Marcaína. Observou o monitor de ECG, com esperança de que a atropina
tivesse um efeito positivo sobre as batidas cardíacas, que, contudo,
permaneceram irregulares. Na verdade, tornaram-se ainda mais irregulares
quando o pulso de Patty acelerou. Preparou uma dose de quatro miligramas


de propranolol, mas antes de injetá-la reparou nas fibnilações
musculares que distorciam as feições de Patty numa série de espasmos e
contrações aparentemente incontroláveis. O fenômeno espalhou-se para os
outros músculos, até seu corpo inteiro ficar se sacudindo em espasmos
clônicos.
- Segure-a, Trent! - gritou Sheila para o enfermeiro. Prenda-lhe as pernas!
Jeffrey injetou o propranolol quando o monitor cardíaco começou
a registrar mais mudanças bizarras, insinuando a existência de um
comprometimento difuso do sistema de condução elétrica do coração.
Patty vomitou um pouco de bile verde que Jeffrey, rapidamente,
limpou. Deu uma olhada no oxímetro; ainda estava firme. Súbito o alarme
do monitor fetal disparou; o coração do bebê estava reduzindo o ritmo.
Antes que alguém pudesse reagir, Patty sofreu uma crise apoplética de
grande violência. Seus membros batiam desvairadamente em todas as
direções e, de repente, as costas se arquearam numa hiperextensão
estranha.
- Que diabo está acontecendo? - gritou Simarian, voando porta
adentro.
- Ë a Marcaína - berrou Jeffrey. - A paciente está tendo uma
reação fortíssima.
Jeffrey não teve tempo de explicar mais, enquanto preparava uma
dose de 75 miligramas de succinilcolina.
- Jesus Cnisto! - gritou Simanian, contornando a mesa para
segurar Patty.
Jeffrey injetou a succinilcolina e também uma dose adicional de
diazepam. Ainda bem que, graças à sua compulsão, mudara a via
intravenosa para algo mais seguro. A função áudio do oxímetro começou a
cair à medida que a oxigenação de Patty decrescia. Jeffrey novamente
limpou-lhe as vias aéreas e tentou fornecer oxigênio a cem por cento.
Os movimentos apopléticos de Patty se reduziram quando a
paralisia induzida pela succinilcolina se fez sentir. Jeffrey passou-lhe
um tubo pela traquéia, verificou sua posição e ventilou-a amplamente com
oxigênio. O som do oxímetro imediatamente alcançou a altura máxima. Mas
o monitor fetal Continuou dando o sinal de alarme. O ritmo do coração do
bebê caíra e não estava se recuperando.
- Temos que tirar o bebê! - gritou Simanian. Pegou luvas
estéreis em uma das mesinhas laterais e as calçou.
Jeffrey ainda estava atento à pressão arterial, que recomeçara a
cair. Ministrou a Patty outra dose de efednina. A pressão voltou a
subir. Deu uma olhada no monitor; não houvera melhora com o propranolol.
E então, para seu horror, exatamente quando estava olhando, o coração
desintegrou-se numa fibnilação sem sentido. Deixara de bater.
- Ela está tendo uma parada cardíaca! - gritou Jeffrey. A


pressão arterial caíra a zero. Tanto o monitor do eletrocardiograma
quanto o oxímetro dispararam seus alarmes.
- Meu Deus! - berrou Simanian. Agitado, estivera tentando
proteger a paciente, cobrindo-a. Deslocou-se sobre a mesa e deu início
ao processo de massagem cardíaca externa, comprimindo o tórax de Patty.
Sheila informou à Cirurgia sobre a situação. A ajuda pôs-se a caminho.
O carrinho da emergência chegou com mais enfermeiras. Com uma
velocidade de relâmpago, elas prepararam o desfibrilador. Uma enfermeira
especializada em anestesia chegou e foi diretamente para o lado de
Jeffrey.
O conteúdo de oxigênio no sangue de Patty subiu ligeiramente.
- Contrachoque! - ordenou Jeffrey.
Simarian tirou os terminais do desfibrilador de uma das
enfermeiras, e aplicou-os ao tórax nu de Patty. Todos recuaram,
afastando-se da mesa. Simanian apertou o botão. Como Patty estava
paralisada graças à succinilcolina, não houve efeito visível da corrente
elétrica, exceto na tela do monitor. A fibnilação desapareceu, e quando
o blipe fosforescente retornou, não havia uma batida de coração normal.
O aparelho traçou uma linha reta com apenas algumas leves variações.
- Outra massagem! - berrou Jeffrey, e olhou para o monitor. Não
podia acreditar que não houvesse atividade elétrica. O enfermeiro
substituiu Simanian e começou a comprimir o peito de Patty com bom
resultado.
O monitor fetal ainda se fazia ouvir. Mas o ritmo do coração da
criança estava muito fraco.
- Temos que salvar a criança! - gritou Simanian.
Trocou de luvas e rapidamente apanhou bandagens extras com a
enfermeira da assepsia. Posicionou-as o melhor que pôde, a despeito da
massagem cardíaca. Então pegou um bisturi na bandeja de instrumentos e
pôs-se a trabalhar. Fazendo uma ampla incisão vertical, abriu o abdome
inferior de Patty. Com a pressão arterial reduzida, houve pouca
hemorragia. Um pediatra apareceu e preparou-se para segurar o bebê.
A atenção de Jeffrey, continuou voltada para Patty. Fez nova
sucção e ficou surpreso com a quantidade de secreção recolhida, mesmo
após duas doses de atropina. Observando-lhe as pupilas, ficou satisfeito
ao ver que não estavam dilatadas. Na verdade, surpreendeu-se por estarem
reduzidas a dois pontos. Com o nível de oxigenação permanecendo alto,
decidiu não introduzir mais drogas no sistema de Patty até que o parto
do bebê terminasse. Rapidamente, explicou o que acontecera à enfermeira
anestesista.
- O senhor acha que foi uma reação à Marcaína? - perguntou ela.
- É a única coisa em que sou capaz de pensar - admitiu Jeffrey.
No minuto seguinte, um bebê flácido, azulado e quieto foi retirado do
abdome de Patty. Após o corte do cordão, entregaram-no rapidamente ao


pediatra, que estava à espera. O pediatra correu com o recém-nascido
para o local onde estava a equipe de tratamento infantil, onde foi
cercado pelo grupo de ressurreição. A enfermeira anestesista juntou-se a
esse grupo.
- Não gosto deste eletrocardiograma reto - disse Jeffrey a si
mesmo enquanto injetava um amplo volume de adrenalina. Observou a tela
do monitor. Nenhuma reação. Tentou então outra dose de atropina. Nada.
Exasperado, retirou um pouco de sangue arterial e mandou para o
laboratório.
Ted Overstreet, um cirurgião cardíaco que acabara de realizar a
implantação de ponte de safena, entrou e se colocou ao lado de Jeffrey.
Depois que este explicou a situação, Overstreet sugeriu que a abrissem.
A enfermeira anestesista voltou com a notícia de que o bebê não
estava bem.
- O teste de Apgar deu apenas três - disse ela. - Está
respirando, o coração bate, mas não está bem. E o tono muscular não é
bom. Na verdade, é estranho.
- Como assim? - perguntou Jeffrey, lutando contra uma onda de
depressão.
- A perna esquerda dele se move adequadamente, mas a direita
não. Está completamente flácida. E com os braços acontece exatamente o
contrário.
Jeffrey sacudiu a cabeça. Por certo a criança sofrera
deficiência no fornecimento de oxigênio enquanto ainda no útero e tivera
o cérebro danificado. A constatação era chocante. Mas não havia tempo
para lamentações. Naquele momento sua maior preocupação era Patty e como
fazer o coração dela funcionar de novo.
A avaliação do laboratório chegou. O pH de Patty era 7,28.
Naquelas circunstâncias, pensou Jeffrey, bastante bom. Injetou a seguir
uma dose de cloreto de cálcio. Os minutos se arrastaram como horas
enquanto ele olhava para o monitor cardíaco, esperando algum sinal de
vida, alguma reação ao tratamento. Mas o monitor continuava a exibir a
mesma linha decepcionante reta.
O enfermeiro continuou com as compressões torácicas e, através
do tubo, o ventilador mantinha os pulmões de Patty cheios de oxigênio
puro. As pupilas dela permaneciam mióticas, sugerindo que o cérebro
estava recebendo bastante oxigênio, só que o coração se conservava
elétrica e mecanicamente imóvel. Jeffrey repetiu todas as operações
recomendadas pelos manuais, mas nada. Chegou inclusive a aplicar o
desfibrilador em Patty com 400 joules.
Conseguindo estabilizar o estado do recém-nascido, o pediatra
fez com que toda a equipe de tratamento infantil abandonasse a sala de
cirurgia, juntamente com o grupo de residentes e enfermeiras. O pequeno
Mark estava a caminho da unidade de tratamento intensivo neonatal.


Jeffrey observou a saída deles. Sentia forte dor no coração. Sacudindo a
cabeça, amargurado, virou-se para Patty. Que fazer?
Ergueu os olhos para Ted, que ainda estava a seu lado.
Perguntou-lhe o que achava que deviam fazer. Jeffrey sentia-se
desesperado.
- Como eu disse, acho que devíamos abrir e trabalhar diretamente
no coração. Nesta altura, não há muito a perder.
Jeffrey olhou para o monitor com sua linha reta.
- OK. Vamos tentar - disse, relutante. Não tinha outra idéia, e
não queria desistir. Como Ted afirmara, nada tinham a perder. Valia a
pena tentar.
Ted preparou-se, avental novo e luvas, em menos de dez minutos.
Assim que ficou pronto, mandou o enfermeiro parar de comprimir o tórax
para que pudesse rapidamente cobrir a parte que devia ser coberta e
fazer a incisão. Em segundos, tinha diante de si o coração de Patty.
Ted massageou o órgão com a mão enluvada e chegou a injetar
adrenalina diretamente no ventrículo esquerdo. Quando isso não produziu
efeito, tentou recuperar o ritmo do coração prendendo sondas internas na
parede cardíaca. Daí resultou uma complexidade maior no eletro, mas o
coração não reagiu. Ted recomeçou a massagem cardíaca direta.
- Sem jogo de palavras - disse, após alguns minutos -, meu
coração não está mais participando disto. Receio que o jogo tenha
acabado, a menos que vocês disponham de um coração pronto para
transplante. Este aqui já acabou há muito tempo.
Jeffrey sabia que Ted não era tão insensível, e que aquela
atitude aparentemente irreverente era mais um mecanismo de defesa do que
falta de compaixão, mas mesmo assim sentiu-se profundamente magoado.
Teve que se conter para não reagir de forma agressiva.
Mesmo já tendo desistido, Ted continuou a massagem cardíaca. Os
únicos sons na sala de cirurgia eram os do monitor registrando a
descarga do marca-passo e o baixo zumbido do oxímetro reagindo às
massagens de Ted. Simarian quebrou o silêncio.
- Concordo - disse ele. E arrancou as luvas.
Ted olhou para Jeffrey através da cortina de éter que se erguera
rapidamente. Jeffrey fez que sim. Ted parou de massagear o coração e
retirou a mão do tórax de Patty.
- Sinto muito - disse.
Jeffrey balançou a cabeça outra vez, respirou fundo, e desligou
o ventilador. Olhou de novo para a trágica visão do corpo de Patty Owen
com seu abdome e tórax rudemente expostos. Essa visão terrível
acompanharia Jeffrey pelo resto da vida. O chão estava juncado de
recipientes e embalagens de drogas.
Sentia-se esmagado, aturdido. Era o ponto mais baixo da sua
carreira profissional. Testemunhara outras tragédias, mas aquela fora a


pior, a mais imprevista. Seus olhos desviaram-se para o aparelho de
anestesia. Também estava coberto de restos. Por baixo deles estava o
registro incompleto da anestesia. Teria que terminá-lo. Na tentativa
febril de salvar Patty, não lhe sobrara tempo. Procurou o frasco meio
vazio de Marcaína, sentindo uma raiva irracional. Embora parecesse
injustificada ante os resultados dos testes, não podia senão achar que
uma reação alérgica à droga estava na raiz da tragédia. Teve ímpetos de
atirar o frasco contra a parede, para descarregar sua frustração. Claro,
sabia que não ia atirar nada; era controlado demais para fazer isso. Mas
não conseguiu encontrá-lo no meio daquela confusão.
Sheila - Jeffrey dirigiu-se à enfermeira auxiliar, que
começava o processo de limpeza -, o que aconteceu com o frasco de Marcaína?
Sheila suspendeu o que estava fazendo e olhou para Jeffrey.
Se não sabe onde o pôs, certamente eu também não sei respondeu, irritada.
Jeffrey acenou que sim e voltou sua atenção à tarefa de desligar
Patty dos monitores. Podia entender a raiva de Sheila. Também
estava furioso. Patty não merecia aquele destino. O que Jeffrey não
percebeu foi que Sheila não sentia raiva do destino. Sentia raiva dele, Jeffrey.
Na verdade estava furiosa.
***
Capítulo 1.
SEGUNDA-FEIRA, 15 DE MAIO DE 1989, 11:15.
Um raio de luz dourada do sol da manhã entrou pela alta janela situada
na parede à esquerda de Jeffrey e cortou a sala da corte, atingindo como
um spotlight a parede de lambris por trás da poltrona do juiz. Milhões
de minúsculos grãos de poeira cintilaram e giraram no intenso raio de
sol. Desde o início do julgamento ele se sentira atingido pela
teatralidade do sistema de justiça. Só que agora não era uma novela de
televisão. A carreira de Jeffrey - toda a sua vida - estava em jogo.
Fechou os olhos e inclinou-se para a frente, sobre a banca da
defesa, aninhando a cabeça entre as mãos. Com os cotovelos abertos
obliquamente em cima da banca, esfregou os olhos com força. A tensão
estava a ponto de deixá-lo louco.
Respirando fundo, abriu os olhos, meio desejoso de que a cena
diante dele houvesse desaparecido magicamente e ele acordasse do pior
pesadelo da sua vida. Mas é claro que não se tratava de um pesadelo.
Estava sendo submetido ao segundo julgamento pela morte extemporânea de
Patty Owen, ocorrida oito meses antes. Naquele exato momento
encontrava-se na sala de sessões de um tribunal, no centro de Boston,
esperando que o júri decidisse seu destino após as acusações criminais.
Deu uma olhada por cima da cabeça do seu advogado para examinar
a multidão. Havia um rumor excitado de vozes contidas, um murmúrio de


expectativa. Desviou o olhar, sabendo que era o centro
de todas as conversas. Gostaria de poder esconder-se. Sentia-se
completamente humilhado pelo espetáculo público que se desenrolava tão
rapidamente. Toda a sua vida estava sendo exposta e desintegrada. Sua
carreira desmoronava. Sentia-se esmagado e estranhamente confuso.
Suspirou. Randolph Bingham, seu advogado, insistira que se
mostrasse calmo e controlado. Mais fácil dizer que fazer, especialmente
agora. Após tantas dores de cabeça, ansiedades e noites insones, faltava
pouco. O júri chegara a uma conclusão. O veredicto estava a caminho.
Estudou o perfil aristocrático de Randolph. O homem tornara-se
um pai para Jeffrey naqueles oito meses tão angustiosos, embora fosse
apenas cinco anos mais velho. Às vezes sentia quase amor por Randolph,
outras vezes algo mais próximo do ódio e da raiva. Mas sempre tivera
confiança na sua capacidade como advogado, pelo menos até agora.
Dando uma olhada na equipe de acusação, Jeffrey examinou o
promotor distrital. Tinha uma antipatia particular por aquele homem, que
parecia usar o caso como um veículo para progredir na sua carreira
política.
Podia apreciar-lhe a inteligência inata, não obstante tivesse
passado a desprezá-lo durante os quatro dias de julgamento. Mas agora,
observando-o a conversar animadamente com um assessor, percebeu que se
sentia estranhamente vazio de emoções em relação àquele homem, para quem
tudo não passara de um trabalho a ser feito, nada mais, nada menos.
Os olhos de Jeffrey desviaram-se para além do promotor e se
fixaram no compartimento vazio do júri. Durante o julgamento, a
constatação de que aqueles doze estranhos tinham o destino dele nas mãos
o paralisara. Nunca experimentara antes tanta vulnerabilidade. Até
aquele episódio, sempre vivera na ilusão de que seu destino dependia em
grande parte das próprias mãos. O julgamento mostrara o quanto estivera
enganado.
O júri deliberava há dois dias, de ansiedade, e - para Jeffrey duas noites sem dormir. Agora que esperava pela volta dos jurados à sala
de sessões, mais uma vez perguntou-se se os dois dias de deliberações
teriam sido um bom ou mau presságio. Randolph, com seu irritante modo
conservador, não fazia especulações. Jeffrey achava que o homem devia
ter até mentido, mesmo que fosse só para lhe dar umas poucas horas de
relativa paz.
A despeito das suas boas intenções para não se mostrar inquieto,
pôs-se a torcer o bigode. Quando percebeu o que estava fazendo, cruzou
as mãos à sua frente e colocou-as sobre a banca.
Deu uma espiada por cima do ombro esquerdo e vislumbrou Carol,
que em breve seria sua ex-esposa. Ela mantinha a cabeça abaixada e lia
qualquer coisa. Voltou a olhar para o banco vazio do juiz. Podia
sentir-se irritado por ela estar calma o bastante para ficar lendo num


momento daqueles, mas não. Pelo contrário, sentia-se agradecido pelo
fato de ela estar ali, por ter-lhe dado todo o apoio. Afinal, já antes
de começar aquele pesadelo legal, os dois haviam chegado à conclusão de
que deviam se separar.
Quando se casaram, oito anos passados, não parecera importante
que Carol fosse extremamente social e extrovertida, enquanto que ele
tendia para o oposto. Também não se incomodara com o fato de ela só
querer filhos depois que progredisse na sua carreira no banco, isto até
descobrir que esse depois significava nunca. E agora ela queria morar no
oeste, em Los Angeles. Ele poderia ter convivido com a idéia da mudança
para a Califórnia, mas havia o problema dos filhos. Com o passar dos
anos Jeffrey queria, cada vez mais, um filho. Ver as esperanças e
aspirações de Carol se moverem numa direção tão diferente causou-lhe
tristeza, mas descobriu que não iria lutar com ela. No início combatera
a idéia do divórcio, mas finalmente desistira. Concordou que,
simplesmente, não se destinavam um ao outro. Contudo, quando os
problemas de Jeffrey se materializaram, Carol oferecera-se para adiar a
questão doméstica até que as dificuldades legais fossem resolvidas.
Jeffrey suspirou de novo, mais alto do que antes. Randolph
dirigiu-lhe um olhar de desaprovação, mas Jeffrey não conseguia
considerar que as aparências ainda importassem àquela altura dos
acontecimentos. Sempre que pensava na seqüência de eventos, o efeito
sobre ele era deixá-lo tonto. Tudo acontecera de forma apressada. Após a
desastrosa morte de Patty Owen, as citações para a ação de imperícia
chegaram logo. No curso daquele clima de litígios, Jeffrey não se
surpreendera com a ação, exceto talvez pela rapidez.
Desde o princípio Randolph advertira Jeffrey que o caso seria
difícil. Jeffrey só não tivera idéia de quão difícil. Isso ocorreu antes
do Boston Memorial tê-lo suspenso. O que, na ocasião, lhe parecera uma
atitude caprichosa e estupidamente perversa. Por certo não era o tipo de
apoio ou voto de confiança com o qual contava. Nem Jeffrey nem Randolph
tinham suspeitado de qual teria sido o motivo da suspensão. Jeffrey
quisera agir contra o Boston Memorial por aquele ato injusto, mas Randolph o aconselhara a esperar. Achava que a questão seria
melhor resolvida após o encerramento da ação por imperícia.
Contudo, a suspensão foi apenas um alerta para os problemas
piores que ainda viriam. O advogado do querelante na ação de imperícia
era um jovem agressivo chamado Matthew Davidson, de uma firma de St.
Louis especializada em casos de imperícia médica. Era também associado a
uma pequena firma de direito com sede em Massachusetts. Acionara
Jeffrey, Simarian, Overstreet, o hospital, e até mesmo a Arolen
Pharmaceuticals, fabricante da Marcaína. Jeffrey nunca tinha respondido
a processo por imperícia. Randolph teve que explicar que aquele era a
abordagem tipo "escopeta". As pessoas que se julgam prejudicadas


processam todo mundo com "bolsos grandes", haja ou não prova de
envolvimento direto no suposto incidente de imperícia.
Ser um entre muitos proporcionou inicialmente um pouco de
consolo a Jeffrey, mas não por muito tempo. Logo tornou-se claro que
ficaria sozinho. Podia lembrar-se do ponto crítico, como se tivesse
ocorrido na véspera. Acontecera no curso do seu próprio testemunho, nos
primeiros momentos da ação cível. Fora ele o primeiro a subir ao banco
das testemunhas. Davidson estivera fazendo perguntas de rotina ligadas
ao passado, quando, de repente, passou a bater mais forte.
- Doutor... - começou Davidson, voltando o rosto magro e bonito
para Jeffrey e acrescentando um tom pejorativo ao título. Caminhou
diretamente para o banco das testemunhas e parou a centímetros de
Jeffrey. Vestia um impecável terno azul risca-de-giz, uma camisa
rosa-clara e uma gravata escura de tecido escocês, basicamente púrpura.
Recendia a colônia de boa qualidade. - O senhor já foi viciado em alguma
droga?
- Protesto! - exclamou Randolph, pondo-se de pé.
Jeffrey sentira-se como se estivesse observando a cena de algum
drama, não um capítulo da sua vida. Randolph justificou sua objeção.
- A pergunta é irrelevante para o motivo do processo. O advogado
do querelante está tentando confundir meu cliente.
- Não concordo - contrapôs Davidson. - A pergunta é extremamente
ligada às circunstâncias, conforme ficará evidenciado com o depoimento
de testemunhas que serão chamadas logo mais.
Por alguns momentos, o silêncio reinou no tribunal apinhado. A
divulgação trouxera notoriedade ao caso. Havia gente de pé, encostada na
parede dos fundos.
O juiz era um negro corpulento chamado Wilson. Empurrou os
óculos de aros grossos mais acima do nariz, e finalmente pigarreou.
- Se o senhor está me tapeando, Sr. Davidson, vai pagar caro por
isso.
- Eu certamente não iria enganá-lo, meritíssimo.
- Protesto indeferido - disse o juiz Wilson, balançando a cabeça
na direção de Davidson. - O senhor pode prosseguir, advogado.
- Muito obrigado - disse Davidson, ao mesmo tempo em que voltava
sua atenção para Jeffrey. - Devo repetir a pergunta, doutor?
- Não - respondeu Jeffrey. Lembrava-se muito bem da pergunta.
Lançou um olhar para Randolph, que rabiscava qualquer coisa num bloco
amarelo. Depois retribuiu o olhar firme de Davidson. Teve uma premonição
de que iria ter problemas. - Sim, tive um leve caso com drogas certa vez
- disse, com voz abafada. Era um antigo segredo e nunca imaginara que
emergeria, sobretudo num tribunal. Lembrara-se daquilo recentemente
quando tivera que preencher o formulário destinado à renovação da sua
licença médica em Massachusetts. Pensava, contudo, que a informação


fosse confidencial.
- O senhor poderia informar ao júri de qual droga foi viciado? perguntou Davidson, afastando-se para longe de Jeffrey, como se
estivesse revoltado demais para permanecer perto mais tempo que o
necessário.
- Morfina - disse Jeffrey, com um tom de voz quase desafiador. Há cinco anos. Tive problemas de dor nas costas após um sério acidente
de bicicleta.
Com o canto do olho, Jeffrey viu Randolph coçando a sobrancelha
direita. Tratava-se de um gesto previamente combinado para indicar que
ele queria que Jeffrey se limitasse à pergunta feita e não oferecesse
informações extras. Mas Jeffrey o ignorou. Estava furioso pelo fato
daquele irrelevante pedaço da sua vida estar sendo exumado. Sentiu
ímpetos de explicar e se defender. Certamente não era nenhum viciado em
drogas, por mais que se forçasse a imaginação.
- Durante quanto tempo o senhor foi viciado? - perguntou
Davidson.
- Menos de um mês - retrucou Jeffrey. - Foi uma situação em que
necessidade e desejo se confundiram.
- Compreendo - disse Davidson, erguendo as sobrancelhas num
gesto que realçava dramaticamente sua compreensão. - Foi assim que
explicou isso a si mesmo?
- Foi assim que o conselheiro encarregado do meu tratamento me
explicou - replicou Jeffrey. Viu Randolph coçando a sobrancelha
freneticamente, mas continuou a ignorá-lo. - O acidente de bicicleta
ocorreu numa época de crescente tensão doméstica. O cirurgião
ortopedista me receitou morfina. Acreditei que precisava dela por mais
tempo que o necessário, mas percebi o que ocorria em poucas semanas,
entrei em licença para tratamento de saúde no hospital e me apresentei
voluntariamente para tratamento. Assim como para aconselhamento
conjugal, poderia acrescentar.
- Durante essas semanas o senhor chegou a administrar
anestesia... - Davidson fez uma pausa, como se tentasse pensar em como
fazer a pergunta - ... sob a influência da droga?
- Protesto! - gritou Randolph. - Este tipo de interrogatório é
absurdo! É quase uma afirmação caluniosa.
O juiz baixou a cabeça para olhar por cima dos óculos, que mais
uma vez tinham escorregado no nariz.
- Sr. Davidson - disse, condescendente -, voltamos ao mesmo
ponto. Confio que tenha alguma razão válida para esta aparente
digressão.
- Perfeitamente, meritíssimo - disse Davidson. - Pretendemos
demonstrar que este testemunho tem ligação direta com o caso de que
tratamos.


- Protesto indeferido - determinou o juiz. - Prossiga.
Davidson voltou-se para Jeffrey e repetiu a pergunta. Parecia
apreciar particularmente a expressão "sob a influência da droga".
Jeffrey fulminou-o com um olhar. A única coisa de que estava
absolutamente seguro na vida era o seu senso de responsabilidade,
competência e desempenho profissional. O fato daquele homem estar
sugerindo outra coisa o enfureceu.
- Jamais comprometi um paciente - retorquiu.
- Não foi o que perguntei - disse Davidson.
Randolph levantou-se.
- Meritíssimo, peço licença para me aproximar.
- À vontade - concedeu o juiz.
Tanto Randolph quanto Davidson aproximaram-se dele. Randolph
estava obviamente enfurecido. Começou a falar num resmungar rouco.
Jeffrey, embora estivesse a apenas uns três metros de distância,
não conseguiu ouvi-los claramente, mas percebeu a palavra "recesso"
mencionada várias vezes. Em dado momento, o juiz recostou-se na cadeira
e olhou para ele.
- Dr. Rhodes - disse -, o seu advogado acredita que o senhor
precisa de um descanso. É verdade?
- Não preciso de descanso algum - retorquiu Jeffrey, furioso.
Randolph ergueu as mãos com as palmas para a frente, num gesto de
frustração.
- Ótimo - comentou o juiz. - Então continuemos com o
interrogatório, Sr. Davidson, de modo que possamos sair logo para
almoçar.
- Está bem, doutor - disse Davidson. - Alguma vez o senhor
administrou anestesia quando sob a influência da morfina?
- Pode ter acontecido uma ou duas vezes... - começou Jeffrey -,
mas...
- Sim ou não, doutor? - cortou Davidson. - Tudo que quero é um
simples sim ou não.
- Protesto! - exclamou Randolph. - O advogado não está
permitindo que a testemunha responda à pergunta.
- Nada disso - disse Davidson. - Fiz uma pergunta simples e
estou procurando uma resposta simples. Sim ou não.
- Protesto negado - disse o juiz. - A testemunha terá chance de
se estender mais numa reinquirição. Por favor, responda à pergunta, Dr.
Rhodes.
- Sim - disse Jeffrey. Podia sentir seu sangue ferver. Tinha
ímpetos de se levantar e estrangular o advogado de acusação.
- Desde o seu tratamento pelo vício da morfina... - começou
Davidson, afastando-se de Jeffrey. Enfatizou as palavras "vicio" e
"morfina", depois fez uma pausa. Parou junto da área onde ficavam os


jurados, virou-se e acrescentou: - ...O senhor algum dia usou morfina de
novo?
- Não - respondeu Jeffrey, convincente.
- O senhor tomou morfina no dia em que administrou anestesia à
infortunada Patty Owen?
- De modo algum - disse Jeffrey.
- Tem certeza, Dr. Rhodes?
- Tenho! - gritou Jeffrey.
- Não farei mais perguntas - disse Davidson, retornando à sua
cadeira.
Randolph fez o que pôde na reinquirição, enfatizando que o
problema da morfina fora banal e tivera vida curta, e que Jeffrey nunca
usava mais que uma dose terapêutica. Além disso, submetera-se voluntário
ao tratamento, recebera o certificado de "cura" e não fora sujeito a
qualquer ação disciplinar. Contudo, tanto Jeffrey quanto Randolph
sentiram que o caso recebera um golpe terrível.
Nesse instante Jeffrey foi surpreendido pela súbita aparição de
um funcionário uniformizado do tribunal na porta da sala onde estava o
júri. Seu pulso disparou. Pareceu-lhe que o júri ia ser anunciado. Mas o
homem seguiu até a porta que dava para o gabinete do juiz e desapareceu.
A cabeça de Jeffrey voltou para o julgamento.
Cumprindo a palavra no que se referia ao assunto morfina,
Davidson trouxe-o de volta com outro depoimento totalmente inesperado, a
despeito dos testemunhos anteriores. A primeira surpresa surgiu na forma
de Regina Vinson.
Após as questões introdutórias usuais, Davidson perguntou-lhe se
tinha visto o Dr. Jeffrey Rhodes no fatídico dia da morte de Patty
Owens.
- Vi - respondeu Regina, encarando Jeffrey.
Jeffrey conhecia Regina vagamente, como uma das enfermeiras
noturnas da cirurgia. Não se lembrava de tê-la visto no dia em que Patty
morrera.
- Onde estava o Dr. Rhodes quando o viu? - perguntou Davidson.
- Na câmara de anestesia da sala de operações onze - disse
Regina, conservando os olhos fixos no réu.
Mais uma vez, Jeffrey teve a premonição de que algo ruim estava
a caminho, mas não conseguiu saber o que era. Lembrava-se de que
trabalhara na sala onze a maior parte do dia. Randolph inclinou-se e
cochichou:
- Onde é que ela está querendo chegar?
- Não tenho a menor idéia - respondeu Jeffrey, que não conseguia
desviar os olhos dos da enfermeira. Perturbava-o sentir que havia uma
evidente hostilidade naquela mulher.
- O Dr. Rhodes a viu? - perguntou Davidson.


- Sim - replicou Regina.
Súbito, Jeffrey lembrou-se. Visualizou a imagem daquele rosto
assustado quando ela puxou a cortina. O fato de que estivesse doente
naquele dia fatídico era outra coisa, além do problema da morfina, que
deixara de contar a Randolph. Chegara a pensar nisso, mas tivera medo.
Inicialmente considerara seu comportamento daquele dia como prova de
dedicação e sacrifício. Passado algum tempo, deixara de estar tão
seguro. Por isso, não contara a ninguém. Resolveu explicar tudo a
Randolph, mas era tarde demais.
Davidson olhou para os jurados, um por um, quando fez a pergunta
seguinte:
- Havia algo estranho no fato do Dr. Rhodes estar na câmara da
sala de Operações onze?
- Sim - respondeu Regina. - A cortina estava fechada e a sala de
operações não estava em uso.
Davidson manteve os olhos fixos nos jurados, e, após uma pequena
pausa, pediu:
- Por favor, diga ao tribunal o que o Dr. Rhodes estava fazendo
na câmara de anestesia de uma sala de operações vazia e com as cortinas
corridas.
- Estava se aplicando uma droga - disse Regina, parecendo
irritada. - Aplicando em si mesmo uma injeção intravenosa.
Um murmúrio excitado percorreu a sala de sessões. Randolph
virou-se para Jeffrey com uma expressão chocada. Jeffrey sacudiu a
cabeça, como a se desculpar.
- Eu posso explicar - disse, contrafeito.
Davidson prosseguiu.
- O que fez depois de ter visto o Dr. Rhodes "se aplicando uma
droga"?
- Procurei a supervisão, que chamou a chefe da anestesia - disse
Regina. - Infelizmente, ela só foi encontrada após a tragédia.
Imediatamente após o ruinoso testemunho de Regina, Randolph
conseguiu obter um recesso. Quando se viu sozinho com Jeffrey, exigiu
que este lhe explicasse o episódio. Jeffrey contou que estivera doente
naquele dia, acrescentando que não havia outro anestesista disponível
para o parto. Explicou que tudo o que fizera, inclusive ministrar-se a
injeção e tomar elixir paregórico, tinha por finalidade continuar
trabalhando.
- O que mais você não me contou? - quis saber Randolph, furioso.
- Só isso - disse Jeffrey.
- Por que não me contou antes? - retorquiu Randolph.
Jeffrey sacudiu a cabeça. Na verdade, não estava muito seguro.
- Não sei - disse. - Jamais gostei de admitir que estava doente,
nem mesmo para mim, e menos ainda para outra pessoa. Muitos médicos são


assim. Talvez seja parte da nossa defesa, por estarmos cercados de
doenças. Gostamos de pensar que somos invulneráveis.
- Não estou lhe pedindo um editorial - Randolph praticamente
berrou. - Guarde-o para o New England Journal ofMedicine. O que quero
saber é por que você não contou a mim, seu advogado, que foi visto "se
aplicando uma droga" naquela manhã.
- Acho que tive medo de lhe contar - admitiu Jeffrey. - Fiz tudo
o que era possível por Patty Owen. Qualquer um pode ler o registro e
atestar isso. A última coisa que eu queria era admitir que pudesse haver
dúvidas quanto a estar na minha melhor forma. Talvez eu tivesse medo de
que você não iria me defender com a mesma convicção se pensasse que eu
era, mesmo que remotamente, culpado.
- Jesus Cristo! - exclamou Randolph.
Mais tarde, novamente na sala de sessões, durante a
reinquirição, Randolph procurou controlar os danos. Deixou bem claro que
Regina não sabia se Jeffrey estava injetando em si uma droga ou apenas
tomando uma medicação para se reidratar.
Mas Davidson ainda não terminara. Trouxe Sheila Dodenhoff para
testemunhar. E, tal como Regina, ela olhava agressivamente para Jeffrey
enquanto depunha.
- Srta. Dodenhoff - perguntou Davidson -, como enfermeira
auxiliar durante a tragédia da Sra. Owen, viu algo estranho no acusado?
- Sim, vi - respondeu Sheila, triunfante.
- Por favor, diga à corte o que viu - pediu Davidson, obviamente
deleitando-se com o momento.
- Observei que as pupilas dele estavam muito pequenas respondeu Sheila. - Notei isso porque os olhos dele são muito azuis. Na
verdade, mal consegui vê-las.
A testemunha seguinte da acusação era um oftalmologista famoso
de Nova York que escrevera um tomo exaustivo sobre a função da pupila.
Após estabelecer as eminentes credenciais da testemunha, Davidson
pediu-lhe para informar qual era a droga mais comum que faz as pupilas
se contraírem muito - que causa miose, como o médico preferia chamar tal
condição.
- O senhor se refere a uma droga sistêmica ou a um colírio? perguntou o oftalmologista.
- Uma droga sistêmica - disse Davidson.
- Morfina - afirmou o médico, seguro. A seguir iniciou uma
dissertação complicada sobre o núcleo de Edinger-Westphal, mas Davidson
dispensou-o e entregou-o a Randolph.
Enquanto o julgamento se arrastava, Randolph tentou consertar o
dano, dizendo que Jeffrey tomara elixir paregórico para diarréia. Como é
um remédio composto de tintura de ópio, e como o ópio contém morfina,
deduzia-se que o paregórico fizera as pupilas de Jeffrey se contraírem.


Explicou também que Jeffrey aplicara em si mesmo uma medicação para
tratar sintomas de gripe, freqüentemente causados por
0desidratação. Mas o júri pareceu não engolir suas explicações,
especialmente depois que Davidson trouxe um respeitado especialista em
clínica médica para depor.
- Diga-me, doutor - pediu Davidson, untuoso -, é comum os
médicos aplicarem injeções na veia em si mesmos, como se sugeriu que o
Dr. Rhodes teria feito?
- Não. Já ouvi alguns boatos sobre residentes em cirurgia
extremamente dedicados fazerem algo assim, mas mesmo que tais boatos
sejam verdadeiros, certamente não é uma prática comum.
Um golpe terrível ocorreu quando Davidson chamou Marvin
Hickleman para depor. Era um dos auxiliares das salas de cirurgia.
- Sr. Hickleman - perguntou Davidson -, o senhor limpou a sala
de operações quinze após o caso Patty Owen?
- Sim, limpei - respondeu Marvin.
- Pelo que sei, o senhor encontrou algo no cesto de refugos de
risco biológico que fica ao lado do aparelho de anestesia. Pode dizer à
corte o que foi?
Marvin pigarreou.
- Encontrei um frasco vazio de Marcaína.
- Que concentração mencionava o rótulo? - perguntou Davidson.
- Mencionava 0,75% - informou Marvin.
Jeffrey inclinou-se e sussurrou para Randolph:
- Usei 0,5%. Tenho certeza.
Como se tivesse ouvido o que Jeffrey dissera, Davidson
perguntou:
- O senhor encontrou algum vidro de 0,5%?
- Não - respondeu Marvin -, não encontrei.
Na reinquirição, Randolph tentou desacreditar o depoimento de
Marvin, mas só conseguiu tornar as coisas piores.
- Sr. Hickleman, o senhor sempre examina o lixo quando limpa uma
sala de cirurgia? E sempre verifica as concentrações dos vários frascos
de drogas?
- Claro que não!
- Mas procedeu assim neste caso em particular.
- Positivo!
- Pode nos dizer por quê?
- A supervisora de enfermagem me pediu.
O golpe final foi desferido pelo Dr. Leonard Simon, de Nova
York, um renomado anestesista que Jeffrey conhecia. Davidson foi direto
ao Ponto.
- Dr. Simon. Marcaína a 0,75% é recomendada para anestesia
peridural obstétrica?


- Absolutamente não - disse o Dr. Simon. - Na verdade, é
contra-indicada. A advertência está claramente escrita na bula e nos
manuais de farmacologia. Todo anestesista sabe disso.
- O senhor pode nos dizer porque é contra-indicada em
obstetrícia?
- Descobriu-se que às vezes causa sérias reações.
- Que tipo de reações, doutor?
- Toxicidade no sistema nervoso central...
- Isso pode causar convulsões?
- Sim, tem sido registrada a ocorrência de convulsões.
- Que mais?
- Toxidez cardíaca.
- Significando...
- Arritmia, parada cardíaca.
- E tais reações podem ser fatais?
- Exatamente - disse o Dr. Simon, batendo o último prego no
caixão de Jeffrey.
O resultado foi que Jeffrey, e exclusivamente Jeffrey foi
considerado culpado por imperícia. Simarian, Overstreet, o hospital e a
companhia farmacêutica foram liberados. O júri concedeu ao espólio de
Patty onze milhões de dólares: nove mais que a cobertura do seguro por
imperícia de Jeffrey.
No fim do julgamento, Davidson ficou claramente desapontado por
ter feito um trabalho tão bom destruindo Jeffrey. Como os outros
indiciados foram considerados inocentes, ele perdeu a chance de ganhar
uma quantia superior ao seguro de Jeffrey, mesmo que este fosse
vinculado ao resto da sua vida.
Para Jeffrey, o resultado foi devastador, tanto pessoal como
profissionalmente. A imagem que fazia de si como pessoa e como médico
sempre tivera por base o seu senso de dedicação, engajamento e
sacrifício. O julgamento e a decisão do júri tinham destruído tudo isso.
Chegou inclusive a duvidar de si mesmo. Talvez tivesse usado Marcaína a
0,75% por acidente.
Jeffrey poderia ficar deprimido, mas não teve tempo para isso.
Ante a notícia de ter "agido sob a influência de uma droga" e o feroz
sentimento antidrogas da época, o promotor resolvera acusá-lo
criminalmente. Para total descrença de Jeffrey, ele agora estava sendo
acusado de assassinato em segundo grau. Era desta outra acusação que
aguardava o veredicto do júri.
Os devaneios de Jeffrey foram novamente interrompidos pelo
funcionário uniformizado, quando reapareceu voltando do gabinete do
juiz, que neste segundo julgamento era uma mulher, e esgueirou-se para o
recinto de reuniões do júri. Por que demoravam tanto? Era uma tortura.


Jeffrey viu-se perseguido por uma sensação fortíssima de déjà vu, porque
o julgamento criminal, de quatro dias, não decorrera de modo muito
diferente do julgamento cível. Só que desta vez as apostas eram mais
altas.
Perder dinheiro, mesmo não o tendo, era uma coisa. O espectro de
uma condenação criminal e uma prisão a ser obrigatoriamente cumprida era
outra, muito diferente.
Na verdade, não acreditava que pudesse suportar a vida atrás das
grades. Se isso era devido a um medo racional ou a uma fobia irracional,
não sabia. De qualquer maneira, disse a Carol que passaria o resto da
vida em outro país para não ter que enfrentar a prisão.
Jeffrey ergueu os olhos para o banco vazio da juíza. Dois dias
atrás ela se dirigira aos jurados antes que se retirassem para
deliberar. Algumas das suas palavras ecoaram na cabeça de Jeffrey e
afastaram seus receios.
- Membros do júri - dissera a juíza Janice Maloney -, antes de
considerarem o indiciado, Dr. Jeffrey Rhodes, culpado de homicídio de
segundo grau, a comunidade tem que provar, além de qualquer dúvida
razoável, que a morte de Patty Owen foi causada por um ato sumamente
perigoso para outra pessoa e que revele uma mente depravada, indiferente
à vida humana. Um ato é "sumamente perigoso" e "revela uma mente
depravada", se uma pessoa de bom senso tiver razoável certeza de que
mataria ou causaria sérios danos corporais a outrem. Será também assim
classificado se for resultante de rancor, ódio ou intenção dolosa.
Jeffrey supunha que o resultado do caso dependia de o júri
acreditar ou não que tinha tomado morfina. Se acreditasse que sim,
acharia que ele agira com intenção dolosa. Pelo menos assim Jeffrey
pensaria, se fosse um dos jurados. Afinal de contas, ministrar anestesia
era sempre muito perigoso. A única coisa que a distinguia de uma
agressão criminosa era o consentimento informado.
Mas as palavras da juíza ao júri que tinham sido mais
ameaçadoras para Jeffrey, envolviam a parte referente à punição. Ela
informara aos jurados que, mesmo uma condenação de homicídio de menor
grau, exigiria uma sentença de no mínimo três anos de prisão.
Três anos! Jeffrey começou a suar e a sentir frio ao mesmo
tempo. Passou a mão na testa e seus dedos ficaram úmidos.
- Queiram levantar-se! - exclamou o meirinho, acabando de sair
da sala dos jurados. Depois ficou num lado. Todos na sala de sessões do
tribunal arrastaram os pés, levantando-se. Muitos esticaram o pescoço,
na esperança de antecipar o veredicto pela expressão dos jurados, quando
aparecessem.
Distraído em seus pensamentos, Jeffrey foi surpreendido pelo
tenso anúncio feito pelo funcionário do tribunal. Reagiu com excesso,
pondo-se de pé num pulo. Sentiu-se momentaneamente tonto e teve que se


apoiar na banca dos advogados de defesa.
Nenhum dos jurados, entrando em fila, estabeleceu contato visual
com Jeffrey. Seria um bom ou um mau indício? Jeffrey teve vontade de
perguntar a Randolph, mas teve medo.
- A meritíssima juíza Janice Maloney - exclamou o meirinho
quando a juíza saiu do gabinete e sentou-se na sua poltrona. Arrumou na
sua frente o que havia sobre a mesa, empurrando o jarro d'água para o
lado. Era uma mulher magra, de olhos intensos.
- Queiram sentar-se - autorizou o funcionário do tribunal. - Os
jurados, por favor, permaneçam de pé.
Jeffrey sentou-se, sempre observando os membros do júri. Nenhum
dos integrantes olhava para ele, fato que cada vez mais o perturbava.
Jeffrey concentrou-se na figura de cabeça branca e ar de avó que ficava
na extrema esquerda da fileira da frente. Durante o julgamento ela
freqüentemente olhara na sua direção. Por intuição, Jeffrey achara que
sentia um certo apreço por ele. Mas não agora. Estava com as mãos
cerradas à sua frente, os olhos baixos.
O amanuense do tribunal ajustou os óculos. Estava sentado diante
de uma mesa logo abaixo do banco da juíza e à direita. O gravador ficava
bem na frente dele.
- O indiciado, por favor, levante-se e encare o júri - disse.
Jeffrey levantou-se de novo, desta vez com calma. Agora todos os
jurados o encaravam. Mesmo assim, seus rostos pareciam esculpidos em
pedra. Jeffrey sentiu sua pulsação latejando nos ouvidos.
- Senhora primeira jurada - exclamou o funcionário. Era uma
mulher bonita, de trinta e muitos anos, com ar de professora. - O júri
chegou a um veredicto?
- Sim - respondeu a representante dos jurados.
- Meirinho, por favor, apanhe o veredicto - ordenou o
funcionário.
O meirinho adiantou-se e apanhou uma folha de papel das mãos da
jurada. Depois entregou-a à juíza.
A juíza leu, inclinando a cabeça para trás a fim de acertar a
distância dos óculos bifocais. Demorou-se, balançou a cabeça e depois
entregou o papel de volta ao funcionário que se levantara para
recebê-lo.
Também ele se demorou bastante. Jeffrey sentiu intensa irritação
por toda aquela demora desnecessária, enquanto permanecia de pé, fitando
os inexpressivos jurados. A corte o insultava, zombava dele com o
protocolo arcaico. Seu coração agora batia mais depressa, e as palmas
das mãos estavam molhadas de suor. A sensação que tinha era de algo
queimando no seu peito.
Após clarear a garganta, o funcionário virou-se para o júri.
- Queira dizer, senhora primeira jurada, o acusado é culpado ou


não da acusação de homicídio de segundo grau?
As pernas de Jeffrey começaram a tremer. Sua mão esquerda
apoiou-se na beira da banca dos advogados. Não era especificamente
religioso, mas deu-se conta de estar rezando. Por favor, meu Deus...
- Culpado! - exclamou a primeira jurada com voz clara e
ressonante.
Jeffrey sentiu as pernas oscilarem quando a sala do tribunal
subitamente girou à sua volta. Agarrou-se na banca com a mão direita
para se amparar. Sentiu que Randolph segurava seu braço.
- Este é apenas o primeiro round - sussurrou Randolph no seu
ouvido. - Vamos apelar, fazer como fizemos com o julgamento de
imperícia.
O funcionário lançou um olhar reprovador a Jeffrey e Randolph,
depois virou-se para o júri e disse:
- Senhora primeira jurada e demais membros do júri, ouçam o seu
veredicto tal como foi registrado pela corte. Os membros do júri, sob
juramento, declaram que o indiciado é culpado das acusações que lhe
foram feitas. É o que a senhora diz, senhora primeira jurada?
- Sim - respondeu a mulher.
- É o que dizem os senhores, membros do júri?
- Sim - repetiram os jurados em uníssono.
O funcionário voltou sua atenção para os livros dos quais era
encarregado, enquanto a juíza começava a dispensar o júri. Agradeceu o
tempo e a consideração que haviam dedicado ao caso, louvando o papel que
tinham desempenhado na sustentação de uma bicentenária tradição de
justiça.
Jeffrey sentou-se pesadamente, sentindo-se aturdido e gelado.
Randolph falava com ele, lembrando-lhe que o juiz da ação de imperícia
jamais permitiria que se abordasse a questão do seu problema de droga.
- Além disso, todas as provas são circunstanciais. Não há uma
única prova concreta e definitiva de que você tenha tomado morfina.
Nenhuma!
Mas Jeffrey não estava ouvindo. As conseqüências daquele
veredicto eram por demais esmagadoras para ficar analisando-as. Lá no
fundo, percebeu que apesar de todos os seus receios, nunca realmente
acreditara que seria condenado - simplesmente porque não era culpado.
Jamais estivera envolvido com o sistema legal antes, e sempre confiara
que "a verdade surgiria à tona" se algum dia fosse acusado erradamente.
Mas essa crença era falsa. Agora estava indo para a prisão
Prisão! Como que para enfatizar o fato, o oficial de justiça
veio algemá-lo. Jeffrey limitou-se a ficar olhando, incrédulo. Reparou
na superfície polida das algemas. Era como se o tivessem transformado
num criminoso, num prisioneiro, mais ainda que o veredicto do júri.


Randolph murmurava palavras de encorajamento. Ajuiza ainda
estava se dirigindo ao júri. Jeffrey não ouviu uma só palavra. Sentiu a
depressão descer sobre ele como um cobertor de chumbo. Competindo com a
depressão, havia o sentimento de pânico provocado pela iminente
claustrofobia. A idéia de se ver trancado numa cela evocava imagens
assustadoras, como a de ser preso sob os cobertores pelo irmão mais
velho, no tempo de criança, enchendo-se de medo de morrer asfixiado.
- Meritíssima - disse o promotor, levantando-se, assim que os
jurados se retiraram em fila. - A comunidade espera a sentença.
- Não agora - disse a juíza. - A corte programará os
procedimentos relativos à pena após uma investigação de
pré-sentenciamento feita pelo departamento executivo. O senhor tem uma
data adequada, Sr. Lewis?
O funcionário consultou a agenda.
- Sete de julho me parece viável.
- Pois será a 7 de julho - decidiu a juíza.
- A comunidade requer que a fiança seja negada, ou então que o
seu valor seja bem elevado - acrescentou o promotor distrital. - A
comunidade sugere que, no mínimo, a fiança seja aumentada de cinqüenta
mil para quinhentos mil dólares.
- Muito bem, Sr. Promotor Distrital - disse a juíza -, mas quero
ouvir as suas razões.
O promotor saiu de trás da mesa da acusação, ficando bem de
frente para a juíza.
- A séria natureza da acusação mais o veredicto exigem uma
fiança significativa, consentânea com a gravidade do crime pelo qual ele
foi condenado. Correm boatos de que o Dr. Jeffrey Rhodes preferiria
fugir a enfrentar a punição imposta pela corte.
A juíza voltou-se para Randolph, que se levantou.
- Meritíssima juíza - começou -, eu gostaria de enfatizar à
corte que meu cliente tem significativos laços com a comunidade e sempre
demonstrou um comportamento responsável. Não tem registro criminal
anterior. De fato, tem sido um membro exemplar da sociedade, produtivo e
cumpridor das leis. Certamente vai se apresentar para inteirar-se da
sentença. Creio que cinqüenta mil dólares seriam uma fiança suficiente;
quinhentos mil, um exagero.
- Seu cliente alguma vez expressou a intenção de fugir a uma
punição? - perguntou a juíza, olhando por cima dos óculos.
Randolph olhou para Jeffrey, cujo olhar se desviou para as
próprias mãos. Voltando-se para a juíza, Randolph assegurou:
- Não acredito que meu cliente tenha pensado ou dito tal coisa.
A juíza olhou lentamente, várias vezes, ora para Randolph, ora
para o promotor. Finalmente decidiu-se:
- Fiança estipulada em quinhentos mil dólares... em dinheiro. -


Depois, olhando diretamente para Jeffrey prosseguiu: - Dr. Rhodes, como
réu condenado, o senhor não pode sair da área de Massachusetts. Está
claro?
Jeffrey balançou a cabeça humildemente.
- Meritíssima...! - protestou Randolph.
Mas a juíza limitou-se a bater uma vez com o martelo e se
levantou, dando claramente a sessão por encerrada.
- Todos de pé! - clamou o oficial de justiça.
Com a toga rodopiando, a juíza ianice Maloney saiu do tribunal e
desapareceu pela área do gabinete dos magistrados. Todos começaram a
falar ao mesmo tempo.
- Por aqui, Dr. Rhodes - disse o oficial de justiça ao lado de
Jeffrey, fazendo um gesto na direção de uma porta lateral. Jeffrey
levantou-se e saiu em passos inseguros. Deu uma rápida olhada na direção
de Carol. Ela o encarava tristemente.
O pânico de Jeffrey aumentou quando o levaram para uma sala onde
só havia uma mesa e algumas cadeiras muito simples. Sentou-se na que lhe
era indicada por Randolph. Embora se esforçasse ao máximo para manter a
compostura, não podia fazer com que as mãos parassem de tremer.
Respirava com dificuldade.
Randolph fez o melhor que pôde para acalmá-lo. Estava indignado
ante o veredicto e otimista com a apelação. Nesse momento, Carol entrou,
escoltada, no pequeno cômodo. Randolph deu-lhe uma palmadinha nas costas
e disse:
- Converse com ele. Vou telefonar para o homem da fiança.
Carol acenou que sim e olhou para Jeffrey.
- Sinto muito - disse, depois que Randolph saiu.
Jeffrey balançou a cabeça. Carol tinha se mostrado amiga,
ficando a seu lado. Os olhos dele estavam úmidos e brilhantes. Mordeu os
lábios para impedir o choro.
- Que coisa injusta - comentou ela, sentando-se ao lado dele.
- Não posso ir para a prisão - foi tudo o que Jeffrey conseguiu
dizer. Sacudiu a cabeça. - Ainda não posso acreditar que esteja
acontecendo.
- Randolph vai apelar - disse Carol. - Não há nada definitivo.
- Apelações - disse Jeffrey com nojo. - Vão repetir tudo. Já
perdi duas vezes...
- Não vão repetir coisa nenhuma - disse Carol. - Apelando,
teremos juizes mais experientes examinando as provas, e não um júri
emotivo.
Randolph voltou do telefone para dizer que Michael Mosconi, o
homem da fiança, estava a caminho. Randolph e Carol iniciaram uma
conversa animada sobre o processo de apelação. Jeffrey pôs os cotovelos
sobre a mesa e, apesar das algemas, conseguiu apoiar a cabeça nas mãos.


Pensava na sua licença para clinicar, imaginando o que fariam com ela
por causa do veredicto. Infelizmente, tinha uma boa idéia a respeito do
que ia acontecer.
Michael Mosconi não demorou a chegar, trazendo sua valise. O
escritório dele ficava a poucos passos do tribunal, no edificio curvo em
frente ao Centro do Governo. Não era um homem grande, mas tinha a cabeça
enorme e quase calva. O pouco cabelo crescia em forma de quarto
crescente, e se espraiava em torno da nuca, de orelha a orelha. Alguns
fios mais escuros eram penteados diretamente sobre a careca, num inútil
esforço para conseguir alguma cobertura. Tinha os olhos tão intensamente
escuros que pareciam ser só pupilas. Vestia-se estranhamente, com um
terno azul de poliéster, camisa preta e gravata branca.
Mosconi colocou a valise sobre a mesa, abriu ruidosamente os
fechos e retirou uma pasta etiquetada com o nome de Jeffrey.
- OK - começou, sentando-se também e abrindo a pasta. - Até onde
chegou o aumento da fiança?
Ele já tinha depositado os cinqüenta mil dólares iniciais,
recebendo mil pelos seus serviços.
- Quatrocentos e cinqüenta mil - respondeu Randolph.
Mosconi assobiou por entre os dentes, parando de mexer nos
papéis.
- Quem é que eles pensam que pegaram? O Inimigo Público Número
Um?
Nem Randolph nem Jeffrey acharam que lhe deviam a cortesia de
uma resposta.
A atenção de Mosconi voltou para os papéis, sem se preocupar com
a falta de resposta dos clientes. Já tinha feito um O&E, um cheque de
propriedade e gravame sobre a casa de Jeffrey e Carol em Marblehead
quando a fiança fora aventada inicialmente, caucionando o documento com
uma apólice de cinqüenta mil dólares sobre a casa, cujo valor estimado
era de oitocentos mil dólares, havendo uma hipoteca de pouco mais de
trezentos mil.
- Bem, embora não seja conveniente - disse -, posso acrescentar
uma hipoteca de mais quatrocentos e cinqüenta mil contra o seu pequeno
castelo em Marblehead. Que tal?
Jeffrey fez que sim. Carol deu de ombros.
Quando Mosconi começou a encher os documentos, disse:
- É claro que existe a pequena questão dos meus honorários, que
no caso são quarenta e cinco mil dólares. Prefiro receber em dinheiro.
- Não tenho uma quantia dessas em dinheiro - protestou Jeffrey.
Mosconi parou de escrever.
- Estou certo de que pode consegui-la - intrometeu-se Randolph.
- Suponho que sim - assentiu Jeffrey. Mas a depressão começava a
se instalar.


- Digam sim ou não. Não estou nisto para me distrair - reclarou
Mosconi.
- Levantarei o dinheiro - assegurou Jeffrey.
- Em geral, exijo pagamento adiantado - acrescentou Mosconi. Mas como você é médico.. - Riu. - Estou acostumado a lidar com uma
clientela meio diferente. No seu caso, aceito um cheque. Mas só se puder
levantar o dinheiro e depositá-lo na sua conta, digamos... a esta mesma
hora, amanhã. É possível?
- Não sei - respondeu Jeffrey.
- Se não sabe, terá que ficar em custódia até arranjar o
dinheiro - disse Mosconi.
- Vou conseguir - disse Jeffrey. A idéia de passar mesmo umas
poucas noites na cadeia lhe era intolerável.
- Você tem um talão de cheques?
Jeffrey fez que sim.
Mosconi prosseguiu preenchendo o formulário.
- Espero que o senhor entenda, doutor - disse -, que estou lhe
fazendo um favor enorme ao aceitar um cheque. Minha companhia não veria
isso com bons olhos, de modo que é melhor conservarmos o assunto entre
nós. O senhor terá o dinheiro em sua conta em 24 horas!
- Providenciarei esta tarde - garantiu Jeffrey.
- Maravilha - disse Mosconi. Empurrou os documentos na direção
de Jeffrey. - Agora, se vocês dois assinarem, irei correndo ao gabinete
do oficial de justiça para acertar tudo.
Jeffrey assinou sem ler. Carol leu o texto cuidadosamente e
depois assinou também. Em seguida retirou o talão do bolso do paletó de
Jeffrey, preencheu o cheque de quarenta e cinco mil dólares. Mosconi
pegou-o e guardou na valise. Depois levantou-se e dirigiu-se para a
porta.
- Voltarei logo - disse, com um sorriso matreiro.
- Tipo encantador - comentou Jeffrey depois que o homem saiu. Será que ele tem mesmo que se vestir daquele modo?
- Está lhe fazendo um favor - frisou Randolph. - Mas é verdade
também que você não é do tipo da ralé com que ele está acostumado a
lidar. Antes que volte, acho que devíamos conversar sobre a investigação
que vai ser feita antes da sentença e o que ela pode significar.
- Quando entraremos com a apelação? - quis saber Jeffrey.
- Imediatamente - respondeu Randolph.
- E ficarei sob fiança até o apelo ser julgado?
- É bem provável - respondeu Randolph evasivamente.
- Graças a Deus pelos pequenos favores - disse Jeffrey.
Randolph explicou o que era a investigação que precederia a
sentença e o que Jeffrey podia esperar em relação à pena. Não queria
vêlo mais desmoralizado do que já estava, de modo que teve cuidado em


enfatizar os aspectos promissores da apelação. Contudo, o moral de
Jeffrey continuou baixo.
- Devo admitir que não tenho grande fé neste sistema legal disse Jeffrey.
- Você precisa pensar positivamente - disse Carol.
Jeffrey olhou para a mulher e começou a avaliar o quão furioso
estava. Naquelas CircunStânCias, Carol dizer-lhe que devia pensar
positivamente era algo bem irritante. Súbito, deu-se conta de que na
verdade estava furioso com o sistema, com o destino, com Carol e até
mesmo com seu advogado. Pelo menos a raiva era mais saudável que a
depressão.
- Está tudo em ordem - disse Mosconi, quando entrou pouco
depois. Brandia um documento certamente válido.
- Quer me fazer o favor? - disse, e com um gesto pediu ao
oficial de justiça para retirar as algemas do prisioneiro.
Jeffrey esfregou os pulsos aliviado ao se ver livre. O que mais
queria agora era afastar-se do tribunal. Levantou-se.
- Tenho certeza de que não preciso recordar-lhe a questão dos
quarenta e cinco mil dólares - disse Mosconi. - Basta que se lembre que
estou pondo o meu na reta por sua causa.
- Aprecio seu gesto - disse Jeffrey, tentando parecer
agradecido.
Deixaram o recinto juntos, mas Michael Mosconi se apressou a
seguir na direção oposta quando chegaram no hall.
Jeffrey nunca admirara tão conscientemente o ar fresco e
perfumado do mar como quando saiu do tribunal. Era uma tarde brilhante,
de primavera, com pequenas nuvens brancas e redondas impelidas pelo
vento no céu azul. O sol estava quente, mas à sombra fazia frio. Era
estranho como a ameaça de prisão aguçara os sentidos de Jeffrey.
Randolph afastou-se na larga praça em frente ao prédio
absurdamente moderno da prefeitura de Boston.
- Sinto muito que as coisas tenham saído assim. Fiz o melhor que
pude.
- Eu sei - disse Jeffrey. - Sei também que fui um péssimo
cliente e que lhe dificultei tudo.
- Nós nos acertaremos na apelação. Falo com você pela manhã.
Adeus, Carol.
Carol acenou, depois ela e Jeffrey ficaram observando Randolph
caminhar, com largas passadas, na direção da State Street, onde ele e
seus sócios ocupavam um andar inteiro num dos mais novos edifícios
comerciais de Boston.
- Não sei se ele fez um bom trabalho ou não, especialmente
dePois que fui condenado - suspirou Jeffrey. - Não sei se lhe devo amor
ou ódio.


- Eu diria que não se esforçou o bastante - disse Carol,
começando a dirigir-se para a garagem, onde estacionara o carro.
- Você não vai voltar para o trabalho? - perguntou Jeffrey,
seguindo-a. Carol trabalhava num banco de investimentos localizado na
área financeira, na direção oposta.
- Tirei o dia de folga - informou ela, por cima do ombro. Parou
quando viu que Jeffrey não a estava seguindo. - Eu não sabia quanto
tempo demoraria para sair o veredicto. Vamos, você pode me levar até
onde está o meu carro.
Jeffrey emparelhou com ela e os dois caminharam juntos,
contornando o City Hall.
- Como é que você vai levantar quarenta e cinco mil dólares em
vinte e quatro horas? - perguntou Carol, balançando a cabeça do seu
jeito característico. Tinha um cabelo louro acinzentado, fino, solto de
um modo tal que constantemente lhe caía sobre o rosto.
Jeffrey sentiu sua irritação crescer novamente. As finanças
tinham sido um ponto problemático no casamento deles. Carol gostava de
gastar, Jeffrey gostava de guardar. Quando se casaram, o salário de
Jeffrey era bem maior que o dela, de modo que a tendência de Carol para
gastar pesava sobre o salário dele. Quando o salário de Carol começou a
subir, tudo que ganhava passou a entrar na carteira de investimentos
dela, e o salário de Jeffrey continuou sendo usado para pagar todas as
despesas. Carol racionalizava dizendo que, se não trabalhasse, estariam
gastando, de qualquer modo, o salário de Jeffrey para tudo.
Jeffrey não respondeu imediatamente à pergunta da esposa.
Percebeu que naquele instante sua raiva estava mal orientada. Não se
sentia furioso com ela. As velhas brigas por causa de dinheiro eram como
água sob a ponte, e saber de onde viriam os quarenta e cinco mil dólares
era uma pergunta legítima. O que o irritava era o sistema legal e
aqueles que o geriam. Como podiam advogados como o promotor ou Mathew
Davidson conviver consigo mesmos se mentiam tanto? Pelos testemunhos
arranjados, Jeffrey sabia que não acreditavam em suas próprias manobras.
Os dois julgamentos de Jeffrey tinham sido um processo amoral em que os
advogados de acusação deixaram que seus fins justificassem meios
desonestos.
Jeffrey sentou-se ao volante do carro. Respirou fundo para
controlar a raiva e depois virou-se para Carol.
- Estou planejando aumentar a hipoteca da casa de Marblehead. Na
verdade, devíamos parar no banco a caminho de casa.
- Com o documento que acabamos de assinar, não creio que o
banco consinta em aumentar a hipoteca - disse Carol. Ela era uma
autoridade razoável no assunto; aquela era sua especialidade.
- É por isso que eu quero ir agora - disse Jeffrey. Depois deu a
partida no carro e saiu da garagem. - Ninguém sabe ainda o que houve.


Vai ser preciso um dia ou dois para que aquele documento que assinamos
dê entrada nos computadores deles.
- Acha razoável fazer isso?
- Tem alguma outra idéia de como levantar quarenta e cinco mil
dólares até amanhã de tarde?
- Acho que não.
Jeffrey sabia que Carol tinha aquele dinheiro na sua carteira de
investimentos, mas preferia arder no fogo do inferno a pedir-lhe.
- Vejo você no banco - disse Carol, ao saltar diante da garagem
onde o carro dela estava estacionado.
Quando Jeffrey seguiu para o norte, sobre a ponte Tobin, a
exaustão apossou-se dele. Tinha a impressão de que precisava fazer um
esforço consciente para respirar. Começou a perguntar por que estava se
preocupando com aquela história sem sentido. Ele não merecia isso.
Especialmente agora, seguro como estava de que perderia sua licença de
médico. Além da medicina, ou, na verdade, além da anestesia, não sabia
muita coisa a respeito de mais nada. A não ser um trabalho servil, como
o de caixeiro de mercearia, não era capaz de imaginar qualquer outra
coisa que fosse capaz de fazer. Era um homem de meia-idade, sentenciado,
inútil aos quarenta e dois anos, e desempregado - um zero à esquerda.
Quando Jeffrey chegou ao banco, estacionou mas não saiu do
carro. Debruçou-se e deixou a cabeça repousar no volante. Talvez devesse
simplesmente esquecer tudo, ir para casa e dormir.
Quando a porta do lado do passageiro abriu, Jeffrey nem se deu
ao trabalho de levantar a cabeça.
- Você está bem? - perguntou Carol.
- Um pouco deprimido - respondeu Jeffrey.
- Ora, é compreensível - disse Carol. - Mas antes que fique
demasiado inerte, vamos resolver logo esse negócio no banco.
- Você é tão compreensiva - reclamou Jeffrey, irritado.
- Um de nós tem que ser prático - disse Carol. - E não quero
ve-lo na cadeia. Se não conseguir aquele dinheiro registrado na sua
conta Corrente, é onde vai acabar.
- Tenho uma terrível premonição de que é onde vou acabar, não
importa o que faça.
Com grande esforço, saiu do carro. Encarou Carol por cima do
teto do automóvel.
- A coisa que acho interessante - acrescentou -, é que eu vou
para a cadeia e você vai para Los Angeles, mas não sei quem ficará em
pior situação.
- Muito engraçado - disse Carol, aliviada ao ver que pelo menos
ele estava pilheriando, mesmo que realmente não achasse divertido.
Dudley Farnsworth era o gerente da filial daquele banco em
Marblehead. Anos antes, por coincidência, era o gerente júnior na filial


de Boston do banco que cuidara do primeiro problema imobiliário de
Jeffrey, que, naquele tempo, era residente de anestesia. Há quatorze
anos, Jeffrey comprara uma casa de três andares em Cambridge e Dubley
conseguira o financiamento.
Dubley os atendeu assim que pôde, levando-os para a sua sala e
oferecendo-lhes poltronas forradas de couro diante da sua mesa.
- O que posso fazer por vocês? - perguntou amavelmente. Era da
mesma idade de Jeffrey mas parecia mais velho por causa do cabelo
prateado.
- Gostaríamos de aumentar a hipoteca sobre a nossa casa - disse
Jeffrey.
- Estou certo de que não haverá problema - afirmou Dubley.
Aproximou-se de um arquivo e tirou uma pasta. - Quanto você está
querendo?
- Quarenta e cinco mil dólares - disse Jeffrey.
Dudley sentou-se e abriu a ficha.
- Não há problema - disse. - Poderiam aumentar até mais, se
quisessem.
- Quarenta e cinco mil será o suficiente - disse Jeffrey. - Só
que vou precisar deles para amanhã.
- Puxa! - exclamou Dudley. - Vai ser difícil.
- Talvez você pudesse arranjar um empréstimo sob garantia sugeriu Carol. - Depois, quando a hipoteca nova for aprovada, poderá
pagá-lo.
Dudley aquiesceu, com as sobrancelhas erguidas.
- É uma idéia. Mas acho melhor seguirmos em frente, preenchendo
os formulários para a hipoteca. Verei o que posso fazer. Se a hipoteca
não sair, você sempre poderá seguir a sugestão de Carol. Podem vir aqui
amanhã de manhã?
- Se eu conseguir me levantar da cama - disse Jeffrey, com um
suspiro.
Dudley deu uma olhada no cliente. Intuiu que havia algo de
errado com ele, mas era educado demais para perguntar.
Depois que o negócio do banco foi concluído, Jeffrey e Carol se
encaminharam para os respectivos automóveis.
- Por que não pára no caminho e compra qualquer coisa de bom
para o seu jantar? - Sugeriu Carol. - O que gostaria de comer hoje à
noite? Que tal seu prato favorito: costelas de vitela grelhadas?
- Não estou com fome - queixou-se Jeffrey.
- É possível que não esteja com fome agora, mas poderá estar
mais tarde.
- Duvido - disse Jeffrey.
- Conheço você e sei que sentirá fome. Vou parar na mercearia
para comprar comida para hoje à noite. Então, o que é que vai ser?


- Compre o que quiser - consentiu Jeffrey, entrando no carro. Do jeito que estou me sentindo, não posso imaginar o que vou querer.
Quando Jeffrey chegou em casa, entrou na garagem e foi
diretamente para o quarto. Ele e Carol vinham ocupando quartos separados
no último ano. A idéia fora dela, mas Jeffrey se surpreendera por ter
apreciado tanto, e tão depressa. Fora um dos primeiros sinais evidentes
de que o casamento deles não era o que deveria ser.
Fechou a porta e trancou-a com a chave. Seus olhos divagaram
pelos livros e revistas cuidadosamente espalhados nas prateleiras, de
acordo com o peso. Não ia precisar deles por algum tempo. Aproximou-se
da estante e puxou a Epidural Analgesia de Bromage, que atirou na
parede. O volume fez uma pequena mossa no gesso, depois caiu no chão. O
gesto não o fez sentir-se melhor. Na verdade, sentiu-se culpado, e o
esforço deixou-o mais exausto ainda. Apanhou o livro, alisou as páginas
amarrotadas, e o colocou de volta no lugar. Por hábito, deixou-o
paralelo aos outros volumes e bem vertical.
Sentando-se pesadamente na poltrona almofadada junto da janela,
ficou com os olhos perdidos no abrunheiro, cujos botões murchos
evidenciavam que passara o melhor da primavera. Sentiu uma forte onda de
tristeza. Sabia que tinha de se livrar daquela piedade por si mesmo se
quisesse realizar alguma coisa. Ouviu o carro de Carol estacionar, e, em
seguida, o barulho da porta batendo. Poucos minutos depois houve uma
calma batida na sua porta. Ignorou-a, achando que Carol pensaria que ele
estava dormindo. Queria ficar só.
Jeffrey lutou com uma sensação de culpa cada vez maior. Talvez
aquela fosse a pior parte da condenação. Com sua autoconfiança abalada, preocupava-se de novo com a possibilidade de ter administrado mal
a anestesia naquele dia fatal. Talvez tivesse usado a concentração
errada. Talvez a morte de Patty Owen fosse mesmo culpa sua.
As horas corriam enquanto a mente preocupada de Jeffrey lutava
com uma sensação cada vez maior de impotência. Tudo o que fizera parecia
estúpido e inútil. Falhara redondamente, como anestesista e como marido.
Não conseguia pensar em nada onde tivesse alcançado sucesso. Não
conseguira sequer fazer parte do time de basquete nos primeiros anos de
ginásio.
Quando o sol mergulhou no céu e alcançou o horizonte, Jeffrey
teve a sensação de que sua vida também estava se pondo. Pensou que
poucas pessoas seriam capazes de perceber o tremendo preço que um
processo de imperícia cobra da vida emocional e profissional de um
médico, sobretudo quando não houvera imperícia. Mesmo que tivesse
ganhado a causa, sua vida teria mudado para sempre. Mas o fato de
perdê-la era muito mais devastador. E não tinha nada a ver com problemas
de dinheiro.
Jeffrey observou o céu mudar de cor, de vermelho quente para


púrpura e prata frios, enquanto a luz desaparecia. Sentado na escuridão
cada vez maior, subitamente teve uma idéia. Não era uma verdade total
que estivesse impotente. Havia algo a fazer para mudar seu destino. Com
a primeira sensação de objetividade em semanas, levantou-se e foi até o
armário. Apanhou sua grande valise preta de médico e colocou-a em cima
da escrivaninha.
Retirou dela dois pequenos frascos de Ringer lactado, dois kits
de infusão e uma pequena agulha. Pegou também dois frascos, um de
succinilcolina e outro de morfina. Usando uma seringa, sugou 75
miligramas do primeiro, que esvaziou num dos vidros do lactado. Depois
aspirou 75 miligramas de morfina, uma dose violenta.
Uma das vantagens de ser anestesista era conhecer o meio mais
eficaz de cometer suicídio. Outros médicos não sabiam tanto, embora
tendessem a ter mais sucesso em suas tentativas que as demais pessoas.
Há quem atire em si próprio, um método sujo que, surpreendentemente, nem
sempre é efetivo. Outros preferem ingerir overdoses, método que também
nem sempre dá bom resultado. Com muita freqüência os suicidas em
potencial são surpreendidos a tempo de terem seu estômago bombeados e
serem submetidos a uma lavagem. Outras vezes as drogas injetadas são
suficientes para provocar coma, mas não a morte. Jeffrey estremeceu ante
as conseqüências imprevistas.
Sentiu a depressão diminuir ligeiramente enquanto trabalhava.
Era
animador ter um objetivo. Tirou o quadro que ficava na cabeceira da cama
a fim de usar o gancho para pendurar os dois vidros. Depois sentou-se na
beirada e deu início à aplicação na veia das costas da mão esquerda, com
a garrafa contendo apenas a solução do lactato.
Colocou a garrafa de succinilcolina em cima da outra, deixando
que apenas a delgada válvula azul o separasse do seu conteúdo letal.
Com cuidado para não desalojar a agulha, deitou-se de costas na
cama. Seu plano era injetar uma vasta dose de morfina e depois abrir a
válvula da solução contendo a succinilcolina. A morfina o mandaria para
a terra do nunca-mais muito antes de a concentração da outra droga
paralisar seu sistema respiratório. Sem estar oxigenado artificialmente,
morreria. Bem simples.
Delicadamente, inseriu a agulha da seringa contendo morfina no
orifício do tubo preso na veia do dorso de sua mão. Exatamente quando
começava a injetar o narcótico, ouviu uma pancada suave na porta.
Jeffrey rolou os olhos. Que hora para Carol interromper! Susteve
a injeção, mas não respondeu com a esperança de que ela fosse embora,
imaginando-o adormecido. Em vez disso, bateu mais alto, e depois ainda
mais alto.
- Jeffrey! - gritou. - Jeffrey! Preparei o jantar.
Um breve silêncio o fez pensar que ela desistira. Mas então


ouviu a maçaneta girar e a porta bater contra o fecho. - Jeffrey! Você
está bem?
Respirou fundo. Sabia que tinha de dizer algo, porque senão
Carol poderia ficar preocupada o bastante para forçar a porta. A última
coisa que queria era que o surpreendesse aplicando uma injeção
intravenosa nele mesmo.
- Estou bem - disse Jeffrey, finalmente.
- E por que não me respondeu antes? - quis saber.
- Estava dormindo.
- Por que a porta está trancada?
- Bem, eu não queria ser incomodado - replicou Jeffrey, com
evidente ironia.
- Fiz o jantar - repetiu Carol.
- Muito legal da sua parte, mas continuo sem fome.
- Costeletas de vitela, seu prato favorito. Acho que você devia
COmer.
- Por favor, Carol - gritou Jeffrey, exasperado. - Não estou com
fome.
- Então coma, porque estou lhe pedindo. Faça-me este favor.
Irritado, Jeffrey colocou a seringa com a morfina sobre a
mesinha- de-cabeceira e desconectou o tubo. Foi até a porta e abriu-a,
mas não tanto que Carol pudesse enxergar todo o quarto.
- Ouça! - exclamou, asperamente. - Eu já disse que não estava
com fome e lhe digo que também não tenho fome agora. Não quero comer e
não gosto de vê-la tentando fazer com que eu me sinta culpado por causa
disso, entende?
- Jeffrey, seja razoável. Não creio que você deve ficar sozinho.
Agora, se me dei ao trabalho de comprar comida e cozinhar para você, o
mínimo que pode fazer é experimentá-la.
Jeffrey sentiu que não iria livrar-se dela. Quando tomava uma
decisão, Carol não era o tipo de pessoa capaz de ser facilmente
dissuadida.
- Está bem - concordou ele, exausto. - Está bem.
- O que há de errado com a sua mão? - perguntou Carol, notando
uma gota de sangue.
- Nada - respondeu Jeffrey. - Absolutamente nada.
Baixou os olhos. O sangue fluía do local onde aplicara a
intravenosa. Freneticamente, procurou uma explicação.
- Mas está sangrando - frisou ela.
- Cortei-me com uma folha de papel - disse Jeffrey. Nunca fora
bom para mentir. Depois, com uma ironia que só ele podia apreciar,
acrescentou: - Eu vou sobreviver. Acredite-me, vou sobreviver. Ouça prosseguiu -, estarei lá embaixo em um minuto.
- Promete? - perguntou Carol.


- Prometo.
Quando Carol se retirou, e com a porta novamente trancada,
Jeffrey removeu os frascos e os guardou no fundo do seu armário, dentro
da valise de couro. Em seguida, atirou os envoltórios dos kits de
infusão e a agulha na cesta de lixo do banheiro.
Carol tinha um certo senso de oportunidade, pensou, pesaroso. Só
quando se livrou da parafernália médica deu-se conta de quão perto
chegara. Disse a si próprio que não devia se entregar ao desespero, pelo
menos enquanto todos os caminhos legais não fossem explorados. Até
aqueles acontecimentos recentes, nunca tivera seriamente idéias de
suicídio. De fato, não conseguia compreender os suicidas que conhecera,
embora, intelectualmente, fosse capaz de intuir as profundezas do
desespero que podiam levar uma pessoa a cometer aquele ato.
Muito estranho, ou talvez nem tanto estranho, os suicidas que
conhecera eram outros médicos que se viram forçados por motivos não
diferentes dos dele. Recordava-se de um amigo em particular: Chris
Everson. Não sabia direito a data em que Chris morrera, mas fora
naqueles dois últimos anos.
Chris era um colega anestesista. Anos antes, tinham trabalhado
juntos como residentes. Chris teria se lembrado dos tempos em que os
residentes muito dedicados se livravam dos sintomas de um resfriado com
Ringer lactato. O que tornou a figura de Chris subitamente tão nítida
foi a lembrança de que ele também fora processado por imperícia porque
um dos seus pacientes tivera uma reação terrível ao anestésico durante
uma peridural.
Jeffrey fechou os olhos e tentou recordar os detalhes do caso. O
mais que conseguia lembrar era que o coração do paciente de Chris tivera
uma parada depois de um teste com apenas dois mililitros. Embora
tivessem feito o coração bater de novo, o paciente ficara quadriplégico
e semicomatoso. Em menos de uma semana após o incidente, Chris fora
processado, junto com o Valley Hospital e outras pessoas mesmo
remotamente associadas ao episódio. A estratégia dos "bolsos fundos" já
existia naquele tempo.
Contudo, Chris não chegou ao fim do julgamento. Cometeu suicídio
antes mesmo que o período de investigações terminasse. E embora o
procedimento anestésico fosse caracterizado como impecável, a
apresentação da queixa terminara por fundamentar a ação. Naquele tempo,
o acordo fora o maior na história dos processos por imperícia no estado
de Massachusetts. Mas nos meses seguintes, Jeffrey era capaz de se
lembrar de pelo menos dois valores que o superaram.
Podia recordar perfeitamente a sua reação quando soubera do
suicídio de Chris. Fora da mais completa descrença. Naquele tempo, antes
do seu atual envolvimento com o sistema legal, não podia fazer idéia do
que teria sido capaz de forçar Chris a praticar um ato tão violento.


Chris desfrutava da reputação de ser um excelente anestesista, um médico
preferido pelos médicos, um dos melhores. Havia desposado recentemente
uma bela enfermeira do setor cirúrgico, que trabalhava com ele no Valley
Hospital. Parecia ter tudo a seu favor. E então houvera aquele
pesadelo...
Um barulho suave trouxe Jeffrey de volta ao presente. Carol
estava na porta de novo.
- Jeffrey! - exclamou. - Melhor vir antes que esfrie.
- Já vou.
Agora que sabia tão bem o que Chris começara a sofrer, Jeffrey
desejaria ter-se relacionado melhor com ele naquela ocasião. Poderia ter
sido mais amigo. E mesmo depois que o homem pusera fim à própria vida, tudo o que fizera fora comparecer ao funeral. Nem ao menos
entrara em contato com Kelly, a mulher dele, embora naquela oportunidade
se tivesse prometido fazê-lo.
Um tal comportamento não era característica sua, e ele se
perguntou por que teria agido tão impiedosamente. A única desculpa em
que podia pensar era na necessidade que devia ter tido de reprimir o
episódio. O suicídio de um colega com quem podia se identificar tão
facilmente era um evento muito perturbador. Enfrentá-lo diretamente
talvez tivesse sido um desafio grande demais para ele. O tipo do
auto-exame que Jeffrey e os médicos em geral aprendem a evitar,
rotulando essa atitude de "afastamento clínico".
Que terrível desperdício, pensou, enquanto se lembrava da última
vez em que vira Chris, antes da tragédia ocorrer. E, se Carol não o
tivesse interrompido, não poderiam os outros pensar as mesmas coisas a
respeito dele?
Não, pensou com veemência, o suicídio não era uma opção. Por
certo, ainda não. Jeffrey odiava parecer sentimental, mas onde havia
vida, havia esperança. E o que acontecera na esteira do suicídio de
Chris? Depois de morto, não houve ninguém para limpar seu nome, ninguém
para defendê-lo. Apesar de todo o seu desespero e crescente depressão,
Jeffrey ainda estava irado contra um sistema e um processo que
conseguira condená-lo quando sabia muito bem que nada fizera de errado.
Poderia realmente descansar enquanto não se esforçasse o máximo para
limpar seu nome?
Jeffrey ficou furioso ao pensar no seu caso. Para os advogados
envolvidos, inclusive Randolph, aquilo podia ser um trabalho comum, mas
não para ele, Jeffrey. Era sua vida que estava em jogo. Sua carreira.
Tudo. A grande ironia era que, no dia da morte de Patty Owen, Jeffrey se
esforçara exaustivamente para ajudá-la. Só tomara o lactato e o elixir
paregórico para poder realizar o seu trabalho. Dedicação fora o que o
motivara, e era deste modo que lhe pagavam.
Se algum dia pudesse voltar ao exercício da medicina, ia ter


medo dos efeitos duradouros que aquele caso teria sobre qualquer decisão
médica que tivesse de tomar. Que tipo de cuidado as pessoas podem
esperar de médicos forçados a trabalhar num ambiente de caça à imperícia
e que têm de restringir seus melhores instintos e alternativas a cada
passo? Como um tal sistema evoluira? Certamente que não eliminando-se os
poucos "maus" médicos, já que, ironicamente, é raro que estes sejam
processados. O que vinha acontecendo era que uma porção de bons médicos
estavam sendo destruidos.
Enquanto Jeffrey se lavava antes de descer à cozinha, sua
memória trouxe à lembrança outro caso que inconscientemente reprimira.
Um dos melhores e mais dedicados profissionais especializados em
medicina interna que conhecera, matara-se cinco anos atrás, na noite em
que recebera uma intimação para um processo de imperícia. Dera um tiro
na boca com um rifle de caça. Não tinha esperado sequer que a
investigação preliminar começasse, quanto mais o julgamento. Naquele
tempo, Jeffrey ficara profundamente aturdido, pois todo mundo sabia que
a ação não tinha fundamento. Ironicamente, na verdade, o médico tinha
salvado a vida do paciente. Jeffrey agora tinha alguma idéia da origem
do desespero dele.
Terminando de lavar-se, Jeffrey retornou ao seu quarto e pôs uma
calça e uma camisa limpas. Abrindo a porta, sentiu o cheiro da comida
que Carol preparara. Ainda não estava com fome, mas faria um esforço.
Parando no degrau superior da escada, prometeu lutar contra os
pensamentos depressivos que ainda deveria experimentar até que aquele
episódio percorresse todo o seu curso. Com esta determinação em mente,
dirigiu-se para a cozinha.
***
Capítulo 2.
TERÇA-FEIRA, 16 DE MAIO DE 1989, 09:12.
Jeffrey despertou num sobressalto e surpreso com a hora. Acordara antes
em torno das cinco, admirado por ver que adormecera sentado na bergère
junto da janela. Meio doiorido, por causa da posição em que dormira,
tirara a roupa e se metera na cama, pensando que jamais seria capaz de
adormecer de novo. Mas isso, evidentemente, acontecera.
Tomou um rápido banho de chuveiro e saiu do quarto, à procura de
Carol. Recuperado em parte da profunda depressão do dia anterior, queria
um pouco de contato humano e de compreensão. Esperava que Carol não
tivesse saido para trabalhar sem falar com ele. Queria desculpar-se por
não ter valorizado como devia os seus esforços da véspera. Fora muito
bom, ele percebia agora, que o tivesse interrompido, e mesmo que o
tivesse irritado. Inconscientemente, salvara-o de um suicídio. Pela
primeira vez em sua vida, ficar com raiva tivera um efeito positivo.
Mas Carol tinha saído há muito tempo. Deixara um bilhete


encostado na caixa de cereais em cima da mesa da cozinha. Dizia: "Não
quis perturbá-lo, tenho certeza de que precisa descansar. Preciso ir
cedo para o trabalho. Espero que compreenda."
Encheu uma tigela com cereal e tirou o leite da geladeira.
Sentiu inveja pelo emprego de Carol. Gostaria de ter agora um emprego
para Onde tivesse a obrigação de ir. No mínimo, manteria sua mente
ocupada. Se pudesse ser útil, isso iria ajudar sua auto-estima. Até
então nunca percebera exatamente quanto o trabalho definia sua persona.
De volta ao quarto, Jeffrey pegou a parafernália da intravenosa,
embrulhou em jornais velhos e levou para o depósito de lixo da garagem.
Não queria que Carol visse aquilo. Sentiu-se estranho ao manusear aquele
material. Provocou-lhe um enorme desconforto ter estado - de modo
consciente e voluntário - tão próximo da morte.
A idéia de suicídio ocorrera a Jeffrey antes, mas sempre num
contexto metafórico e geralmente mais como uma fantasia para se vingar
de alguém que o teria magoado, como quando a garota no oitavo grau,
caprichosamente, transferira sua afeição ao seu melhor amigo. Mas na
noite anterior fora diferente, e pensar que tão perto estivera da morte
o deixava com as pernas fracas.
Retornando à casa, Jeffrey avaliou que efeitos o suicídio teria
sobre os amigos e sua família. Provavelmente seria um alívio para Carol,
que já não teria de passar pelos inconvenientes de um divórcio. Gostaria
de saber se alguém ia sentir falta dele. Provavelmente não...
- Pelo amor de Deus - exclamou Jeffrey, conscientizando-se do
ridículo daquelas lucubrações e lembrando-se da sua decisão de resistir
a pensamentos depressivos. Iria ficar naquela condição de baixa
auto-estima pelo resto de seus dias?
Mas o suicídio era um assunto difícil de largar. Pensou de novo
em Chris Everson. Teria sido o suicídio dele provocado por uma depressão
aguda como a que ele próprio sentira na noite anterior? Ou Chris o
planejara durante algum tempo? De qualquer modo, a morte dele fora uma
grande perda para todo mundo - a família, os pacientes, e até mesmo a
profissão médica.
Jeffrey parou a caminho do quarto e olhou pela janela da sala de
estar com olhos que não viam. A situação dele não era um desperdício à
toa. Considerando a sua produtividade, a perda da licença médica e a ida
para a prisão representavam uma perda tão grande como se tivesse
cometido suicídio.
- Droga! - gritou, agarrando uma das almofadas do sofá e
socando-a repetidamente. - Droga, droga, droga!
Cansou-se logo e repôs a almofada no lugar. Depois sentou-se
desalentado, com os joelhos protuberantes para a frente. Cruzou os dedos
e descansou os cotovelos sobre os joelhos, tentando imaginar-se na
prisão. Era uma visão horrível. Que grotesca paródia de justiça! Aquela


história de imperícia bastaria para agitar e alterar sua vida, mas o
absurdo da ação criminal era muito pior, algo como jogar sal numa ferida
aberta.
Jeffrey pensou nos colegas do hospital e em outros médicos
amigos. Todos o haviam apoiado no início, pelo menos até o indiciamento
por crime. Depois passaram a evitá-lo como se tivesse uma doença
infecciosa. Sentia-se desprezado e solitário. E, mais do que qualquer
outra coisa, furioso.
- Não é justo! - queixou-se através dos dentes cerrados.
Fugindo às suas características, Jeffrey pegou uma peça de
cristal entre os objetos de Carol que estavam numa mesinha-de-cabeceira,
e atirou-a com precisão no aparador revestido de vidro que podia ver
através do arco que dava para a sala de jantar. O barulho do vidro se
espedaçando fê-lo estremecer.
- Uau! - exclamou ao se dar conta do que fizera. Levantou-se e
foi varrer os cacos. Ao terminar, chegou a uma conclusão definitiva:
jamais iria para a prisão! De jeito nenhum. Que se danasse o processo
legal. Acreditava tanto no sistema de justiça quanto acreditava em
contos de fadas.
A decisão, tomada com rapidez e determinação, deixou-o
estimulado. Olhou o relógio. O banco ia abrir em pouco tempo. Excitado,
foi ao seu quarto e pegou o passaporte. Tivera sorte de o tribunal não o
exigir quando ajuiza aumentara a fiança. Em seguida ligou para a Pan Am.
Descobriu que podia pegar a ponte aérea para Nova York, um ônibus para
Kennedy e depois um avião para o Rio. Considerando as disponibilidades
dos vôos, tinha uma ampla gama de possibilidades, incluindo um vôo que
saía às 23:45 e fazia algumas escalas em lugares exóticos.
O pulso disparou com a antecipação do que estava para fazer;
telefonou para o banco e conseguiu falar com Dudley. Esforçou-se para
parecer controlado. Perguntou como andava o seu empréstimo.
- Nenhum problema - disse Dudley, orgulhoso. - Puxando algumas
cordas, consegui rapidinho a aprovação. - Jeffrey ouviu o estalar dos
dedos de Dudley. - A que horas você virá? - prosseguiu Dudley. - Faço
questão de estar presente.
- Chegarei daqui a pouco - afirmou Jeffrey, planejando um
esquema. O tempo seria a chave do sucesso. - Tenho outro pedido a fazer.
Gostaria de receber o dinheiro em espécie.
- Você está brincando.
- Estou falando sério.
- É um tanto irregular - disse Dudley, inseguro.
Jeffrey não tinha pensado muito naquele detalhe e pôde sentir a
hesitação de Dudley. Percebeu que devia se explicar se queria mesmo
receber em dinheiro; e, definitivamente, precisava dele. Não podia
partir para a América do Sul levando apenas uns trocados.


- Dudley - começou Jeffrey -, estou metido numa lamentável
confusão.
- Não gosto do que estou ouvindo - disse Dudley.
- Não é o que você está pensando. Não se trata de dívida de
jogo, não é nada disso. O fato é que preciso pagar ao homem da fiança.
Não leu a respeito dos meus problemas nos jornais?
- Não, não li - disse Dudley, parecendo animar-se de novo.
- Fui processado por imperícia e indiciado criminalmente por
causa de um triste caso de anestesia. Não o incomodarei com detalhes. O
problema é que preciso de quarenta e cinco mil para pagar ao sujeito que
tratou da minha fiança. Ele disse que queria em dinheiro.
- Tenho certeza de que um cheque administrativo seria aceito.
- Escute, Dudley - disse Jeffrey. - O homem insistiu e eu
prometi levar em dinheiro. Não tenho saída. Faça-me este favor. Não
dificulte ainda mais as coisas para mim.
Houve uma pausa. Jeffrey imaginou ter ouvido Dudley suspirando.
- Notas de cem, está legal?
- Ótimo - respondeu Jeffrey. - Será perfeito.
Estava se perguntando que volume fariam quatrocentos e cinqüenta
notas de cem dólares.
- Terei tudo pronto - disse Dudley. - Só espero que você não
esteja planejando carregar esse dinheiro por aí por muito tempo.
- Só até Boston.
Jeffrey desligou o telefone. Esperava que Dudley não chamasse a
polícia nem tentasse apurar sua história. Não que houvesse alguma coisa
errada, mas quanto menos pessoas pensassem nele ou fizessem perguntas,
melhor, pelo menos até tomar o avião e sair de Nova York.
Sentando-se com um bloco, Jeffrey pôs-se a escrever um bilhete
para Carol. Disse-lhe que estava levando os quarenta e cinco mil
dólares, mas que tudo mais podia ficar para ela. O bilhete, contudo,
pareceu-lhe esquisito. Enquanto escrevia, percebeu que não devia deixar
nenhuma evidência das suas intenções, para o caso de eventualmente ser
detido. Amarrotou a folha de papel, pôs fogo nela com um palito de
fósforo e atirou-a na lareira. Em vez de escrever, decidiu telefonar
para Carol de algum lugar no estrangeiro e falar com ela. Seria mais
pessoal que uma carta. E também mais seguro.
O próximo item era o que devia levar. Não queria ver-se às
voltas com muita bagagem. Escolheu uma mala pequena, que encheu com as
roupas mais necessárias. Não imaginava que a América do Sul fosse muito
formal. Quando acabou de encher a mala com o que queria, teve de sentar
em cima para fechá-la. Colocou então mais algumas coisas na valise,
incluindo artigos de toalete e roupas de baixo.
Já ia se afastar quando viu a maleta de médico. Hesitou por um
momento, perguntando-se o que faria se algo saísse errado. Como medida


de segurança, abriu-a e tirou algumas seringas, um frasco de soro de um
quarto de litro, um vidro de succinilcolina e outro de morfina,
colocando tudo na valise, sob a roupa de baixo. Não queria pensar que
estava com idéias de suicídio, e por isso disse a si mesmo que as drogas
eram uma espécie de apólice de seguro. Esperava não precisar delas, mas,
por via das dúvidas...
Sentiu-se estranho e um tanto triste, lançando um olhar para a
casa pelo que talvez fosse a última vez, sabendo que era bem possível
nunca mais vê-la de novo. Depois, porém, ao percorrer os aposentos,
surpreendeu-se por já não sentir tristeza. Muitas coisas ali faziam-no
lembrar-se de eventos passados, tanto bons quanto ruins. Acima de tudo,
percebeu que associava a casa ao casamento fracassado. E, tal como no
seu caso de imperícia, seria melhor deixá-la para trás. Sentiu-se cheio
de energia pela primeira vez em meses. Era como o primeiro dia de uma
nova vida.
Com a maleta das roupas na mala do carro e a valise a seu lado,
Jeffrey tirou o automóvel da garagem, fechou a porta com o controle
remoto e pôs-se a caminho. Não olhou para trás. A primeira parada seria
no banco, e à medida que se aproximava, começou a se sentir ansioso. Sua
vida nova começava de um modo excepcional: o plano era deixar de cumprir
a lei, desafiando o tribunal. Gostaria de saber se ia escapar impune.
Ao parar o carro na área de estacionamento do banco, estava
muito nervoso. Tinha a boca seca. E se Dudley tivesse telefonado para a
policia, informando sobre o dinheiro? Não era preciso ter a inteligência
de um cientista espacial para imaginar que ele podia estar planejando
alguma outra coisa que não entregar os quarenta e cinco mil dólares ao
homem da fiança.
Após permanecer sentado no carro por um momento, para reunir
coragem, Jeffrey agarrou a valise e animou-se a entrar no banco. De
algum modo sentia-se como um assaltante, embora o dinheiro que ia levar
pertencesse tecnicamente a ele. Respirando fundo para se sentir mais
calmo, perguntou por Dudley.
Dudley veio ao seu encontro esbanjando sorrisos e conversa.
Levou Jeffrey para a sua sala e indicou-lhe uma cadeira. A julgar pelo
Comportamento dele, não estava suspeitando. Mas a ansiedade de Jeffrey
permaneceu intensa. Ele tremia.
- Um pouco de café, um refresco? - ofereceu Dudley. Jeffrey
decidiu que seria melhor não ingerir cafeína. Disse que um refresco
estaria bem. Achou que seria melhor dar às suas mãos algo para fazer. Claro - disse Dudley, com um sorriso. O homem estava sendo tão cordial
que Jeffrey teve medo de uma armadilha.
- Vou buscar o dinheiro - disse Dudley, após dar a Jeffrey um
copo com suco de laranja. Retornou em poucos minutos com uma bolsa de
lona para transporte de dinheiro, toda manchada. Derramou o conteúdo


sobre a mesa. Havia nove pacotes de notas de cem dólares, cada um
contendo cinqüenta notas. Jeffrey nunca tinha visto tanto dinheiro
reunido. Sentia-se cada vez menos à vontade.
- Deu um pouco de trabalho juntar tudo isso tão depressa afirmou Dudley.
- Agradeço seu esforço - disse Jeffrey.
- Suponho que vai querer contar - avançou Dudley, mas Jeffrey
fez que não.
Dudley fez Jeffrey assinar um recibo pelo dinheiro.
- Tem certeza de que não seria melhor um cheque administrativo?
- perguntou, quando apanhou o recibo. - Não é seguro carregar tanto
dinheiro. Você poderia chamar o homem da fiança e dizer-lhe para apanhar
o cheque aqui. Ora essa, um cheque administrativo é a mesma coisa que
dinheiro em caixa. Ele iria depois a uma das nossas agências em Boston e
trocaria o cheque, se é mesmo isso o que quer. Tornaria as coisas mais
seguras para você.
- Ele disse em espécie, vou pagar-lhe em espécie - afirmou
Jeffrey. Na verdade, comovia-o a preocupação de Dudley. - O escritório
dele não fica longe - explicou.
- E você tem certeza de que não irá contar as notas?
A tensão de Jeffrey estava começando a se transformar em raiva,
mas ele forçou um sorriso.
- Não tenho tempo. Prometi estar com o dinheiro na cidade antes
do meio-dia. Já estou atrasado. Além do mais, trabalho há muito tempo
com você e sei que o dinheiro está certo.
Jeffrey enfiou as notas na valise e se pôs de pé.
- Se eu soubesse que você não ia contar, teria tirado algumas
notas em cada maço - Dudley brincou.
Jeffrey apressou o passo até o carro, pousou a valise no banco e
saiu da área de estacionamento com extremo cuidado. Imagine se agora
fosse detido por excesso de velocidade. Checou o espelho retrovisor para
ver se não estava sendo seguido. Até agora, nada.
Foi diretamente para o aeroporto e estacionou no último piso do
prédio do estacionamento central. Jogou o tíquete do estacionamento
no cinzeiro. Telefonaria para Carol de algum lugar, diria que fosse
apanhar o carro.
Com a valise numa das mãos e a maleta na outra, Jeffrey
encaminhOuse para o balcão da Pan Am. Tentou comportar-se como qualquer
homem de negócios saindo em viagem, mas seus nervos estavam tensos
demais e tinha o estômago em verdadeira agonia. Se alguém o
reconhecesse, saberia que estava desobedecendo às ordens do tribunal.
Tinham lhe dito especificamente para não deixar o estado de
Massachusetts.
A ansiedade de Jeffrey foi subindo um ponto a cada minuto em que


esperava na fila das passagens. Quando sua vez finalmente chegou,
comprou um bilhete de Nova York para o Rio, e também um para a ponte
aérea das 13:30. O agente tentou convencê-lo de que seria muito mais
conveniente pegar um dos vôos do fim da tarde diretamente para o
Kennedy. Assim evitaria o ônibus LaGuardia-Kennedy. Mas ele preferia a
ponte aérea. Achava que, quanto mais cedo saísse de Boston, melhor se
sentiria.
Deixando a área de bilhetes, Jeffrey aproximou-se do aparelho de
raios X da segurança. Havia um agente da policia estadual, uniformizado,
descansando comodamente logo depois dela. Controlou-se para não dar
meia-volta e sair correndo.
Logo depois que colocou a valise e a mala na esteira
transportadora e as viu desaparecer dentro da máquina, sentiu uma súbita
crise de medo. As seringas e a ampola de morfina! E se aparecessem aos
raios X e ele tivesse que abrir a valise? Nesse caso descobririam todo
aquele dinheiro. O que iriam pensar diante de tanto dinheiro?
Jeffrey pensou em puxar a valise da esteira, mas era tarde.
Lançou um olhar para a mulher examinando a tela. Seu rosto iluminado
parecia sinistro à luz do monitor, mas os olhos pareciam embaçados de
tédio. Sentiu-se sendo sutilmente apressado pelas pessoas atrás. Passou
pelo detector de metais, encarando o policial o tempo todo. O homem o
flagrou olhando e sorriu: Jeffrey conseguiu devolver um sorriso sem
graça. Olhou de novo para a mulher que estudava a tela. Seu rosto
inexpressivo pareceu subitamente intrigado com alguma coisa. Ela freara
a esteira e fazia um sinal convidando outra mulher a examinar a tela.
O coração de Jeffrey confrangeu-se. As duas examinaram o
conteúdo da valise conforme aparecia na tela. O policial nada notara.
Jeffrey o pegou bocejando.
A correia começou a funcionar de novo. A valise apareceu, mas a
segunda mulher adiantou-se e pôs a mão sobre ela.
- É sua? - perguntou a Jeffrey.
Ele hesitou, mas não tinha como negar. Seu passaporte estava
dentro dela.
- Sim - respondeu, baixinho.
- O senhor tem um estojo de barba com uma tesourinha?
Jeffrey acenou que sim.
- OK - disse a mulher, empurrando a valise na direção dele.
Aturdido, mas agora aliviado, Jeffrey rapidamente pegou sua
bagagem, levou para um canto distante da sala de espera e sentou-se.
Apanhou um jornal abandonado numa cadeira e usou-o para esconder-se. Não
se sentira como um criminoso ante o veredicto do júri, mas agora se
sentia.
Assim que seu vôo foi chamado, Jeffrey apressou-se. Mal podia
esperar para se ver no avião. E, uma vez dentro dele, não sossegou até


se acomodar.
Ficou numa poltrona junto do corredor, na parte dianteira do
aparelho. Com a maleta no nicho superior e a valise sob a poltrona,
reclinou-se e fechou os olhos. Seu coração ainda disparava, mas agora
podia tentar relaxar. Estava quase conseguindo.
Contudo, era difícil acalmar-se. Sentado naquele lugar, a
seriedade e a irreversibilidade do que ia fazer finalmente começaram a
ser avaliadas pelo seu cérebro. Até agora, jamais infringira uma lei.
Mas assim que o aparelho cruzasse o espaço aéreo de Massachusetts para
entrar em outro estado, teria infringido. E não haveria meios de voltar
atrás.
Verificou o relógio. Estava transpirando profusamente. Uma e
vinte e sete. Três minutos para a porta ser fechada. Depois o aparelho
levantaria vôo. Estaria agindo corretamente? Pela primeira vez, desde
que tomara aquela decisão, Jeffrey sentiu dúvidas. A experiência de uma
vida inteira se opunha àquela fuga. Sempre obedecera à lei e respeitara
a autoridade.
Começou a tremer. Nunca se sentira tão terrivelmente indeciso e
embaraçado. Consultou o relógio de novo. Uma hora e vinte e nove
minutos. O pessoal de bordo estava atarefado, fechando todos os nichos
superiores, e o barulho ameaçava deixá-lo doido. A porta para a cabine
do capitão foi trancada com um dique forte. O agente da companhia entrou
no avião e entregou o manifesto definitivo. Todos os passageiros se
encontravam em seus lugares. De certo modo, Jeffrey agora encerrava a
vida que sempre conhecera, da mesma forma que ia fazendo quando liberara
aquela válvula na noite anterior.
Perguntou-se como sua fuga afetaria a apelação. Não faria com
que parecesse mais culpado? E se fosse condenado pela justiça, não teria
que ficar mais tempo na cadeia por causa daquela fuga? Exatamente, o que
planejava fazer na América do Sul? Não falava espanhol nem português.
Num relâmpago, percebeu todo o horror do seu gesto. Simplesmente não
podia tomar aquela atitude.
- Um momento! - gritou ao ouvir o barulho da porta sendo
fechada. Todos os olhos se voltaram para ele. - Um momento! Preciso
saltar!
Desafivelou o cinto, depois tentou puxar a valise debaixo da
poltrona. Ela abriu-se e alguns de seus pertences, inclusive um maço de
notas de cem dólares, caíram. Mais que depressa, guardou tudo de novo e
depois agarrou a maleta no nicho superior. Ninguém comentou. Todos
observavam seu pânico com assombro e curiosidade. Jeffrey saiu correndo
e defrontou-se com o comissário de bordo.
- Tenho que saltar! - repetiu. O suor corria pela sua testa,
embaçando-lhe a visão. Parecia enlouquecido. - Sou médico - acrescentou,
como que para explicar. - É uma emergência.


- OK, OK - disse calmamente o comissário. Bateu na porta, e em
seguida fez um gesto através da janela para o encarregado do portão, que
ainda se encontrava do outro lado. A porta foi aberta, devagar demais
para o gosto de Jeffrey.
Assim que viu a passagem livre, saiu correndo. Por sorte,
ninguém o parou para perguntar por que desistira da viagem. Subiu o
túnel, correndo. A porta para o terminal estava fechada, mas não a
tinham trancado. Começou a atravessar a área de embarque, mas não foi
muito Longe. O encarregado do portão o chamou.
- Seu nome, por favor? - perguntou, num tom de voz inexpressivo.
Jeffrey hesitou. Detestaria expressá-lo. Não queria ter que se
explicar às autoridades.
- Não posso lhe devolver a passagem se não me informar o seu
nome - disse o agente, ligeiramente irritado.
Jeffrey cedeu, e o seu bilhete foi devolvido. Enfiando-o
rapidamente no bolso, passou pela área de segurança e entrou no banheiro
dos homens. Tinha que se acalmar. Estava sofrendo um grande abalo
nervoso. Descansou a bagagem no chão e apoiou-se na pia. Odiou-se por
vacilar, primeiro com o suicídio, agora com a fuga. Em ambos os casos,
sentia que tomara a decisão certa - mas agora, quais eram as suas
opções? Sentiu a depressão ameaçando retornar, mas lutou contra ela.
Pelo menos Chris Everson tivera a força moral de realizar sua
decisão, mesmo que errada. Jeffrey amaldiçoou-se de novo por não ter
sido melhor amigo dele. Se soubesse na ocasião o que sabia agora,
poderia ter sido capaz até de salvar o homem. Só hoje tinha uma noção do
sofrimento que Chris enfrentara. Odiou-se por não ter estado com ele,
por ter-se omitido e até por não ter ido visitar a jovem viúva.
Jogou água fria no rosto. Quando recuperou um pouco da confiança
em si, pegou suas coisas e saiu do banheiro. A despeito do burburinho e
do movimento do aeroporto, sentia-se horrivelmente só. A idéia de voltar
para uma casa vazia era opressiva. Mas não sabia para onde ir. Perdido,
pôs-se a caminho da garagem.
Encontrando o carro, Jeffrey pôs a mala no banco de trás e a
valise a seu lado. Sentou-se ao volante e ficou parado, olhando em
frente, mas sem enxergar nada. Esperava uma inspiração.
Por algumas horas ficou sentado, passando em revista os seus
fracassos. Nunca estivera num ponto tão baixo. Obcecado com Chris
Everson, acabou se perguntando o que teria acontecido a Kelly. Ele a
encontrara em três ou quatro reuniões sociais antes da morte de Chris.
Lembrava-se até de ter feito a Carol alguns comentários elogiosos a
respeito dela. Na oportunidade, Carol não ficara satisfeita por
ouvi-los.
Jeffrey perguntou-se se Kelly ainda trabalharia no Valley
Hospital, ou se, pelo menos, ainda residiria nas proximidades de Boston.


Lembrava-se dela como uma criaturinha de um metro e sessenta de altura,
e que era magra, embora atlética. Usava preso o cabelo comprido,
castanho com reflexos de vermelho e ouro. Recordava seu rosto de feições
miúdas mas cheias, com olhos castanho-escuros que freqüentemente se
abriam num sorriso brilhante. Mas o que melhor lembrava era a sua aura.
Tinha um ar divertido, maravilhosamente mesclado com o calor e a
sinceridade que irradiava, fazendo as pessoas gostarem dela
imediatamente.
Quando os pensamentos de Jeffrey passaram de Chris para Kelly,
deu-se conta de que a viúva, mais do que ninguém, compreenderia o que
ele estava passando agora. Como perdera o marido por causa da devastação
emocional causada por um processo de imperícia, por certo seria
agudamente sensível à situação difícil que ele estava vivendo. Podia
ter, inclusive, algumas sugestões sobre como reagir. No mínimo, talvez
lhe proporcionasse um pouco da compreensão que tanto precisava. De
qualquer maneira, pelo menos sua consciência seria apla- cada por
finalmente fazer uma visita que, embora de forma vaga, sem- pre
tencionara fazer.
Retornou ao terminal. Na primeira bancada de telefones que
encontrou, apanhou um catálogo para procurar o número de Kelly Everson.
Conteve a respiração enquanto seu dedo indicador ia seguindo os nomes.
Parou em K. C. Everson, Brookline. Talvez fosse. Introduziu uma moeda e
discou. O telefone deu um, dois, três toques. Estava prestes a desligar
quando atenderam. Ouviu uma voz alegre.
Percebeu subitamente que não tinha pensado em como iniciar a
conversa. Disse alô num repente, e deu seu nome. Inseguro, receou que
Kelly nem mais se lembrasse dele, mas antes de encontrar algo para
ativar sua memória, ouviu um enfervescente:
- Alô, Jeffrey!
Parecia de fato alegre por ouvi-lo e nem um pouco espantada.
- Estou satisfeita que você tenha ligado - disse ela. - Pensei
em lhe telefonar assim que soube dos seus problemas, mas não fui
adiante. Fiquei com medo de que não se lembrasse mais de mim.
Com medo de que ele não se lembrasse dela! Jeffrey assegurou-lhe
que não era o caso. Seguindo o exemplo de Kelly, desculpou-se muito por
não ter telefonado antes, conforme prometera.
- Não precisa pedir desculpas - disse ela. - Sei que as
tragédias assustam as pessoas, como acontece com o câncer, ou, pelo
menos, acontecia. E sei também que os médicos têm muita dificuldade em
lidar com o suicídio de um colega. Eu não esperava que ligasse, mas
fiquei sensibilizada por ter ido ao funeral. Chris ficaria satisfeito de
saber que você se incomodou. Ele realmente o respeitava, Jeffrey. Uma
vez me disse que considerava você o melhor anestesista que conhecia. Por
isso, senti-me honrada pela sua presença. Alguns dos outros amigos não


foram. Mas eu compreendi.
Jeffrey não sabia o que dizer. Kelly estava desculpando-o, até
mesmo o elogiava. No entanto, quanto mais ela falava, mais se sentia um
pulha. Sem saber como responder, mudou de assunto. Disse ter ficado
contente por achá-la em casa.
- Esta é uma boa hora para me encontrar em casa. Acabei de
chegar. Você deve saber que não trabalho mais no Valley.
- Não, eu não sabia.
- Após a morte de Chris, achei que seria mais saudável mudar disse Kelly. - Assim, estou agora trabalhando no St. Joe's. Unidade de
tratamento intensivo. Gosto mais do que o setor de recuperação. Você
ainda está no Boston Memorial?
- Mais ou menos - respondeu Jeffrey, evasivo. Sentia-se sem
jeito e indeciso. Tinha medo de que ela se recusasse a vê-lo. Afinal,
o que lhe devia? Tinha sua própria vida. Mas já que havia começado,
devia tentar. - Kelly - disse por fim -, eu estava pensando se poderia
dar um pulo na sua casa e conversar um momento com você.
- Quando tenciona vir? - perguntou Kelly, sem perder um segundo.
- Quando for melhor para você. Eu... eu poderia ir agora, se não
estiver ocupada demais.
- Sim, claro - concordou Kelly.
- Se for inconveniente, posso...
- Nada disso! Está ótimo. Venha agora - disse Kelly, antes que
ele chegasse a terminar a frase. Depois lhe deu as instruções para
encontrar sua casa.
Michael Mosconi tinha o cheque de Jeffrey em cima da mesa, bem na sua
frente, quando telefonou para Owen Shatterly, do Boston National Bank.
Pareceu-lhe que não estava nervoso, mas seu estômago encheu-se de
palpitações no instante em que discou o número do banco. Aceitara um
cheque pessoal apenas uma vez em toda a sua carreira de financiador de
fianças arbitradas por tribunais. Dera certo, ele não se queimara. Mas
Michael sabia de histórias desagradáveis acontecidas com colegas. Claro
que se alguma coisa saísse errada, o maior problema de Mosconi seria a
sua companhia de financiamento, antes de mais nada, proibi-lo de aceitar
cheques. Conforme Michael explicara a Jeffrey, estava pondo o dele na
reta. Não sabia sequer explicar por que amolecera. Mas, afinal, era um
caso especial. O cara era um médico, pelo amor de Deus! E, por outro
lado, um ganho de quarenta e cinco mil dólares só acontecia muito
raramente. Michael não quisera perder o caso para um concorrente. Assim,
tivera que oferecer melhores condições. Fora uma decisão executiva.
Alguém no banco atendeu e pôs Michael à espera. Música de fundo
passou a vir do receptor. Michael tamborilou os dedos na tampa da mesa.
Eram quase quatro da tarde. Tudo o que queria saber era se o cheque do
doutor tinha fundos, antes de depositá-lo. Shatterly era seu amigo há


muito tempo; não teria problemas para descobrir o que queria por
intermédio dele.
Quando Shatterly atendeu, Michael informou-o da dúvida que
tinha. Não precisou se estender muito. Shatterly disse apenas:
- Só um segundo.
Michael pôde ouvi-lo digitando o computador.
- De quanto é o cheque? - perguntou Shatterly.
- Quarenta e cinco mil - disse Michael.
Shatterly riu.
- A conta só tem vinte e três dólares e uns trocados.
Houve uma pausa. Michael parou de tamborilar com os dedos na
mesa. Começou a sentir um buraco no estômago.
- Tem certeza de que não fizeram um depósito hoje?
- Nada parecido com 45 mil dólares - respondeu Shatterly.
Michael desligou o telefone.
- Encrenca? - perguntou Devlin O'Shea, olhando por cima de um
velho exemplar de Penthouse. Devlin, um tipo corpulento, parecia mais um
daqueles motoqueiros dos anos sessenta do que um antigo policial de
Boston. Pendurado no lóbulo da orelha esquerda tinha um brinco pequeno,
uma cruz-de-malta de ouro. Usava inclusive um pequeno rabo-de-cavalo.
Além de ajudar no seu trabalho, a aparência dele era o seu modo modesto, é verdade - de desafiar a autoridade, agora que não tinha mais
que se aborrecer com regulamentos, manuais e uniformes. O'Shea fora
expulso da polícia após uma condenação por suborno.
Devlin pôs-se à vontade no sofá de vinil que ficava em frente à
mesa de Michael. Trajava as roupas que praticamente tinham se
transformado no seu uniforme desde que deixara a polícia: uma jaqueta de
zuarte, jeans desbotados e botas pretas de caubói.
Michael continuou calado, o que era uma resposta mais do que
suficiente para Devlin.
- Algo que eu possa resolver? - perguntou:
Michael examinou-o, detendo-se nos poderosos antebraços do homem
e no desenho das suas tatuagens. Faltava-lhe um dos dentes da frente, o
que lhe dava a aparência de brigão de bar o que, ocasionalmente, ele
era.
- Talvez - disse Michael. Estava começando a arquitetar um
plano.
Devlin passara pelo escritório de Mosconi naquela tarde porque
estava sem ter o que fazer. Acabara de trazer de volta um assassino que,
sob fiança, fugira para o Canadá. Devlin era um dos caçadores de prêmios
que Michael usava quando havia necessidade.
Michael achou que Devlin era o homem perfeito para relembrar a
Jeffrey sobre o cumprimento daquela obrigação. Saberia ser muito mais
persuasivo do que ele mesmo conseguiria ser.


Recostando-se na cadeira, explicou a situação ao outro. Devlin
jogou o Penthouse de lado e se levantou. Tinha um metro e noventa e
cinco e pesava uns cento e trinta quilos. A barriga rotunda caia por
cima da grande fivela de prata no cinto. Mas por baixo da camada de
gordura havia bastante músculo.
- Claro, posso conversar com ele - disse Devlin.
- Seja delicado - pediu Michael. - Basta ser persuasivo.
Lembre-se, é um médico. Só quero que não se esqueça de mim.
- Sempre sou delicado - disse Devlin. - Atencioso, elegante, com
bons modos. É o meu encanto.
Devlin deixou o escritório, satisfeito por ter algo a fazer.
Detestava ficar sentado à toa. O único problema era que gostaria de uma
tarefa um pouco mais lucrativa. No entanto, estava ansioso pelo passeio
a Marblehead. Talvez fosse àquele restaurante italiano de lá e depois
tomasse umas cervejas no seu bar favorito, no porto.
A casa de Kelly era encantadora, de dois andares, estilo colonial, com
as vidraças das janelas divididas por finas ripas de madeira. Pintada de
branco, tinha persianas pretas. As duas chaminés, nas extremidades, eram
recobertas por tijolos velhos. Uma garagem para dois carros ficava à
direita da casa, e uma varanda telada à esquerda.
Jeffrey parou no outro lado da rua e encostou no meio-fio.
Examinou a casa pela janela do carro, esperando ter coragem suficiente
para atravessar e tocar a campainha. Ficou surpreso de ver tantas
árvores num lugar tão próximo do centro de Boston. A casa estava
aninhada num agradável conjunto de bordos, carvalhos e bétulas.
Continuou sentado por algum tempo, pensando no que diria. Nunca
fora à casa de alguém em busca de "simpatia e compreensão". E sempre
havia o perigo da rejeição, a despeito do calor amigo ao telefone. Se
não soubesse que Kelly o esperava, não seria capaz de ir em frente.
Reunindo toda a coragem, engrenou o carro e avançou pela entrada
da casa. Adiantou-se para a porta da frente, valise na mão. Sentia-se
ridículo agarrado a ela - mesmo sendo médico, não estava acostumado a
carregar valises -, mas tinha medo de deixar tanto dinheiro no carro.
Kelly abriu a porta antes que ele chegasse a apertar a
campainha. Vestia malha de balé, calças pretas, blusa e faixa de cabeça
cor-de-rosa, e meias de ginástica.
- Vou à aula de aeróbia quase todas as tardes - explicou,
corando ligeiramente. Em seguida deu um grande abraço em Jeffrey. Os
olhos dele quase se encheram de lágrimas, pois não conseguia lembrar
da última vez que alguém o abraçara. Foi preciso um momento para
recuperar o equilíbrio e retribuir.
Ainda segurando os braços dele, Kelly recuou para encará-lo
diretamente nos olhos. Jeffrey era bem uns quinze centímetros mais alto
que ela.


- Estou muito contente por ter vindo - disse. Sustentou o olhar
dele por um segundo e acrescentou: - Entre, entre!
Segurou-o pela mão e o conduziu para dentro, fechando a porta
com um chute macio.
Jeffrey viu-se num amplo foyer com arcos que davam para uma sala
de jantar à direita e uma sala de estar à esquerda. Havia uma pequena
mesa com um serviço de chá de prata. Adiante, mais ao fundo, uma
elegante escada subia em curva para o segundo andar.
- Que tal um chá? - ofereceu Kelly.
- Não quero incomodar - disse Jeffrey.
Kelly estalou a língua.
- O que você quer dizer com incomodar?
Puxou-o pela mão, através da sala de jantar, e levou-o para a
cozinha. Estendendo-se para fora da casa, e ligada com a cozinha, havia
uma sala confortável, com uma mesa e um sofá forrado de tecido
riscadinho. Parecia ser parte de um acréscimo à construção. Do outro
lado da larga janela em arco via-se um jardim que parecia merecer um
pouco mais de atenção. Por dentro, a casa era impecável.
Kelly fez Jeffrey sentar-se no sofá. Ele largou a valise no
chão.
- O que traz nessa valise? - perguntou ela, afastando-se para
pôr um pouco de água a ferver. - Pensei que os médicos carregassem
maletinhas pretas quando dão consultas em casa. Essa aí faz você parecer
mais um corretor de seguros.
Kelly deu uma risada cristalina, foi até a geladeira e apanhou
um bolo de queijo no freezer.
- Se eu lhe mostrasse o que tem dentro desta bolsa, você não
acreditaria - disse Jeffrey.
- Por que diz isso?
Jeffrey não respondeu, e, graciosamente, Kelly não voltou a
perguntar. Pegou uma faca num suporte em cima da pia e cortou o bolo em
dois.
- Fico feliz por você ter decidido vir - disse, lambendo a faca.
- Só tiro bolo do freezer quando tenho companhia.
Ela pôs um saco grande de chá no bule e apanhou as xícaras.
A chaleira começou a apitar furiosamente. Kelly tirou-a do fogo
e despejou a água fervente no bule. Arrumou tudo numa bandeja e carregou
para a mesinha que ficava na frente do sofá.
- Pronto! - exclamou. - Esqueci alguma coisa? Ah, sim,
guardanapos! - Voltou à cozinha, e, ao retornar, sentou-se. Sorriu para
Jeffrey. - Na verdade - disse, servindo o chá -, estou satisfeita por
você ter vindo, e não é só por causa do bolo.
Jeffrey percebeu que não comia desde o cereal no café da manhã.
O bolo era uma delícia.


- Há alguma coisa em particular que você queira saber de mim? perguntou Kelly, descansando sua xícara.
Jeffrey admirou-lhe a franqueza. Tornava tudo mais fácil para
ele.
- Para começar, quero pedir-lhe desculpas por não ter sido tão
amigo de Chris quanto devia - disse. - Depois do que passei nestes
últimos meses, tenho uma boa idéia do que ele enfrentou. Na época, eu
nem imaginava.
- Acho que ninguém imaginava - observou Kelly, tristonha. - Nem
mesmo eu.
- Não é minha intenção despertar em você lembranças dolorosas esclareceu Jeffrey quando viu a mudança na expressão de Kelly.
- Não se preocupe. Finalmente aprendi a conviver com o que houve
- disse ela. - Mas esta é mais uma razão pela qual eu lhe devia ter
telefonado. Como está resistindo?
Jeffrey não contara que a conversa passasse para os seus
problemas tão depressa. Como estava resistindo? Nas últimas vinte e
quatro horas tentara o suicídio, e, falhando a tentativa, quisera fugir
do país.
- Tem sido difícil - foi tudo o que conseguiu dizer.
Kelly adiantou-se e apertou-lhe a mão.
- Não penso que as pessoas tenham a menor idéia do preço que se
paga por um processo de imperícia - e não estou me referindo a dinheiro.
- Você sabe melhor que a maioria - disse Jeffrey. - Você e Chris
pagaram um preço altíssimo.
- É verdade que você vai ser preso? - perguntou Kelly.
Jeffrey suspirou.
- Tudo indica isso.
- É um absurdo! - exclamou Kelly, com uma veemência que o
surpreendeu.
- Estamos recorrendo - informou ele -, mas não tenho muita fé no
processo. Do jeito como as coisas estão indo...
- Como foi que você se tornou bode expiatório? - quis saber
KellY. - O que aconteceu com os outros médicos e com o hospital? Não
foram processados?
- Todos foram dispensados do caso - explicou Jeffrey. - Eu tive
um problema de curta duração com morfina, alguns anos atrás. Uma
história padrão: foi prescrita para dor nas costas resultante de um
acidente de bicicleta. Durante o julgamento, sugeriram que tomei um
pouco de morfina pouco antes de iniciar a anestesia. Depois alguém
encontrou um frasco vazio de Marcaína a 0,75% no cesto de lixo do
aparelho de anestesia que eu estava usando... e Marcaína a 0,75% é
contra-indicada para intervenções obstétricas. Ninguém encontrou o vidro
com 0,5%.


- Mas você não usou a de 0,75%, usou? - indagou Kelly.
- Sempre verifico a etiqueta de um medicamento - garantiu
Jeffrey. - Mas é o tipo de comportamento reflexo difícil de lembrar
especificamente. Não creio que tenha usado a de 0,75%. Mas que posso
fazer? Eles acharam o que acharam.
- Ei! - atalhou Kelly -, não comece a duvidar de si mesmo. Foi o
que aconteceu com Chris.
- Mais fácil de dizer do que fazer.
- Para que é indicada a Marcaína a 0,75%?
- Um bocado de coisas - respondeu Jeffrey. - Sempre que se
deseja realizar um bloqueio de longa ação com pouco volume. E muito
usado em cirurgia do olho.
- Houve casos de cirurgia de olho na sala de operações onde
ocorreu seu acidente, ou quaisquer outras cirurgias que pudessem exigir
Marcaína a 0,75%?
Jeffrey pensou um momento e sacudiu a cabeça.
- Acho que não, mas não tenho certeza absoluta.
- Talvez valha a pena examinar isso - recomendou Kelly. - Não
teria grande valor legal, mas se você pudesse explicar a Marcaína a
0,75% pelo menos a si próprio, ajudaria muito a reconstruir sua
autoconfiança. Acredito que, quando se trata de imperícia, os médicos
precisam ser tão esforçados em conservar sua auto-estima como ao
preparar suas defesas para o tribunal.
- Você tem razão - disse Jeffrey, mas ainda estava pensando nas
perguntas de Kelly sobre a Marcaína a 0,75%. Não podia acreditar que
ninguém tivesse pensado em perguntar sobre procedimentos anteriores ao
de Patty Owen na mesma sala cirúrgica. Ele, pelo menos, nem pensara
nisso. Gostaria de saber como conseguiria realizar esse tipo de
investigação, agora que não desfrutava sequer do acesso ao hospital.
- E já que falamos de auto-estima, como vai a sua? - Kelly
sorriu, mas Jeffrey podia garantir que, a despeito da sua aparente
descontração, ela não poderia estar falando mais seriamente.
- Parece-me que você é uma perita - disse Jeffrey. - Tem lido um
bocado de psiquiatria nas horas vagas?
- Quase nada - respondeu Kelly. - Lastimavelmente, aprendi sobre
a importância da auto-estima do pior jeito, pela experiência.
Ela tomou um gole de chá. Por um momento ficou perdida num
melancólico devaneio, olhando através da janela para o jardim
descuidado. Até que, tão de repente quanto entrara, saiu do transe
momentâneo. Encarou Jeffrey, muito séria.
- Estou convencida de que foi por causa de um nível extremamente
baixo de auto-estima que Chris cometeu suicídio. Não poderia ter feito o
que fez se se sentisse melhor a seu respeito. Tenho certeza. Não foi
exatamente a tragédia que o empurrou para o outro lado da cerca.


Certamente também não foi a culpa. Chris era como você, não tinha nada
para se sentir culpado. A súbita erosão da confiança, o mal causado à
opinião que tinha de si mesmo, é que o fez dar cabo da própria vida. As
pessoas não têm idéia de como até os médicos mais realizados são
sensíveis ao impacto de um processo. Na verdade, quanto melhor o médico,
mais dói. O fato do processo não ter fundamento não ajuda nada.
- Você está absolutamente certa - disse Jeffrey. - Quando eu
soube que Chris se tinha matado, fiquei atônito. Sabia que tipo de homem
ele era, e que tipo de médico. Agora o suicídio dele não me surpreende
mais. Na verdade, vendo as coisas da minha posição atual, o
surpreendente é que mais médicos processados por imperícia não recorram
ao suicídio. Na verdade, cheguei a tentar ontem à noite.
- Tentar o quê? - perguntou Kelly asperamente. Sabia ao que
Jeffrey se referira, mas não quis acreditar.
Jeffrey suspirou. Não pôde encará-la.
- Ontem à noite tentei cometer suicídio - disse simplesmente. Cheguei quase a fazer o que Chris fez. Você sabe, o truque da
suecinilcolina e da morfina. Já estava com tudo pronto.
Kelly deixou cair a xícara de chá. Adiantou-se e, agarrando
Jeffrey pelos ombros, sacudiu-o. Aquele gesto o surpreendeu. Pegou-o
completamente desprevenido.
- Não se atreva a fazer uma coisa dessas. Nem pense nisso!
Kelly continuou fulminando-o com o olhar, sem largar seus
ombroS. Finalmente ele murmurou que ela não precisava se preocupar, já que
lhe faltara coragem para chegar até o fim.
Kelly sacudiu-o de novo, reagindo aos seus comentários.
Jeffrey não sabia o que fazer, não sabia o que dizer.
Kelly continuou a sacudi-lo, inflamada.
- O suicídio não é um ato de coragem - disse, furiosa. - É o
contrário. É a saída covarde. É a saída egoísta. Fere a todos que você
deixa para trás, todos os que o amam. Prometa-me que, se algum dia tiver
pensamentos suicidas de novo, vai me chamar imediatamente, a qualquer
hora do dia ou da noite. Pense na sua mulher. O suicídio de Chris me
encheu de muita culpa, você não faz idéia. Senti-me esmagada. Achei que,
de certo modo, eu falhara a ele. Sei agora que não é verdade, mas da
morte de Chris é provável que eu jamais me recupere totalmente.
- Carol e eu estamos nos divorciando - disse Jeffrey num
repente.
A expressão de Kelly suavizou-se.
- Por causa do processo?
Jeffrey sacudiu a cabeça.
- Já estava resolvido antes de tudo começar. Carol foi legal o
bastante para adiar o divórcio por algum tempo.


- Pobre homem - condoeu-se Kelly. - Não posso imaginá-lo
tentando lidar ao mesmo tempo com um processo em que é acionado por
imperícia e o fim de um casamento.
- Meus problemas conjugais são a menor das minhas preocupações afirmou Jeffrey.
- Falei sério a respeito de você me telefonar antes de fazer
qualquer bobagem - insistiu Kelly.
- Não estou pensando em...
- Prometa!
- Está bem, eu prometo - concordou Jeffrey.
Satisfeita, ela levantou-se e limpou a mancha que fizera ao
largar a xícara de chá. Juntando os pedaços da porcelana quebrada,
disse:
- Ai, como eu gostaria de ter tido uma indicação qualquer, por
menor que fosse, do que Chris estava planejando. Num dado minuto ele
parecia disposto a lutar, dizendo que a complicação anestésica seria
secundária a um contaminante no local, e no minuto seguinte estava
morto.
Jeffrey observou-a atirando os cacos de porcelana no lixo. Foram
Precisos alguns momentos para perceber o sentido de suas últimas palavras. Quando Kelly retornou e sentou-se de novo no seu lugar,
perguntou:
- O que fez Chris pensar num contaminante no anestésico local?
Kelly deu de ombros.
- Não tenho a menor idéia, mas ele parecia estar genuinamente
excitado com a possibilidade. Eu o encorajei. Pouco antes eu o
encontrara deprimido. Muito deprimido. A idéia de um contaminante foi um
real incentivo para ele. Passou vários dias debruçado sobre manuais de
farmacologia e fisiologia; fez muitas anotações. Trabalhava nisso na
noite em que... fui me deitar. Encontrei-o na manhã seguinte com uma
injeção intravenosa em posição, a ampola vazia.
- Que horror! - lamentou Jeffrey.
- Foi a pior experiência da minha vida - admitiu Kelly.
Por um instante, Jeffrey invejou Chris, não por ter tido êxito
onde ele falhara, mas porque deixara alguém - era óbvio - que o amava
tão profundamente. Se tivesse morrido, alguém sentiria daquele modo a
sua falta? Tentou livrar-se do pensamento. Em vez disso, considerou a
idéia de um contaminante no anestésico. Era uma hipótese curiosa.
- Em que tipo de contaminante Chris estaria pensando? - quis
saber.
- Eu realmente não sei - respondeu Kelly. - Passaram-se dois
anos, e Chris nunca entrou em detalhes. Pelo menos comigo.
- Você mencionou a teoria dele a alguém, na época?
- Falei com os advogados. Por quê?


- É uma idéia intrigante.
- Ainda tenho as anotações de Chris - disse Kelly. - Esteja à
vontade para vê-las, se quiser.
- Eu gostaria - disse Jeffrey.
Kelly levantou-se e levou Jeffrey de volta pela cozinha e a sala
de jantar. Cruzou o foyer e atravessou a sala de estar. Parou diante de
uma porta fechada.
- Acho melhor explicar-lhe - disse ela. - Este era o escritório
de Chris. Sei que provavelmente não foi uma coisa muito saudável, mas,
após a morte dele, simplesménte fechei a porta e deixei tudo tal como
estava. Não me pergunte por quê. Na ocasião me fez sentir melhor, como
se uma parte dele ainda estivesse aqui. Portanto, prepare-se. Pode estar
tudo um tanto empoeirado.
Ela abriu a porta e deu um passo para o lado.
Jeffrey entrou no estúdio. Em contraste com o resto da casa,
estava desarrumado, cheirando a mofo. Uma camada de poeira cobria tudo.
Havia inclusive teias de aranha penduradas no teto. As persianas estavam
fechadas. Numa das paredes havia uma estante que se elevava do chão ao
teto com livros que Jeffrey reconheceu imediatamente. A maioria era de
textos de anestesia. Outros tratavam de assuntos médicos mais gerais.
No centro do cômodo estava uma velha escrivaninha, com montes de
papéis e livros. Num Canto, viu uma poltrona Eames estofada em couro
preto que ressecara e rachara. Ao lado dela, uma alta pilha de livros.
Kelly ficara encostada no batente da porta, com os braços
cruzados, como se relutasse em entrar. - Que sujeira - comentou.
- Você não se incomoda se eu der uma olhada? - perguntou
Jeffrey. Sentia certa afinidade com seu colega morto, mas não queria
abusar dos sentimentos de Kelly.
- Fique à vontade. Conforme lhe disse, aprendi finalmente a
conviver com a morte de Chris. Já faz algum tempo que estou pensando em
limpar isto aqui. Só que ainda não tive uma boa oportunidade.
Jeffrey circulou em torno da escrivaninha. Havia uma lâmpada
sobre ela, que acendeu. Não era supersticioso; não acreditava no
sobrenatural. Mesmo assim, de algum modo intuía que Chris tentava lhe
dizer alguma coisa.
Aberto em cima do mata-borrão que cobria a escrivaninha estava
um livro-texto familiar: Pharmacological Basis of Therapeutics, de
Goodman e Gillman. Ao lado dele, o Clinical Toxicology. Junto de ambos,
uma pilha de notas manuscritas. Inclinando-se sobre a escrivaninha,
Jeffrey notou que o Goodman e Gillman estava aberto no capítulo sobre a
Marcaína. Os possíveis efeitos colaterais adversos estavam fortemente
sublinhados.
- O caso de Chris também envolveu o uso de Marcaína? - perguntou


Jeffrey.
- Sim - respondeu Kelly. - Pensei que você soubesse disso.
- Na verdade, não - disse Jeffrey. Não soubera qual o anestésico
usado por Chris. Complicações ocasionais ocorrem com todos eles.
Jeffrey pegou a pilha de anotações. Quase que imediatamente
sentiu o nariz coçar. Espirrou.
Kelly pôs as costas da mão sobre os lábios para esconder o riso.
- Eu avisei que devia estar empoeirado.
Jeffrey espirrou de novo.
- Apanhe o que lhe interessar e depois batemos em retirada para
a copa - sugeriu Kelly.
Com os olhos cheios de lágrimas, Jeffrey pegou os livros de
farmacologia e toxicologia, juntamente com as anotações, e carregou tudo
para fora. Espirrou uma terceira vez antes de Kelly fechar a porta do
estúdio.
Quando voltaram à cozinha, Kelly fez uma sugestão.
- Por que não fica para jantar? Posso preparar qualquer coisa
para nós. Nada de gourmet, mas garanto que será saudável.
- Pensei que você ia sair para sua aula de aeróbia - disse
Jeffrey. Ficara contente com a oferta, mas não queria atrapalhar mais.
- Posso fazer exercício qualquer dia - disse Kelly. - Além
disto, acho que você está precisando de um pouco de amor e carinho.
- Bem, se não for aborrecê-la - concordou Jeffrey, atônito com
tanta bondade.
- Será um prazer - disse Kelly. - Agora ponha-se à vontade no
sofá. Tire os sapatos, se quiser.
Jeffrey seguiu as instruções dela ao pé da letra. Sentou-se e
colocou os livros na mesinha baixa. Observou-a por um momento, enquanto
andava pela cozinha de um lado para o outro, examinando a geladeira e os
armários. Depois livrou-se dos sapatos e acomodou-se para examinar as
anotações de Chris. A primeira coisa que encontrou foi um sumário
manuscrito da complicação anestésica do seu trágico caso.
- Vou dar uma corrida no armazém - disse Kelly. - Você fica por
aí.
- Não quero que tenha trabalho comigo - disse Jeffrey, fazendo
um gesto de quem ia se levantar. Mas não era verdade. Estava adorando o
fato de Kelly estar fazendo tal esforço por ele.
- Tolice - respondeu ela. - Estarei de volta num segundo.
Jeffrey não sabia se Kelly dissera "tolice" porque percebera a
mentira dele ou porque ela não considerava mesmo um transtorno.
Desapareceu num piscar de olhos. Jeffrey ouviu-a ligar o carro na
garagem, sair e acelerar rua abaixo.
Deu uma olhada em torno, apreciando a copa e a cozinha, muito
confortáveis, satisfeito por ter tomado a decisão de procurar Kelly.


Exceto pela decisão de não se matar e pela de não fugir, fora a melhor
das que tomara nas últimas vinte e quatro horas.
Ajeitando-se de novo no sofá, concentrou sua atenção no sumário
da complicação anestésica de Chris:
Henry Noble, sexo masculino, branco, cinqüenta e sete anos de idade,
internou-se no Valley Hospital a fim de ser submetido a uma ablação
total da próstata, motivada por câncer. O pedido do Dr. Wallenstern era
de anestesia peridural contínua. Visitei o homem na noite anterior à
cirurgia. Estava levemente apreensivo. Sua saúde era boa. Estado
cardíaco normal, com um ECO normal. Pressão sanguínea normal. Exame
neurológico normal. Nada de alergias. Especificamente, não tinha alergia
a drogas. Submetera-se a uma anestesia geral para uma operação de hérnia
em 1977, sem problemas. Submetera-se a anestesia local para múltiplos
procedimentos dentários, sem problemas. Por causa da sua apreensão,
receitei 10 mg de diazepam para serem dados por via oral uma hora antes
da cirurgia. Na manhã seguinte ele chegou de moral alto. O diazepam
tivera um bom efeito. O paciente estava levemente sonolento, mas podia
ser despertado. Foi levado à sala de anestesia e colocado em posição
lateral direita. Uma punção peridural foi feita com uma agulha Touhey
calibre 18, sem problemas. Não houve reação aos 2 ml de Lidocaína
utilizados para facilitar o encaixe peridural. A confirmação da
localização peridural foi feita com 2 ml de água estéril misturada com
adrenalina. Um pequeno cateter foi colocado através da agulha Touhey. O
paciente foi deitado de costas novamente. Uma dose de teste de Marcaína
a 0,50/o com uma pequena quantidade de adrenalina foi preparada
usando-se um frasco de 30 ml. Esta dose/teste foi injetada. Assim que
foi injetada, o paciente queixou-se do que descreveu como tonteira,
seguida por severas cólicas intestinais. A pulsação começou a acelerar,
mas não ao nível esperado se a dose/teste tivesse, inadvertidamente,
sido injetada por via intravenosa. Nós musculares apareceram
generalizadamente, sugerindo um estado de sensibilidade excessiva e
dolorosa. A salivação aumentou muito, sugerindo uma reação
parassimpática. Atropina foi administrada na veia. Pupilas mióticas
foram observadas. O paciente teve uma convulsão apoplética, tratada com
succinilcolina e Valium intravenosos. O paciente foi intubado e mantido
com oxigênio, tendo a seguir uma parada cardíaca. O coração demonstrou
ser extremamente resistente a drogas, mas finalmente um ritmo senoidal
foi conseguido. O paciente foi estabilizado mas não retornou à
consciência. O paciente foi removido para a unidade de tratamento
intensivo, onde permaneceu comatoso por uma semana, sofrendo múltiplas
paradas cardíacas. Ficou documentado também que o paciente teve uma
paralisia total após a complicação anestésica, envolvendo não apenas a
espinha vertebral mas
também os nervos cranianos. Ao final da semana, teve uma parada cardíaca


final e não se pôde fazer seu coração funcionar de novo.
Jeffrey ergueu os olhos. Ler a tensa história que Chris escrevera sobre
o seu problema recriou o terror que sentira ao lutar desesperadamente
para salvar Patty Owen. A lembrança foi tão pungente que sentiu as
palmas das mãos úmidas de suor. E o que a tornava tão pungente eram as
notáveis semelhanças dos dois casos, e não apenas os acessos e as
paradas cardíacas. Podia lembrar-se com extraordinária clareza do
momento em que vira a salivação e das lágnimas que Patty derramara. Além
disso, havia a dor abdominal e as pupilas pequenas. Nenhuma dessas
reações era efeito colateral comum em anestésicos locais, embora estes
pudessem causar uma gama extraordinariamente ampla de efeitos cardíacos
e neurológicos adversos em alguns indivíduos.
Jeffrey examinou a página seguinte das anotações. Havia inúmeras
palavras escritas em letras grandes e destacadas. Duas delas eram
"muscanina" e "nicotínico". Jeffrey as reconheceu principalmente dos
seus dias de faculdade de medicina. Relacionavam-se com a função do
sistema nervoso autônomo. Depois vinha a frase "bloqueio irreversível da
parte superior da espinha com envolvimento nervoso craniano", seguida
por uma série de pontos de exclamação.
Jeffrey ouviu o carro de Kelly chegar e entrar na garagem. Deu
uma olhada no relógio. Ela era rápida nas compras.
O próximo item na pilha de Chris era uma RMN - ressonância
magnética nuclear - feita em Henry Noble enquanto estava paralisado e
comatoso. Os resultados registrados eram normais.
- Olá - exclamou Kelly alegremente ao entrar. - Sentiu falta de
mim?
Ela riu, deixando cair um pacote sobre a bancada da pia na
cozinha. Depois aproximou-se do sofá e olhou por cima do ombro de
Jeffrey.
- O que significam essas coisas? - perguntou, apontando para as
palavras e frases que Jeffrey estivera lendo.
- Não sei - admitiu Jeffrey. - Mas as anotações dele são
fascinantes. Existem muitas semelhanças entre o caso de Chris e o meu.
Mas não sei ainda que proveito tirar disso.
- Bem, estou satisfeita de ver alguém usando esse negócio disse Kelly ao voltar para a cozinha. - Faz com que me sinta menos
estranha por ter guardado.
- Não creio que o fato de você guardar tudo tenha sido estranho
- disse Jeffrey, virando para a página seguinte. Era um sumário
datilografado da autópsia de Henry Noble, em que Chris sublinhara a
frase "degeneração axonal vista em secções microscópicas", acrescentando
uma série de pontos de interrogação. Depois sublinhara a frase
"toxicologia negativa", fechando-a com um enfático ponto de exclamação.
Jeffrey sentiu-se aturdido.


As outras anotações eram resumos de artigos tirados
principalmente do livro de farmacologia de Goodman e Gillman. Uma rápida
olhada sugeriu a Jeffrey que diziam respeito principalmente ao
funcionamento do sistema nervoso autônomo. Decidiu reexaminar aquele
material depois. Empilhou os papéis e colocou-os em cima da mesa, com os
dois volumes médicos servindo para ancorá-los.
Jeffrey foi pôr-se ao lado de Kelly.
- Em que posso ajudar? - perguntou.
- Você devia estar descansando - disse Kelly, lavando a alface.
- Eu preferia ajudar - insistiu Jeffrey.
- Tudo bem. Que tal acender o fogo da churrasqueira na varanda
dos fundos? Os fósforos estão na gaveta. - E Kelly apontou com uma folha
de alface.
Jeffrey apanhou os fósforos e saiu. A churrasqueira era de um
tipo arredondado na grelha, sendo o fogo fornecido por um cilindro de
gás. Rapidamente descobriu como a válvula trabalhava, acendeu o fogo e
fechou a peça redonda superior.
Antes de voltar para dentro da casa, Jeffrey deu uma olhada no
jardim. A grama alta estava bem verde, fresca da primavera. Chovera
muito naquele ano, de modo que a vegetação estava particularmente
saudável e brilhante. Tufos de samambaia rendadas podiam ser vistos por
entre as árvores.
Jeffrey sacudiu a cabeça, descrente. Parecia quase impossível
que apenas na noite anterior tivesse estado tão perto de cometer
suicídio. E que ainda naquela tarde tentara fugir para a América do Sul.
Agora ele estava numa varanda em Brookline, preparando-se para comer um
churrasco e com uma mulher, atraente, sensível e capaz de demonstrar
francamente as suas emoções. Parecia bom demais para ser verdade. Ele
então percebeu, com um choque, que era bom demais mesmo; dentro de
pouco
tempo estaria confinado numa prisão.
Respirou fundo o ar frio do final da tarde, desfrutando da sua
Pureza. Observou um tordo arrancando uma minhoca do solo molhado. Em
seguida entrou para ver o que mais poderia fazer.
O jantar, delicioso, foi um grande sucesso. A despeito das
circunstâncias um tanto difíceis, ele conseguiu distrair-se muito. A conversa
com Kelly era natural e fácil. Comeram postas de atum ao escabeche,
arroz pilau e uma salada mista verde. Ela apanhou uma garrafa de
chardonnay no fundo da geladeira. Estava frio e era revigorante. Jeffrey
surpreendeu-se rindo pela primeira vez em meses. O que, por si só, já
era um grande feito.
Levando café e mais bolo de queijo, eles se retiraram para o
sofá da sala dos fundos. As anotações de Chris e os manuais trouxeram a


cabeça de Jeffrey de volta a pensamentos mais sérios.
- Detesto retornar a assuntos desagradáveis - disse, após uma
pausa na conversa -, mas como terminou o caso de imperícia de Chris?
- O júri decidiu em benefício do patrimônio do querelante respondeu Kelly. - O pagamento da quantia estipulada foi dividido entre
o hospital, Chris e o cirurgião, de acordo com um plano complicado
qualquer. Acho que o seguro de Chris pagou quase tudo, mas não sei ao
certo. Por sorte, esta casa estava no meu nome, de modo que não puderam
incluí-la entre os bens disponíveis.
- Li um sumário escrito por Chris - disse Jeffrey. - Com toda a
certeza não houve imperícia.
- Com este tipo de caso, tão carregado emocionalmente - disse
Kelly -, não é muito importante se houve ou não. Um bom advogado sempre
consegue fazer o júri se identificar com o paciente.
Jeffrey aquiesceu. Infelizmente, era verdade.
- Devo lhe pedir um favor - disse, após uma pausa. - Você se
incomodaria muito se eu levasse estas anotações emprestadas? - Ele deu
uma palmadinha na pilha de papéis.
- Pelo amor de Deus, claro que não - respondeu Kelly. - Ponha-se
à vontade. Posso perguntar por que está tão interessado nelas?
- Elas me lembram de perguntas que eu deveria ter feito em
relação ao meu caso - respondeu Jeffrey. - Houve algumas discretas
inconsistências que não fui capaz de explicar. Estou surpreso de ver que
as mesmas inconsistências apareceram no caso de Chris. A idéia de um
contaminante não me ocorrera. Gostaria de examinar as anotações mais
algumas vezes. Não está evidente o que ele andou pensando. Além disto acrescentou com um sorriso -, levá-las me dará um bom motivo para
trazê-las de volta.
- Você não precisa de desculpas - disse Kelly. - Será bem-vindo
a qualquer hora.
Jeffrey foi embora logo depois de terminarem a sobremesa. Kelly
o levou até o carro. Tinham jantado tão cedo que ainda estava claro. Jeffrey agradeceu efusivamente pela espontânea hospitalidade.
- Você não tem idéia do quanto apreciei esta visita - disse,
muito sincero.
Depois que ele se acomodou no carro, levando a valise que agora
continha também as anotações de Chris, Kelly enfiou a cabeça pela janela
aberta.
- Lembre-se de sua promessa! - advertiu. - Se lhe ocorrerem
pensamentos tolos, terá que entrar em contato comigo.
- Não vou esquecer - assegurou Jeffrey.
Voltou para casa em sereno contentamento. Passar umas poucas
horas com Kelly tinha feito muito para melhorar seu estado de espírito.
Em vista das Circunstâncias, espantou-o ter sido capaz de reagir tão


normalmente. Mas sabia que aquele estado tinha mais a ver com a psique
de Kelly do que com a sua. Fazendo a curva final na rua onde morava,
esticou o braço para firmar a valise, que ameaçava escorregar do banco.
Com a mão a prendê-la, pensou no seu estranho conteúdo. Artigos de
toalete, roupas de baixo, quarenta e cinco mil dólares em dinheiro e uma
pilha de anotações escritas por um suicida.
Embora não pensasse encontrar nada que o absolvesse nas
anotações, só o fato de tê-las em seu poder lhe dava alguma esperança.
Talvez pudesse aprender algo com a experiência de Chris, encontrando
evidências que não fora capaz de enxergar com os próprios olhos.
E embora lamentasse ter sido obrigado a dizer adeus a Kelly,
ficou contente por chegar em casa cedo. Planejava examinar mais
atentamente as anotações de Chris e separar alguns livros para um pouco
de leitura séria.
***
Capítulo 3.
TERÇA-FEIRA, 16 DE MAIO DE 1989, 19:49.
Jeffrey parou na porta da garagem, saltou do carro e espreguiçou-se.
Dava para sentir o cheiro do mar. Sendo uma península que se lançava
sobre o Atlântico, toda Marblehead estava perto da água. Inclinando-se
novamente dentro do automóvel, puxou a valise e levantou-a no ar. Bateu
a porta e começou a subir os primeiros degraus.
Ao caminhar, reparou na beleza que o cercava por todos os lados.
Pássaros cantavam loucamente na sempre-verde que se erguia no gramado da
frente, e uma gaivota piava, bem longe. Uma fila de rododendros em plena
floração criava um tumulto de cores diante da casa. Sempre preocupado
com seus problemas durante os últimos meses, perdera totalmente a
encantadora transição do inverno sombrio da Nova ínglaterra para a
gloriosa primavera. Ele a estava apreciando agora pela primeira vez
naquele ano. O efeito da visita feita a Kelly ainda o influenciava.
Ao chegar na porta, lembrou da mala com as roupas. Hesitou por
um momento, e decidiu que podia pegá-la depois. Enfiou a chave na
fechadura e entrou.
Carol estava de pé, no meio do caminho, as mãos nas cadeiras.
Pela expressão, podia garantir que estava furiosa. Bem-vindo ao lar,
Pensou Jeffrey. E como foi o seu dia? Largou a valise no chão.
- São quase oito horas - observou Carol, com mal disfarçada
impaciência.
- Estou bem consciente das horas.
- Por onde andou?
Jeffrey pendurou o paletó. A atitude inquisitorial de Carol o
cansava. Talvez devesse ter telefonado. Nos velhos tempos, era o que
teria feito, mas os dias mais recentes não podiam ser classificados como


normais nem com grande esforço de imaginação.
- Não perguntei onde você esteve - disse Jeffrey.
- Quando fico atrasada até uma hora como esta, sempre telefono disse Carol. - Uma simples cortesia.
- Suponho que eu não seja uma pessoa cortês - disse Jeffrey.
Estava cansado demais para discutir. Apanhou a valise, tencionando ir
diretamente para o seu quarto. Não queria discutir com Carol. Súbito,
porém, se deteve. Viu um homem enorme encostando-se como que
casualmente
no batente da porta da cozinha. Os olhos de Jeffrey repararam
imediatamente no rabo-de-cavalo, na roupa de zuarte, nas botas de caubói
e nas tatuagens. Tinha um brinco de ouro numa das orelhas e trazia na
mão uma garrafa de Kronenbourg.
Jeffrey dirigiu a Carol um olhar indagador.
- Enquanto você esteve fazendo Deus sabe o quê - disse Carol,
bruscamente -, tive que suportar este porco aqui em casa. E tudo por sua
causa. Onde é que esteve?
Os olhos de Jeffrey passaram de Carol para o estranho e voltaram
para ela de novo. Não tinha idéia do que estava se passando. O
homenzarrão piscou e sorriu ao ouvir a referência nada elogiosa, como se
tivesse recebido um cumprimento.
- Eu também gostaria de saber onde você andou, meu chapa - disse
o truculento personagem. - Porque já sei por onde não andou.
Deu uma golada na cerveja e sorriu. Agia como se estivesse se
divertindo.
- Quem é este homem? - perguntou Jeffrey a Carol.
- Devlin O'Shea - respondeu o próprio, adiantando-se e se
colocando ao lado de Carol. - Eu e a linda madame estamos esperando você
há horas. - Adiantou-se para beliscar a bochecha de Carol, mas ela lhe
deu um tapa na mão. - Garotinha rápida - gozou, com uma risada.
- Quero saber o que está acontecendo - exigiu Jeffrey.
- O Sr. O'Shea é o encantador emissário do Sr. Michael Mosconi esclareceu Carol, furiosa.
- Emissário? - perguntou Devlin. - Ooh, gosto disto. Parece
sexy.
- Você foi ao banco ver Dudley? - quis saber Carol, ignorando
Devlin.
- Claro - disse Jeffrey. De repente percebeu por que Devlin
estava ali.
- E o que foi que aconteceu? - indagou Carol.
- Sim, o que foi que aconteceu? - repetiu Devlin. - Nossas
fontes informaram que não foi feito um depósito conforme o prometido.
Uma pena.
- Houve um problema... - gaguejou Jeffrey. Não se tinha


preparado para aquele interrogatório.
- Que tipo de problema? - perguntou Devlin, adiantando-se e
enfiando o dedo indicador repetidamente no peito de Jeffrey, para
iniciar a pressão. Sentiu que Jeffrey não estava limpo.
- Burocracia - disse Jeffrey, tentando desviar-se dos golpes de
Devlin. - O tipo de burocracia que sempre acontece num banco.
- E se eu não acreditar em você? - berrou Devlin, dando uma
palmada num lado da cabeça de Jeffrey com a palma da mão aberta.
Jeffrey levou uma das mãos à orelha. A bofetada doera e o
assustara. Seu ouvido estava tinindo.
- Você não pode entrar na minha casa e me agredir - disse
Jeffrey, tentando ser autoritário.
- Oh, não? - perguntou Devlin, forçando um tom de voz muito
alto. Passou a cerveja para a mão direita e com a esquerda acertou
Jeffrey do outro lado da cabeça. O movimento foi tão rápido, que Jeffrey
não teve tempo de reagir. Foi tropeçar de costas na parede,
acocorando-se ante aquele animal enorme.
- Deixe-me lembrar uma coisa a você - disse Devlin, olhando fixo
para Jeffrey. - Você é um réu condenado, meu amigo, e a única razão pela
qual não está apodrecendo na prisão é a generosidade do Sr. Mosconi.
- Carol! - gritou Jeffrey. Sentia uma mistura de terror e raiva.
- Chame a polícia!
- Hã! - Devlin deu uma risada, atirando a cabeça para trás. Chame a polícia! Você é demais, doutor, realmente é. Pois eu é que estou
com a lei do meu lado... e não você. Vim aqui apenas como um... - Devlin
parou e olhou para Carol. - Ei, queridinha, do que foi mesmo que você me
chamou?
- Emissário - disse Carol, esperando apaziguar o homem. Estava
aterrada com aquela situação, mas não sabia o que fazer.
- Conforme ela disse, sou um emissário - repetiu Devlin,
voltando-se novamente para Jeffrey. - Sou um emissário e vim lembrar
você do negócio que fez com o Sr. Mosconi. Ele ficou um pouco
desapontado esta tarde quando telefonou para o banco, O que aconteceu ao
dinheiro que devia estar na sua conta corrente?
- A culpa foi do banco - repetiu Jeffrey. Esperou que Deus
fizesse aquele gigante não olhar dentro da valise, que ainda segurava.
Se visse aquele dinheiro todo, concluiria que estivera planejando fugir.
- Foi um probleminha burocrático, mas o dinheiro estará na conta amanhã
cedo. Preenchi toda a papelada.
- Você não está querendo me fazer de idiota, está? - perguntou
Devlin. Deu um piparote no nariz de Jeffrey com a unha do indicador.
Jeffrey estremeceu. Teve a impressão de ser picado por uma abelha.
- Asseguraram-me que não haverá mais problemas - disse Jeffrey.
Encostou o dedo na ponta do nariz e deu uma olhada. Não havia sangue.


- Então o dinheiro estará lá amanhã de manhã?
- Com toda certeza.
- Bem, nesse caso acho que vou indo - disse Devlin. - Não
preciso dizer que, se o dinheiro não aparecer, voltarei.
O homem desviou-se de Jeffrey e se aproximou de Carol.
Entregou-lhe a cerveja.
- Obrigado pela cervejinha, querida.
Ela segurou a garrafa. Devlin fez novamente menção de beliscar
sua bochecha. Carol tentou esbofeteá-lo, mas ele segurou-lhe o braço.
- Você certamente é rápida - disse, com uma risada. Ela puxou o
braço com força. - Tenho certeza de que ambos ficarão tristes por me
verem partir. Gostaria de ficar para o jantar, mas tenho que encontrar
um grupo de freiras na casa da Rosalie. - Com uma risada rouca ele puxou
a porta, que se fechou nas suas costas.
Por alguns momentos nem Jeffrey nem Carol se moveram. Ouviram um
carro partir e afastar-se. Foi Carol quem quebrou o silêncio.
- O que aconteceu no banco? - quis saber. Estava furiosa. - Por
que não tinham o seu dinheiro?
Jeffrey não respondeu. Limitou-se a olhar para sua mulher,
emudecido. Estava trêmulo ante a atitude de Devlin. No confronto entre
raiva e terror, vencera o terror. Devlin era a personificação dos seus
piores receios, especialmente por compreender que era indefeso contra
ele, e que não tinha qualquer proteção da lei. Exatamente o tipo que
Jeffrey imaginava povoar as prisões. Ficou surpreso do homem não ter
ameaçado quebrar suas pernas. A despeito do nome irlandês, parecia um
personagem ligado diretamente à Máfia.
- Responda-me! - exigiu Carol. - Onde você esteve?
Com a valise ainda na mão, Jeffrey seguiu em direção ao seu
quarto. Queria estar só. O pesadelo de uma prisão cheia de condenados
iguais a Devlin envolveu-o numa velocidade estonteante.
Carol agarrou-lhe o braço.
- Estou falando com você! - gritou.
Jeffrey parou e baixou os olhos para a mão de Carol segurando
seu braço.
- Largue-me - disse, com a voz controlada.
- Não enquanto você não me disser onde esteve.
- Largue-me - repetiu Jeffrey, ameaçador.
Pensando melhor, Carol resolveu soltar-lhe o braço. Mais uma vez
Jeffrey partiu para o seu quarto. Gritando, ela correu atrás dele.
- Você não é o único a sofrer nesta situação - gritou. - Acho
que mereço uma explicação. Tive que entreter aquele animal durante
horas.
Jeffrey parou diante da sua porta.
- Sinto muito - disse. Ele lhe devia um pedido de desculpas.


Carol parou perto dele.
- Acho que tenho sido bastante compreensiva em tudo - disse
Carol. - Agora quero saber o que aconteceu no banco. Dudley afirmou
ontem que não haveria problemas.
- Falarei sobre isso mais tarde. - Ele precisava de alguns
minutos para se acalmar.
- Quero falar agora - insistiu Carol.
Jeffrey abriu a porta e entrou no quarto, Carol tentou forçar
caminho, mas Jeffrey bloqueou sua passagem.
- Depois! - repetiu, mais alto do que queria. Fechou a porta na
cara dela. Carol ouviu o barulho do trinco sendo corrido.
Ela bateu na porta, frustrada, e começou a chorar.
- Você é insuportável! Não sei por que concordei em protelar o
início do divórcio. Aí está o agradecimento que recebo. - Soluçando, ela
deu um pontapé na porta e correu pelo corredor até o seu quarto.
Jeffrey deixou a valise em cima da cama e sentou-se ao lado. Não
tencionara irritar Carol, mas não fora possível evitar. Como poderia
explicar-lhe o que estava passando, se não havia qualquer comunicação
real entre eles há anos? Certamente que devia uma explicação, mas
não queria confiar nela enquanto não decidisse definitivamente o que ia
fazer. Se lhe dissesse que estava com o dinheiro na valise, ela ia
querer que o levasse ao banco o mais depressa possível. Entretanto,
precisava de tempo para pensar. Talvez pela quarta vez, só naquele dia,
não estava certo sobre o que devia fazer.
Levantou-se e foi até o banheiro. Encheu um copo com água e
segurou-o com ambas as mãos para beber. Ainda estava trêmulo após aquele
turbilhão de emoções. Olhou-se no espelho. Tinha um arranhão no nariz,
no lugar onde Devlin aplicara o piparote. Ambas as orelhas estavam
vermelhas. Estremeceu ao se lembrar de como se sentira indefeso diante
do homem.
Retornou ao quarto e olhou para a valise. Abriu os fechos,
levantou a tampa, pôs de lado os maços de notas de cem dólares e
concluiu que seria preferível estar no avião. Se não tivesse desistido,
estaria bem adiantado a caminho do Rio e de um tipo qualquer de vida
nova. Fosse qual fosse, seria certamente melhor do que a situação que
estava enfrentando agora. Os cálidos momentos com Kelly e o excelente
jantar pareciam ter acontecido em outra vida.
Dando uma olhada no relógio, notou que passava um pouco das oito
horas. O último vôo da ponte aérea da Pan Am partia às nove e meia.
Poderia pegá-lo se saísse logo.
Lembrou-se de como se sentira mal no avião, naquela tarde mesmo.
Poderia realmente levar avante o projeto? Voltou ao banheiro e examinou
novamente as orelhas inflamadas e o nariz arranhado. Do que mais um
homem como Devlin seria capaz, se estivessem trancados na mesma cela,


dia após dia?
Jeffrey voltou-se e foi apanhar a valise. Fechou a tampa e
trancou-a. Ia para o Brasil.
Quando Devlin deixou a casa dos Rhodes, tencionava seguir mesmo seu
plano original de comida italiana, seguida por cervejas no bar do porto.
Mas depois de se afastar uns três quarteirões, a intuição fez com que
encostasse o carro no meio-fio. Relembrou a conversa que tivera com o
bom doutor. A partir do momento em que Jeffrey acusara o banco por não
ter depositado o dinheiro na sua conta, Devlin achou que ele mentia. E
agora começou a se perguntar o motivo.
- Médicos! - exclamou. - Sempre pensam que são mais espertos que
os outros.
Fazendo uma curva em U, Devlin voltou pelo mesmo caminho e
passou pela casa dos Rhodes, tentando decidir como devia proceder.
Mais ou menos um quarteirão depois, fez outra curva em U e passou pela
casa de novo, desta vez reduzindo a velocidade. Encontrou um local
adequado e estacionou.
Pelo seu modo de ver, tinha duas alternativas: ou voltar à casa
dos Rhodes e perguntar ao doutor por que estava mentindo, ou ficar ali
mesmo, quieto, esperando um pouco. Sabia que assustara o homem. Fora
essa a sua intenção. Comumente, as pessoas que se sentiam culpadas de
alguma coisa reagiam a um confronto, cometendo logo algum ato que as
denunciava. Devlin decidiu esperar que o médico saísse. Se nada
acontecesse no prazo de uma hora, mais ou menos, iria comer qualquer
coisa e voltaria para uma visita.
Desligando o motor, encolheu-se o melhor que pôde atrás do
volante. Pensou em Jeffrey Rhodes, imaginando qual seria o motivo da
condenação. Mosconi não lhe contara. Para Devlin, Rhodes não tinha jeito
de criminoso, nem mesmo da variedade de colarinho-branco.
Alguns mosquitos perturbaram o seu devaneio. Quando fechou os
vidros, a temperatura no interior do carro subiu. Começou a repensar
seus planos. Já estava prestes a dar partida no motor, quando viu
movimentos na extremidade mais distante da garagem.
- O que teremos agora? - disse, abaixando-se bem.
A princípio não poderia dizer quem era, se o marido ou a mulher.
Até Jeffrey aparecer diante da garagem, seguindo diretamente para o seu
carro. Carregava a valise e corria meio agachado, como se não quisesse
ser visto por alguém dentro da casa.
- Isto está ficando interessante - resmungou Devlin. Se pudesse
provar que Jeffrey estava tentando fugir, e o interceptasse, e o levasse
para a cadeia, um bom dinheiro poderia estar a caminho.
Sem bater a porta do carro, com medo de que Carol pudesse ouvir, Jeffrey
soltou o freio de mão e deixou o automóvel deslizar silenciosamente até
a rua. Só então ligou o motor e partiu. Esticou o pescoço para examinar


a casa pelo máximo de tempo que conseguiu, mas Carol não apareceu. Uma
quadra depois bateu a porta e pôs o cinto de segurança. A fuga fora mais
fácil do que pensara.
Na hora em que chegou à congestionada Lynn Way, com seus
estacionamentos cheios de carros usados para venda e anúncios
espalhafatosos de néon, começou a se acalmar. Ainda sentia um pouco os
efeitos da visita de Devlin, mas era um alivio saber que breve poria
tanto o homem quanto a ameaça de prisão bem para trás. Ao se aproximar
do Aeroporto Logan, começou a sentir as mesmas dúvidas da tentativa anterior. Mas tudo o que tinha a fazer agora
era palpar as orelhas doloridas para reforçar sua decisão. Desta vez
estava decidido a ir até o fim, sem ligar para escrúpulos ou ansiedades.
Tinha alguns minutos como margem de segurança, por isso foi ao
balcão para que o funcionário trocasse o vôo do seu bilhete para o Rio
de Janeiro. Sabia que o da ponte aérea ainda era válido. Como o vôo
noturno para o Rio era consideravelmente mais barato que o da tarde,
ainda recebeu de volta uma boa soma em dinheiro.
Segurando o bilhete na boca, a valise numa das mãos e a maleta
na outra, adiantou-se apressadamente para a área de segurança. A troca
do bilhete tomara mais tempo do que imaginara, e aquele era um vôo que
não queria perder.
Seguiu diretamente para o aparelho de raios X e largou a maleta
na esteira rolante. Estava prestes a fazer o mesmo com a valise quando
alguém agarrou seu colarinho por trás.
- Saindo de férias, doutor? - perguntou Devlin, com um sorriso
de desagrado. Arrancou a passagem da boca de Jeffrey.
Continuando a segurar Jeffrey pelo colarinho com a mão esquerda,
abriu o tíquete da companhia aérea e observou o destino. Quando viu que
era o Rio de Janeiro, disse:
- Bingo!
Abriu um largo sorriso. Já podia se ver numa das mesas de jogo
em Las Vegas. Praticamente, estava com muito dinheiro nas mãos.
Enfiando o bilhete de Jeffrey no bolso da jaqueta de zuarte,
levou a mão ao bolso de trás para pegar as algemas. Algumas pessoas que
estavam atrás de Jeffrey, na fila do aparelho de raios X, ficaram
embasbacadas, sem acreditar no que viam.
A visão familiar das algemas arrancou Jeffrey da sua paralisia.
Num gesto súbito e feroz, balançou a valise num arco violento, tendo
Devlin como alvo. Este, concentrado em abrir as algemas com a mão livre,
não chegou a perceber o golpe.
A valise atingiu Devlin na têmpora esquerda, pouco acima do
ouvido, fazendo-o estatelar-se na parte lateral do aparelho de raios X.
As algemas caíram ruidosamente no chão.
A jovem que cuidava do aparelho gritou. O agente uniformizado da


polícia estadual levantou os olhos da página de esportes do Herald.
Jeffrey saiu correndo como um coelho, dirigindo-se para os balcões do
terminal e de bilhetes. Devlin passou a mão na cabeça, e viu que estava
sangrando.
Para Jeffrey a dificuldade era desviar-se das pessoas,
conseguindo
em alguns casos, colidindo noutros. Quando chegou na junção da área
central livre com o terminal propriamente dito, olhou para trás, onde
ficava a área de segurança. Viu Devlin apontando na sua direção para um
policial uniformizado. Outras pessoas olhavam também para Jeffrey,
sobretudo aquelas com quem colidira.
Em frente havia uma escada rolante subindo com gente que vinha
do andar inferior. Correu para ela e precipitou-se de qualquer maneira
para baixo, empurrando os irados passageiros que se agarravam às suas
malas. No piso inferior, que era o de chegada, havia uma verdadeira
multidãO, pois diversos vôos tinham acabado de pousar. Abrindo caminho
por entre os recém-chegados, Jeffrey contornou a área de bagagem o mais
rápido que pôde e saiu pelas portas eletrônicas para a rua.
Ofegante, parou no meio-fio, tentando decidir um caminho. Sabia
que tinha de afastar-se do aeroporto imediatamente. Mas como? Viu alguns
táxis parados, mas havia também uma longa fila de pessoas esperando por
eles. Não dispunha de muito tempo. Podia correr até o estacionamento
onde deixara o automóvel, mas algo lhe disse que entraria num beco sem
saída. Para começar, Devlin provavelmente sabia onde o carro estava,
pois seguira Jeffrey até o aeroporto. De que outro modo poderia saber
onde encontrá-lo?
Enquanto avaliava as alternativas, o ônibus do terminal
apareceu, movendo-se pesadamente ao longo da rua. Sem hesitar, correu e
se colocou à sua frente, agitando os braços loucamente.
O ônibus freou, os pneus cantando. O motorista abriu a porta.
Quando Jeffrey pulou para dentro, ele disse:
- Cara, ou você é um imbecil ou um maluco, e espero que seja
imbecil, porque eu detestaria ter um maluco a bordo.
Depois sacudiu a cabeça em sinal de descrença, engrenou e pisou
no acelerador.
Agarrando o porta-bagagens superior para se firmar, Jeffrey
abaixou-se para dar uma olhada pela janela. Viu Devlin e o policial
abrindo caminho entre a multidão de pessoas em torno do carrossel que
girava com a bagagem. Não pôde crer na sua sorte. Não o tinham visto.
Sentou-se e colocou a valise no colo. Precisava recuperar o
fôlego. A próxima parada era o terminal central, que servia à Delta,
United e TWA. Foi onde saltou. Esquivando-se do tráfego, correu até os
táxis. Como antes, havia um número considerável de pessoas esperando.
Hesitou um momento, avaliando suas alternativas. Reunindo toda a


coragem, dirigiu-se ao despachante dos táxis.
- Sou médico e preciso de um táxi imediatamente - disse, com
toda a autoridade que conseguiu reunir. Mesmo em situações de
emergência, odiava aproveitar-se do seu status profissional.
Segurando uma prancheta e o toco de um lápis, o homem examinou
Jeffrey de alto a baixo. Sem dizer uma palavra, apontou para o primeiro
carro da fila. Quando Jeffrey entrou, algumas das pessoas resmungaram.
Bateu a porta do táxi. O motorista o fitou pelo espelho
retrovisor. Era jovem, usava cabelo comprido.
- Para onde? - perguntou.
Abaixando-se, Jeffrey disse-lhe que bastava sair do aeroporto. O
motorista virou-se para encará-lo diretamente.
- Preciso de um destino, homem!
- Está bem.., vamos para o centro da cidade.
- Onde, no centro da cidade? - perguntou o motorista, irritado.
- Decidirei quando chegar lá - disse Jeffrey, virando-se para
observar pela janela de trás. - Simplesmente vá andando!
- Jesus! - murmurou o motorista, sacudindo a cabeça, sem querer
acreditar. Estava duplamente irritado porque a tarifa seria pequena.
Esperara meia hora na fila, na esperança de encontrar um passageiro para
Weston, por exemplo. E além do trajeto curto, seu passageiro era um tipo
excêntrico, se não fosse coisa pior. Quando passaram por um carro da
polícia, no fim do terminal, o cara tinha se deitado no banco de trás.
Um tipo esquisito e em fuga.
Jeffrey ergueu a cabeça lentamente, embora o táxi já estivesse
bem longe do carro-patrulha. Virou-se e olhou de novo pela janela de
trás. Não parecia haver ninguém a segui-los. Pelo menos nada de sirenes
ou de luzes piscando. Virou-se de novo para a frente. Finalmente
anoitecera. Diante dela havia um mar de luzes vermelhas. Tentou clarear
a cabeça o suficiente para pensar.
Teria feito a coisa certa? Seu reflexo levara-o a fugir. Estava
compreensivelmente aterrorizado, com medo de Devlin, mas deveria ter
corrido - especialmente com o policial lá?
Com um choque, lembrou-se de que Devlin ficara com a sua
passagem, prova de que tencionara fugir, estando sob fiança. Razão
suficiente para levá-lo à cadeia. Que efeito teria sua tentativa de fuga
no processo de apelação? Jeffrey não queria estar por perto quando
Randolph descobrisse.
Não sabia muita coisa sobre os meandros da lei, mas de uma coisa
estava certo: com seu comportamento indeciso e canhestro acabarase tornando fugitivo. Agora teria que enfrentar mais uma acusação,
talvez um outro grupo de acusações.
o táxi mergulhou no Summer Tunnel. O trânsito estava
relativamente leve, de modo que seguiam com bastante velocidade. Jeffrey


perguntou-se se não deveria ir diretamente para a policia. Seria melhor
desistir de tudo, apresentar-se? Talvez pudesse ir até a estação
rodoviária e sair da cidade. Pensou em alugar um carro, o que lhe daria
mais independência. Mas o problema era que as únicas locadoras abertas
àquela hora eram as do aeroporto.
Estava num beco sem saída. Não tinha idéia do que fazer. Todo
plano de ação em que conseguia pensar tinha desvantagens. E toda vez em
que pensava ter atingido o fundo do poço, acabava se metendo num aperto
pior.
***
Capítulo 4.
TERÇA-FEIRA, 16 DE MAIO DE 1989, 21:42.
- Tenho uma notícia boa e uma ruim - disse Devlin a Michael Mosconi. Qual delas você quer saber em primeiro lugar? Devlin estava ligando de
um dos telefones da seção de bagagem do aeroporto sob os portões de
embarque da Pan Am. Esquadrinhara o terminal procurando Jeffrey, sem
resultado. O policial saíra para alertar os demais em serviço no
aeroporto. Estava telefonando para Michael Mosconi em busca de um apoio.
Surpreendera-o o doutor ter tido a sorte de escapar.
- Não estou com disposição para brincadeira - disse Mosconi,
irritado. - Vá dizendo o que tem para dizer, e ande logo com isso.
- Vamos, anime-se. A boa ou a ruim? Devlin gostava de provocar
Mosconi, porque era um alvo muito fácil.
- Fico com a boa - respondeu Mosconi, furioso, praguejando
baixinho. - E é melhor que seja boa mesmo. - Depende do seu ponto de
vista - disse Devlin, animando-se. - A boa é que você me deve uns
trocados. Minutos atrás impedi o bom doutor de embarcar num avião para o
Rio de Janeiro.
- Sério?
- Sério. E tenho a passagem para provar! - Esta é ótima, Dev! exclamou Mosconi, excitado. - Meu Deus, a fiança do homem é quinhentos
mil dólares! Eu estaria arruinado. Como foi que você conseguiu? Quero dizer, como soube que ele ia
fugir? Honra ao mérito. Você é formidável, Dev!
- É ótimo ser amado - disse Devlin. - Mas você está esquecendo a
má notícia. - Em seguida sorriu, maliciosamente sem desviar a boca do
aparelho, antecipando a reação de Mosconi.
Houve uma pequena pausa até Mosconi dizer, com um gemido:
- Muito bem, me dê a má notícia!
- No momento, não sei onde se encontra o nosso bom doutor. Está
em algum lugar de Boston, solto. Cheguei a pegá-lo, mas o maldito
magrela me bateu com a valise antes que eu pudesse algemá-lo. Jamais
podia esperar uma coisa dessas, vindo logo de um médico...


- Você tem de encontrá-lo! - gritou Mosconi. - Por que diabos
fui confiar nele? Eu devia mandar examinar minha cabeça!
- Expliquei a situação à polícia do aeroporto - disse Devlin. Agora estarão alertas quanto a ele. Meu palpite é que não vai tentar
pegar um avião de novo. Pelo menos não em Logan. Além disso, consegui
também que o carro dele fosse apreendido.
- Quero que esse sujeito seja encontrado! - berrou Mosconi,
ameaçador. - Quero que seja levado à cadeia. E bem depressa. Está me
ouvindo, Devlin?
- Estou ouvindo, cara, mas não estou ouvindo nenhuma cifra.
Quanto você me oferece para eu pegar esse bandido perigoso?
- Pare de brincar, Devlin!
- Ei, não estou brincando. O doutor pode não ser exageradamente
perigoso, mas quero saber até que ponto você está falando sério a
respeito dele. E o melhor modo de dizer isso é me informando que tipo de
recompensa vou receber.
- Agarre-o, a gente fala em números depois.
- Michael, por quem você me toma, por algum idiota?
Houve um silêncio constrangido, que Devlin rompeu.
- Bem, talvez eu vá jantar, e depois assista a um show. Vejo
você por aí, meu chapa.
- Espere! - exclamou Michael. - Tudo bem, divido o dinheiro.
Vinte e cinco mil.
- Divide? - disse Devlin. - A taxa usual não é essa, meu amigo.
- Sei, mas não se pode dizer que esse cara seja um desses
assassinos armados e frios com que você normalmente tem de lidar.
- Não vejo como isso pode fazer muita diferença - retrucou
Devlin. - Se chamar qualquer outro, o cara vai querer os dez por cento.
Ou seja, cinqüenta mil dólares. Mas vou lhe dizer uma coisa. Como
trabalhamOS juntos há muito tempo, faço o trabalho por quarenta mil e
você fica com dez pelo preenchimento da papelada.
Moscovi detestou ceder, mas não estava em posição de barganhar.
- Está bem, seu filho da mãe - disse. - Mas quero o doutor no
xadrez o mais cedo possível, antes que confisquem a fiança. Está
entendendO?
- Darei toda a minha atenção ao assunto - disse Devlin. Especialmente agora, que você insistiu em ser tão generoso. Nesse
meio-tempo, temos que bloquear as saídas da cidade. O aeroporto já está
avisado, mas restam a rodoviária, as estradas de ferro e as agências que
alugam carros.
- Eu telefono para o sargento de serviço na polícia - disse
Mosconi. - Hoje deve ser Albert Norstadt, de modo que não haverá
problema nenhum quanto a isso. O que você vai fazer?
- Aposto na casa do doutor - disse Devlin. - Meu palpite é que


ele vai aparecer por lá ou telefonar para a mulher. Se telefonar, a
mulher provavelmente sairá para ir ao encontro dele.
- Quando você o pegar, trate-o como se ele tivesse matado uma
dúzia de pessoas - gritou Mosconi. - Não seja macio com o cara. E olhe,
Dev, estou falando sério. A esta altura não me incomodo se você o vai
trazer vivo ou morto.
- Se você garantir que ele não sai da cidade, eu trago o doutor.
E se tiver qualquer problema com a policia, me ligue pelo telefone do
carro.
O estado de espírito do motorista foi melhorando à medida que a quantia
aumentava no taxímetro. Incapaz de decidir para onde ir, Jeffrey fez o
homem rodar sem destino pela cidade. Quando cruzaram a periferia do
Boston Garden pela terceira vez, o montante alcançava trinta dólares.
Jeffrey estava com medo de ir para casa. Certamente seria o
primeiro lugar onde Devlin iria procurar por ele. Na verdade, estava com
medo de ir para qualquer lugar. Receava dirigir-se para o terminal
rodoviário ou para a estação da estrada de ferro, com medo de que as
•Utoridades tivessem sido postas em estado de alerta. Pelo que supunha,
todos os policiais de Boston estavam à sua procura.
Pensou em ligar para Randolph, talvez o advogado pudesse
ajudá-lo - se é que poderia fazer alguma coisa para tudo voltar à
situação Pré-aeroporto. Não dava para ser otimista, mas valia a pena
tentar. Ao mesmo tempo, decidiu que seria conveniente hospedar-se num
hotel, e de segunda classe. Os bons hotéis provavelmente seriam o próximo
lugar em que Devlin o procuraria.
Enfiando a cara apressadamente de encontro à divisória de
Plexiglas, Jeffrey perguntou ao motorista se conhecia algum hotel
barato. O homem pensou por um momento.
- Bem - disse -, conheço o Plymouth Hotel.
O Plymouth era um motel enorme.
- Um menos conhecido. Não me importo se for do lado mais pobre.
Estou procurando um lugar afastado, que não chame a atenção.
- Então tem o Essex.
- Onde fica? - perguntou Jeffrey.
- Do outro lado da cidade, na zona - disse o motorista. Deu uma
olhada em Jeffrey pelo espelho retrovisor para ver se ele tinha
compreendido. O Essex era da pior categoria, mais uma cabeça-de-porco do
que propriamente um hotel. Era usado por muitas prostitutas da zona.
- Baixo nível?
- O mais baixo possível.
- Parece perfeito - disse Jeffrey. - Vamos para lá.
Recostou-se no banco. O fato de nunca ter ouvido falar nesse tal
Essex era promissor, já que vivia na área de Boston fazia vinte anos,


desde o início da faculdade de medicina.
O motorista virou à esquerda para sair da rua Arlington e pegar
a Bolyston, e aí prosseguiu cortando o centro da cidade. O nível de
qualidade da paisagem urbana caiu, num verdadeiro mergulho. Em contraste
com as áreas requintadas em torno de Boston Garden, havia edifícios
abandonados, lojas pornô e ruas juncadas de lixo. E gente espalhada nos
becos, ou dormindo nas escadas dos prédios. Quando o táxi parou num
sinal, uma garota, com o rosto cheio de espinhas, metida numa saia
obscenamente curta, ergueu as sobrancelhas para Jeffrey sugestivamente.
Parecia não ter mais que quinze anos.
O letreiro de néon vermelho na frente do Essex Hotel fora
apropriadamente alterado para SEX EL; as outras letras estavam apagadas.
Ao ver como o lugar parecia decrépito, Jeffrey sentiu um momento de
hesitação. Da segurança do seu táxi, olhando pela janela, examinou
desconfiado os tijolos sujos da fachada do hotel. Pobre era um adjetivo
fraco para aquela espelunca. Um bêbado, ainda segurando sua garrafa
embrulhada num saco de papel pardo, desmaiara à direita dos degraus da
entrada.
- Queria barato - disse o motorista. - Pois aí o tem.
Jeffrey deu-lhe uma nota de cem dólares tirada da valise.
- Não tem nada menor? - queixou-se o motorista.
Jeffrey sacudiu a cabeça.
- Não tenho quarenta e dois dólares.
O rapaz suspirou e procedeu a um elaborado ritual de agressão
passiva para dar o troco de Jeffrey. Decidindo que seria melhor não
saltar deixando um motorista de táxi furioso na sua esteira, Jeffrey deu
dez dólares por fora. Ele chegou a dizer "Obrigado" e "tenha uma boa
noite" antes de arrancar com o carro.
Jeffrey estudou o hotel de novo. Á direita havia um edifício
vazio, com todas as janelas, exceto as do andar térreo, cobertas com
compensado. No andar térreo havia uma loja de penhores e uma loja de
vídeos pornôs. À esquerda, um edifício comercial em tão mau estado
quanto o Essex Hotel. Em seguida vinha uma loja de bebidas, com tantas
grades nas janelas que parecia uma fortaleza. E depois da loja de
bebidas, um terreno vazio cheio de lixo e tijolos quebrados.
Com a valise na mão e parecendo completamente estranho naquele
ambiente, Jeffrey subiu as escadas e entrou.
O interior era praticamente tão requintado quanto o lado de
fora. O mobiliário do saguão de entrada consistia em um único sofá
surrado e meia dúzia de cadeiras de dobrar, de metal. Um telefone de
moedas era a única decoração da parede. Havia um elevador, mas o cartaz
na porta dizia NAO FUNCIONA. Ao lado do elevador havia uma porta pesada,
com uma janelinha de tela de arame, dando para uma escada. Com uma
sensação desagradável no estômago, Jeffrey adiantou-se para a mesa de


recepção.
Por trás dela, um homem malvestido, de sessenta e poucos anos,
lançou-lhe um olhar desconfiado. Só vendedores de drogas vinham ao Essex
com valises. Estava assistindo televisão num pequeno aparelho
preto-e-branco, com uma antena antiga daquelas de chifre. Despenteado,
exibia uma barba de três dias. Tinha uma gravata, mas estava frouxa no
colarinho e com uma série de manchas de gordura na porção inferior.
- Posso ajudar? - perguntou, dando uma espiada rápida em
Jeffrey. Ajudar parecia a última coisa que pretendia fazer.
Jeffrey balançou a cabeça.
- Eu queria um quarto.
- Tem reserva? - perguntou o homem.
Jeffrey não pôde acreditar que o homem estivesse sendo
consciente. Reserva, numa espelunca daquelas? Mas não quis ofendê-lo.
Decidiu cooperar.
- Não tenho reserva - respondeu.
- São dez dólares a hora ou vinte e cinco a noite.
- E duas noites?
O homem deu de ombros.
- Cinqüenta dólares mais imposto, adiantados.
Jeffrey assinou "Richard Bard". Deu o troco que recebera do
motorista de táxi e acrescentou notas de cinco e de um dólar que tinha
na carteira. O homem deu-lhe a chave com uma corrente presa a uma placa
de metal com um 5F gravado na superfície.
A escadaria forneceu o primeiro e único indício de que o prédio,
noutra época, fora elegante. Era de mármore branco, agora manchado e
arranhado. Os balaústres floreados de ferro batido exibiam espirais e
arabescos.
O quarto de Jeffrey dava para a rua. Quando abriu a porta, a
única iluminação vinha do fulgor vermelho-sangue do anúncio avariado
sobre a entrada, quatro andares abaixo. Acendendo a luz, examinou seu
novo lar. Há séculos as paredes não eram pintadas. Os resquícios da
tinta que restaram estavam cheios de marcas e descascando. Difícil
determinar a cor original; parecia situar-se em algum ponto entre o
cinza e o verde. O escasso mobiliário consistia em uma cama de solteiro,
uma mesinha-de-cabeceira com um abajur sem copa, uma mesa de carteado e
uma cadeira comum de madeira. A colcha de chenille tinha manchas
esverdeadas. Uma porta fina frágil no banheiro.
Por um momento Jeffrey hesitou em entrar, mas o que mais poderia
fazer? Decidiu tirar o melhor proveito possíveL da situação. Entrou e
trancou a porta. Sentia-se terrivelmente solitário e impotente. Na
verdade, não poderia cair mais fundo que aquilo.
Sentou-se na cama, depois estendeu-se transversalmente,
conservando os pés firmemente plantados no chão. Não percebera como


estava exausto até suas costas baterem no colchão. Teria adorado tirar
uma soneca, para fugir aos problemas e descansar, mas sabia que não
teria tempo para dormir. Tinha que projetar alguma estratégia, algum
plano. Mas primeiro era preciso dar uns telefonemas.
Como não havia telefone no quarto, Jeffrey precisava descer para
falar do saguão da entrada. Levou a valise consigo, receando deixá-la
mesmo por um ou dois minutos.
Lá embaixo, o homem da recepção largou relutantemente o jogo dos
Red Sox a fim de trocar dinheiro para Jeffrey.
Sua primeira ligação foi para Randolph Bingham. Não precisava de
advogado para saber que precisava desesperadamente de um ponderado
aconselhamento legal. Enquanto esperava que a ligação se completasse, a
mesma garota de cara espinhenta que vira no táxi entrou no hotel pela
porta da frente. Vinha com um careca de aparência nervosa que tinha um
crachá na lapela dizendo: Oi! Meu nome é Harry. Obviamente fazia parte
de algum congresso e queria experimentar a emoção de pôr a vida em
perigo. Randolph atendeu ao telefone com seu usual sotaque
aristocrático.
- Estou com um problema - disse Jeffrey sem mesmo se
identificar, mas Randolph reconheceu imediatamente sua voz. Em poucas
frases, atualizou-o sem esconder nada, inclusive o fato de ter agredido
Devlin com a valise diante de um policial e a posterior caçada no
terminal do aeroporto.
- Meu bom Deus! - foi tudo que Randolph disse quando Jeffrey
terminou. Depois, quase furiosamente, acrescentou: - Saiba que isso não
vai ajudar sua apelação. E quando chegar a hora de decidir a sentença,
certamente terá sua influência.
- Sei disso. Mas não telefonei para ouvir você me dizer que
estou encrencado. Isso eu já sabia. Preciso saber o que pode fazer para
me ajudar.
- Bem, antes que eu possa tomar qualquer atitude, você tem que
se entregar.
- Mas...
- Nada de mas. Você já se colocou numa posição extremamente
precária em relação ao tribunal.
- E se eu me entregar, o tribunal não vai me negar a fiança?
- Jeffrey, você não tem escolha. Com a sua tentativa de fugir do
país, não fez exatamente muita coisa para encorajar a confiança de um
tribunal.
Randolph ia expor outros detalhes, mas Jeffrey o interrompeu.
- Sinto muito, não estou preparado para enfrentar a cadeia. De
jeito nenhum. Por favor, faça o que puder por mim. Eu o chamarei de
novo.
Jeffrey desligou o telefone. Não podia culpar Randolph pelo


conselho. Em alguns aspectos era exatamente como na medicina: às vezes o
paciente não quer ouvir a terapia proposta pelo médico.
Com a mão ainda no fone, Jeffrcy voltou-se para ver se alguém o
tinha ouvido. A jovem de minissaia tinha desaparecido na escada com seu
cliente e o homem da recepção estava de novo grudado na televisão. Outro
homem, aparentando uns setenta anos, tinha aparecido e estava sentado no
sofá, folheando uma revista.
Deixando cair outra moeda no telefone, Jeffrey ligou para casa.
- Onde é que você está? - quis saber Carol assim que Jeffrey
murmurou um alô desanimado.
- Em Boston - respondeu ele. Não pretendia dizer nada mais
específico, mas pelo menos isso lhe devia. Sabia que Carol estaria
furiosa por ele ter partido sem uma palavra, mas queria avisá-la, para o
caso de Devlin voltar. E também queria que ela apanhasse o carro.
Contudo, não esperava nada parecido com simpatia ou compreensão. O que
conseguiu foi uma explosão de fúria.
- Por que não me disse que estava deixando a casa? - rosnou
Carol. - Fiquei aqui, muito paciente, a seu lado todos esses meses, e aí
está o agradecimento que recebo. Procurei por toda a casa até me dar
conta de que seu carro tinha sumido.
- É sobre o carro que preciso falar com você - disse Jeffrey.
- Não estou interessada no seu carro - retrucou Carol.
- Carol, me escute! - berrou Jeffrey. Quando percebeu que ela ia
deixá-lo falar, baixou a voz, colocando a mão em concha em torno do
receptor. - Meu carro está no estacionamento central do aeroporto, com o
tíquete no cinzeiro.
- Você está planejando que cancelem a sua fiança? - perguntou
Carol, incrédula. - Perderemos a casa! Assinei aquela hipoteca de
boa-fé...
- Há coisas mais importantes que a casa! - respondeu Jeffrey,
asperamente, contra a vontade. Baixou a voz de novo. - Além disso, a
casa em Cape não tem hipoteca. Pode ficar com ela, se é o dinheiro que a
preocupa.
- Você ainda não me respondeu - insistiu Carol. - Está
planejando fugir?
- Não sei - suspirou Jeffrey. Realmente não sabia. Não tivera
tempo de pensar direito. - Ouça, o carro está no segundo andar. Se for
buscá-lo, tudo bem. Se não for, tudo bem do mesmo jeito.
- Quero falar com você sobre o divórcio - disse Carol. - Já foi
adiado o suficiente. Por mais que compreenda os seus problemas, e
compreendo, tenho que continuar vivendo.
- Ligarei para você mais tarde - disse Jeffrey, irritado. E
bateu o telefone, desligando.
Tristonho, sacudiu a cabeça. Não conseguia mais se lembrar de


quando houvera calor e afeto entre Carol e ele. Relacionamentos
moribundos eram uma coisa feia. Estava tentando fugir, e ela só podia
pensar na casa e no divórcio. Muito bem, tinha sua vida para viver,
clarO. De um modo ou de outro, aquilo não ia durar muito. Carol ia
livrar-Se dele para sempre.
Olhou para o telefone. O que queria realmente fazer era ligar
para Kelly. Mas o que iria dizer? Que tentara fugir e falhara? Estava
muito confuSO e inseguro.
Pegando a valise, atravessou o saguão em largas passadas,
evitando conscientemente olhar para os dois homens.
Sentindo-se mais solitário que nunca, galgou os quatro andares
de curvas escadas imundas e retornou ao aposento deprimente. Ficou de pé
junto à janela, banhado no clarão vermelho na luz néon, perguntando-se o
que devia fazer. Queria muito ligar para Kelly, mas não podia. Estava
envergonhado. Encaminhando-se para a cama, imaginou se conseguiria
dormir. Tinha que fazer algo. Olhou para a valise.
***
Capítulo 5.
TERÇA-FEIRA, 16 DE MAIO DE 1989, 22:51.
A única luz no quarto vinha do aparelho de televisão. Uma pistola
quarenta e cinco e meia dúzia de frascos de Marcaína em cima de uma
cômoda perto da TV brilhava à luz suave. Na tela, três jamaicanos
apareciam num exíguo quarto de hotel, e todos os três estavam
visivelmente nervosos. Cada um deles carregava um rifle de assalto
AK-47. Toda hora o mais corpulento dava uma olhada no relógio. Gotas de
suor porejavam na testa dos três homens. A tensão óbvia dos jamaicanos
contrastava vivamente com o sonoro ritmo do reggae que vinha de um rádio
na mesinha-de-cabeceira. Nesse momento a porta foi escancarada.
Crockett entrou primeiro, com uma automática de nove milímetros
na mão, o cano apontado para o teto. Com um movimento rápido e felino,
encostou o cano no peito do primeiro jamaicano e disparou uma bala
silenciosa e mortal. Crockett despejara uma segunda bala no segundo
homem quando Tubbs passou pela porta a tempo de cuidar do terceiro. Tudo
acabou num piscar de olhos.
Crockett sacudiu a cabeça. Vestia a roupa de sempre: um blazer
Armani caríssimo por cima de uma camiseta de algodão comum.
- Bem na hora, Tubbs - disse ele. - Não sei como faria para
Pegar também o terceiro cara.
Quando os créditos de encerramento apareceram na tela, Trent
Harding teve que cumprimentar um companheiro imaginário.
- É ISSO aí! - exclamou, em triunfo. A violência da TV tinha
um efeito estimulante em Trent. Carregava-o com uma energia agressiva
que tinha de ser expressa. Ele se imaginava dando tiros no peito dos


outros do modo como Don Johnson fazia regularmente. Às vezes achava que
deveria ter exercido uma função policial. Pelo menos ter preferido a
polícia naval, quando entrara na Marinha. Em vez disso, decidira ser
auxiliar de enfermagem. Entretanto, achava legal. Fora um desafio e ele
aprendera uns serviços bem difíceis. Nunca pensara em ser enfermeiro nem
nada parecido antes de se alistar na Marinha. A primeira vez que isso
lhe ocorreu fora ao ouvir uma conversa, durante o treinamento básico.
Achou a idéia de dedicar-se a outros exames clínicos sobremodo atraente.
Também gostou de imaginar outros caras procurando ajuda, e ele dando
instruções sobre o que deviam fazer.
Levantou-se do sofá e entrou na cozinha. Era um apartamento
confortável, tinha um quarto de dormir e dois banheiros. Poderia pagar
um aluguel maior, mas gostava dali. Era no último pavimento de um prédio
com cinco andares, na parte final de Beacon Hill. As janelas do quarto e
da sala abriam para a Garden Street. A cozinha e o maior dos dois
banheiros davam para um pátio interno.
Pegou uma Amstel Light na geladeira, abriu-a e tomou um longo
gole, achando-a excelente. Pareceu-lhe que a cerveja talvez pudesse
acalmá-lo um pouco. Estava cheio de ansiedade e nervoso desde a hora de
Miami Vice. Até mesmo reprises o deixavam aceso o bastante para sentir
vontade de ir a um dos bares locais e arranjar alguma encrenca.
Geralmente descobria uma bicha ou duas na Cambridge Street e as
espancava.
A impressão que Trent transmitia sempre era a de um homem
procurando encrenca. E também a de quem a encontrara algumas vezes.
Musculoso e atarracado, com vinte e oito anos, usava o cabelo louro,
muito claro, num estilo severo, curto, à escovinha. Os olhos eram de um
penetrante azul-cristal. Tinha uma cicatriz embaixo do olho esquerdo
estendendo-se até a orelha. Conseguira-a ao ficar do lado errado de uma
garrafa de cerveja quebrada, numa briga de bar em San Diego. Recebera
alguns pontos, mas o outro tivera que consertar a cara toda. O sujeito
cometera o erro de dizer que Trent tinha um belo rabo. Trent ainda
fervia de raiva quando pensava nesse episódio. Que nojo, aquele maldito
pederasta!
Voltou para o quarto e descansou a cerveja em cima da TV. Pegou
a pistola 45, de uso exclusivo, das Forças Armadas. Ganhara-a como
"gorjeta" de um fuzileiro em troca de anfetaminas. Ajustava às
maravilhas na sua manopla. Empunhando-a com ambas as mãos,
levantou o cano à altura da tela da televisão com os braços estendidos e
os cotovelos fixos. Em seguida girou, apontando a arma pela janela
aberta.
Do outro lado da rua, uma mulher estava abrindo a janela do seu
quarto.
- Má sorte, neném - sussurrou Trent. Apontou cuidadosamente,


abaixando o cano até que as miras da frente e de trás ficassem
perfeitamente alinhadas sobre o torso da mulher. De modo lento e
deliberado, Trent puxou o aço frio do gatilho.
Quando o mecanismo de disparo funcionou, Trent gritou "Pum! ",
ao mesmo tempo em que fingia que a arma recuava com o coice. Sorriu.
Podia ter perfurado a mulher se a arma estivesse carregada. Imaginou-a
caindo para trás, um orifício redondo no peito, sangue aos borbotões.
Deixando a pistola em cima da TV, ao lado da garrafa de cerveja,
pegou um dos vidros de Marcaína de cima da cômoda. Jogou-o para cima,
recolhendo-o com a outra mão, nas costas. Com calma, voltou para a
cozinha a fim de apanhar no esconderijo a parafernália necessária.
Primeiro teve que tirar os copos da prateleira de um dos
guardalouças ao lado da geladeira. Depois, com delicadeza, levantou o
compensado que dava acesso ao escaninho secreto: um pequeno vão entre o
fundo do armário e a parede. Agarrou um frasco que continha um liquido
amarelo e um conjunto de seringas calibre 18. Conseguira aquele frasco
com um colombiano em Miami. Obtinha as seringas facilmente, servindo-se
à vontade no hospital. Levou os vidros e as seringas para o quarto,
junto com uma tocha de propano que guardava sob a pia da cozinha.
Levantando a garrafa, tomou outro gole de cerveja. Instalou o
bico de gás num pequeno tripé que conservava embaixo da cama, dobrado.
Apanhou um cigarro no maço do lado do aparelho de televisão e acendeu-o
com um palito de fósforo.
Após uma longa tragada, acendeu o bico de gás com o mesmo
fósforo. Em seguida, pegou uma das agulhas calibre 18. Depois de puxar
urna pequena quantidade do liquido amarelo, aqueceu a ponta da agulha
até ficar incandescente. Conservando-a sob o fogo, agarrou o frasco de
Marcaína e aqueceu o topo até ficar rubro. Com movimentos destros e
experientes, empurrou a agulha quente através do vidro meio derretido e
depositou uma gota do fluido. A seguir vinha o trabalho mais complicado.
Após jogar a agulha fora, Trent começou a girar o
frasco sobre a parte mais viva da chama. Fez isso por alguns segundos, o
tempo suficiente para que o local do furo ficasse soldado.
Continuou a girar o vidro mesmo depois de tirá-lo do fogo, só
parando depois que ele já tinha esfriado consideravelmente.
- Merda! - exclamou Trent quando viu formar-se na parte de baixo
do frasco uma pequena ondulação, resultando uma depressão indesejada.
Embora quase impossível de ser percebida, não podia arriscar o menor
defeito. Se alguém visse, poderia descartar o frasco como defeituoso.
Ou, pior ainda, se fosse mais esperto e estivesse atento, poderia ficar
desconfiado. Com raiva, jogou o frasco no lixo.
Droga, pensou, apanhando outro vidro de Marcaína. Teria que
repetir tudo. Enquanto trabalhava, foi-se tornando mais e mais tenso.
Praguejou furioso quando mesmo a terceira tentativa falhou. Na quarta,


finalmente, o lugar do furo soldou como devia; a extremidade arredondada
manteve seu suave contorno hemisférico.
Segurando a ampola contra a luz, inspecionou-a com cuidado.
Estava praticamente perfeita. Ele ainda podia saber que o vidro fora
perfurado, mas um estranho não notaria. Aquele talvez fosse o melhor
trabalho feito por ele. Dava-lhe uma satisfação enorme dominar um
processo tão difícil. Quando pensara nisso, anos atrás, não tinha
previsão sobre se iria dar certo. Antes levava horas, agora gastava
apenas minutos.
Uma vez atingido seu objetivo, guardou o vidro de líquido
amarelo, a pistola .45 e os frascos de Marcaína restantes no
esconderijo. Recolocou o fundo falso do armário e repôs os copos na
prateleira.
Pegando a ampola adulterada de Marcaína, deu uma boa sacudidela.
A gota de fluido amarelo há muito se dissolvera. Virou-a para ver se
havia vazamento. Nada. Como esperava, estava hermeticamente fechada.
Trent considerou, jubiloso, o efeito que o seu frasco em breve
teria na sala de cirurgia do St. Joseph. Pensou em particular nos
médicos e na sua arrogância, e imaginou o inferno que causaria para
aquela gente orgulhosa. Nem nos seus sonhos mais desvairados teria
escolhido profissão melhor.
Trent odiava médicos. Agiam sempre como se soubessem tudo,
quando na realidade muitos não sabiam sequer onde tinha o próprio rabo,
especialmente na Marinha. Em geral o conhecimento dele era duas vezes
maior que o dos doutores, e mesmo assim, tinha que fazer o que mandavam.
Em particular, odiava aquele médico porco da Marinha que o denunciara
por ter embolsado umas anfetaminas. Que hipócrita!
Todo mundo sabia que os médicos vinham roubando drogas, instrumentos,
enfim, realizando todo tipo de saque durante anos. E havia também aquele
médico pervertido que se queixara ao comandante de Trent, denunciando o
seu suposto comportamento homossexual. Aquela fora a última gota d'água.
Para não enfrentar uma estúpida corte marcial, ou seja lá que diabo
estivessem planejando, resolvera demitir-se.
Quando saiu, estava muito bem treinado. Não teve problema para
encontrar um emprego como enfermeiro. Com a falta generalizada de
profissionais, descobriu que podia trabalhar onde bem entendesse. Todos
os hospitais o queriam, sobretudo porque apreciava trabalhar nas salas
de cirurgia e tinha a experiência adquirida na Marinha.
O grande problema com os hospitais civis, além dos médicos, era
o corpo de enfermagem. Alguns enfermeiros eram muito ruins,
especialmente os supervisores. Estavam sempre tentando lhe ensinar
coisas que já sabia. Mas Trent não os considerava tão irritantes quanto
os médicos. Afinal de contas, estes conspiravam para limitar-lhe a
autonomia de exercer a medicina rotineira que ele exercera na Marinha.


Trent pôs a ampola adulterada de Marcaína no bolso do jaleco
branco pendurado no armário. Pensar nos médicos fê-lo lembrar-se do Dr.
Doherty. Cerrou os dentes ao pensar nele. A raiva foi tanta que Trent
bateu a porta do armário com uma força que pareceu sacudir o prédio.
Naquele mesmo dia, Dohcrty, um dos anestesistas, tivera o desplante de
criticá-lo na presença de vários outros enfermeiros. Doherty o
repreendera pelo que chamou de técnica de esterilização descuidada.
Aquele débil mental que sequer sabia colocar direito o gorro ou a
máscara cirúrgica! A metade do tempo Doherty ficava com o nariz exposto.
Trent ficou furioso.
- Espero que este frasco caia nas mãos de Doherty - rosnou.
Infelizmente, não havia maneira de assegurar que a ampola adulterada
coubesse a Doherty. As chances eram de um para vinte, a menos que
esperasse até Doherty ser escalado para uma peridural.
- Ora, que se dane! - resmungou, com um gesto de quem não queria
mais pensar naquilo. Seria divertido, fosse quem fosse o doutor a ficar
com ela.
Embora a nova condição de fugitivo houvesse aumentado a sua indecisão,
Jeffrev não sentia mais a menor tendência para o suicídio. Não sabia se
estava sendo corajoso ou covarde, mas resolvera não se afligir mais. No
entanto, depois de tudo o que acontecera, preOcupava-Se, sem
dúvida, com a possibilidade de uma nova onda de depressão. Achando
melhor não se expor à tentação, tomou a providência de pegar a morfina
na valise, quebrar o frasco e atirar o conteúdo no vaso.
Tendo pelo menos tomado uma decisão, sentiu-se ligeiramente mais
calmo. Para ficar ainda mais organizado, pôs-se a arrumar o conteúdo da
valise. Espalhou o dinheiro cuidadosamente no fundo, cobrindo-o com a
roupa de baixo. Depois recompôs as divisões sob a tampa tipo sanfona, a
fim de abrir espaço para as anotações de Chris Everson, distribuindo-as
pelo tamanho. Algumas eram escritas em folhas pessoais que tinham,
impressa na parte de cima, a frase Da mesa de Christopher Everson.
Outras estavam escritas em folhas de bloco amarelo tamanho ofício.
Jeffrey começou a examinar as anotações, quase automaticamente.
Era bom ter qualquer coisa a fazer que afastasse da sua mente a condição
que estava vivendo. A descrição do caso Henry Noble foi especialmente
fascinante na segunda leitura. Uma vez mais Jeffrery ficou impressionado
com as coincidências entre a infeliz experiência de Chris com Noble e a
sua própria com Patty Owen, sobretudo por causa dos sintomas. A
principal diferença entre os dois casos era que, com Patty, a reação
fora mais fulminante. Como a Marcaína estivera envolvida em ambos os
casos, o fato dos sintomas serem similares não chegava a surpreender. O
extraordinário era que em ambas as situações os sintomas iniciais não
eram previstos como uma reação adversa a uma anestesia parcial.
Anestesista praticante havia vários anos, Jeffrey estava


familiarizado com os tipos de sintomas que surgem quando um paciente
reage adversamente ao anestésico. O problema sempre ocorre devido a uma
dose excessiva que atinge a corrente sanguínea, afetando o coração ou o
sistema nervoso. Em geral, era o sistema nervoso central ou o autônomo
que causava problemas, gerando estímulo ou depressão - ou ambos.
Tudo isso abrangia um bocado de terreno, mas de todas as reações
que Jeffrey estudara, ouvira ou testemunhara, nenhuma fora como as de
Patty Owen, com salivação excessiva, lacrimação, suor súbito, dor
abdominal e pupilas contraídas, mióticas. Algumas dessas reações podem
ocorrer numa crise alérgica, mas não devido a dosagem excessiva, e
Jeffrey tinha razão para crer que Patty Owen nunca fora alérgica a
Marcaína.
Obviamente, a julgar por suas anotações, Chris Everson se
sentira igualmente perplexo. Ele notara que os sintomas de Henry Noble
eram principalmente muscarínicos, ou seja, do tipo que se espera quando
partes do sistema nervoso parassimpático são estimuladas. Chamam-se
muscaríflicOs por serem semelhantes ao efeito de uma droga chamada
muscarina, extraída de uma espécie de cogumelo. Mas a estimulação do
parassimpático não é prevista quando se usa uma droga para anestesia
local, como a Marcaína. Por que, então, os sintomas muscarínicos? Era
intrigante.
Jeffrey fechou os olhos. Tudo era muito complicado, e
infelizmente, embora tivesse o conhecimento básico, vários detalhes
fisiológicos não estavam frescos na sua cabeça. Mas se lembrava o
suficiente para saber que a parte simpática do sistema nervoso autônomo
era afetada pela anestesia local, não a parassimpática, como parecia ter
acontecido nos casos Noble e Owen. Não havia uma explicação imediata
para isto.
A profunda concentração de Jeffrey foi interrompida pelo barulho
de uma batida na parede e depois um alto gemido de gozo vindo do quarto
ao lado. Veio-lhe à mente a indesejável imagem da garota com espinhas e
do homem careca. Os gemidos foram aumentando de volume,
estabilizando-se, e por fim diminuíram.
Caminhou até a janela para esticar o corpo. Mais uma vez ficou
sob a luz vermelha do anúncio de néon. Um grupo de pessoas movia-se em
círculos à direita da marquise do Essex, presumivelmente diante da loja
de bebidas. Jovens prostitutas estavam espalhadas pela rua. Um pouco
mais longe, rapazes com ar decidido pareciam demonstrar um interesse de
proprietários pelo que acontecia na área. Se eram cafetões ou vendedores
de drogas, não saberia dizer. Que ambiente, pensou.
Deu as costas para a janela e afastou-se. Vira o bastante. As
anotações de Chris estavam espalhadas em cima da cama. Já não ouvia
gemidos no quarto do lado. Tentou avaliar a lista de possibilidades para
os acidentes ocorridos com Noble e Owen. Mais uma vez focalizou a


atenção na idéia que consumira Chris nos seus últimos dias: a
possibilidade da existência de um contaminante na Marcaína. Admitindo
que nem ele nem Chris comentassem um erro médico tão grosseiro - no caso
Owen, por exemplo, que não tivesse usado a Marcaína a 0,75% encontrada
no depósito da sua máquina - e, tendo em vista o fato de que ambos os
pacientes exibiram sintomas parassimpáticos inesperados, sem reação
alérgica ou anafilática, a teoria de Chris passava a ter considerável
validade.
Retornando à janela, Jeffrey pensou nas implicações da
existência de um contaminante na Marcaína. Se pudesse provar essa
teoria,
avançaria muito no caminho da sua absolvição. A culpa recairia na
companhia farmacêutica que fabricara a droga. Não estava certo sobre
como funcionaria o sistema legal se uma tal teoria fosse comprovada.
Tendo em vista seus recentes atritos com o aparelho judicial, sabia que
as engrenagens girariam lentamente, mas sem dúvida girariam. Talvez o
velho Randolph fosse capaz de imaginar um modo de apressá-las. Jeffrey
sorriu, com um pensamento maravilhoso: talvez sua vida e sua carreira
pudessem ser salvas. Mas como provar que havia um contaminante num
frasco usado nove meses passados?
Súbito, teve uma idéia. Correu de volta às notas de Chris, para
ler o sumário do caso Henry Noble. Tinha particular interesse na
seqüência inicial de eventos, quando Chris começara a administrar a
anestesia peridural.
Chris sugara dois mililitros de Marcaína de uma ampola de 30
mililitros para sua dose de teste, adicionando 1:200.000 de adrenalina.
Imediatamente após a dose de teste começara a reação de Henry Noble. Com
Patty Owen, Jeffrey usara uma ampola nova de 30 mililitros de Marcaína
na sala de cirurgia. Assim que essa Marcaína foi injetada,
desencadeou-se a reação adversa. Para a dose de teste anterior, Jeffrey
tinha usado dois mililitros de Marcaína especial para anestesia
raquiana, como era seu costume. Se houvesse um contaminante na droga, só
podia vir da ampola de 30 mililitros em ambas as situações. Isso
significava que Patty recebera uma dose muito maior que Henry Noble uma dose terapêutica total, em vez de uma dose para teste, de dois
mililitros. Assim ficaria explicado por que a reação de Patty fora bem
mais grave que a de Henry Noble e por que Noble conseguira sobreviver
durante uma semana.
Pela primeira vez em meses Jeffrey sentiu um vislumbre de
esperança, achando que a vida antiga ainda poderia voltar. Durante sua
defesa, nunca considerara a possibilidade de existir um contaminante.
Agora, subitamente, tornara-se uma possibilidade real. Mas levaria tempo
e um grande esforço para investigar; e como faria para provar? Qual
seria o primeiro passo?


Antes de mais nada, precisava de outras informações. Devia
estudar extensamente as características dos anestésicos locais assim
como a fisiologia do sistema nervoso autônomo. Isto, porém, seria
relativamente fácil. Só precisava dos livros adequados. A parte
complicada era examinar a idéia de um contaminante. Precisaria de acesso
ao relatório completo sobre a patologia de Patty Owen. Vira apenas
partes dele durante o processo.
Além disso, era preciso pensar na pergunta feita por Kelly: como
explicar o encontro de um frasco de Marcaína 0,75% no recipiente para
refugos do aparelho de anestesia? Como teria ido parar lá?
A investigação destas questões seria difícil mesmo nas
circunstâncias mais favoráveis. Sendo ele um foragido, tornava-se
praticamente impossível. Precisava entrar no Boston Memorial.
Conseguiria fazê-lo?
Entrou no banheiro. Em frente do espelho, avaliou suas feições
sob a luz fluorescente. Seria capaz de alterar sua aparência o bastante
para não ser reconhecido? Estava ligado ao Boston Memorial desde os
tempos da faculdade de Medicina. Centenas de pessoas o conheciam de
vista.
Puxou para trás o cabelo castanho-claro, que penteava de lado,
riscando à direita. Penteado para trás, a testa se tornava mais larga.
Nunca usara óculos. Talvez pudesse usá-los agora. E durante quase todo o
tempo em que trabalhara no Boston Memorial, tivera um bigode. Poderia
raspá-lo.
Fascinado pela idéia, Jeffrey voltou ao quarto para apanhar o
estojo de barba. Colocou-se de novo diante do espelho. Pouco depois, já
não tinha bigode. Era estranho passar a língua e sentir o lábio superior
liso. Molhando o cabelo, penteou-o para trás. Encorajou-se. Começava a
parecer outro homem.
Em seguida, raspou as costeletas. Não fazia muita diferença,
porque eram de tamanho moderado, mas imaginou que tudo ajudava.
Conseguiria passar por um médico estranho? Tinha o know-how; só
precisava de outra identidade. A segurança no Boston Memorial fora
consideravelmente aumentada, um sinal dos tempos. Se fosse interpelado e
não conseguisse exibir uma identidade convincente, seria apanhado. No
entanto, precisava entrar lá, e só os médicos tinham acesso a todas as
áreas do hospital.
Continuou pensando. Não ia se desesperar. Outro grupo no
hospital tinha amplo acesso a tudo: o pessoal da manutenção e limpeza.
Ninguém lhes fazia perguntas. Passara muitas noites de plantão no
hospital e era capaz de se lembrar de vê-los por toda parte. Ninguém
estranhava jamais a sua presença. Sabia também que havia um turno de
madrugada, das onze da noite às sete da manhã, que sempre fora difícil
preencher. Esse "turno do cemitério", como o chamavam, seria perfeito,


pensou Jeffrey. Teria menos probabilidade de esbarrar em pessoas
Conhecidas. Nos últimos anos, trabalhara principalmente de dia.
Animado por esta nova cruzada, ficou ansioso para começar logo.
Primeiro faria uma visita à biblioteca. Se saísse naquele instante,
disporia ainda de uma hora até fechar. Antes que tivesse tempo de mudar
de idéia, enfiou as anotações de Chris no canto que preparara para elas
na valise, baixou a tampa e cerrou os trincos.
Sem muita certeza da vantagem da sua resolução saiu e fechou a
porta do quarto com chave. Hesitou ao descer a escada. O cheiro de ácido
e mofo o relembrou da existência de Devlin. Sentira uma baforada do
hálito dele ao ser agarrado no aeroporto.
Arquitetando seu plano de ação, Jeffrey negligenciara o fator
Devlin. Sabia qualquer coisa a respeito de caçadores de recompensas, o
que, sem dúvida alguma, aquele homem era. Não tinha ilusões sobre o que
aconteceria se o pegasse de novo, mormente após o episódio do aeroporto.
Depois de um momento de indecisão, resignando-se, continuou a descer a
escada. Se quisesse investigar o seu caso, teria que correr riscos.
Competia-lhe estar constantemente alerta. Além disso, teria que se
antecipar pensando sempre um passo à frente, de modo que, se tivesse o
azar de se defrontar com Devlin, pudesse recorrer a um plano previsto.
Lá embaixo, o homem da revista desaparecera, mas o da recepção
continuava assistindo ao jogo do Red Sox. Jeffrey esgueirou-se para fora
sem ser observado. Bom sinal, aprovou mentalmente. Sua primeira
tentativa de não ser visto fora um sucesso. Pelo menos ainda lhe restara
algum senso de humor.
O mínimo de animação que conseguira desapareceu quando, na rua,
examinou o cenário à sua frente. Teve uma crise de paranóia aguda ao
lembrar-se da dupla realidade de ser um fugitivo e andar pelas ruas
carregando quarenta e cinco mil dólares em dinheiro. Bem à sua frente,
os dois homens que vira da janela estavam nos sombrios degraus de um
prédio deserto, fumando crack.
Agarrando a valise com toda força, desceu a escada à frente do
hotel. Evitou pisar no mendigo que continuava estirado na calçada, ainda
com a garrafa enfiada no saco de papel. Virou à direita. Planejava
caminhar os cinco ou seis quarteirões que o separavam do Lafayette
Center, onde havia um excelente hotel. Lá encontraria um táxi.
Estava ao lado da loja de bebidas quando percebeu um carro da
polícia vindo na sua direção. Sem hesitar um momento, entrou na loja. O
tilintar das sinetas presas na porta afetou-lhe os nervos. Ainda que
parecesse uma loucura, não sabia se tinha mais medo dos vagabundos na
rua ou da polícia.
- Deseja alguma coisa? - perguntou um tipo barbado atrás do
balcão. Reduzindo a marcha, o carro da polícia passou. Jeffrey respirou
fundo. Não ia ser fácil. - Quer alguma coisa? - repetiu o homem.


Jeffrey comprou uma garrafa de vodca. Se a polícia voltasse,
poderia justificar sua entrada na loja de bebidas. Contudo, não foi
necessário. Quando saiu, o carro da patrulha já não estava à vista.
Aliviado, dobrou à direita, pretendendo apressar-se. Mas teve que parar
logo, ao praticamente colidir com um dos mendigos que vira antes.
Assustado, ergueu a mão livre para se proteger. - Tem um trocado aí? perguntou o homem, com voz insegura.
Evidentemente, estaba bêbado. Tinha um corte ainda recente na
têmpora. Uma das lentes dos óculos de armação preta estava rachada.
Jeffrey recuou. O homem tinha mais ou menos a altura dele, mas o
cabelo era escuro, quase preto, e seu rosto estava coberto por uma barba
de pelo menos um mês. Entretanto, o que chamou mais sua atenção foram as
roupas.
Vestia um terno andrajoso mas completo, com uma camisa azul tipo
Oxford, toda manchada e com falta de alguns botões. Exibia uma frouxa
gravata listrada sob o colarinho, cheia de nódoas esverdeadas. Teve a
impressão de que ele um dia se trajara decidido a trabalhar e nunca mais
voltara para casa.
- O que há? - perguntou o homem, com engrolada voz de bêbado. Não fala a minha língua?
Jeffrey enfiou a mão no bolso da calça e apanhou o troco que
recebera ao comprar a vodca. Deixando o dinheiro na mão do mendigo,
estudou-lhe o rosto. Os olhos dele, embora baços, pareciam bondosos.
Perguntou-se o que o teria conduzido a circunstâncias tão desesperadas.
Sentiu uma estranha afinidade com aquele indivíduo sem lar, cujo
problema não conhecia. Estremeceu ao pensar em como era tênue a linha
que o separava de um destino semelhante. A identificação era facilitada
pelo fato do outro parecer ter a idade de Jeffrey.
Como esperava, encontrou facilmente um táxi nas proximidades do
hotel de luxo. Dali foram precisos apenas quinze minutos para chegar à
área médica de Harvard. Passava um pouco das onze horas quando entrou na
Biblioteca Médica Countway.
Ali, entre os livros e os cubiculos destinados ao estudo,
sentiu-se em casa. Usou um dos terminais de computador para obter os
números de diversos livros sobre o sistema nervoso autônomo e a
farmacologia dos anestésicos locais. Com os livros na mão, entrou num
dos Compartimentos que davam para o pátio interno e fechou a porta. Em
questão de poucos minutos estava absorto nas complexidades da condução
dos impulsos nervosos.
Não decorreu muito tempo para que compreendesse por que Chris
tinha marcado a palavra "nicotínico". Embora a maioria das pessoas pense
na nicotina como um ingrediente presente nos cigarros, na verdade é uma
droga, mais especificamente um veneno, que causa primeiro um estímulo e
depois um bloqueio dos gânglios autônomos. Muitos dos sintomas da


nicotina são iguais aos causados pela muscarina: salivação, suor, dor
abdominal, lacrimação - exatamente os que apareceram em Patty Owen e
Henry Noble. A nicotina, inclusive, chega a matar, em concentrações
surpreendentemente baixas.
Tudo isto significava para Jeffrey que, se estava pensando num
contaminante, por certo seria um composto parecido, até certo ponto, com
um anestésico de uso local, algo assim como a nicotina. Mas não podia
ter sido nicotina, pensou. O relatório toxicológico sobre Henry Noble
fora negativo; uma droga como nicotina não passaria despercebida.
No caso de ter havido um contaminante, seria preciso que fosse
numa quantidade extremamente pequena, minúscula mesmo. Portanto, teria
também que ser algo muito potente. Ao certo, afinal, não tinha sequer
indícios. Mas durante a leitura encontrou algo que estudara nos tempos
de estudante e em que não pensara mais desde então. A botulina, uma das
substâncias mais tóxicas que o homem conhece, assemelha-se aos
anestésicos para uso local na sua capacidade de "congelar" as membranas
de células nervosas na sinapse. No entanto, sabia que não estava diante
de um caso de envenenamento por botulina. Os sintomas eram totalmente
diferentes; os efeitos muscarínicos eram de bloqueio, não de
estimulação.
Nunca o tempo passara tão depressa. Antes que se desse conta, a
biblioteca ia fechar. Relutante, recolheu as anotações de Chris, assim
como as que acabara de fazer. Carregando os livros numa das mãos e a
valise na outra, desceu para o primeiro andar. Largou os livros em cima
do balcão, para serem recolocados nas prateleiras e dirigiu-se para a
porta. Deteve-se abruptamente.
Á sua frente, as pessoas estavam sendo paradas por um
funcionário que fazia com que abrissem os embrulhos, mochilas e, é
claro, valises. Tratava-se do procedimento normal para evitar a perda de
livros. Detestou pensar em qual seria a reação do guarda da biblioteca
se visse os maços de notas. Não condizia com o seu baixo perfil.
Voltou até a seção de períódicos e abaixou-se atrás de uma
vitrina da altura do ombro. Abriu a valise e começou a enfiar nos bolsos
os maços de dinheiro. Para abrir espaço, tirou a garrafa de vodca do
bolso do paletó e colocou-a na valise. Melhor o guarda pensar que era um
beberrão do que um vendedor de drogas ou ladrão.
Conseguiu sair sem incidentes. Estava chamando um pouco a
atenção com aqueles bolsos salientes, mas naquela circunstância não
havia nada que pudesse fazer.
Eram raros os táxis na Huntington Avenue àquela hora da noite.
Depois de esperar dez minutos inutilmente, o trole da Linha Verde
apareceu. Jeffrey pegou-o, achando que era mais prudente continuar se
deslocando.
Sentou-se num dos bancos que ficavam de lado e equilibrou a


valise sobre os joelhos. Sentia demais todos os pacotes de dinheiro
enfiados nos bolsos da calça, particularmente aqueles sobre os quais
estava sentado. Quando o trole puxou num arrancão para a frente,
permitiu-se dar uma olhada em torno. Como sempre ocorre no metrô de
Boston, ninguém dizia uma palavra. Todos olhavam para a frente,
inexpressivos, como em transe. Os olhos de Jeffrey encontraram os dos
passageiros sentados diante dele. As pessoas que lhe devolveram o olhar,
com uma expressão taciturna, fizeram-no sentir-se transparente.
Espantou-se ao ver quantos pareciam, na sua opinião, criminosos.
Fechando os olhos, repassou parte do material que acabara de
ler, considerando-o à luz da experiência que ele tivera com Patty Owen e
Chris tivera com Henry Noble. Espantara-se com uma pequena informação
acerca de anestésicos locais. Num capítulo intitulado "Reações
adversas", lera que, ocasionalmente, registravam-se casos de pupilas
contraídas ou mióticas. Para ele, era novidade. A não ser por Patty Owen
e Henry Noble, clinicamente nunca vira algo assim, nem lera a respeito.
Não havia explicação do mecanismo fisiologico, e Jeffrey também não
sabia como poderia explicá-lo. O mesmo artigo dizia também que,
geralmente, o que se via era midríase, ou dilatação das pupilas. Neste
ponto deixou de lado a questão do tamanho pupilar. Não fazia muito
sentido para ele e só servia para aumentar sua confusão.
Quando o trole subitamente mergulhou sob a terra, o barulho
assustou Jeffrey. Abriu os olhos assustado e mal conseguiu sufocar um
grito. Não percebera até ali como estava nervoso. Começou a respirar
funda e ritmadamente, a fim de se acalmar.
Após um par de minutos, seu pensamento retornou aos dois casos.
Percebeu que havia outra semelhança que antes não levara em conta. Henry
Noble ficara paralisado durante a semana em que vivera. Era como se
tivesse sofrido uma raquionestesia total e irreversível. Como Patty
morrera, não tinha idéia sobre se ela teria ficado paralítica se acaso
sobrevivesse. O filho dela, porém, sobrevivera e demonstrara pronunciada
paralisia residual. Presumira-se que a causa fosse a falta
de oxigenação no cérebro, mas Jeffrey agora não estava mais seguro. A
distribuição estranha, assimétrica, sempre o preocupara. Talvez a
paralisia da criança fosse um indício adicional, capaz de ser útil da
identificação do contaminante.
Saltou na Park Street ainda no trecho subterrâneo, e galgou a
escadaria. Conservando-se o mais distante possível de alguns policiais,
desceu rapidamente a Winter Street, deixando a apinhada área da Park
Street para trás. Enquanto caminhava, pensou seriamente em voltar ao
Boston Memorial Hospital, agora que tinha mais informações.
A idéia de tornar-se parte da equipe de manutenção e limpeza era
muito boa, exceto por um problema: para candidatar-se a um emprego ia
precisar de uma identificação, bem como um número de seguro social


válido. Numa era de computadores, sabia que não iria se safar se
inventasse um.
Estava às voltas com o problema da identidade quando chegou à
rua onde ficava o Essex. A meia quadra de distância da loja de bebidas,
que ainda estava aberta, parou. A imagem do homem de terno andrajoso
veio-lhe à cabeça. Os dois tinham mais ou menos a mesma altura e idade.
Atravessando a rua, aproximou-se do terreno baldio ao lado da
loja de bebidas. A lâmpada de um poste estrategicamente situado
iluminava bem a área. A cerca de um quarto da profundidade total do
terreno havia uma saliência de concreto projetando-se da parede de um
dos edifícios vizinhos. Talvez houvesse sido, em outros tempos, um
desembarcadouro de carga. Embaixo dela, viam-se inúmeros vultos, alguns
sentados, outros estirados no chão.
Parando e prestando atenção, Jeffrey pôde ouvir uma conversa.
Dominando o medo, encaminhou-se para o grupo. Pisando depressa no chão
de tijolos quebrados, aproximou-se. Um fétido odor de seres humanos
carentes de higiene assaltou-lhe as narinas. A conversa parou. Inúmeros
olhos remelentos o fitaram, desconfiados, na semi-escuridão.
Sentiu-se como um intruso num outro mundo. Com ansiedade
crescente, procurou o homem de terno andrajoso, movendo os olhos
rapidamente de um vulto para outro. O que faria se aquela gente o
assaltasse?
Por fim viu o homem que procurava. Era um dos que estavam
sentados em semicírculo. Obrigando-se a prosseguir, Jeffrey aproximou-se
ainda mais. Ninguém falava. Com a expectativa, o ar ficou tão carregado
de eletricidade que uma faísca, possivelmente, causaria uma exploSãO.
Todos os olhares agora seguiam Jeffrey. Mesmo alguns entre os que
estavam deitados se sentaram, encarando-o.
- Olá - disse Jeffrey, vacilante, quando se viu ante o sujeito.
Ele não se mexeu. Nem qualquer outra pessoa. - Lembra-se de mim? perguntou. A pergunta lhe pareceu idiota, mas não conseguiu imaginar
outra coisa para dizer. - Dei uns trocados a você há uma hora e pouco.
Bem ali, diante da loja de bebidas. - Jeffrey apontou por cima do ombro.
O homem continuou calado. - Achei que você podia querer mais algum acrescentou Jeffrey.
Enfiou a mão no bolso e, afastando os maços de notas de cem,
apanhou uns trocados e várias notas menores. Estendeu a mão com o
dinheiro. O homem adiantou-se e pegou as moedas.
- Obrigado, meu chapa - conseguiu dizer, tentando adivinhar o
valor das moedas na escuridão.
- Tenho mais - insistiu Jeffrey. - Na verdade, aqui está uma
nota de cinco dólares que estou disposto a apostar com você. Digo que
está tão bêbado que não consegue lembrar o número do seu seguro social.
- O que você está querendo? - resmungou o bêbado, pondo-se de pé


com dificuldade. Outros dois o imitaram. Aquele em que Jeffrey estava
interessado balançou, como se fosse cair, mas conseguiu se firmar.
Parecia até mais bêbado do que antes. - É 139-32-1560. O número do meu
seguro social.
- Oh, claro! - Jeffrey fez um gesto de descrença. - Você acabou
de inventar!
- Uma ova! - retrucou o homem, indignado. Com um gesto largo que
quase o fez cair, puxou a carteira. Cambaleou de novo, lutando para
tirá-la toda do bolso da calça. Quando conseguiu, lutou para remover não
um cartão do seguro social, mas a licença de motorista. No processo,
deixou cair a carteira. Jeffrey abaixou-se para apanhá-la. Notou que não
tinha dinheiro algum. - Veja aqui! - balbuciou o homem. - Eu não disse?
Jeffrey entregou a carteira e ficou com a licença. Não conseguiu
ver o número, mas isso não era importante.
- Meu Deus, acho que você estava certo - disse, após fingir
estudá-la. Estendeu a mão com a nota de cinco dólares, que o bêbado
agarrou rapidamente. Um dos outros arrancou-a dele.
- Dê-me isto aqui! - gritou o homem de terno.
Um dos outros avançara atrás de Jeffrey, que enfiou a mão no
bolso e tirou mais moedas.
- Dá pra todo mundo - disse, jogando-as no chão. Elas retiniram
nos tijolos quebrados. Houve uma correria quando todos, menos Jeffrey,
se atiraram no chão. Jeffrey aproveitou para virar-se e sair correndo o
mais depressa que se atreveu daquele terreno cheio de entulho.
De volta ao quarto de hotel, colocou a licença de pé na beira da
pia e comparou sua imagem com a da foto. O nariz era diferente. Nada
podia fazer a esse respeito. No entanto, se escurecesse o cabelo e o
penteasse para trás com gel, do jeito que pretendia fazer, passando a
usar óculos de armação preta, talvez desse certo. Agora, pelo menos,
tinha um número de seguro social válido associado a um nome e um
endereço: Frank Amendola, da Sparrow Lane nº 1617, Framingham,
Massachusetts.
***
Capítulo 6.
QUARTA-FEIRA, 17 DE MAIO DE 1989, 06:15.
Trent Harding não devia começar a trabalhar senão às sete, mas às seis e
quinze já estava tirando as roupas caseiras no vestiário da ala
cirúrgica do St. Joseph's Hospital. De onde se encontrava, tinha uma
visão direta das pias e podia ver-se nos espelhos que ficavam sobre as
cubas. Flexionou o braço e os músculos do pescoço, de modo a fazê-los
aumentar de volume. Encolheu-se ligeiramente para observar a definição
dos músculos. Ficou satisfeito.
Trent ia ao ginásio pelo menos quatro vezes por semana e usava o


equipamento Nautilus ao ponto de exaustão. Seu corpo era como uma
escultura. Todo mundo notava e admirava, Trent tinha certeza. No
entanto, queria mais. Achava que podia desenvolver mais um pouco o
bíceps. Nas pernas, os músculos quadrados ganhariam com mais rigidez.
Planejou concentrar-se nessas duas coisas nas próximas semanas.
Trent costumava chegar sempre cedo, mas naquela manhã chegara
mais cedo que de hábito. Em sua excitação, acordara antes do despertador
tocar e, não conseguindo dormir novamente, decidira sair logo para o
trabalho. Além disso, não gostava de se apressar. Havia algo de muito
hilariante na ação de acrescentar uma de suas ampolas adulteradas de
Marcaína ao suprimento. Dava-lhe arrepios de prazer - era como acionar
uma bomba de tempo. Tornava-se o único a saber de um perigo iminente.
Era ele quem o controlava.
Depois de enfiar a roupa de trabalho, deu uma olhada em torno.
Poucas pessoas que iam entrar em serviço haviam chegado. Um sujeito
cantava uma canção de Stevie Wonder embaixo do chuveiro; outro se
fechara num dos reservados; e um terceiro encontrava-se diante do seu
armário, bem fora de vista.
Enfiou a mão no bolso do jaleco branco e pegou a ampola
adulterada de Marcaína. Escondendo-a na palma da mão, para o caso de
aparecer alguém inesperadamente, a seguir enfiou-a na sunga. No
principio a sensação foi desagradável, aquela coisa fria encostada na
pele; fez uma careta ao ajeitá-la. Depois trancou o armário e dirigiu-se
à sala de estar.
Lá, a máquina coava café fresco, enchendo a sala com seu aroma
agradável. Enfermeiros, enfermeiros-anestesistas, uns poucos médicos e
auxiliares estavam reunidos. Em breve cada um sairia para o seu
trabalho. Não havia casos de emergência na ocasião, e todos os
preparativos para o programa do dia, pelos quais o turno da noite era
responsável, tinham sido feitos. A sala vibrava com diálogos alegres.
Ninguém tomou conhecimento de Trent, nem ele tentou cumprimentar
alguém. A maior parte do pessoal presente nem mesmo o conhecia, pois ele
não era do turno da noite. Atravessou o recinto e entrou na área das
salas cirúrgicas. Não havia ninguém na mesa de controle. O imenso quadro
de giz estava todo preenchido com o planejamento do dia. Trent parou
rapidamente, examinando-o para saber duas coisas: que sala lhe fora
destinada e se havia casos de anestesia raquiana ou peridural
programados. Para sua satisfação, deparou com um punhado. Outro arrepio
de excitação lhe desceu pela espinha. Com tantos casos, havia uma boa
chance da sua Marcaína ser usada ainda naquele dia.
Seguiu em frente pelo corredor principal e entrou no Suprimento
Geral, convenientemente localizado no centro da área. A unidade
cirúrgica do St. Joe tinha a forma de um U; as salas de operação ficavam
enfileiradas na parte exterior do U e o Suprimento Geral ocupava a parte


interior.
Deslocando-se com determinação, como se fosse buscar no
Suprimento Geral um pacote destinado a uma das salas de cirurgia, Trent
movimentou-se por toda a área. Como de hábito, não viu ninguém. Havia
sempre uma pausa entre as 6:15 e as 6:45, horário em que o Suprimento
Geral ficava desguarnecido. Satisfeito, embarafustou pela seção onde
guardavam os soros intravenosos e as drogas não sujeitas a controle. Não
tinha que procurar os anestésicos locais. Já os descobrira há muito
tempo.
Com mais um olhar em torno, pegou uma caixa aberta de Marcaína a
0,5%, de 30 mililitros. Habilmente, ergueu a tampa. Viu três ampolas na
caixa que originalmente continha cinco. Trocou uma delas pela que
escondera na sunga. Estremeceu. Era surpreendente como o vidro ficava
frio à temperatura da sala. Fechou a tampa da caixa e, cuidadosamente,
empurrou-a de volta à posição original.
Mais uma vez deu uma olhada em volta. Tudo deserto. Observou a
caixa de Marcaína. Novamente uma excitação quase sensual percorreu-lhe o
corpo. Ninguém jamais teria qualquer pista. Fácil demais, e, dependendo
da programação da cirurgia, a ampola ia ser usada logo, talvez ainda
naquela manhã.
Por um breve momento pensou em se apossar das duas ampolas boas
que ficaram na caixa, a fim de apressar as coisas. Agora que colocara a
sua, sentia-se impaciente para desfrutar o caos que viria. Mas decidiu
que não. Jamais correra qualquer risco no passado, e não ia começar
agora. E se alguém estivesse controlando a quantidade de Marcaína sob a
responsabilidade do Suprimento Geral?
Saindo dali, voltou para o seu armário, a fim de esconder a
ampola boa que enfiara na sunga. Depois se serviria de uma boa xícara de
café. À tarde, se nada acontecesse, retornaria ao Suprimento Geral para
ver se a ampola adulterada ainda estava lá. Se a tivessem apanhado,
saberia logo. A notícia de uma complicação importante na cirurgia se
espalhava rapidamente.
Na sua imaginação, podia ver a ampola adulterada descansando
inocente dentro da caixa. Como uma roleta-russa. Sentiu-se estimulado
sexualmente. Apressou o passo, tentando conter-se. Se ao menos Doherty a
usasse, pensou, seria perfeito.
Cerrou a mandíbula, ao pensar no anestesista. A lembrança dele
fez renascer a raiva que sentira pela humilhação da véspera. Chegando no
armário, aplicou-lhe uma sonora pancada com a mão aberta. Algumas
pessoas voltaram-se na sua direção. Trent ignorou-as. A ironia era que,
antes do episódio vexatório, até gostava de Doherty. Tinha sido até
legal com o idiota.
Irritado, girou o fecho de segredo e abriu o armário. Tirou a
ampola de Marcaína da sunga e passou-a para o bolso do jaleco branco


pendurado. Talvez fosse preciso tomar algumas providências especiais em
relação a Doherty.
Deixando escapar um suspiro de alívio, Jeffrey fechou a porta do quarto
no Essex. Passava um pouco das onze da manhã. Estava em atividade
desde as nove e meia, quando saira para fazer umas compras. O tempo todo
se sentira apavorado, temendo ser visto por um conhecido, por Devlin ou
pela polícia. Encontrara diversos policiais, mas evitara qualquer
aproximação maior. Mesmo assim, fora uma aventura exasperante.
Colocou os pacotes e a valise em cima da cama e abriu o saco
menor. Entre as coisas que continha, havia um rinse escuro, chamado
Midnight Black. Tirando a roupa, foi ao banheiro e seguiu as instruções
impressas na caixa. Algum tempo depois, quando passou gel no cabelo e o
penteou para trás, parecia outra pessoa. Achou que lembrava um vendedor
de carros usados ou um personagem de um filme dos anos 30. Comparando
sua nova imagem com a pequena foto da licença de motorista, admitiu que
daria para ser Frank Amendola se ninguém olhasse com demasiada atenção.
E ainda não terminara.
De novo no quarto, abriu o maior dos embrulhos e tirou um terno
de poliéster azul-escuro que comprara no Filene's Basement e mandara
ajustar no Pacific of Boston. Mike, o alfaiate-chefe, mostrara-se
satisfeito com as alterações feitas enquanto Jeffrey esperava. Não
ficara muito bem, mas ele não queria mesmo que o terno caísse bem
demais. Na verdade, até resistiu a algumas sugestões perfeccionistas de
Mike.
Os pacotes continham ainda algumas camisas brancas e duas
gravatas sem qualquer atrativo. Vestiu uma das camisas, deu o laço numa
gravata e se enfiou no terno. Finalmente procurou até achar um par de
óculos de armação escura. Com eles encavalados no nariz, voltou ao
espelho do banheiro. Novamente comparou sua imagem com a foto da
licença. Mesmo contrafeito como andava, teve que sorrir. De um modo
geral, sua aparência estava terrível. Contudo, em termos de se parecer
com Frank Amendola, o resultado fora razoavelmente bom. Ficou surpreso
ao descobrir quão pouco os traços fisionômicos interferem para criar uma
impressão geral.
Um dos embrulhos continha uma bolsa de pano com uma tira para
passar no ombro e meia dúzia de divisões. Transferiu os maços de
dinheiro para a bolsa. Sentia que a valise chamava a atenção e receava
que através dela a polícia o reconhecesse. Supôs que a valise devia
fazer parte da sua descrição.
Apanhou uma seringa e o frasco de succinilcolina.
Preocupado a manhã inteira com o possível aparecimento de
Devlin, como acontecera no aeroporto, tivera uma idéia. Puxou, com
cuidado, 40 miligramas da droga para a seringa, que tapou e guardou num
bolso do paletó. Não tinha certeza de como a usaria, mas era bom tê-la


disponível. Servia mais como apoio psicológico do que qualquer outra
coisa.
Com os óculos sem grau no rosto e a bolsa pendendo no ombro, deu
uma última olhada no quarto, preocupado em não esquecer nada. Hesitou
para sair, porque sabia que no momento em que pisasse na rua, voltaria a
ansiedade causada pelo medo de ser reconhecido. Mas queria entrar no
Boston Memorial Hospital, e o único modo de conseguir isso era
candidatar-se a um emprego.
Devlin espalhou-se rudemente para saltar do elevador, a caminho do
escritório de Michael Mosconi, sem dar aos demais passageiros tempo para
se afastarem. Sentia um prazer perverso em provocar os outros,
especialmente homens bem-vestidos, e quase esperava que um deles se
atrevesse a bancar o herói.
Devlin estava de mau humor. Não dormira durante a noite, mal
instalado no banco dianteiro do carro, observando a casa dos Rhodes.
Estava praticamente certo de que Jeffrey apareceria pela madrugada, numa
incursão furtiva. Ou, na pior das hipóteses, que Carol saísse ao
encontro dele. Mas nada aconteceu até pouco depois das oito da manhã,
quando ela saiu da garagem a toda velocidade no seu Mazda RX7, deixando
uma trilha de borracha no meio da rua.
Com grande dificuldade e pouca esperança, Devlin a seguira
naquele tráfego matinal. Carol dirigia como um piloto das 500 milhas
Indy, rodando em ziguezagues, no meio dos outros carros. Seguiu-a até o
centro da cidade, mas ela simplesmente fora para o seu escritório, no
vigésimo segundo andar de um dos mais novos edifícios comerciais da
cidade. Devlin decidiu que, por ora, o melhor seria desistir de Carol.
Precisava de mais informações sobre Jeffrey a fim de decidir o que faria
em seguida.
- E então? - perguntou Michael, esperançoso, quando Devlin
entrou.
Devlin não respondeu logo, sabendo que isso deixaria Michael
louco de raiva. O cara estava sempre tenso. Devlin desabou no sofá de
vinil diante da escrivaninha do outro, e pôs as botas de caubói em cima
da mesinha de centro.
- Então o quê? - retrucou, irritado.
- Onde está o médico? - Michael esperava de Devlin a notícia de
que já deixara Rhodes no xadrez.
- Explique-se melhor - disse Devlin.
- O que você quer saber? - Ainda havia uma chance de que Devlim
apenas queria irritá-lo.
- Creio que eu não podia ser mais claro - respondeu o
ex-policial.
- Talvez para você; por mim, não vejo nada claro - queixou-se
Michael.


- Não sei onde está o calhorda - Devlin admitiu finalmente.
- Pelo amor de Deus! - exclamou Michael, erguendo ambas as mãos
para o alto em sua revolta. - Você me disse que ia pegar o cara sem
problema. Agora tem que encontrá-lo. Acabou a brincadeira.
- Ele não apareceu em casa - disse Devlin.
- Droga, droga, droga! - gemeu Michael, o pânico cada vez maior.
A cadeira giratória rangeu quando ele se inclinou para a frente e se pôs
de pé. - Vou abandonar os negócios.
Devlin franziu a testa. Michael estava tenso como nunca o vira.
Aquele médico realmente devia preocupá-lo.
- Não se aborreça - disse. - Eu o acharei. O que mais sabe a
respeito dele?
- Nada! - berrou Michael. - Já lhe contei tudo o que sabia.
- Você não me contou coisa alguma - afirmou Devlin. - E quanto a
uma outra família, algo assim? E quanto a amigos?
- Estou lhe dizendo que não sei nada sobre o cara - admitiu
Michael. - Tudo o que fiz foi um cheque com garantia da casa dele. E
sabe de mais uma coisa? O filho da mãe me enrabou até nisso. Esta manhã
recebi um telefonema de Owen Shatterly, do banco, dizendo que Jeffrey
Rhodes aumentara o valor da sua hipoteca antes que o meu documento de
penhora fosse registrado. Agora nem mesmo a garantia do empréstimo cobre
o valor da fiança. Devlin riu.
- Que diabo você acha tão engraçado? - revoltou-se Michael.
O brutamontes sacudiu a cabeça.
- Acho graça em ver que um merdinha como esse médico causa tanto
problema.
- Não consigo descobrir onde está a graça - retrucou Michael. Owen também me contou que o doutor levou em dinheiro os quarenta e cinco
mil dólares do aumento da hipoteca.
- Ufa, não é de admirar que a pancada que recebi da valise tenha
doído tanto - disse Devlin, com um sorriso. - Nunca fui atingido por
tanta grana.
- Muito engraçado. O problema é que a situação vai de mal a
pior. Graças a Deus, meu amigo Albert Norstadt trabalha no comando da
polícia. Só começaram a se mexer depois que ele interferiu.
- A polícia acredita que Rhodes ainda está na cidade? - indagou
Devlin.
- Pelo que eu sei, sim - respondeu Michael. - Eles não fizeram
grande coisa, mas pelo menos cobriram o aeroporto, o terminal
rodoviário, a estação de trens, as agências de locação de automóveis e
até mesmo as companhias de táxis.
- É o bastante - disse Devlin. Por ele, não queria que a polícia
agarrasse Jeffrey. - Se ele estiver na cidade, eu o acharei em um ou
dois dias. Se deu no pé, vai demorar um pouco mais. Mas de qualquer


maneira eu o pego. Calma.
- Quero que ele seja encontrado hoje! - exclamou Michael, em
novo ataque de raiva, começando a andar de um lado para o outro atrás da
escrivaninha. - Se você não encontrar aquele cretino, arranjo outro
sabidão para isso.
- Ei, espere aí - atalhou Devlin, tirando os pés de cima da
mesinha e endireitando o corpo. Não queria ninguém mais envolvido
naquele trabalho. - Estou fazendo o melhor que posso. Vou achar o cara.
Mantenha-se calmo.
- Quero o doutor agora, não no ano que vem.
- Calma, só se passaram doze horas - lembrou Devlin.
- E o que você está fazendo, sentado aqui?! - perguntou Michael,
asperamente. - Com quarenta e cinco mil no bolso, o cara não vai ficar
dando sopa por muito tempo. Volte para o aeroporto e veja se pode
seguir-lhe a pista a partir de lá, Devlin. Ele deve ter ido para a
cidade de algum modo. Com certeza não foi a pé. Levante o rabo daí e vá
ver o pessoal da companhia de ônibus do terminal aéreo. Talvez alguém se
lembre de um sujeito magrela, de bigode, carregando uma valise.
- Acho melhor ficar de olho na mulher dele - opinou Devlin.
- Não me causaram a impressão de estar apaixonados - informou
Michael. - Você deve tentar o aeroporto. Se não quiser, mandarei outra
pessoa.
- Tudo bem, tudo bem! - concordou Devlin, pondo-se de pé. - Se
quer que eu tente o aeroporto, faço isso.
- Ótimo. E me mantenha informado.
Devlin saiu correndo do escritório de Michael. Seu estado de
espírito não melhorara. Normalmente, jamais deixaria alguém dizer a ele
Como devia fazer seu trabalho, mas naquela situação achou melhor
agradar o homem. A última coisa que queria era um concorrente.
Sobretudo naquele caso. O único problema era que, como tinha de ir ao
aeroporto, precisava contratar alguém para seguir a mulher e vigiar
a casa. Enquanto esperava o elevador, foi pensando em quem conviria
chamar.
Jeffrey parou na larga escadaria do Boston Memorial para criar coragem.
A despeito do disfarce, sentia-se apreensivo agora que chegara ao
hospital. Receava ser reconhecido pela primeira pessoa que encontrasse.
Podia até imaginar o que diria: Jeffrey Rhodes, o que você está
fazendo? Indo a um baile à fantasia? Soubemos que a polícia está atrás
de você, é verdade? Sinto muito pela sua condenação como réu num
homicídio de segundo grau. Certamente isso vem provar que é cada vez
mais difícil a prática da medicina no estado de Massachusetts.
Dando um passo para trás e mudando a bolsa de ombro, Jeffrey
levantou a cabeça e observou os detalhes góticos no lintel da entrada
principal. Uma placa dizia: BOSTON MEMORIAL HOSPITAL - UMA CASA DE


REFÚGIO PARA DOENTES, INVÁLIDOS E PERTURBADOS. Não era doente nem
inválido, mas certamente se sentia perturbado. Quanto mais hesitasse,
mais difícil seria entrar. Estava preso naquela indecisão quando viu
Mark Wilson.
Mark era um colega que Jeffrey conhecia bem. Tinham recebido
treinamento juntos no Memorial. Jeffrey estava um ano mais adiantado.
Mark era um negro enorme, cujo bigode sempre fizera com que o de Jeffrey
parecesse ralo; isso fora sempre motivo para observações bem-humoradas
entre eles. Mark parecia estar se deliciando com aquele frio de
primavera. Viera da Beacon Street, dirigindo-se para a entrada diretamente para o lugar onde Jeffrey se encontrava.
Foi o empurrão de que precisava. Em pânico, passou pela porta
giratória e viu-se no saguão principal. Imediatamente mergulhou num mar
de gente. O saguão era não só a entrada, mas também a confluência dos
três corredores que serviam às três torres do hospital.
Receando que Mark estivesse nos seus calcanhares, contornou O
balcão circular de informações no centro do saguão cujo teto era em
abóbada e seguiu pelo corredor central. Imaginou que Mark iria para a
ala esquerda, onde ficava o conjunto de elevadores que atendia o
complexo cirúrgico.
Tenso pelo medo de ser descoberto, continuou andando, tentando
parecer muito à vontade. Quando finalmente se virou para dar uma olhada,
não viu o menor sinal de Mark.
Embora estivesse ligado ao hospital há quase vinte anos, não
conhecia ninguém no departamento de pessoal. Mesmo assim, estava
desconfiado quando entrou na sala e pegou um formulário que um
funcionário amistoso lhe entregou. Se não conhecia a turma de lá, isso
não queria dizer que não o conhecessem.
Preencheu o formulário usando o nome de Frank Amendola, pondo o
número de seguro social e o endereço em Framingham. No espaço que
perguntava qual o tipo de trabalho preferido, rabiscou "limpeza". Noutro
espaço, onde a pergunta se referia ao turno de preferência, escreveu
"noite". Como referências, listou diversos hospitais onde estivera em
reuniões de anestesistas. Sua esperança era de que levariam algum tempo
para confirmar as fontes indicadas, se é que o fariam. Na atual situação
de grande demanda por trabalhadores na área de saúde, e ante os baixos
salários oferecidos, imaginava que o mercado fosse favorável a quem
quisesse trabalhar. Não pensava que um emprego no setor de limpeza
merecesse uma verificação rigorosa das referências.
Após entregar o formulário preenchido, perguntaram-lhe se queria
ser entrevistado imediatamente ou preferia que marcassem uma data
posterior. Respondeu que seria melhor uma entrevista o mais cedo
possível, se isso convinha a eles.
Após uma breve espera, fizeram-no entrar na sala de Carl


Bodansky, um dos funcionários do departamento de pessoal. Uma parede da
sala era tomada por um grande quadro com centenas de etiquetas contendo
nomes, penduradas em ganchinhos. Na outra parede havia um calendário. Na
terceira via-se uma porta dupla. Tudo muito arrumado, muito prático.
Carl Bodansky teria entre trinta e cinco e quarenta anos. O
cabelo era escuro, o rosto simpático e o terno comum, mas bem-talhado,
talvez até bem-talhado demais. Jeffrey lembrou-se de tê-lo visto muitas
vezes na lanchonete do hospital, mas nunca se haviam falado. Quando
entrou, Bodansky estava reclinado sobre a mesa.
- Sente-se, por favor - disse calorosamente, ainda sem levantar
a cabeça. Jeffrey notou que o homem lia o formulário que acabara de
preencher. Quando finalmente se voltou para ele, Jeffrey conteve a
respiração. Teve medo que de repente desse mostras de tê-lo reconhecido.
Mas não. Em vez disso, perguntou-lhe se não queria tomar um café, talvez
uma Coca.
Jeffrey declinou, nervoso. Estudou a fisionomia de Bodansky, que
retribuiu com um sorriso.
- Então você trabalhou em hospitais?
- Oh, sim. Um bocado. - Sorriu debilmente. Começava a relaxar.
- E quer trabalhar no turno da noite, na limpeza?
Bodansky queria se certificar de que não houvera engano. Achava
aquilo bom demais para ser verdade: um candidato para o turno da noite
na seção de limpeza - e que não parecia ser um criminoso ou estrangeiro
ilegal no país, e falava bom inglês.
- É o que prefiro - disse Jeffrey. Percebeu que seu desejo era
um tanto inesperado. Impulsivamente, deu uma explicação: - Estou
planejando tirar um curso na Universidade de Suffolk pela manhã, ou
talvez à tarde. E preciso ganhar a vida.
- Que tipo de curso? - quis saber Bodansky.
- Direito - respondeu Jeffrey. Foi a primeira coisa que lhe veio
à cabeça.
- Muito ambicioso. Então pretende freqüentar a faculdade de
direito por alguns anos?
- Assim espero - respondeu Jeffrey, revelando entusiasmo. Podia
ver que os olhos de Bodansky haviam brilhado. O setor de limpeza, além
da dificuldade de recrutamento, também tinha o problema da alta taxa de
rotatividade, sobretudo no turno da noite. Se ele achasse que Jeffrey ia
ficar trabalhando à noite por alguns anos, pensaria que era o seu dia de
sorte.
- Quando pretende começar?
- Assim que possível. Hoje à noite, por exemplo.
- Hoje à noite? - repetiu Bodansky, incrédulo. Era realmente bom
demais para ser verdade.
Jeffrey deu de ombros.


- Acabei de chegar à cidade e preciso de trabalho. Tenho que
comer.
- Veio de Framingham? - perguntou Bodansky, dando uma olhada no
formulário.
- Correto - confirmou Jeffrey. Mas como não queria entrar em
detalhes sobre um lugar que não conhecia, acrescentou: - Se o Boston
Memorial não tiver vaga para mim, posso procurar o St. Joseph ou o
Boston City.
- Oh, não, creio que não - apressou-se Bodansky. - É que as
coisas demandam um pouco de tempo. Você vai precisar de um uniforme e de
uma identificação. Há também uma papelada a preencher para que possa
começar.
- Pois bem, aqui estou eu. Por que não resolvemos tudo agora?
Bodansky fez uma pausa quase imperceptível e disse:
- Espere um momento. - Levantou-se e saiu da sala.
Jeffrey permaneceu sentado. Esperava não se ter mostrado ansioso
demais para começar. Começou a examinar o escritório de Bodansky para
passar o tempo. Observou uma foto numa moldura de prata: uma mulher de
pé, atrás de duas crianças de bochechas rosadas. Era o unico toque
pessoal na sala, mas um belo toque, pensou Jeffrey.
Bodansky retornou com um homem de baixa estatura, cabelo preto
luzidio e sorriso amável. Vestia o uniforme verde-escuro do pessoal da
limpeza. Apresentou-o como José Martínez. Jeffrey levantou-se e apertou
a mão do outro. Vira Martinez muitas vezes. Observou o rosto dele como
fizera com Bodansky, mas não percebeu o menor sinal de reconhecimento.
- José é o nosso chefe da limpeza - disse Bodansky, com uma das
mãos no seu ombro. - Expliquei que você queria começar a trabalhar logo.
Ele está disposto a agilitar o processo, de modo que vou deixar vocês
acertarem tudo.
- Então estou empregado? - perguntou Jeffrey.
- Exatamente - confirmou Bodansky. - Depois que José tiver
terminado com você, volte aqui. Vai precisar de uma foto para sua ficha.
Temos também de inscrevê-lo na Blue Cross/Blue Shield ou numa das outras
organizações médicas. Alguma preferência?
- Tanto faz - respondeu Jeffrey.
Martínez levou Jeffrey à sede do serviço que dirigia, localizada
no primeiro subsolo. Tinha um agradável sotaque espanhol e um senso de
humor contagioso. Na verdade, achava quase tudo engraçado o bastante
para merecer uma risada. Riu especialmente das primeiras calças que
trouxe para Jeffrey. As pernas só chegavam aos joelhos.
- Creio que vamos ter que amputar - disse, com uma risada.
Após diversas experiências, encontraram um uniforme na medida
adequada. Depois Jeffrey recebeu um armário. Martínez lhe disse para
vestir apenas a camisa do uniforme.


- Mas pode ficar com as calças - acrescentou.
Depois quis levar Jeffrey para um giro pelo hospital. A camisa
do uniforme ficaria fazendo às vezes de crachá.
- Detesto tomar o seu tempo - apressou-se a dizer Jeffrey. A
coisa que menos queria era dar uma volta pelo hospital durante o dia,
quando era mais provável alguém reconhecê-lo.
- Tenho tempo - garantiu Martínez. - Não há problema. Além
disto, faz parte do nosso regulamento interno.
Não lhe convindo insistir demais, Jeffrey vestiu relutantemente
a camisa verde-escuro e guardou sua roupa no armário. Conservando a
bolsa pendurada no ombro, preparou-se para seguir Martínez. Contudo, o
que gostaria mesmo era de enfiar um saco de papel na cabeça.
Martínez falou o tempo todo, enquanto conduzia Jeffrey.
Apresentou-o ao pessoal da limpeza que ia encontrando. Seguiram depois
para a lavanderia, onde todos estavam ocupados demais para dar-lhe
atenção. A seguir foi a vez da lanchonete, onde foram decididamente
inamistosos. Por sorte não encontraram ninguém que Jeffrey conhecesse
mais intimamente.
Subindo a escada para o primeiro andar, Martinez conduziu
Jeffrey através das clínicas ambulatoriais e da sala de emergência.
Nesta, Jeffrey teve impetos de dar meia-volta e sair correndo quando viu
diversos residentes da cirurgia que conhecera muito bem e que tinham
estado em contato com ele em situações de anestesia. Por sorte, ninguém
lhe deu atenção. Estavam ocupados com vários casos de traumatismos
causados por um acidente automobilístico.
Depois da emergência, Martinez levou Jeffrey para os elevadores
principais, na torre norte.
- Agora quero mostrar-lhe os laboratórios - disse. - E a área
das salas de cirurgia.
Jeffrey engoliu em seco.
- Não está na hora de eu retornar à sala do Sr. Bodansky? perguntou.
- Temos todo o tempo de que precisarmos - foi a resposta de
Martínez. Com um gesto mandou Jeffrey entrar no elevador, cujas portas
acabavam de se abrir. - Além disso, é importante que conheça a
patologia, a química e a cirurgia. Você estará lá à noite. O seu turno é
o que faz a faxina nesses lugares. É a única hora em que conseguimos
entrar lá.
Jeffrey acomodou-se no fundo do elevador. Martínez o acompanhou.
- Você vai trabalhar com quatro outras pessoas - explicou. - O
nome do supervisor do turno da noite é David Arnold. Boa gente.
Jeffrey aquiesceu, mudo. À medida que o elevador se aproximava
do andar onde ficavam o laboratório e as salas de cirurgia, foi sentindo
um ardor no estômago. Estremeceu quando Martínez o segurou pelo braço e


instou para sair, dizendo:
- É o nosso andar.
Respirou fundo ao preparar-se para saltar na parte do hospital
onde praticamente vivera quase duas décadas.
Seu queixo caiu. Por um segundo não se pôde mexer. Bem à sua
frente estava Mark Wilson, esperando para entrar. Seus olhos escuros
examinaram Jeffrey, estreitaram-se, e ele ia dizer qualquer coisa. Algo
como "Jeffrey, é você?"
- Vocês vão sair ou não? - perguntou Mark, dirigindo-se a eles.
- Estamos saindo - disse Martínez, dando um pequeno empurrão
nele.
Jeffrey precisou de alguns segundos para compreender que Mark
não o reconhecera. Voltou-se quando as portas do elevador iam se
fechando, e ainda o encarou por um segundo. Não havia o menor indicio de
reconhecimento.
Empurrou os óculos para cima. Tinham escorregado quando
tropeçara ao sair do elevador.
- Você está bem? - perguntou Martínez.
- Ótimo.
Na verdade estava se sentindo muito melhor. O fato de Mark não
tê-lo reconhecido era um sinal encorajador.
O giro pelos laboratórios de química e patologia foi menos
estressante que a viagem de elevador. Jeffrey certamente viu muitas
pessoas que conhecia, mas ninguém agiu diferente de Mark Wilson.
A tensão retornou quando Martínez o levou ao recinto vestibular
da cirurgia. Àquela hora, no inicio da tarde, havia pelo menos umas
vinte pessoas a quem Jeffrey conhecia, sentadas, tomando café,
entretidas em conversas ou lendo um jornal. Bastava que uma delas o
reconhecesse e pronto - estava tudo acabado. Enquanto Martínez ia
descrevendo a rotina do trabalho noturno, Jeffrey, olhos baixos,
examinava os sapatos. Manteve contato visual com os outros o mínimo
possível, mas após quase quinze minutos de tensa antecipação, deu-se
conta de que ninguém lhe prestava a menor atenção. Ele e Martínez, a
julgar pelo modo como eram ignorados, deviam ser invisiveis.
No vestiário masculino passou por outro teste tão difícil quanto
o do encontro com Mark Wilson. Ficou frente a frente com outro
anestesista a quem conhecia bem. Fizeram uma espécie de dança cômica ao
passar um pelo outro junto das pias. Quando aquele médico não o
reconheceu, mesmo após tão demorado escrutínio, Jeffrey sentiu-se
surpreso e satisfeito. O disfarce funcionava melhor do que previra.
- Você tem experiência com trajes cirúrgicos? - perguntou
Martínez quando pararam diante dos armários repletos.
- Tenho - respondeu Jeffrey.
- Ótimo - disse Martinez. - Então não trataremos disso agora.


David Arnold vai lhe mostrar a ala da cirurgia à noite. Nesta hora o
movimento é muito grande.
- Compreendo - disse Jeffrey.
Foi um alívio terminar o giro e pôr novamente as suas roupas.
Depois Martínez o levou de volta ao escritório de Carl Bodansky.
Apertando-lhe a mão, Martínez desejou boa sorte e retornou às suas
tarefas. Bodansky tinha uma declaração para desconto do Imposto de Renda
e um formulário de inscrição numa empresa de seguro médico para Jeffrey
assinar. Nervoso do jeito que estava, ele quase começa a assinar seu
nome real, mas lembrou-se e rabiscou o nome de Frank Amendola nos locais
indicados.
Só depois que passou pela porta giratória da entrada do hospital
e pisou na calçada Jeffrey sentiu desaparecer a ansiedade. Agora estava
até mesmo encorajado. Por enquanto, tudo saíra de acordo com o plano.
Devlin subiu a escada lateral da chegada de passageiros na estação de
ônibus do aeroporto. Os protetores de metal nas botas de cáuboi retifiam
ruidosamente no concreto sujo. Sentia ganas de estrangular alguém e
pouco se preocupava com quem poderia ser. Qualquer um serviria.
Seu estado de espírito só fizera piorar depois que saíra do
escritório de Michael Mosconi. Como imaginara, o aeroporto estava sendo
uma perda total de tempo. Perguntou ao pessoal do estacionamento para
saber se alguém reparara no sujeito que, por volta das 9 horas da noite,
estacionara uma Mercedes 240D creme. Claro que ninguém tinha reparado.
Depois, na parada de ônibus, conseguira o nome e o número do
telefone do funcionário que estivera na cabine de venda de fichas na
noite anterior. Só conseguir o telefone já fora tão difícil quanto
arrancar um dente. Quando finalmente entrou em contato com o cara, nada
obteve, como já suspeitava. O tipo não se lembraria nem da própria mãe
se ela tivesse comprado uma ficha.
Na plataforma dos ônibus, esperou a chegada do que ligava os
diferentes terminais. Quando o veículo apareceu, entrou pela porta da
frente. A princípio tentou ser legal.
- Com licença - disse. O motorista era um negro magrinho, usava
óculos redondos com aro de metal. - Talvez você possa me dar uma
informação - acrescentou.
O motorista pestanejou, reparou no braço tatuado de Devlin e por
fim encarou-o.
- Não posso fechar a porta enquanto você não se sentar - disse.
- E não posso dirigir o ônibus enquanto a porta não estiver fechada.
Devlin rolou os olhos para cima. Examinou o ônibus. Alguns
passageiros tinham entrado pela porta de trás e estavam atarefados
colocando suas malas no bagageiro.
- É só um segundo - insistiu Devlin, contendo-se. - É que estou
procurando um homem que talvez tenha tomado um ônibus destes ontem à


noite, por volta das nove e meia. É um branco magro, de bigodes,
carregava uma valise. Sem mais bagagem. O que eu estava querendo
saber...
- Eu apreciaria se você se sentasse - disse o motorista,
interrompendo.
- Olha, amigo - disse Devlin, a voz baixando uma oitava -, estou
tentando ser legal.
- Está perdendo o seu tempo. Eu largo às três e meia.
- Compreendo - disse Devlin, esforçando-se ao máximo para não
perder a compostura. - Mas você não poderia me informar os nomes dos
motoristas que trabalharam ontem à noite?
- Por que não procura o nosso escritório? Aqui, trate de se
sentar...
Devlin fechou os olhos. Aquele borra-botas estava forçando a
sorte.
- Ou você senta ou salta - insistiu o motorista.
Foi a gota d'água. Devlin moveu-se rapidamente, agarrando o
homem pela camisa e levantando-o do banco. Puxou a cara dele até ficar a
alguns centímetros da sua.
- Sabe de uma coisa, meu chapa? Acho que não gosto da sua
atitude. Tudo o que quero é uma resposta simples a uma pergunta simples.
- Ei! - gritou um dos passageiros.
Conservando o aterrorizado motorista no ar, Devlin virou-se para
o fundo do ônibus. Um homem em traje de passeio adiantou-se, o rosto
congestionado de indignação.
- O que está acontecendo aqui? - exclamou.
Devlin estendeu a mão esquerda e agarrou a cabeça do homem como
se fosse uma bola de basquete. Primeiro puxou-o um passo à frente e em
seguida empurrou-o com força para trás. O homem cambaleou e caiu de
costas no corredor. Os outros passageiros ficaram boquiabertos. Ninguém
mais tentou socorrer o motorista.
Nesse meio-tempo, o crioulo fez menção de falar. Devlin abaixou
o punho, fazendo-o sentar-se. Ele tossiu, e, numa voz rouca, deu a
Devlin dois nomes.
- Não sei o número deles, mas ambos moram em Chelsea.
Devlin escreveu os nomes num caderninho que carregava no bolso
esquerdo da camisa. Neste instante seu bipe começou a emitir sinais.
Puxou-o do cinto, apertou o botão e observou a tela de LED, onde
apareceu o número de Michael Mosconi.
- Obrigado, meu chapa - disse ao motorista. Deu meia-volta e
saltou. O ônibus arrancou numa nuvem de fumaça de diesel, a porta ainda
aberta.
Devlin ficou olhando, perguntando-se se um carro de polícia não
viria atrás dele em questão de minutos. Contudo, devia conhecer os


tiras. Estava fora da força policial havia mais de cinco anos, mas ainda
tinha muitos amigos. Exceto pelos novatos, conhecia todo mundo.
Retornando ao interior da estação, usou um telefone público e
ligou para Michael. Pensou que talvez estivesse conferindo se ele fora
mesmo ao aeroporto.
- Tenho uma boa noticia, meu chapa - disse Michael, quando a
ligação se completou. - Eu não devia dizer nada, o seu trabalho fica
fácil demais. Sei onde Jeffrey Rhodes está entocado.
- Onde? - perguntou Devlin.
- Devagar - disse Michael. - Se eu lhe disser e você for
pegá-lo, já não valerá quarenta mil. Posso chamar outro. Entende o que
digo?
- Como foi que você conseguiu a informação?
- Via Norstadt, do comando da polícia - declarou Michael,
triunfante. - Ao investigarem as companhias de táxi, um dos motoristas
informou, voluntariamente, que pegara um sujeito que correspondia à
descrição de Jeffrey Rhodes. Disse que o comportamento do tal cara era
estranho. No princípio nem sabia para onde ir. E aí ficaram rodando sem
destino.
- E por que a policia não o pegou? - quis saber Devlin.
- Eles vão prendê-lo. Depois. Estão um pouco preocupados no
momento com um grupo de roqueiros que acaba de entrar na cidade. Além
disso, não consideram Rhodes uma grande ameaça a ninguém.
- Então, qual é a sua proposta?
- Dez mil - respondeu Michael. - É pegar ou largar.
Devlin só precisou pensar um momento.
- Fechado - disse.
- Essex Hotel - informou Michael. - Olhe, Dev, dê uns tranCOS
nele. Esse cara me trouxe um bocado de aborrecimento.
- O prazer será meu - disse Devlin, e falava a sério. Jeffrey
não só batera nele com a valise, como dera um jeito agora de aliviá-lo
em trinta mil dólares. Mas, de repente, podia ser que não.
De volta à plataforma dos ônibus, conseguiu parar um taxi. Por
cinco dólares, o motorista o levou ao estacionamento central, onde
deixara seu carro.
No instante em que saiu do aeroporto, a atitude de Devlin
melhorou bastante. Era uma pena perder trinta mil, se é que isso ia
acabar acontecendo, mas dez mil não era coisa de se desprezar. Por outro
lado, podia se divertir um pouco com Jeffrey. E agora, sabendo onde ele
se encontrava, o trabalho seria uma sopa. Mamão com açúcar.
Foi direto para o Essex Hotel. Estacionou ao lado de um hidrante
na outra calçada. Conhecia o Essex. Quando estava na policia,
participara de algumas batidas por causa de drogas.
Subiu os degraus da frente. Antes de abrir a porta, enfiou a mão


por baixo da jaqueta de zuarte, sob o braço esquerdo, e soltou a tira
que prendia o cão do 38 cano curto. Embora tivesse certeza de que
Jeffrey não estava armado, cautela nunca era demais. O doutor o
surpreendera antes. Não voltaria a acontecer.
Um rápido olhar para o interior lhe mostrou que o Essex não
mudara absolutamente nada desde sua última visita. Chegava a se lembrar
do cheiro. O mesmo cheiro de mofo, como se cultivassem cogumelos no
porão. Aproximou-se da mesa da recepção. Quando o empregado do hotel
levantou o rosto, até então mergulhado na TV, lembrou-se dele também. Os
caras ia polícia o chamavam de Babão, porque tinha o lábio inferior
pendurado, como o de um buldogue.
- Às suas ordens - disse ele, olhando para Devlin com evidente
aversão. Ficou a uma boa distância do balcão, como se tivesse medo de
que o outro, se debruçando, o agarrasse.
- Procuro um dos seus hóspedes - disse Devlin. - O nome é
Jeffrey Rhodes, mas pode ser que não tenha se registrado com esse nome.
- Não damos informações sobre nossos hóspedes - avisou o homem,
fazendo-se formal.
Devlin inclinou-se, ameaçador, sobre o balcão. Fez uma pausa
longa o bastante para que o empregado se sentisse pouco à vontade.
- Então você não dá informações sobre os seus hóspedes? repetiu, balançando a cabeça como se estivesse aprovando.
Depois baixou o tom de voz. - Estou lhe fazendo uma pergunta
simples.
- Não temos nenhum Jeffrey Rhodes registrado - gaguejou o
empregado.
Devlin balançou a cabeça.
- Não é de espantar. Mas deixe-me descrevê-lo. Mais ou menos da
sua altura, uns quarenta anos, bigode, cabelo castanho meio fino. Boa
aparência. E carregava uma valise.
- Talvez seja Richard Bard - tentou o empregado do hotel,
obsequioso.
- E quando foi que o Sr. Bard se hospedou neste rico
estabelecimento? - perguntou Devlin.
- Ontem à noite, por volta das dez - foi a resposta. Esperando
abrandar a raiva de Devlin, o empregado do hotel virou uma página no
livro de registro e apontou um nome com a mão trêmula. - Está vendo? Ele
assinou bem aqui.
- O Sr. Bard está na casa?
O empregado sacudiu a cabeça negativamente.
- Ele saiu mais ou menos ao meio-dia. E saiu diferente. Com o
cabelo preto e sem bigode.
- Muito bem. Acho que isso confere. Em que quarto ele ficou? Cinco F.


- Não creio que seria muito pedir para me levar lá, seria?
O homem sacudiu a cabeça negativamente. Fechou a gaveta do
dinheiro, pegou uma chave sobressalente e saiu de trás do balcão. Devlin
o seguiu até a escada.
- As coisas andam em ritmo lento - disse, apontando para o
elevador. - Quando estive aqui numa investigação de drogas, aquele
elevador tinha esta mesma tabuleta. - O senhor é tira?
- Mais ou menos.
Subiram a escada em silêncio. Ao chegarem no quinto andar, Devlin teve a
impressão de que o empregado ia ter um ataque do coração. Respirava
forte e suava profusamente. Esperou que voltasse à calma antes de
percorrer o corredor onde ficava o 5F. Por medida de segurança, Devlin
bateu à porta. Não havendo resposta, afastou-se e deixou o homem do
hotel abri-la. Depois fez uma rápida inspeção. O quarto estava vazio.
- Acho que vou esperar aqui mesmo pelo Sr. Bard - disse,
chegando à janela e dando uma olhada na rua. Voltou-se para o
funcionário do hotel. - Mas não quero que diga qualquer coisa a ele
quando voltar. Vou ser uma surpresinha. Deu pra entender?
O homem balançou a cabeça vigorosamente.
- O Sr. Rhodes, aliás Sr. Bard, é um fugitivo da justiça - disse
Devlin. - Há uma ordem de prisão contra ele. É um homem perigoso,
condenado por homicídio. Se disser qualquer coisa que o contrarie, não
se sabe como reagirá. Entende o que estou dizendo?
- Claro, claro. O Sr. Bard agia de modo estranho quando chegou
aqui. Eu até pensei em chamar a polícia.
- Claro que pensou - disse Devlin, cheio de sarcasmo.
- Não direi uma palavra - prometeu o homem do hotel,
retirando-se.
- Conto com você - avisou Devlin, passando a chave na fechadura.
Assim que se viu sozinho, correu para a valise e jogou-a em cima
da cama. Com mãos trêmulas, abriu os trincos e ergueu a tampa. Deu uma
olhada nos papéis, e nada. A seguir soltou a pressão que segurava a
parte sanfonada sob a tampa e examinou rapidamente cada compartimento.
- Droga! - gritou. Esperara que Jeffrey tivesse sido tolo o
bastante para deixar o dinheiro na valise, que agora só continha papéis
e roupas de baixo. No alto de uma das folhas de papel estava impresso
"Da Mesa de Christopher Everson". Havia abaixo, um texto redigido em
linguagem científica. Gostaria de saber quem seria, afinal, esse
Christopher Everson.
Largando o papel, fez uma busca geral no quarto, para o caso de
Jeffrey ter escondido o dinheiro por ali. Mas não. Supusera que Jeffrey
teria o dinheiro consigo. Por isso é que aceitara a proposta de Michael
tão depressa. Planejava embolsar os quarenta e cinco mil dólares que
deviam estar com o médico, além dos dez que Michael lhe daria.


Estirando-se na cama, sacou a arma. O bom doutor era uma
contínua fonte de surpresas. O melhor era estar pronto para tudo.
Jeffrey sentiu-se muito mais à vontade com o disfarce e a nova
identidade depois que sua ida ao Boston Memorial decorrera sem o menor
problema. Se as pessoas a quem conhecia tão bem não o tinham
reconhecido, pouco havia agora a temer, pelo menos quanto à descoberta
de sua identidade. Revigorado pela nova confiança, pegou um táxi e
dirigiu-se ao St. Joseph's Hospital.
Ainda se sentia consciente de estar carregando muito dinheiro,
mas era bem mais confortável levá-lo numa bolsa de pano a tiracolo do
que na valise.
O St. Joseph era consideravelmente mais antigo que o Memorial.
Sua estrutura de tijolinhos, que datava da virada do século, fora
reformada muitas vezes. Ficando numa região muito arborizada, ao lado do
Arnold Arboretum, em Jamaica PIam, seu terreno e localização eram bem
mais atraentes que os do Boston Memorial.
Fora construído originalmente para ser um hospital de caridade
católico, mas com o passar dos anos transformara-se numa instituição
pública. Como ficava num subúrbio de Boston, não tinha o movimento e os
aspectos caracteristicamente urbanos de um hospital do centro da cidade
destinado a suportar o impacto dos problemas sociais do país.
Jeffrey pediu instruções sobre como chegar à unidade de
tratamento intensivo a uma das voluntárias de avental rosa e cabelo
branco que estava no balcão de informações. Com um sorriso, ela o mandou
para o segundo andar.
Encontrou a unidade facilmente e entrou.
Sendo anestesista, sentiu-se em casa naquele local aparentemente
caótico de alta tecnologia. Todas as camas estavam ocupadas. Máquinas
sibilavam e bipavam. Frascos com líquidos destinados a aplicação
intravenosa pendurados na parte superior de pequenos suportes, lembravam
cachos de frutas modelados em vidro. Tubos e fios espalhavam-se por toda
a parte.
No meio daquela confusão eletrônica, moviam-se as enfermeiras.
Preocupadas como sempre com suas responsabilidades, não deram pela
presença de Jeffrey.
Localizou Kelly junto ao posto de enfermagem. Ela acabara de
atender o telefone quando Jeffrey parou junto da mesa. Os olhos dos dois
se encontraram por um momento, e Kelly lhe fez um gesto para aguardar um
instante. Jeffrey reparou que ela estava anotando informações do
laboratório.
Assim que desligou, chamou uma das outras enfermeiras e repetiu
os resultados. Na outra extremidade da sala, a moça fez um gesto
de compreensão e ajustou o fluxo do soro para compensar.
- Posso ajudá-lo em alguma coisa? - perguntou Kelly, voltando a


atenção para Jeffrey. Ela vestia blusa e calças compridas brancas, e
tinha o cabelo preso e puxado para trás.
- Já ajudou - respondeu ele, com um sorriso.
- Como? - perguntou Kelly, claramente intrigada.
Jeffrey riu.
- Sou eu! Jeffrey!
- Jeffrey? - Ela semicerrou os olhos.
- Jeffrey Rhodes - disse ele. - Não posso acreditar que ninguém
me esteja reconhecendo! Afinal, eu não fiz uma plástica!
Ela escondeu o sorriso com uma das mãos.
- O que está fazendo aqui? O que aconteceu com o seu bigode? E
com o cabelo?
- É uma história comprida. Tem um minuto?
- Claro.
Kelly disse à outra enfermeira que ia tirar sua folga.
- Venha - chamou Jeffrey, apontando para uma porta atrás do
posto de enfermagem. Dava para uma sala que as enfermeiras usavam como
depósito e sala de estar improvisada. - Que tal um café? - perguntou.
Jeffrey disse que adoraria, Kelly serviu uma xícara para ele e outra
para si. - Então, por que o disfarce?
Jeffrey arriou a bolsa no chão e tirou os óculos, que começavam
a irritar-lhe o nariz. Pegou o café e sentou-se. Kelly encostou-se no
balcão, segurando a caneca com ambas as mãos.
Começando da hora em que saíra da casa dela na noite da véspera,
Jeffrey contou a Kelly tudo o que acontecera: o fiasco no aeroporto, o
fato de ter-se tornado um fugitivo, o ataque a Devlin com a valise, a
briga por causa das algemas.
- Então você ia deixar o país? - perguntou Kelly.
- Era a minha intenção - admitiu Jeffrey.
- E nem ia me telefonar avisando?
- Iria telefonar para você o mais cedo possível. Não estava
pensando com muita clareza.
- Onde está hospedado?
- Num hotel horroroso do centro da cidade - disse Jeffrey.
Kelly balançou a cabeça, desanimada.
- Oh, Jeffrey. Isto está me parecendo péssimo. Talvez você
devesse simplesmente se entregar. Sua atitude não vai ajudar a apelação.
- Se eu me entregar, eles me metem na cadeia e provavelmente me
declaram inafiançável. Mesmo que estipulem uma fiança, não creio que
possa levantar o valor. Mas meu apelo deve continuar sendo outra
questão. Não posso ficar preso porque tenho muito a fazer.
- O que, por exemplo?
- Estudei as anotações de Chris - respondeu Jeffrey, mal
contendo a excitação. - Gastei algum tempo fazendo uma pesquisa na


biblioteca. Acho que ele esbarrou em algo sério ao suspeitar da
existência de um contaminante na Marcaína administrada em Henry Noble.
Estou começando a suspeitar o mesmo da Marcaína que dei a Patty Owen. E
preciso investigar ambos os acidentes mais detalhadamente.
- O que me dá uma péssima sensação de déjà vu - disse Kelly.
- O que quer dizer com isso?
- Você está igualzinho a Chris quando ele começou a suspeitar de
um contaminante. E a atitude que tomou a seguir foi suicidar-se.
- Sinto muito. Minha intenção não é trazer de volta coisas que
foram dolorosas para você, vasculhando o passado.
- Não é o passado que me preocupa - disse Kelly. - É você. Estou
preocupada com você. Ontem estava deprimido, hoje está um pouco
exaltado. O que haverá amanhã?
- Estarei bem. Palavra! Creio realmente que descobri alguma
coisa.
Kelly inclinou a cabeça de lado e ergueu uma das sobrancelhas,
lançando um olhar indagador a Jeffrey.
- Quero saber se você se lembra da promessa que me fez - disse.
- Lembro.
- É melhor lembrar mesmo - disse Kelly severamente. Depois
sorriu. - Agora que estamos entendidos, pode me contar o que o deixou
tão entusiasmado com a idéia do contaminante.
- Inúmeras coisas. A paralisia persistente de Henry Noble, por
exemplo. Parece que ele perdeu até a função dos nervos cranianos. Isso
não acontece com a anestesia na espinha, de modo que não pode ter havido
uma "anestesia raquidiana irreversível", como disseram. E, no meu caso,
a criança teve uma paralisia persistente com distribuição assimétrica.
- A paralisia de Noble não foi considerada uma conseqüência da
falta de oxigênio por causa das convulsões e paradas cardíacas?
- Foi o que consideraram - confirmou Jeffrey. - Mas na autópsia,
Chris escreveu que encontraram, em secções microscópicas, degeneração de
axônios ou das células nervosas.
- Você agora me deixou impedida de acompanhá-lo - admitiu Kelly.
- Não seria possível ver degeneração axonal com o grau de
privação de oxigênio que Henry Noble experimentou.., se é que sofreu
mesmo privação. Se ele tivesse ficado sem oxigênio tempo bastante para
causar uma degeneração axonal, não seria possível ressuscitá-lo. E
certamente não existe degeneração de axônios com anestésicos locais.
Anestésicos locais bloqueiam uma função. Definitivamente, não são
venenos celulares.
- Supondo que tenha razão - disse Kelly -, como pretende provar?
- Não vai ser fácil - admitiu Jeffrey. - Especialmente devido à
minha situação de fugitivo. Mas vou fazer uma tentativa assim mesmo.
Queria perguntar-lhe se seria possível me dar uma mãozinha. Se minha


teoria for correta e eu puder comprová-la, limparei tanto o nome de
Chris quanto o meu.
- Claro que vou ajudar - prometeu Kelly. - Você nunca devia
duvidar disso.
- Pense seriamente antes de concordar - insistiu Jeffrey. - Pode
ser que haja problemas por causa da minha condição de fugitivo. Qualquer
ajuda que me dê talvez seja interpretada como favorecimento a um
fugitivo da lei. O que poderia constituir um delito grave. Francamente
não sei.
- Aceito o risco - afirmou Kelly. - Faria qualquer coisa para
limpar o nome de Chris. E além disso - ela acrescentou, corando
ligeiramente -, gostaria muito de ajudar você.
- O primeiro passo será documentar que as duas ampolas de
Marcaína vieram do mesmo fabricante, o que parece bastante fácil. Vai
ser mais difícil descobrir, como eu suspeito, que pertenciam ao mesmo
lote. Embora o caso de Chris e o meu estejam separados por um bom número
de meses, ainda é possível que tenham saído na mesma linha de produção.
O que me preocupa é a possibilidade de haver mais frascos contaminados
por aí.
- Meu Deus! Que pensamento horrível! Uma tragédia pronta para
acontecer...
- Você ainda tem amigos no Valley Hospital que possam informar
qual a companhia que os supre de Marcaína? Por acaso sei que o Memorial
recebe da Arolen Pharmaceuticals, de Nova Jersey.
- Claro que sim - concordou Kelly. - A maior parte do pessoal do
meu tempo no Valley ainda está lá. Charlotte Henning é a supervisora do Centro Cirúrgico. Falo com ela pelo menos uma vez por
semana. Telefonarei para Charlotte assim que largar o trabalho.
- Ótimo - disse Jeffrey. - Quanto a mim, sou o mais novo membro
da equipe de limpeza do Boston Memorial.
- O quê?!
Jeffrey contou-lhe como fora ao Boston Memorial em seu novo
disfarce e como se candidatara a uma vaga no turno da noite da faxina.
- Não me surpreende ninguém ter reconhecido você - disse Kelly.
- Eu mesma não reconheci.
- Contudo, são pessoas com quem trabalhei anos e anos - lembrou
Jeffrey.
A porta que dava para a unidade de tratamento intensivo abriu-se
e uma das enfermeiras enfiou a cabeça na fresta.
- Kelly, vamos precisar de você em poucos minutos. Estamos
recebendo um paciente.
Kelly garantiu que não ia demorar. A outra retirou-se,
discretamente.
- Então contrataram você na mesma hora? - perguntou Kelly.


- Pois é. Começo a trabalhar hoje.
- O que pretende fazer quando estiver dentro do hospital?
- Uma coisa será seguir uma sugestão sua - respondeu Jeffrey. Tentarei encontrar uma explicação para a existência de um frasco de
Marcaína a 0,75% no meu aparelho de anestesia. Planejo verificar quais
foram as outras cirurgias efetuadas naquela sala no mesmo dia. Outra
coisa: quero examinar o relatório da patologia sobre Patty Owen. Preciso
saber se seccionaram seus nervos periféricos na autópsia. Estou curioso
também para saber se fizeram qualquer exame de toxicologia.
- Tudo o que posso lhe aconselhar é que tenha cuidado - disse
Kelly. Em seguida tomou rapidamente o resto do café e lavou a xícara na
pia. - Desculpe, mas tenho que voltar ao trabalho.
Jeffrey foi até a pia e lavou também a sua xícara.
- Obrigado pelo tempo que gastou comigo - disse, quando ela
abriu a porta. O barulho dos respiradores invadiu a salinha. Ele apanhou
a bolsa, pôs os óculos e seguiu-a quando saiu.
- Você me telefona hoje? - perguntou Kelly antes de se
separarem. - Falarei com Charlotte assim que puder.
- A que horas você se deita?
- Nunca antes das onze.
- Telefono antes de sair para trabalhar.
Kelly observou-o afastando-se. Quisera ter tido coragem para
perguntar a ele se não queria ficar na sua casa.
No que dizia respeito a Carl Bodansky, aquele dia fora
extraordinariamente produtivo. Muitos problemas pendentes, que o vinham
aborrecendo, tinham sido resolvidos. O maior de todos fora encontrar
mais um elemento para o turno da noite da limpeza. Naquele instante ele
pendurava no quadro grande a mais nova plaqueta com um nome: FRANK
AMENDOLA.
Recuando um pouco, Bodansky examinou-a criticamente. Não estava
legal. O nome de Frank Amendola ficara ligeiramente torto. Rapidamente,
entortou um pouco os minúsculos ganchos de metal que seguravam a
plaquinha e recuou de novo. Muito melhor.
Bateram discretamente na porta.
- Entre - exclamou. A porta abriu-se. Era sua secretária, Martha
Reton. Ela entrou e fechou a porta. Alguma coisa estava acontecendo aquele comportamento era estranho.
- Desculpe incomodar, Sr. Bodansky - disse ela.
- Tudo bem - afirmou Bodansky. - O que há de errado?
Bodansky era o tipo do indivíduo que via qualquer alteração na
rotina como uma ameaça.
- Está aí um homem que quer vê-lo.
- Quem é? - perguntou Bodansky. Um bocado de gente vinha vê-lo.
Era o departamento de pessoal. Por que Martha estaria fazendo aquele


drama?
- O nome dele é Horace Mannly - disse Martha. - É do FBI.
Um tremor imperceptível correu a espinha de Bodansky. O FBI,
pensou, alarmado. Passou em revista as várias pequenas transgressões que
cometera nos últimos meses. Tinha uma multa por estacionamento que
ignorara. E a dedução do fax na declaração do imposto de renda do ano
anterior, embora não a tivesse comprado para fins comerciais.
Ajeitou-se na cadeira atrás da escrivaninha, como se, parecendo
profissional, pudesse afastar as suspeitas do homem.
- Mande o Sr. Mannly entrar - disse, nervoso.
Martha desapareceu. Um instante depois, entrou um tipo obeso.
- Sr. Bodansky - disse o homem do FBI, aproximando-se lentamente
da mesa -, sou o agente Mannly.
Bodansky apertou a mão estendida por Mannly. Era pegajosa, e ele
conteve uma careta. O agente do FBI tinha uma papada enorme
cobrindo praticamente o nó da gravata. Olhos, nariz e boca pareciam
notavelmente pequenos na esfera grande e pálida do rosto.
- Sente-se - convidou Bodansky. Depois de ambos sentados,
perguntou: - E agora, o que posso fazer pelo senhor?
- Os computadores foram feitos para nos ajudar, mas às vezes só
servem para inventar trabalho - disse Mannly, com um suspiro. - Entende
o que quero dizer?
- Claro que sim - disse Bodansky, embora incerto se concordava.
Não estava, contudo, a fim de contradizer um agente do FBI.
- Um desses computadores que existem por aí acabou de cuspir o
nome de Frank Amendola - disse Mannly. - É verdade que esse cara está
trabalhando para você? E... incomoda-se se eu fumar?
- Sim. Não. Quero dizer, acabei de contratar um tal de Frank
Amendola. E não, não me incomodo se fumar.
Embora se sentisse aliviado por não ser ele próprio o objeto da
investigação, ficou desapontado ao saber que o FBI se interessava por
Frank Amendola. Devia ter visto logo que encontrar um voluntário para o
turno da noite era bom demais para ser verdade.
Horace Mannly acendeu um cigarro.
- Nosso escritório recebeu a informação de que você está
contratando esse Frank Amendola - explicou.
- Nós o contratamos hoje - disse Bodansky. - Ele é procurado?
- Bem, é procurado, sim, mas não há nada de criminoso. É a
mulher dele quem o procura, não o FBI. Uma questão doméstica. As vezes
ficamos envolvidos. Acontece. Depois do sumiço dele, a mulher fez um
grande espalhafato, escreveu para o deputado dela, para o Bureau, coisas
assim. Por isso, o número do seguro social dele ficou registrado como o
de uma pessoa desaparecida. Vocês soltam a papelada e o número dele toca
uma campainha no Bureau. Bingo. Diga-me, como esse cara está agindo?


Parece normal, ou o quê?
- Parecia um pouco nervoso - disse Bodansky, aliviado porque,
pelo menos, o sujeito não era perigoso. - Exceto por isso, agiu
normalmente. Pareceu-me inteligente. Falou em estudar direito.
Consideramos um bom candidato. Há algo que devamos fazer?
- Não sei - respondeu Mannly. - Suponho que não. Eu só tinha que
vir aqui e verificar. Ver se ele realmente reapareceu. Eu lhe digo: não
faça nada antes de ter notícias nossas. Certo?
- Teremos muito prazer em cooperar.
- Maravilha - disse Mannly. O rosto dele ficou vermelho com
o esforço para se levantar. - Obrigado pelo tempo que me concedeu. Ligo
assim que houver alguma novidade.
Horace Mannly saiu, mas a catinga do seu cigarro permaneceu no
ar. Bodansky tamborilou com os dedos na mesa, esperando que alguns
problemas na casa de Frank não fossem privá-lo de um provável bom
empregado.
Nem mesmo a visão da arruinada área próxima do Essex ou do próprio hotel
foram capazes de afetar o moral de Jeffrey enquanto ele subia os seis
degraus da frente. Talvez estivesse mesmo um tanto excitado, mas
finalmente tinha a sensação de que as coisas começavam a melhorar para o
seu lado. Pela primeira vez, em muito tempo, sentia-se como se estivesse
no controle dos acontecimentos, em vez de ser levado por eles.
No trajeto do táxi, quando viera do St. Joe, depois de falar com
Kelly, reavaliara a teoria do contaminante. Mais do que qualquer outra
coisa, o sintoma da paralisia tornava-o convicto de que havia algo de
errado com as ampolas lacradas de Marcaína.
Começou a atravessar o saguão, e abruptamente reduziu o ritmo
dos passos. O homem da recepção não estava olhando a TV. Recuara para um
depósito logo atrás da mesa de recepção, cuja porta sempre vira fechada,
e agora sacudia a cabeça, nervoso. Era como se estivesse com medo dele.
Dirigiu-se à escadaria e começou a subir para o quarto. Não
conseguia explicar o estranho comportamento do homem da recepção, que
sempre lhe parecera meio excêntrico, mas não tanto. Gostaria de saber o
que aquilo podia significar. Esperava que nada.
Quando chegou ao quinto andar, inclinou-se sobre a balaustrada e
olhou para baixo. O homem estava no térreo, a cabeça curvada para trás,
olhando para ele. Desapareceu tão logo notou que Jeffrey o surpreendera.
Então não era a sua imaginação, concluiu, cruzando a porta entre
as escadas e o corredor. O homem estava obviamente de olho nele, mas
Conservando-se a distância. Por quê?
Começou a percorrer o corredor, preocupado em encontrar uma
explicação para a atitude tão diferente do empregado do hotel. Aí
lembrou-se do seu disfarce. Claro! Devia ser isso. Talvez não o houVesse
reconhecido, imaginando portanto que fosse um estranho. E se decidisse


chamar a policia? Chegando diante da sua porta, pôs-se a procurar a
chave. Lembrou-se então que a pusera na bolsa a tiracolo. Abriu o ziper do
compartimento central, pensando que seria melhor mudar-se para outro
hotel. Com tantas coisas para se preocupar, não queria ficar pensando
num porteiro desconfiado.
Enfiou a chave na fechadura e destrancou a porta. Guardou-a
depois no mesmo lugar, para saber onde a procuraria quando saísse de
novo.
Já recomeçava a pensar na teoria do contaminante quando entrou.
Então ficou imóvel.
- Seja bem-vindo, doutor - disse Devlin. Estava estirado na
cama, balançando o revólver com ar descuidado. - Não tem idéia de quanto
eu andava ansioso para revê-lo desde que se mostrou tão rude comigo no
nosso último encontro.
Apoiou-se num cotovelo para erguer o tronco. Examinou Jeffrey.
- Você está bem diferente! Não sei se o teria reconhecido.
Devlin soltou uma risada escandalosa, que se transformou numa
tosse seca característica de fumante. Ele cuspiu no chão, do lado da
cama, e bateu no peito com o pulso. Pigarreou e disse, com voz rouca:
- Não fique parado aí. Venha sentar-se. Fique à vontade.
Com o mesmo tipo de reflexo que o levara a bater em Devlin com a
valise no aeroporto, Jeffrey pulou para fora do quarto. Ao fechar a
porta com um gesto brusco, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos. Quando
se apoiou no carpete surrado, uma explosão soou dentro do quarto. Logo
em seguida, estilhaços de madeira caíram em cima dele. A bala do 38 cano
curto de Devlin atravessara a porta fina e se alojara na parede em
frente.
Jeffrey levantou-se atabalhoadamente e correu na direção das
escadas. Não podia acreditar que tinham atirado nele. Sabia que era um
homem procurado, mas certamente não se enquadrava na categoria
vivo-ou-morto. Supôs que DevLin devia ser maluco.
Derrapando ao parar na escada, agarrou-se na maçaneta para
ajudar a mudança de direção. Nesse momento, ouviu a porta do seu quarto
bater. Usando o ombro arremeteu para a frente, no mesmo instante em que
soava outro tiro. A bala passou zunindo pela moldura da porta às suas
costas e foi estilhaçar uma vidraça no fim do corredor. Ouviu Devlin
rir. O homem estava se divertindo!
Atirou-se escada abaixo, usando o corrimão para manter o
equilíbrio. Seus pés só pisavam no chão a cada quatro ou cinco degraus.
A bolsa voava atrás dele, como uma pesada bandeira. Para onde ir? O que
fazer? Devlin não estava longe.
Ao vencer a última curva antes do primeiro andar, ouviu a porta
de cima abrir-se ruidosa e passos pesados ecoaram no poço da escada.


Atirou-se de encontro à porta e agarrou a maçaneta. Puxou, mas a porta
não abriu. Desvairado, puxou de novo. A porta permaneceu firme. Estava
trancada!
Olhando pela janelinha telada, viu o homem da recepção agachado.
Ás suas costas, percebia os passos de Devlin cada vez mais próximos. Ia
agarrá-lo em questão de segundos.
Freneticamente, gesticulou para o homem do hotel, indicando que
a porta estava trancada. O homem deu de ombros, fingindo não entender.
Jeffrey insistiu batendo na porta, sempre apontando na direção da
fechadura.
O barulho dos passos de Devlin cessou de repente. Vagarosamente,
Jeffrey virou-se. Devlin chegara no topo do último lance de degraus e de
lá olhava sua presa que não tinha como sair daquela armadilha.
Conservava a arma apontada para Jeffrey, que se perguntou se tudo não
estaria finalmente acabado. Se seria daquele modo que sua vida ia
findar. Mas Devlin não puxou o gatilho.
- Não me diga que a porta está fechada - lamentou ele, com falsa
comiseração. - Sinto muito, doutor.
Desceu os últimos degraus lentamente, conservando a arma
apontada para o rosto de Jeffrey.
- Engraçado - disse -, eu preferia que estivesse aberta. Teria
sido mais esportivo.
Parou diretamente sobre Jeffrey. Sorria, com óbvia satisfação.
- Vire-se! - ordenou.
Jeffrey virou-se, levantando as mãos, mesmo que não lhe tivessem
ordenado. Devlin empurrou-o rudemente de encontro à porta trancada e pôs
todo seu peso contra ele. Arrancou-lhe a bolsa, deixando que caísse no
chão. Não querendo correr risco dessa vez, puxou os braços de Jeffrey
para trás e algemou-o, revistando-o a seguir em busca de armas. Só então
fez Jeffrey virar-se e apanhou a bolsa.
- Se isto é o que penso que seja, você está prestes a tornar-me
um homem feliz - disse Devlin.
Abriu o zíper e enfiou a mão à procura do dinheiro. Sua boca,
que estava contraída, abriu-se de repente num largo sorriso. Triunfante,
puxou um maço de notas de cem, que logo enfiou de novo na bolsa. Não
queria que o homem do hotel visse o dinheiro e começasse a ter idéias.
Colocou a alça da bolsa no ombro e pôs-se a socar a porta. O homem do hotel correu para abri-la. Devlin agarrou Jeffrey pela nuca,
empurrando-o para o saguao.
- Não sabe que é uma violação das posturas municipais trancar
uma porta de escada? - disse ao empregado do hotel.
Gaguejando, o homem respondeu que não sabia.
- A ignorância da lei não serve como desculpa. Trate de tirar
essa fechadura ou o denunciarei à turma de fiscalização de prédios.


O homem acenou que sim com a cabeça. Esperara um agradecimento
qualquer por ter sido tão cooperativo. Mas Devlin o ignorou, atravessou
o saguão com seu prisioneiro e saiu.
Do lado de fora, fez Jeffrey atravessar a rua até seu carro,
estacionado junto ao hidrante. Os transeuntes ficaram olhando,
admirados. Abriu o lado do passageiro e empurrou Jeffrey. Depois bateu a
porta, trancou-a e começou a dar a volta em torno do carro.
Com uma presença de espírito que não esperaria ter naquelas
circunstâncias, Jeffrey inclinou-se para a frente no banco e conseguiu
enfiar a mão direita no bolso do paletó. Seus dedos encontraram
prontamente a seringa que ali pusera. Com a unha liberou a tampa da
agulha. Rapidamente tirou a seringa do bolso e recostou-se de novo no
banco.
Devlin escancarou a porta do outro lado, atirou a bolsa no banco
de trás, sentou-se e enfiou a chave de ignição. No instante em que a
virou para dar a partida, Jeffrey atirou-se contra ele, apoiando os pés
na porta para se equilibrar. Devlin foi apanhado de surpresa. Antes que
pudesse afastá-lo, Jeffrey enfiou a agulha no seu quadril direito e
comprimiu o êmbolo.
- Merda! - gritou Devlin, dando um tapa com as costas da mão na
cabeça de Jeffrey. A força do golpe deixou-o tonto.
Devlin ergueu o braço para procurar a causa da dor que sentia na
nádega direita.
- Puxa! - exclamou. - Vocês, médicos malucos, dão mais problemas
que um bando de assassinos.
Delicadamente, arrancou a agulha com uma careta, e jogou a
seringa no banco de trás.
Jeffrey recuperara-se do golpe o suficiente para tentar abrir a
porta do seu lado, mas não conseguiu fazê-lo por causa das mãos
algemadas. Estava procurando levantar o pino da porta com os dentes,
quando Devlin o agarrou novamente pela nuca e o sacudiu como uma boneca
de trapo.
- Que diabo você injetou em mim? - rosnou. Jeffrey perdeu
o fôlego. - Responda! - gritou Devlin, sacudindo-o de novo. Jeffrey só
conseguiu grunhir, os olhos começando a ficar esbugalhados. Devlin o
largou e recuou o braço para bater de novo. - Responda!
- Não vai lhe fazer mal - foi tudo o que Jeffrey conseguiu
dizer, arquejante. - Não vai lhe fazer mal.
Tentou erguer o ombro para se defender do soco que viu se
aproximar mas que não chegou a ser dado.
Com o braço em posição de ataque, os olhos de Devlin perderam o
foco e ele começou a oscilar. Sua expressão mudou de raiva para
aturdimentO. Agarrou o volante para se apoiar, mas não teve forças. Caiu
de lado, na direção de Jeffrey.


Tentou falar, mas não conseguiu.
- Não vai lhe fazer mal - repetiu Jeffrey. - É só uma pequena
dose de succinilcolina. Você se sentirá bem em poucos minutos. Não entre
em pânico.
Empurrou DevLin para pô-lo sentado e conseguiu enfiar uma mão no
bolso direito do homem. Nada da chave das algemas. Dando um jeito para
fazê-lo escorregar de lado, examinou, com esforço, os outros bolsos.
Nada da chave.
Já ia desistir, quando percebeu uma chave pequena pendurada na
argola ao lado da chave de ignição. Deu um pouco de trabalho, mas
conseguiu segurá-la pondo-se de pé e se abaixando, de frente para o
banco do passageiro. Após algumas tentativas, introduziu-a na fechadura
e se livrou das algemas.
Debruçando-se sobre o banco de trás, apanhou a bolsa. Antes de
sair, examinou Devlin. Estava quase totalmente paralisado. A respiração
era lenta, mas firme. Se a dose fosse bem maior, até mesmo o diafragma
seria afetado e o brutamontes sufocaria em questão de minutos.
Sempre anestesista, Jeffrey esforçou-se para colocar Devlin de
um jeito que não comprometesse sua circulação enquanto permanecesse
deitado. Só então saiu do carro.
Dirigiu-se para o hotel. O homem da recepção não estava à vista.
Fez uma pausa. Por um momento avaliou o que fazer com seus pertences.
Decidiu ser arriscado demais tentar recolhê-los. O homem poderia estar
discando para a policia naquele exato momento. Além disso, o que tinha a
perder? Sentia muito ficar sem as anotações de Chris Everson. E se Kelly
pretendesse guardá-las? Mas ela dissera que queria mesmo livrar-se de
todo aquele material.
Girou nos calcanhares e fugiu em direção ao centro da cidade.
Queria perder-se no meio da multidão. Sentindo-se mais seguro, teria uma
chance para pensar. E quanto mais longe de Devlin estivesse, tanto
melhor. Ainda não podia acreditar que conseguira injetar-lhe o
anestésico. Se Devlin ficara furioso por causa do episódio no aeroporto,
ficaria duplamente furioso agora. Só esperava não esbarrar nele de novo
antes de ter uma chance de provar sua inocência.
Quando Trent teve a primeira oportunidade de voltar ao Suprimento Geral,
já ia bem adiantado o turno da noite. Trabalhara num caso de aneurisma,
particularmente demorado. Na hora de largar o trabalho, não havia
ninguém para substitui-lo. Gostasse ou não, viu-se forçado a fazer umas
horas extras. Acontecia de vez em quando. Não costumava aborrecê-lo, mas
nessa ocasião em particular achou a situação inconveniente.
Sentira-se tenso, antecipando o que estava por ocorrer, desde
que chegara ao hospital, pela manhã. Cada vez que a enfermeira auxiliar
retornava ao Centro Cirúrgico, esperava pela noticia de que houvera uma
terrível complicação de anestesia. Mas nada acontecera. O dia fora


totalmente rotineiro.
Na hora do almoço, na lanchonete, encheu-se de falsas esperanças
quando uma das enfermeiras que cuidava dos casos da Obstetrícia disse:
- Ei, vocês souberam o que aconteceu na sala Oito?
Conseguindo a atenção de todos, ela os regalou com uma história
de como as calças de um dos residentes da Cirurgia tinham
misteriosamente se desatado durante uma operação, escorregado até os
joelhos dele. Todo mundo caiu na risada. Menos Trent.
Ele parou do lado de fora do Suprimento Geral. Tinha ido ao seu
armário e estava com a ampola boa de Marcaína novamente escondida na
sunga. Havia muita gente entrando e saindo das várias salas de cirurgia,
mas a confusão da mudança de turno terminara.
Não se sentia satisfeito com aquela situação. Era arriscado
entrar agora, porque não estava de serviço. Se alguém o visse e
questionasse sua presença, pouco teria a dizer em sua defesa. Mas não
tinha escolha. Não podia deixar a ampola adulterada. Fazia questão de
estar sempre por perto quando uma de suas ampolas era usada, de modo que
na confusão que se seguia tinha como remover o frasco vazio de cena, ou
pelo menos jogar fora o que restasse do seu conteúdo. Não podia se
arriscar a que alguém examinasse a Marcaína para ver se havia algo
errado com ela.
Deu uma volta rápida pelo Suprimento Geral antes de ir até o
armário que continha os anestésicos locais. Até agora, tudo bem. Com um
último olhar furtivo para ver se não havia ninguém por ali, levantou a
tampa da caixa de Marcaína e inspecionou o interior. Havia duas ampolas
ainda. Uma fora usada numa hora qualquer, naquele dia.
Identificou facilmente a ampola adulterada e trocou-a depressa
pela boa. Em seguida fechou a tampa e empurrou a caixa de volta para a
posição original. Quando se voltou para retornar ao vestiário,
deteve-se. Assustado, viu diante de si uma enfermeira alta e loura. Ela
parecia tão espantada quanto ele. Estava com as mãos nos quadris e os
pés bem afastados.
Trent sentiu que seu rosto ficava vermelho, enquanto procurava
uma razão plausível para estar ali. Esperava que a ampola adulterada na
sua sunga não estivesse evidente.
- Posso ajudá-lo? - perguntou a enfermeira. Pelo seu tom de voz,
Trent podia adivinhar que a última coisa que ela queria era ajudar.
- Não, obrigado - disse ele. - Eu já estava saindo.
Finalmente ele conseguiu imaginar algo:
- Vim devolver um pouco de soro que não usamos no caso do
aneurisma da sala cinco.
A enfermeira balançou a cabeça afirmativamente, mas pareceu não
se convencer. Erguendo os olhos, pôs-se a espiar por cima do ombro de
Trent.


Leu o nome escrito no crachá dela. Gail Shaffer.
- O aneurisma demorou sete horas - disse Trent, tentando puxar
conversa.
- Eu soube - retrucou Gail. - Você já não devia estar fora
daqui?
- Ora, se devia - respondeu Trent, recuperando o autodomínio.
Rolou os olhos para cima. - Foi um dia comprido. Puxa, estou ansioso por
umas cervejas. Espero que as coisas corram calmas para você esta noite.
Cuide-se.
Trent passou pela enfermeira e saiu andando pelo corredor na
direção do centro cirúrgico. Depois de uns vinte passos, olhou para
trás. Gail Shaffer ainda estava na porta do Suprimento Geral,
observando-o. Droga, pensou. Parecia estar desconfiada. Acenou. Ela
retribuiu o aceno.
Trent empurrou as portas de vaivém que levavam à sala de
estar.
De onde diabo Gail Shaffer aparecera tão subitamente? Sentiu
raiva
de si mesmo por não ter sido mais cuidadoso. Até então, nunca
fora apanhado no depósito.
Antes de ir para o vestiário, parou no quadro de avisos da sala
de estar. Entre as notícias e programações, encontrou o nome de Gail
Shaffer integrando a lista do time de softball do hospital. O número do
telefone de todos os jogadores estava no quadro. Encontrou um pedaço de
papel e copiou o telefone de Gail. Pelos primeiros três dígitos,
concluiu que devia ser uma estação central de Back Bay.
Que chateação, pensou ao entrar no vestiário para trocar de
roupa. Enfiou a ampola de novo no bolso do jaleco branco de hospital.
Ao dirigir-se para os elevadores e depois para casa, percebeu
que teria de fazer algo acerca de Gail Shaffer. Na sua posição não podia
ignorar a existência de pontas soltas.
***
Capítulo 7.
QUARTA-FEIRA, 17 DE MAIO DE 1989, 16:37.
Devlin sempre detestara hospitais. Desde quando era garoto, em
Dorchester, Massachusetts, tinha medo deles. Sua mãe se aproveitava do
seu medo para ameaçá-lo: se não fizer isto ou aquilo, eu o levo ao
hospital e o doutor vai dar uma injeção em você. Devlin odiava injeções.
Eis o motivo pelo qual agora queria pegar Jeffrey Rhodes, quer Michael
Mosconi lhe pagasse ou não. Bem, isso não era exatamente a verdade. Ele
estremeceu. Pensar em Jeffrey lembrou-o do terror que sentira. Durante
toda sua provação, permanecera consciente e a par de tudo que estava
acontecendo. Sentira como se a força da gravidade de repente houvesse


aumentado mil vezes, tornando-o completamente paralisado, incapaz até de
falar. Podia respirar, mas com grande esforço e concentração. O terror
de estar prestes a sufocar não o largara um único segundo.
O idiota do porteiro do Essex Hotel só aparecera depois de
Jeffrey ter sumido há muito tempo. Batera repetidamente no vidro,
gritando com Devlin, perguntando-lhe se estava bem. O imbecil levara dez
minutos para abrir a maldita porta. E depois de perguntar como se sentia
mais de dez vezes, teve a bendita idéia de voltar ao hotel e chamar uma
ambulância.
Quando Devlin chegara ao hospital, quarenta minutos haviam
deCorrido. Para grande alívio dele, a paralisia sumira. A sensação de
grande peso desaparecera durante a viagem de ambulância. Mas, com pavor
de que ele pudesse voltar, permitira que o levassem em cadeira de rodas
até a emergência para ser examinado, sempre cheio do medo que tinha por
hospitais.
Na emergência foi ignorado, exceto pela rápida visita de um
policial em uniforme, chamado Hank Stanley. Devlin o conhecia vagamente;
ele apareceu para investigar: um dos motoristas da ambulância vira a
arma de Devlin. É claro que, depois de Stanley o reconhecer, não houve
mais problemas. A arma de Devlin estava devidamente registrada e
licenciada.
Finalmente, Devlin foi examinado por um médico que mal parecia
ter idade suficiente para tirar carteira de motorista. Era um tal Dr.
Tardoff, cuja pele era lisa como bumbum de bebê. Devlin perguntou-se se
o rapazinho já teria começado a fazer a barba. Contou o que havia
acontecido ao médico, que o examinou e desapareceu sem dizer uma
palavra, deixando-o sozinho num dos cubículos do setor de emergência.
Devlin passou as pernas para um dos lados da mesa de exame e
ficou de pé. Suas roupas estavam empilhadas numa cadeira.
- Que se dane tudo! - resmungou consigo mesmo. Tinha a impressão
de que já estava esperando há horas. Tirando a camisola do hospital,
vestiu-se rapidamente e calçou as botas. Dirigindo-se à mesa principal
da recepção, perguntou pelo seu revólver. Insistiram que o deixasse ali.
O Dr. Tardoff ainda não terminou com você - disse a enfermeira.
Era uma mulher enorme, quase do tamanho de Devlin, e parecia tão durona
quanto ele.
- Acho que vou morrer de velhice antes dele voltar - disse
Devlin.
Nesse exato momento, o Dr. Tardoff apareceu. Vinha de um dos
quartos de exame, arrancando as luvas de borracha. Viu Devlin e
aproximou-se.
- Desculpe tê-lo feito esperar - disse. - Tive que dar uns
pontos num corte. Falei com um anestesista sobre o seu caso e ele disse
que injetaram em você uma droga paralisante.


Devlin ergueu ambas as mãos e esfregou os olhos, enquanto
respirava fundo. Sua paciência se esgotara.
- Não vim até aqui para me dizerem algo que eu já sabia reclamou. - Foi para isso que me fez esperar?
- Concluímos que foi succinilcolina - esclareceu o Dr. Tardoff,
ignorando o comentário de Devlin.
- Eu já lhe informei isso - disse Devlin. Lembrava-se das palavras de Jeffrey. Não conseguira pronunciar direito o nome da droga ao
repetir para o Dr. Tardoff, mas chegara bem perto.
- É uma droga usada em anestesia - continuou o médico, sem se
dar por achado. - Algo como o que os índios do Amazonas usam em suas
flechas envenenadas, embora fisiologicamente envolva um mecanismo de
ação diferente. - Ora, ora, que grande informação - disse Devlin,
sarcástico. - Agora me esclareça algo mais prático, como, por exemplo,
se devo me preocupar com a volta da paralisia numa hora inconveniente...
quando eu estiver atrás do volante do meu carro, digamos, a mais de cem
por hora.
- De jeito nenhum - respondeu o Dr. Tardoff. - O seu organismo
já metabolizou totalmente a droga. Para repetir o efeito, outra dose
teria que ser injetada.
- Então isso não me interessa mais - disse Devlin, virando-se
para a enfermeira. - Que tal devolver minha arma agora?
Teve que assinar uns papéis antes de lhe entregarem a arma. Fora
guardada num envelope de papel pardo, estando os cartuchos em outro.
Devlin fez questão de se exibir ao carregá-la ali mesmo, colocando-a
depois no coldre. Levou o indicador à testa, numa espécie de
continencia, e saiu. Ufa, que satisfação em ver-se fora dali.
Tomou um táxi de volta ao Essex Hotel. Seu carro ainda estava
estacionado junto ao hidrante. Antes de apanhá-lo, entrou no hotel,
pisando duro.
O homem da recepção mostrou-se nervoso e aparentemente
preocupado em saber como se sentia.
- Bem, mas não devo nada a você - respondeu. - Por que levou
tanto tempo para chamar a ambulância? Eu podia ter morrido ali mesmo!
- Pensei que você poderia estar dormindo - desculpou-se o homem
da recepção, num fio de voz.
Devlin ignorou aquela tolice. Se fosse levar a sério,
provavelmente ia estrangular o idiota. Como se fosse possível alguém
cair no sono logo depois de prender um fugitivo e algemá-lo sob a mira
de uma arma. Que absurdo!
- O Sr. Bard voltou ao quarto depois que lhe dei a impressão de
cair no sono? - perguntou Devlin.
O homem sacudiu a cabeça.
- Quero a chave do 5F - exigiu Devlin. - Você não esteve lá


dentro, esteve?
- Não, senhor - respondeu o outro, entregando a chave.
Devlin subiu devagar a escada até o quarto de Jeffrey. Agora não
havia mais pressa. Deu uma olhada no buraco da bala e admirou-se de não
ter acertado no médico. O tiro furara a porta bem no meio, cerca de um
metro e meio do chão. Devia ter atingido alguma coisa e detido Jeffrey,
nem que fosse só pelo medo.
Ao abrir a porta, a experiência lhe disse que o homem da
recepção mentira. O cara tinha vasculhado o quarto, procurando objetos
de valor. Uma vista d'olhos no banheiro revelava que o patife recolhera
a maior parte dos produtos de toalete do médico. Pegou umas folhas de
papel com anotações na mesinha-de-cabeceira. No alto, o nome de
Christopher Everson estava impresso. Gostaria de saber quem seria esse
tal Christopher Everson.
Depois da sua rápida fuga, Jeffrey vagara pelo centro da cidade de
Boston, desviando-se de todos os policiais que via. Parecia-lhe que todo
mundo estava de olho nele. Entrou na loja Filene's e meteu-se no
subsolo. Multidões faziam com que se sentisse mais seguro. Fingiu
folhear os livros um tempo suficiente para se acalmar e imaginar o que
fazer depois.
Ficou na loja quase uma hora, até perceber que o pessoal da
segurança o observava desconfiado, como se houvesse razões para pensar
que era um descuidista.
Quando saiu da Filene's, subiu a Winter Street, até a área em
torno da estação do Park Street. Era hora do rush, e Jeffrey sentiu
inveja das pessoas que se apressavam para voltar a suas casas. Quisera
ter uma casa para se abrigar. Parou perto de uma fileira de telefones e
ficou acompanhando com o olhar o desfile das pessoas. Mas quando
apareceu uma dupla de policiais montados, vindo na contramão pela
Tremont Street, decidiu sair dali. Por um momento, sentiu-se tentado a
descer para a estação junto com aquela gente e pegar um trem da Linha
Verde para Brookline. Mas no último minuto desistiu - para que iria
fazer uma coisa dessas?
O que desejava era ir diretamente à casa de Kelly. A lembrança
do seu aconchego tentava-O, assim como a idéia de tomar uma xícara de
chá com ela. Se ao menos as coisas não estivessem tão inseguras. Mas era
um criminoso condenado, um fugitivo, sabia disso. Agora considerava-se
um daqueles homens sem teto que vagavam à toa pela cidade. A única
diferença era que carregava uma bela soma em dinheiro na bolsa a
tiracolo.
Por mais que quisesse procurar a casa de Kelly, relutava em
atraí-la para o seu turbilhão de problemas, especialmente agora que
tinha em sua pista um caçador de recompensas ensandecido e carregando
uma arma. Não queria pôr em risco a segurança de Kelly. Não podia levar


um monstro como Devlin até a sua porta. Estremeceu ao recordar o
estrondo daquela arma.
Mas para onde poderia ir? Não iria Devlin revistar todos os
hotéis da cidade? E o seu disfarce de nada serviria, agora que Devlin já
o tinha visto. Pelo que supunha, já devia haver uma nova ordem de prisão
contra ele.
Foi caminhando até a esquina das ruas Beacon e Charles. Virou na
Charles. A pouca distância havia uma mercearia apinhada de gente, a
Deluca's. Entrou e comprou umas frutas. Pouco tinha comido naquele dia.
Mastigando uma maçã, Jeffrey continuou pela Charles, vagando sem
destino certo. Passaram diversos táxis e ele os seguiu com os olhos,
enquanto seu cérebro arquitetava uma explicação para o aparecimento de
Devlin. Devia ter sido o motorista do táxi que o levara do aeroporto até
o Essex. Reconstituindo o que acontecera, teve de admitir que agira de
modo bastante estranho. Provavelmente o homem o denunciara à polícia.
Mas se o motorista o denunciara à policia, por que não viera a
polícia atrás dele, em vez de Devlin? Jeffrey recomeçou a caminhar. Mas
não abandonou o fio das suas idéias. Finalmente deduziu que Devlin
visitara as companhias de táxi por conta própria. A conclusão indicava
que Devlin era uma presença mais que assustadora. Tratava-se de um
perseguidor determinado, e nesse caso tinha de ser muito mais cuidadoso.
Estava aprendendo que, para ser um fugitivo bem-sucedido, era preciso
bastante esforço e sabedoria.
Chegando no Charles Circle, onde o metrô emergia de Beacon Hill
e atravessava a ponte Longfellow ele parou, indeciso. Podia virar à
direita na Cambridge Street, e seguir direto para o centro da cidade.
Mas não lhe pareceu uma boa idéia, pois agora passara a associar o
centro com a presença de Devlin. Semicerrando os olhos por causa do sol,
viu a ponte de pedestres que ligava a Storrow Avenue à margem do rio
Charles. Pareceu-lhe um destino tão bom quanto qualquer outro.
Chegando lá, Jeffrey passou a caminhar pelo que antes fora um
lugar elegante, como evidenciava a balaustrada e os degraus de granito.
Agora estava tudo abandonado. O rio era belo mas sujo, e dele emanava o
mau cheiro característico do lodo. Havia uma profusão de barquinhos a
vela pontilhando sua superfície cintilante.
Chegando na esplanada diante do palco da concha acústica - a
Hatch Shell - onde a Boston Pops dava concertos de graça no verão,
Jeffrey sentou-se num dos bancos debaixo de um renque de carvalhos. Não
estava sozinho. Inúmeras pessoas corriam, passeavam, jogavam Frisbee e
até mesmo andavam de patins, cada uma entregue à sua atividade naquele
labirinto de aléias e gramados.
Embora ainda restassem algumas horas de luz, de repente o sol
pareceu perder a força. O céu ficou nublado, dando a impressão de que o
tempo ia mudar. Uma lufada de vento trouxe o ar fresco que pairava sobre


a superfície do rio. Jeffrey estremeceu e procurou se proteger, cruzando
os braços.
Tinha que estar no Memorial às onze, para trabalhar. Até lá, não
havia nenhum outro lugar para onde pudesse ir. Pensou novamente em
Kelly. Lembrava-se bem de como se sentira à vontade na casa dela. Há
muito tempo não confiava em ninguém, há muito tempo ninguém se dispunha
a ouvi-lo.
Pensou novamente em ir até Brookline. Ela não o encorajara a
manter contato? Não queria limpar o nome de Chris? Afinal de contas,
também tinha interesses em jogo. Jeffrey não precisou de mais nada para
se convencer. Necessitava mesmo de ajuda e Kelly parecia disposta a
ajudá-lo. Afirmara isso. Claro que fora antes dos últimos
acontecimentos. Seria totalmente sincero e lhe contaria tudo o que
acontecera, inclusive sobre os tiros. E Kelly teria uma nova chance de
escolher. Podia entender muito bem se ela não quisesse mais se envolver,
estando Devlin de novo em cena. Mas, pelo menos, devia perguntar-lhe.
Racionalizou, dizendo a si próprio que Kelly era uma pessoa adulta e
capaz de decidir se estava disposta ou não a assumir um risco.
Concluiu que o melhor modo de ir até a casa dela seria tomando o
metrô na estação da Charles Street. E saiu apressando o passo, já se
imaginando a seu lado no sofá forrado de riscadinho, com as pernas sobre
a mesinha de centro, ouvindo sua risada cristalina.
Carol Rhodes acabava de voltar do escritório. Tivera um dia trabalhoso
mas produtivo. Terminara de transferir a maior parte dos clientes aos
colegas no banco, antecipando a transferência para a filial de Los
Angeles. Depois de vê-la adiada por tanto tempo, começara até a duvidar
que chegaria a ser real. Agora, porém, estava confiante de que dentro de
pouco tempo estaria no ensolarado sul da Califórnia.
Abriu a porta da geladeira, avaliando o que tinha para o jantar.
Viu a vitela que preparara para Jeffrey. Grande agradecimento recebera
pelo seu trabalho. E havia muita verdura para preparar uma salada. Antes
de iniciar os preparativos do jantar, deu uma olhada na secretária
eletrônica. Não havia recados. Estivera sem notícias de Jeffrey o dia
todo. Não conseguia imaginar onde diabo ele se encontraria e o que
pretendia fazer. Naquele mesmo dia Carol descobrira que o marido levara
o dinheiro correspondente ao aumento no valor da hipoteca. Quarenta e
cinco mil dólares, O que estaria planejando? Se tivesse adivinhado que
ele ia se comportar com tanta irresponsabilidade, jamais assinaria a
nova hipoteca. Ele que aguardasse o resultado da apelação na cadeia.
Agora só lhe interessava o divórcio, Já não saberia dizer o que a havia
atraído naquele homem.
Conhecera Jeffrey pouco depois de chegar a Boston para cursar a
Harvard Business School. Viera da Costa Oeste, onde estudara em
Stanford. Provavelmente se sentira atraída por estar tão-só.


Hospedara-se numa pensão em Allston e não tinha um único amigo quando se
conheceram. Nunca, nem remotamente, planejara permanecer em Boston, tão
provinciana comparada com L. A. Para ela, as pessoas da cidade eram tão
frias quanto o clima.
Bem, tudo isso ia ficar para trás em mais uma semana. Trataria
com Jeffrey através do seu advogado e se atiraria de corpo e alma ao
novo trabalho.
Nesse momento a campainha tocou. Carol deu uma olhada no
relógio. Eram quase sete horas. Quem poderia ser? Por força do hábito,
deu uma espiada pelo olho mágico antes de atender. Ao ver quem era,
recuou.
- Meu marido não está em casa, Sr. O'Shea - exclamou, sem abrir
a porta. - Não tenho idéia de onde esteja e não espero por ele.
- Eu gostaria de lhe falar dois minutos, Sra. Rhodes.
- Sobre o quê? - perguntou Carol. Não estava disposta a discutir
coisa alguma com aquele homem nojento.
- É um pouco difícil conversar com a porta fechada - respondeu
Devlin. - Só vou tomar-lhe um momentinho.
Carol pensou em chamar a polícia. Mas o que iria alegar? E como
explicaria a ausência de Jeffrey? Pelo que sabia, aquele tipo chamado
O'Shea podia estar perfeitamente dentro dos seus direitos. Afinal,
Jeffrey não pagara o que devia a Mosconi. Tomara ele não estivesse se
metendo em encrenca ainda pior.
- Só quero fazer umas perguntas sobre o paradeiro do seu marido
- insistiu Devlin, quando tudo indicava que Carol não ia responder. Vou lhe dizer uma coisa. Se eu não o encontrar, Mosconi vai
entregar o caso a uns tipos realmente ruins. Seu marido poderá se
machucar. Mas se eu o encontrar primeiro, talvez possamos resolver tudo
antes dele perder a fiança.
Carol não imaginara que Jeffrey estivesse correndo o perigo de
perder o dinheiro da fiança. Talvez fosse melhor receber aquele sujeito.
Além da chave e de um trinco, a porta da frente tinha uma
corrente que Carol e Jeffrey nunca usavam. Ela colocou a extremidade da
corrente no trilho, liberou o trinco e abriu a porta. Com a corrente, a
porta só abria uns cinco centímetros.
Ia repetir a Devlin que não tinha idéia de onde Jeffrey se
encontrava, mas as palavras não chegaram a ser pronunciadas. Antes que
soubesse o que estava acontecendo, a porta se escancarou totalmente;
houve um barulho de madeira estilhaçada e um pedaço do batente ficou
pendurado na corrente.
A primeira reação de Carol foi correr, mas Devlin agarrou-a pelo
braço e a deteve. Ele sorriu, chegou mesmo a rir.
- Você não pode invadir a minha casa! - gritou Carol. Esperava
soar autoritária, embora estivesse apavorada. Tentou libertar o braço,


inutilmente.
- É mesmo? - perguntou Devlin, fingindo-se surpreso. - Mas
parece que já invadi. Além disso, esta casa é também do doutor, e estou
curioso para saber se aquele demônio voltou às escondidas depois de me
espetar o rabo com uma flecha envenenada. Devo lhe dizer que estou
ficando um pouco cansado do seu marido.
Carol ficou tentada a dizer que ele não era o único, mas se
conteve e repetiu:
- Ele não está.
- Ah, é? - indagou Devlin. - Muito bem, vamos dar uma olhada,
nós dois.
- Quero que você saia daqui! - gritou Carol, tentando resistir,
mas sem resultado. Devlin agarrou seu braço com força e foi arrastando-a
de cômodo em cômodo, procurando algum sinal de que Jeffrey tivesse
estado em casa.
Carol continuou tentando se libertar. Antes de subirem a escada,
Devlin deu-lhe uma sacudidela.
- Trate de se acalmar! - gritou. - Se ainda não sabia, fique
sabendo que ocultar ou favorecer um criminoso foragido e sob fiança é
crime. Se o doutor estiver em casa, será melhor para você que eu o
encontre, e não a polícia.
- Ele não está - afirmou Carol. - Não sei onde se esconde e,
francamente, não me importo!
- Ah! - fez Devlin, surpreso com o último comentário. Afrouxou a
mão que a segurava.
Carol aproveitou-se da genuína surpresa de Devlin para livrar o
braço. Sem perder um segundo, deu-lhe uma bofetada na cara.
Devlin ficou atônito por um momento. Mas logo deu uma risada ao
agarrá-la de novo pelo pulso.
- Você é mesmo uma coisinha agressiva! Exatamente como o seu
marido. Tentarei acreditar no que diz! Mas agora queira ter a gentileza
de me mostrar a casa lá em cima.
Carol gritou de medo quando Devlin a puxou rapidamente pelas
escadas. Ele se deslocava tão depressa que ela não conseguiu
acompanhá-lo e tropeçou várias vezes, machucando as canelas.
Deram um breve giro no segundo andar. Observando o dormitório,
que estava desarrumado, com roupas sujas amontoadas por toda parte, e o
closet, com o chão tomado por sapatos num verdadeiro caos, Devlin
comentou:
- Você não é lá grande coisa como dona-de-casa, hem?
Ao entrar no quarto Carol ficou apavorada, pois ignorava quais
seriam as verdadeiras intenções de Devlin. Tinha que imaginar alguma
saída antes que aquele porco caísse em cima dela.
Mas Devlin, claramente, não estava interessado em Carol.


Arrastou-a pela escada que levava ao sótão e depois desceu os lanços que
iam dar no porão. Ficou evidente que Jeffrey não estava nem estivera em
casa. Finalmente levou Carol para a cozinha e inspecionou a geladeira.
- Bem, você estava dizendo a verdade. Vou soltá-la, mas espero
que se comporte. Entendeu?
Carol fulminou-o com um olhar.
- Sra. Rhodes, perguntei-lhe se entendeu!
Carol fez que sim, balançando a cabeça.
Devlin soltou-lhe o pulso.
- Bem - disse -, creio que vou ficar por aqui, para o caso do
doutor telefonar ou vier buscar roupa limpa.
- Quero que você se retire - disse Carol, furiosa. - Se não for
embora, chamarei a polícia.
- Não pode chamar a polícia - disse Devlin despreocupado, como
se soubesse de algo que Carol ignorava.
- Por que não? - perguntou ela, indignada.
- Porque não vou deixar - respondeu Devlin. Depois riu, e sua
risada rouca terminou num acesso de tosse. Quando conseguiu se
controlar, acrescentou: - Odeio dizer isso, mas a polícia não está muito
preocupada com Jeffrey Rhodes neste momento. Ademais, sou eu quem está
trabalhando pela lei e pela ordem. Jeffrey perdeu seus direitos quando
foi condenado.
- Jeffrey foi condenado - argumentou Carol - mas eu não.
- Mero tecnicismo - frisou Devlin, agitando a mão. - Vamos falar
de algo mais importante. O que há para o jantar?
Jeffrey tomou o ônibus para Cleveland Circle e depois caminhou pela
Chestnut Hill Avenue antes de seguir pelo caminho sinuoso que o levaria
à casa de Kelly, percorrendo graciosas ruas tipicamente suburbanas. As
luzes começavam a ser acesas nas cozinhas, cães latiam, as crianças
brincavam nos gramados. O tipo do bairro ideal, com peruas Ford Taurus
paradas diante de portas de garagens recém-pintadas. O sol já estava
baixo no horizonte. Era quase noite.
Uma vez que decidira ir à casa de Kelly, tinha pressa em chegar
lá. Contudo, à medida que se aproximava da rua, sentiu a indecisão
retornar. Decidir nunca representara para ele um problema. Resolvera
estudar medicina ainda ao começar o ginásio. Quando se tratou de comprar
uma casa, simplesmente entrara pela porta dianteira daquela em
Marblehead e dissera: "É esta." Nunca se sentira tão genuinamente
dividido. Quando finalmente resolveu ir até lá e tocar a campainha,
quase desejou não encontrá-la em casa.
- Jeffrey! - exclamou Kelly ao abrir a porta. - Este é o meu dia
de surpresas. Entre!
Ele entrou e percebeu logo como se sentia aliviado pelo fato de
Kelly estar em casa.


- Dê-me a sua jaqueta - disse ela. Ajudou-o a tirá-la e
perguntou o que acontecera aos óculos.
Jeffrey levou a mão ao rosto. Só agora sabia que os tinha
perdido. Imaginou que fora ao sair correndo do quarto do hotel.
- Estou satisfeita por vê-lo, pode crer. Mas o que você veio
fazer aqui?
Ela liderou o caminho até a sala.
- Havia uma pessoa à minha espera quando voltei ao hotel - disse
ele, seguindo-a.
- Oh, meu Deus. Conte-me tudo.
Mais uma vez, Jeffrey forneceu todos os detalhes a Kelly. Contou
sobre o episódio com Devlin no Essex, incluindo os tiros e a injeção de
anestésico. A despeito do seu assombro, Kelly teve que rir.
- Só um anestesista pensaria em injetar succinilcolina num
caçador de recompensas.
- Não há nada de engraçado em tudo isso - disse Jeffrey,
entristecido. - O problema é que agora as apostas são mais altas, assim
como os riscos. Especialmente se Devlin me achar de novo. Foi com grande
dificuldade que decidi vir até aqui. Acho que você devia reconsiderar
sua oferta de ajuda.
- Tolice - disse Kelly. - Na verdade, depois que você saiu do
hospital, hoje, tive vontade de dar um chute em mim mesma por não tê-lo
convidado a ficar aqui.
Jeffrey examinou o rosto dela. Viu uma sinceridade evidente. Ela
estava mesmo preocupada.
- Esse tal de Devlin atirou em mim - repetiu. - Duas vezes.
Balas de verdade. - E rindo, como se estivesse a se divertir numa
caçada. - Só quero me certificar se você de fato sabe o grau de perigo
que existe neste caso.
Ela o encarou.
- Sei perfeitamente - disse. - E sei também que tenho um quarto
de hóspedes e que você está precisando de um lugar para dormir. Na
verdade, ficarei ofendida se não aceitar minha oferta. Estamos
combinados?
- Estamos - concordou Jeffrey, a muito custo contendo um
sorriso.
- Ótimo. Agora que isso está acertado, vamos arranjar algo para
você comer. Aposto como não comeu nada o dia inteiro.
- Não é inteiramente verdade - disse Jeffrey. - Comi uma maçã e
uma banana.
- Que tal um espaguete? - perguntou Kelly. - Posso aprontar em
meia hora.
- Espaguete seria perfeito.
Kelly foi para a cozinha. Em poucos minutos estava dourando numa


velha frigideira pedacinhos de cebola e alho.
- Não voltei mais ao meu quarto no Essex depois de fugir do
Devlin.
Ele estava debruçado sobre as costas do sofá, observando as
atividades dela na cozinha.
- Bem, eu não esperaria que você tivesse voltado - afirmou
Kelly, apanhando carne moída na geladeira.
- Só falei nisso porque receio ter perdido as anotações de
Chris, aquelas que lhe pedi emprestado.
- Não tem problema. Eu lhe avisei que ia jogá-las fora de
qualquer maneira. Você me poupou o trabalho.
- Mesmo assim, sinto muito.
Kelly começou a abrir uma lata de tomates italianas sem pele com
um aparelho elétrico. Mais alto que o ruído do motor, ela disse:
- A propósito, esqueci de lhe contar. Falei com Charlotte
Henning no Valley Hospital. Ela me disse que compram a Marcaína de uma
firma chamada Ridgeway Pharmaceuticals.
O queixo de Jeffrey caiu.
- Ridgeway?
- Isto mesmo - confirmou Kelly, jogando a carne em cima do alho
e da cebola. - Ela me disse que o fornecedor é o mesmo desde que o nome
"Marcaína" passou a ser de uso comum.
Jeffrey sentou-se direito no sofá, o olhar perdido na janela que
dava para o jardim agora às escuras. Ficou atônito. A idéia de que o
anestésico dos dois hospitais provinha do mesmo fabricante era essencial
para aquela teoria do contaminante. Se as Marcaínas usadas nos casos
Noble e Owen viessem de fornecedores diferentes, não haveria como alegar
que pertenciam a um mesmo lote contaminado.
Inconsciente do efeito da informação que dera, Kelly acrescentou
os tomates e extrato de tomate à carne temperada com cebola e alho.
Salpicou um pouco de orégano, mexeu, e baixou o gás para deixar que a
mistura cozinhasse. Em seguida, apanhou uma panela grande, encheu-a de
água e pôs para ferver.
Jeffrey veio colocar-se a seu lado, junto do balcão da cozinha.
Kelly sentiu que algo estava errado.
- O que há? - perguntou.
Jeffrey suspirou.
- Se o Valley usa Marcaína Ridgeway, a idéia do contaminante
fica totalmente arruinada. A Marcaína vem em recipientes de vidro
selados, e qualquer contaminante só poderia ser introduzido durante a
fabricação.
Kelly enxugou as mãos numa toalha.
- O contaminante não poderia ser acrescentado mais tarde?
- Duvido.


- E depois do frasco ser aberto?
- Não - disse Jeffrey, com segurança. - Eu mesmo abro os frascos
que uso e extraio a droga imediatamente. Estou certo de que Chris agiria
da mesma forma.
- Bem, tem que haver algum modo - disse Kelly. - Não desista
logo. Provavelmente foi o que Chris fez.
- Para introduzir um contaminante numa daquelas ampolas seria
preciso penetrar no vidro lacrado - disse Jeffrey, quase com raiva. Não pode ser feito. Em cápsulas, sim, mas não em ampolas de vidro.
Contudo, no próprio momento em que disse isso, começou a se
questionar. Lembrou-se do laboratório de química na faculdade, onde
tivera que moldar pipetas usando um bico de Bunsen e hastes de vidro. O
vidro, ao fogo, ficava com uma consistência viscosa quando ia
derretendo.
- Você tem alguma seringa em casa? - perguntou.
- Ainda tenho a maleta de Chris. Talvez contenha uma seringa.
Quer que apanhe?
Jeffrey fez que sim. Foi até o fogão e acendeu um queimador da
frente, ao lado de onde se encontrava o molho do espaguete. A chama
devia fornecer calor suficiente. Quando Kelly retornou com a maleta de
Chris, retirou algumas seringas e duas ampolas de bicarbonato.
Aqueceu a ponta da seringa até o metal ficar rubro. Tirando-a do
fogo, tentou rapidamente perfurar o vidro. Não penetrou
satisfatoriamente. Depois tentou de novo aquecendo o vidro e usando uma
agulha fria, mas também não funcionou. Quando experimentou aquecer tanto
o vidro quanto a agulha, esta perfurou o vidro com facilidade.
Jeffrey retirou a agulha de dentro da ampola e examinou o vidro.
A superfície antes lisa estava deformada, com um pequeno furo no lugar
onde a agulha fora inserida. Recolocando a ampola de novo no fogo, o
vidro voltou a ficar maleável, mas quando quis rodá-lo, o vidro ficou
mais distorcido ainda e ele só conseguiu se queimar e estragar a
extremidade da ampola.
- O que você acha? - perguntou Kelly, esforçando-se para ver por
cima do ombro dele.
- Acho que você está certa - respondeu Jeffrey, novamente
esperançoso. - É possível, embora não seja muito fácil. Certamente
estraguei tudo com esta ampola. Mas parece que pode ser feito. Uma chama
mais quente talvez ajude, ou uma que possa ser mais bem dirigida.
Kelly apanhou um pedaço de gelo e o embrulhou num pano de
enxugar pratos para aliviar o dedo queimado.
- Em que tipo de contaminante está pensando? - perguntou.
- Não sei ao certo - admitiu Jeffrey -, mas suponho que um tipo
qualquer de toxina. Seja lá o que for, teria que produzir efeito
numa concentração muito baixa. Acrescente-se a isto o que Chris relatou,


e teria que danificar as células nervosas sem prejudicar o fígado ou os
rins, o que elimina uma porção de venenos comuns. Talvez eu saiba mais
quando puser as mãos na autópsia de Patty Owen. Estou muito interessado
na parte de toxicologia. Eu a li rapidamente em ambos os julgamentos e
me lembro que era negativa, exceto por traços de Marcaína. Mas nunca
examinei detidamente. Não parecia importante na ocasião.
Kelly jogou na panela a massa com a água fervendo, e voltou-se
para Jeffrey.
- Se a toxina foi adicionada deste modo - e ela apontou para a
ampola e a seringa que Jeffrey colocara em cima do balcão -, significa
que alguém está adulterando a Marcaína de propósito, envenenando
deliberadamente.
- Assassinando.
- Meu Deus! - exclamou Kelly. Aos poucos, começava a perceber
todo o horror que havia naquilo. - Por quê? - perguntou, com um
calafrio. - Por que alguém faria uma coisa dessas?
Jeffrey deu de ombros.
- É uma pergunta que não sei responder. Não seria a primeira vez
que alguém adultera um medicamento ou o usa de propósito para o mal.
Quem pode dizer qual é o motivo? O assassino do Tilenol. Aquele Doutor X
de Nova Jersey, o tal que matou pacientes com overdoses de
succinilcolina.
- E agora isto - disse Kelly, visivelmente abalada. A idéia de
uma criatura louca esgueirando-se silenciosamente pelos corredores dos
hospitais de Boston para espalhar a morte era muito difícil de aceitar.
- Se você acredita que isto pode ser verdade - perguntou ela -, não acha
que deveríamos procurar a polícia?
- Quem me dera pudéssemos fazê-lo - respondeu Jeffrey. - Mas não
podemos, por duas razões. Primeiro, porque sou um criminoso condenado e
fugitivo. Mas mesmo que não fosse, é preciso reconhecer que não temos a
menor prova. Se alguém for à polícia com esta história, duvido muito que
façam alguma coisa. Precisamos de algum tipo de evidência antes de
procurar as autoridades.
- Mas é necessário deter essa pessoa!
- Concordo - ouviu Jeffrey. - Antes que haja mais mortes e mais
médicos condenados.
As palavras que Kelly pronunciou a seguir foram ditas tão baixo
que Jeffrey mal pôde ouvi-las.
- E antes que haja mais suicídios. - Os olhos dela encheram-se
de lágrimas.
Para controlar suas emoções, Kelly virou-se para a panela. Pegou
um fio de espaguete e atirou-o na porta do armário de louça. Ficou
agarrado. Enxugando os olhos, ela disse:
- Vamos comer.


- Ligo para você assim que tudo terminar - disse Karen Hodges à
sua mãe. Estava ao telefone há quase uma hora e começava a se sentir um
pouco irritada. Era como se a mãe estivesse tentando consolá-la, e não o
contrário.
- Tem certeza de que o médico é bom? - perguntou a Sra. Hodges.
Karen rolou os olhos para cima, voltada para a amiga com quem
morava, Marcia Ginsburg, que sorriu com ar de compreensão. Marcia sabia
exatamente o dissabor que Karen estava passando. Os telefonemas da mãe
dela eram igualmente irritantes. Constantemente alertava a filha sobre
homens, Aids, drogas e excesso de peso.
- Ele é ótimo, mãe - disse Karen, sem se dar ao trabalho de
ocultar sua exasperação.
- Conte-me de novo como foi que o conheceu - pediu a Sra.
Hodges.
- Mamãe... eu já contei isso um milhão de vezes.
- Está bem, está bem - cedeu a Sra. Hodges. - Não deixe de me
telefonar assim que puder, está ouvindo?
Sabia que a filha se aborrecia, mas não podia deixar de se
sentir preocupada. Sugerira ao marido que tomassem um avião para Boston
a fim de estarem com Karen quando ela fosse fazer a laparoscopia, mas o
Sr. Hodges alegara que não podia deixar o escritório. Além disso, ele
explicou, uma laparoscopia era apenas um procedimento destinado a ajudar
um diagnóstico, e não uma "operação de verdade".
- É de verdade, se quem está envolvida é minha filhinha replicara a Sra. Hodges. Mas, afinal, ela e o marido permaneceram em
Chicago.
- Telefonarei logo que puder - prometeu Karen.
- A que tipo de anestesia você será submetida? - perguntou a
Sra. Hodges, para ganhar tempo. Não queria desligar. - Peridural. Soletre. Karen soletrou.
- Não é o que usam para partos?
- Usam. E também para laparoscopias, quando não sabem ao certo
quanto tempo vai durar. O médico ignora o que vai encontrar. Pode ser
que demore, e ele não me quer inconsciente. Vamos, mamãe, você já passou
por isto com a Cheryl.
Cheryl, a irmã mais velha de Karen, também tivera um problema de
endometrite.
- Você não vai fazer um aborto, vai?
- Mamãe, tenho que sair - disse Karen. A última pergunta fora a
gota d'água. Agora estava furiosa. Depois de toda aquela conversa, a mãe
pensava que ela estivera mentindo. Ridículo.
- Telefone! - conseguiu acrescentar a Sra. Hodges antes de Karen
desligar.
Karen voltou-se para Marcia. As duas mulheres se encararam por


um momento e caíram na risada.
- Mães! - exclamou Karen.
- Uma espécie única - disse Marcia.
- Ela não parece acreditar que já tenho vinte e três anos e que
daqui a mais três me formo na Faculdade de Direito - disse Karen. - Só
quero saber se depois de me formar ela vai continuar me tratando do
mesmo jeito.
- Sem dúvida nenhuma - antecipou Marcia.
Karen formara-se no Simmons College no ano anterior e agora
trabalhava como secretária para um advogado especializado em divórcios,
um tipo agressivo e bem-sucedido chamado Gerald McLellan. McLellan
tornara-se mais um mentor do que um chefe. Reconhecendo sua
inteligência, insistira para que estudasse advocacia. Estava previsto
que começaria o curso no Boston College no outono seguinte.
Embora Karen fosse um exemplo de boa saúde, sofria de
endometrite desde a puberdade. No decorrer do último ano, o problema se
agravara. Seu médico finalmente marcara uma laparoscopia a fim de
decidir sobre o tratamento.
- Não faz idéia de como me sinto feliz por ser você quem vai
comigo amanhã, e não minha mãe - disse Karen. - Ela me deixa louca.
- Será um prazer - disse Marcia, que conseguira tirar um dia de
folga no seu trabalho, no Banco de Boston, para acompanhar Karen ao
hospital e trazê-la de volta para casa, a menos que ela tivesse de
pernoitar lá, coisa que o médico de Karen achava pouco provável.
- Estou um pouco preocupada - admitiu Karen. Exceto por uma
visita à sala de emergência quando tinha dez anos e caíra da bicicleta,
nunca estivera num hospital.
- Será fácil - assegurou Marcia. - Também fiquei preocupada com
a minha apendicetomia e acabou não sendo nada. Palavra.
- Nunca tomei anestesia. E se não funcionar e eu sentir dor? Você nunca tomou anestesia no dentista?
Karen sacudiu a cabeça.
- Nunca. Jamais tive uma cárie.
Trent Harding removeu os copos do armário junto da geladeira e
retirou o fundo falso. Apanhou a pistola .45 e sopesou-a na mão. Tinha
verdadeiro amor pela arma. Da última vez que a limpara, restou uma leve
mancha de óleo no cano. Pegou uma toalha de papel e esfregou-a,
amorosamente.
Metendo a mão de novo no esconderijo, tirou o pente carregado de
balas. Segurando a arma com a mão esquerda, inseriu o pente na parte
inferior do cabo. Em seguida empurrou-o até se encaixar na posição com
um clique. Aquilo lhe deu uma sensação de prazer sensual.
Levantando a arma de novo, sentiu que estava diferente, agora
que a carregara. Empunhando-a como fazia Crockett, no seriado Miami


Vice, apontou para o pôster de uma Harley-Davidson pregado na parede da
sala. Por um segundo debateu consigo mesmo se conseguiria disparar um
tiro sem chamar a atenção dos vizinhos. Decidiu que não valia a pena
correr o risco. Uma .45 fazia um barulho dos infernos. Não queria que
acabassem chamando os tiras.
Deixou a arma em cima da mesa e voltou ao esconderijo. Enfiou a
mão e tirou o pequeno frasco com o líquido amarelo. Sacudiu-o e
examinou-o de encontro à luz. Trent achava absolutamente impossível
imaginar como extraíam aquele líquido da pele de sapos. Comprara de um
colombiano vendedor de drogas em Miami. O negócio era ótimo. Era
exatamente tudo o que o sujeito prometera.
Com uma seringa de cinco ml, Trent extraiu uma quantidade
minúscula do fluido, diluindo-o em água esterilizada. Naquelas
circunstâncias, não tinha idéia de quanto deveria usar. Não tinha
experiência que lhe servisse de base para o que estava planejando agora.
Guardou cuidadosamente o frasco no esconderijo, depois recolocou
o compensado e os copos. Tapou a agulha da seringa cheia da toxina
diluída, enfiando no bolso. Depois ajeitou a pistola no coldre e sentiu
o frio do cano nas costas, logo abaixo da cintura.
Indo até o armário da frente, pegou a jaqueta Levi's de zuarte e
vestiu-a. Depois observou no espelho do banheiro para certificar-se de
que a pistola não poderia ser vista. Graças ao corte da jaqueta, não
fazia volume.
Detestava perder sua vaga em Beacon Hill, sabendo que seria um
inferno arranjar outra quando voltasse, mas quais eram as opções? Ia até
o St. Joc's num quarto do tempo que levava ao usar o sistema de
transporte público. Esta era outra coisa que o aborrecia em relação aos
médicos. Estacionavam no hospital durante o dia. Enfermeiros não podiam
fazer isso, a menos que fossem supervisores ou trabalhassem no turno da
tarde ou da noite.
Deixou o carro numa área destinada ao público, mas escolheu uma
vaga próxima ao estacionamento dos empregados. Trancou o veículo e
encaminhou-se calmamente para o hospital. Uma das voluntárias
perguntou-lhe se queria alguma coisa, mas ele disse que não, que estava
tudo bem. Pegou um Globe na lojinha hospitalar e parou num canto. Era
cedo, mas não queria correr riscos. Fazia questão de estar ali quando
Gail Shaffer saísse do trabalho.
Devlin arrotou. As vezes a cerveja provocava isso. Deu uma espiada em
Carol, que lhe devolveu um olhar de nojo. Estava sentada diante dele,
folheando uma revista mas virando as páginas com raiva. Claro que se
sentia irritada.
Ele voltou a atenção para o jogo dos Red Sox, que considerava
relaxante. Se estivessem ganhando, ficaria nervoso, com medo de uma
virada. Mas acalmou-se ao ver que tinham seis pontos menos que o outro


time. Era bastante óbvio que iam perder mais um jogo.
Decerto comera bem. As costeletas frias de vitela e a salada lhe
tinham agradado muito. Da mesma forma as quatro cervejas. Nunca ouvira
falar da marca Kronenbourg antes de visitar a casa dos Rhodes. Não era
má, embora ainda continuasse preferindo a Bud.
O doutor não aparecera nem telefonara. Devlin tinha conseguido
ganhar uma refeição decente, mas fora preciso tolerar Carol. Após uma
tarde com ela, podia ver por que o bom doutor preferira não voltar para
casa.
Devlin deixou-se escorregar um pouco mais no confortável sofá
que ficava em frente à TV. Tirara as botas e descansara os pés numa das
cadeiras da cozinha, de espaldar reto. Suspirou. Era muito melhor que
ficar vigiando no carro, mesmo que os Sox estivessem perdendo.
Pestanejou. Por um segundo sentiu que começava a cochilar.
Carol não podia acreditar que ia passar assim uma de suas
últimas noites em Boston: entretendo um bandido interessado no paradeiro de
Jeffrey. Se nunca mais visse seu futuro ex-marido, seria uma bênção dos
céus. Ou talvez fosse bom encontrá-lo ainda uma vez, só para dizer o que
pensava dele.
Carol ficara observando Devlin com o canto do olho. Por um
momento teve a impressão de que ele havia adormecido. Mas o homem logo
se levantou para pegar mais uma cerveja. Em seguida voltara à mesma
posição, quase na horizontal, os olhos praticamente fechados.
Finalmente, durante um comercial, a cabeça de Devlin caiu sobre
o peito. A garrafa que ele segurava tombou, derramando um pouco de
cerveja no chão acarpetado. Sua respiração tornou-se estertorosa. Caíra
em sono profundo.
Carol ficou onde estava, com medo de, ao virar uma página,
despertar Devlin. De repente ouviu-se um rumor vindo do aparelho de
tevê, quando um dos craques realizou uma bela jogada. Carol estremeceu,
receando que o barulho ia acordar Devlin, mas ele limitou-se a roncar
mais alto.
Bem devagar, ela se levantou e ficou de pé, parada. Colocou a
revista em cima da televisão.
Respirando fundo, passou na ponta dos pés por Devlin, atravessou
a cozinha e subiu a escada. Assim que entrou no quarto, fechou e trancou
a porta, e apanhou o telefone. Sem hesitação, discou 911 e disse à
telefonista que tinha um intruso dentro de casa e que precisava da
polícia imediatamente. Com toda a calma, deu o endereço. Se Jeffrey
podia resolver os problemas dele a seu modo, ela também podia fazer o
mesmo. A telefonista garantiu que o socorro estava a caminho.
Depois foi ao banheiro. Por medida de segurança, trancou a
porta. Abaixou o tampo do vaso e sentou-se para esperar. Em menos de dez


minutos a campainha da frente tocou. Só então ela saiu do banheiro,
atravessou o quarto e procurou ouvir o que se passava lá embaixo. Ouviu
a porta da frente ser aberta e, em seguida, o murmúrio de algumas vozes.
Abrindo a porta do quarto, Carol moveu-se até o patamar superior
da escada. Dali podia acompanhar muito bem a conversa, e, para sua
surpresa, ouviu risadas! Começou a descer a escada. No foyer, junto da
porta, dois policiais uniformizados riam por algum motivo e davam
palmadas nas costas de Devlin, como se fossem os melhores dos amigos.
- Com licença! - exclamou ela, bem alto, quando chegou no ultimo
degrau.
Os três olharam.
- Carol, querida - disse Devlin -, parece que houve um engano.
Alguém ligou para a polícia, queixando-se de um intruso.
- Eu chamei a polícia - disse Carol. Apontou para Devlin. - Ele
é o intruso.
- Eu? - exclamou Devlin com surpresa exagerada. Voltou-se para
os dois policiais. - Temos agora um caso para os seus registros. Eu
estava no living, dormindo em frente a uma TV. Como posso ser um
intruso? Aliás, a Carol acabou de me servir um grande jantar. Ela me
convidou...
- Eu nunca o convidei! - berrou Carol.
- Se vocês forem até a cozinha, verão os pratos sujos do nosso
jantar romântico. Acho que, de certa forma, fui uma decepção, dormindo
do jeito que dormi.
Os dois policiais não conseguiram conter um sorriso.
- Ele me forçou a preparar o jantar - exclamou Carol. Devlin
pareceu verdadeiramente magoado.
Com indignação evidente, Carol atravessou o foyer e agarrou a
corrente com o batente da porta pendendo. Sacudiu-o na direção dos
policiais.
- Isto aqui parece ser prova de que convidei esse porco para
entrar?
- Não tenho idéia de como foi que aquilo quebrou - disse Devlin.
- Certamente não tenho nada a ver com isso. - Rolou os olhos para cima,
voltando para os dois policiais. - Mas Harold, Willy, se a senhora quer
que eu me vá, eu vou. Bastava ela me pedir para sair. Odeio ficar onde
não sou desejado.
- Willy, por que não leva o Sr. O'Shea lá fora por um momento? disse o mais velho dos dois policiais. - Quero ter uma palavrinha com a
Sra. Rhodes.
Devlin teve que voltar à sala para pegar as botas. Depois de se
calçar, ele e Willy saíram e se postaram ao lado do carro da polícia.
- Mulheres - resmungou Devlin, inclinando a cabeça na direção da
casa dos Rhodes. - Sempre dão problema, sempre se queixam de alguma


coisa!
- Puxa, ela está uma fera! - disse Harold, saindo da casa e
juntando-se aos outros. - Devlin, que diabo você fez para irritá-la
tanto?
Devlin deu de ombros.
- Talvez tenha magoado seus sentimentos. Como ia saber que
ela ia levar tão a sério o fato de eu cair no sono? Só quero encontrar o
marido, de preferência antes que a fiança seja confiscada.
- Bem, consegui acalmá-la - afirmou Harold. - Mas por favor,
seja prudente e não quebre mais nada.
- Prudente? Com os diabos. Prudente é o meu nome do meio
- disse Devlin, com uma risada. - Desculpem por ter causado esse
incômodo a vocês.
Harold perguntou a Devlin se sabia notícias de um dos outros
policiais que haviam sido expulsos da corporação devido ao escândalo do
suborno. Devlin respondeu que, a última vez que soubera dele, tinha se
mudado para a Flórida e estava trabalhando na região de Miami como
detetive particular.
Com uma rodada final de apertos de mão, eles entraram nos
respectivos carros e foram embora. Chegando no West Shore Drive, os
tiras viraram à esquerda e Devlin à direita. Mas Devlin não rodou muito.
Deu uma volta e em pouco tempo passava de novo diante da casa dos
Rhodes. Estacionou onde podia ficar em observação. Como Jeffrey não
aparecera nem telefonara, ele, contrariado, teria que contratar
novamente o cara que vinha seguindo Carol.
Contudo, depois daquela tarde, não estava tão confiante de que
através de Carol, chegaria a Jeffrey. O comentário de Mosconi, dizendo
que os dois não eram um casal de pombinhos apaixonados, combinado com o
comportamento de Carol e comentários que ouvira aqui e ali, fizeram
Devlin concluir que talvez devesse ter outra idéia para localizar
Jeffrey. Mas uma coisa ia tornar tudo mais fácil: conseguira grampear o
telefone de Carol enquanto ela preparava o jantar. Se o doutor
telefonasse, ele saberia.
Dando uma olhada no quarto de hóspedes de Kelly, Jeffrey decidiu deixar
a bolsa embaixo da cama. Achou que estaria tão segura quanto em qualquer
outro lugar. Era melhor não falar no dinheiro com Kelly para não
aumentar suas preocupações.
Ao sair do aposento de hóspedes, encontrou-a no seu quarto,
recostada na cabeceira da cama, lendo um romance. A porta estava
entreaberta, como se estivesse esperando por ele para se despedir quando
fosse sair. Vestia um pijama de algodão cor-de-rosa com uma estamparia
miúda verde-escura. Enrodilhados em cima da cama, havia dois gatOs, um
siamês e um vira-lata amarelo, malhado. - Muito bem, aí está um quadro
de perfeita domesticidade - comentou Jeffrey. Deu uma espiada no quarto.


Era maravilhosamente feminino, com papel de parede francês em estilo campestre e cortinas
combinando. Era fácil ver o cuidado que ela tivera com todos os
detalhes. Não havia roupas expostas e Jeffrey não pôde deixar de
comparar a cena com o caótico covil de Carol.
- Eu quase fui até o seu quarto para ver se você estava acordado
- disse ela. - Acho que vamos sentir a falta um do outro pela manhã.
Tenho que sair mais ou menos às seis e quarenta e cinco. Vou deixar a
chave da porta na luminária da entrada de automóveis.
- Você não reconsiderou sua decisão sobre eu ficar aqui?
Kelly fez uma expressão de irônica contrariedade.
- Achei que já tínhamos decidido isto. Definitivamente, quero
que fique. Minha impressão foi de que estávamos nisto juntos.
Especialmente agora, com esse tarado por aí.
Jeffrey entrou no quarto e aproximou-se da cama. O siamês ergueu
a cabeça e bufou.
- Vamos, Sansão, não seja ciumento - reclamou Kelly. E para
Jeffrey: - Ele já não está acostumado com um homem em casa.
- Onde andavam esses bichinhos? - perguntou Jeffrey. - Por que
não os vi antes?
- Este é o Sansão - disse Kelly, apontando para o siamês. Passa na rua um bocado de tempo, assustando a vizinhança. E esta é a
Dalila. Está grávida, como pode ver. Dorme o dia inteiro na copa.
- São casados? - perguntou Jeffrey.
Kelly riu, no seu jeito característico. Jeffrey sorriu. Não
achava sua piadinha tão engraçada, mas a alegria de Kelly era
contagiosa.
Ele pigarreou.
- Kelly - começou -, não sei como lhe dizer, mas você não tem
idéia do quanto aprecio sua compreensão e hospitalidade. Jamais poderei
agradecer-lhe o bastante.
Kelly baixou os olhos para Dalila e acariciou-a amorosamente.
Jeffrey achou que ela estava corando, mas era difícil ter certeza com
aquela iluminação sutil.
- Só queria que você soubesse - acrescentou ele. E, em seguida,
para mudar de assunto: - Bem, creio que conversarei com você amanhã,
quando for possível.
- Tenha cuidado! - recomendou Kelly. - E boa sorte. Se esbarrar
com algum problema, me telefone. A qualquer hora.
- Não haverá problema - assegurou ele, confiante. Contudo, meia
hora mais tarde, ao subir os degraus do Boston Memorial, já não estava
tão seguro. A despeito da confiança que conquistara na ocasiãO
do seu giro pelo hospital com Martínez, preocupava-se novamente com a
idéia de esbarrar numa pessoa que o conhecesse bem. Gostaria de não ter


perdido os óculos e fazia votos que não fossem vitais para o seu
disfarce.
De algum modo, sentiu-se mais confiante depois de vestir o
uniforme. Encontrou inclusive um envelope pendurado do lado de fora do
armário com um crachá e uma identidade com foto.
Um tapa no ombro fê-lo pular de susto, e o seu movimento brusco
assustou a pessoa que quisera chamar sua atenção.
- Calma, homem, por que está nervoso?
- Sinto muito - desculpou-se Jeffrey. Diante dele estava um
sujeito baixo, com cerca de 1,65 m, rosto estreito e moreno. - Acho que
estou mesmo um pouco nervoso. É a minha primeira noite no trabalho.
- Não precisa se assustar - disse o homem. - Meu nome é David
Arnold. Sou o supervisor. Nas primeiras duas noites trabalharemos
juntos. Portanto, não se preocupe. Vou lhe mostrar os segredos da
profissão.
- Prazer em conhecê-lo - cumprimentou Jeffrey. - Mas acontece
que já adquiri bastante experiência em outros hospitais, de modo que, se
lhe convier que me vire sozinho, tudo bem.
- Sempre acompanho um novato nos dois primeiros dias - explicou
David. - Não é nada pessoal. Assim tenho uma chance de mostrar a ele
exatamente o que deve fazer, dentro da nossa rotina no Memorial.
JeffreY achou melhor não discutir. David o levou até uma sala de
estar estreita e sem janelas, modestamente mobiliada com uma mesa de
fórmica, uma máquina de vender refrigerantes e uma cafeteira elétrica.
Apresentou-o aos colegas do turno da noite. Dois deles só falavam
espanhol. Outro se expressava na gíria das ruas, enquanto se balançava e
sacudia com a música que escutava através de um par de fones de ouvido.
Faltando um minuto para as onze, David arregimentou seus homens:
- Tudo bem, vamos andando - disse, o que fez Jeffrey se lembrar
da partida de uma patrulha em filmes de guerra. Saíram da saleta e
pegaram os carrinhos de limpeza. Cada um era responsável pelo suprimento
do seu carrinho. Jeffrey seguiu a orientação dos demais, verificando se
o material de limpeza estava completo. Os carrinhos eram duas vezes
maiores que um daqueles de shopPing. Numa ponta ficavam acomodadas
peças
de cabo comprido, como esfregões, espanador de teto e vassouras. Na outra havia um grande
saco plástico para o lixo. A parte central tinha três prateleiras, com
todo tipo de utilidades: limpador de vidros, de cerâmica, de fórmica,
toalhas de papel e rolos de papel higiênico sobressalentes. E mais
sabões, ceras, polidores e até lubrificante WD-40.
Jeffrey e David seguiram para os elevadores da torre oeste. A
escolha era ao mesmo tempo adequada e enervante. A torre oeste incluía
as salas de cirurgia e os laboratórios. Por mais que quisesse investigar


aquele setor, continuava apreensivo pensando em quem poderia encontrar.
- você e eu vamos começar na arca das salas de operação explicou David, aumentando os receios de Jeffrey. - Já vestiu um traje
próprio para entrar em salas de cirurgia?
- Algumas vezes - respondeu Jeffrey, meio perturbado.
Assim que pusesse um daqueles trajes, estaria perdendo a maior
parte do seu disfarce. Gostaria de estar com os óculos de armação preta.
Contudo, achou que poderia usar constantemente uma máscara cirúrgica.
David talvez estranhasse, porque em geral a máscara só era usada na sala
de cirurgia quando uma operação estava em andamento. Jeffrey decidiu
dizer que estava resfriado.
Mas não entraram imediatamente na área das salas de operação.
David explicou a Jeffrey que a ante-sala da cirurgia e os vestiários
tinham de ser atacados em primeiro lugar.
- Por que não limpa a sala de estar, enquanto eu começo nos
vestiários? - sugeriu David. Jeffrey fez que sim. Deu uma olhada e
recuou a cabeça rapidamente. Duas enfermeiras anestesistas estavam
sentadas no sofá, tomando café. Jeffrey conhecia ambas.
- Algo errado? - indagou David.
- Não, nada - apressou-se a responder Jeffrey.
- Você vai se sair bem - encorajou-o David. - Não se preocupe.
Primeiro o pó. Não se esqueça dos cantos perto do teto. Depois use um
limpador para as mesas. A seguir é a vez do esfregão. OK?
Jeffrey balançou a cabeça afirmativamente.
David empurrou seu carrinho para dentro do vestiário e fechou a
porta.
Jeffrey engoliu em seco. Tinha que começar. Pegando o espanador
de cabo longo no carrinho, entrou na sala. A princípio tentou manter o
rosto afastado das duas mulheres. Mas elas não lhe deram a menor
atenção. Seu uniforme de faxineiro era como um manto a torná-lo
invisível.
***
Capítulo 8.
QUARTA-FEIRA,, 17 DE MAIO DE 1989, 23:23.
Com a mochila no ombro, Gail Shaffer saltou do elevador ao lado de
Regina Puksar. Percorreram juntas o corredor central, na direção da
entrada principal. As duas se conheciam há quase cinco anos.
Freqüentemente discutiam seus problemas pessoais, embora não se vissem
muito fora do hospital. Gail contara a Regina sobre sua briga com o
rapaz que namorava há dois anos.
- Concordo com você - disse Regina. - Se Robert de repente me
avisasse que queria sair também com outra pessoa, eu diria concordo, mas
saiba que entre nós está tudo terminado. Um relacionamento não pode


andar para trás. Ou evolui ou morre. Pelo menos esta tem sido a minha
experiência.
- A minha também - suspirou Gail.
Nenhuma das duas notou quando Trent dobrou o jornal e se
levantou. Ao passarem pela porta giratória, ele estava bem atrás delas.
Podia até ouvir a conversa.
Sabendo que as mulheres se dirigiam para a área de
estacionamento dos empregados, Trent deixou-as avançar um pouco, mas sem
perdê-las de vista. As duas pararam perto de um Pontiac Fiero vermelho,
tipo esporte, e conversaram por mais alguns minutos. Finalmente se
despediram. Gail entrou no carro e Regina prosseguiu um pouco mais, até
sua vaga.
Trent entrou no Corvette. Não era o melhor carro para seguir alguém, sendo tão extravagante, mas naquela situação não fazia mal. Não
havia motivo para Gail desconfiar.
O carro de Gail também era espalhafatoso, e por isso fácil de
seguir. Ela partiu direto para Back Bay, exatamente como Trent deduzira
pelo seu número de telefone. Parou em fila dupla na Boylston Street e
desapareceu na Loja-24.
Trent parou do outro lado da rua, pois a Boylston era de mão
única, e estacionou numa área destinada a táxis. Dali podia facilmente
ficar de olho na loja e no carro de Gail. Ao vê-la voltar com um
embrulho e entrar novamente no Pontiac, esperou que partisse e foi
atrás.
Gail virou à esquerda na Berkeley e reduziu a velocidade. Trent
pôde perceber que ela procurava uma vaga, coisa nada fácil àquela hora.
Deixou a distância que os separava aumentar. Finalmente Gail encontrou
uma vaga na Marlborough Street, mas levou um tempo enorme para
estacionar.
- Prostituta incompetente - murmurou Trent, observando a
terceira tentativa de dar ré e parar junto ao meio-fio. Ele estacionara
numa área proibida. Pouco se importava. Se fosse multado, azar. Aquilo
era um negócio; qualquer despesa decorrente, seria uma despesa legitima.
Só não queria era ter o carro rebocado, mas por experiência sabia que
eram poucas as chances de isso acontecer.
Finalmente Gail conseguiu estacionar, para satisfação dela, e,
valha a verdade, também de Trent. Mesmo assim, o carro ficou a uns bons
quarenta centímetros distante do meio-fio. Embrulho na mão, ela saltou,
trancou as portas e afastou-se. Trent continuou alerta, mas permaneceu
afastado, do outro lado da rua. Gail virou à esquerda na Berkeley e em
seguida à direita na Beacon. Algumas portas adiante, na Beacon, entrou
num dos edifícios com fachada de arenito.
Depois de esperar uns minutos, Trent também entrou e examinou os
nomes de interfone. Encontrou "G. Shaffer" ao lado de "A. Winthrop".


- Maldição - murmurou. Supusera que Gail morasse sozinha. Nada
me sai fácil, pensou. Ainda fervendo de raiva, voltou para a rua. Não
podia ir invadindo o apartamento de Gail se ela morava com outra pessoa.
Não queria testemunhas. De jeito nenhum.
Trent deu uma olhada na Beacon Street, na direção de Boston
Garden. Viu que estava perto do bar que se tornara famoso com a série da
TV Cheers. Foi quando um plano começou a tomar forma na sua cabeça.
Talvez conseguisse fazer Gail, ou a pessoa que morava com ela, sair do
apartamento.
Deixando o prédio, percorreu a curta distância até Hampshire
House. Ali usou um telefone público e ligou para Gail, cujo número
copiara do quadro de avisos da ante-sala da Cirurgia. Enquanto o
telefone tocava, imaginou várias desculpas. Tudo dependia de quem
atendesse.
- Alô - disse a voz do outro lado da linha. Era Gail.
- Sra. Winthrop, por favor - disse Trent.
- Sinto muito, ela não está.
Trent animou-se. Talvez aquilo acabasse sendo fácil, afinal.
- Por favor, pode me dizer quando chega?
- Quem está falando?
- Um amigo da família - respondeu Trent. - Estou na cidade a
negócios e me deram o número dela para dizer alô.
- Ela trabalha no turno da noite do hospital St. Joseph - disse
Gail. - Quer o número de lá? Tente falar com ela. Se prefere ligar de
novo para cá, ela deve estar de volta pelas sete e meia da manhã.
Trent fingiu anotar o telefone do St. Joseph, agradeceu e
desligou. Não pôde conter um sorriso.
Deixando Hampshire House, voltou correndo para o prédio de Gail.
Agora só precisava entrar no apartamento dela. No vestíbulo calçou um
par de luvas pretas. Em seguida tocou a campainha do apartamento.
Num minuto a voz de Gail soou no alto-falante coberto por uma
tela.
- Gail, é você? - ele perguntou, embora estivesse certo de que
era ela.
- Sim. Quem é?
- Duncan Wagner - respondeu Trent. Foi o primeiro nome que lhe
veio à cabeça. Os Wagners moravam perto dos Hardings na base do exército
em San Antonio. Duncan era um pouco mais velho que Trent, e os dois
tinham brincado juntos até o pai dele achar que Trent era má companhia.
- Eu conheço você? - perguntou Gail.
- De vista, e talvez de nome - respondeu Trent. - Trabalho à
noite na pediatria. - Achou que trabalhar com crianças despertava mais
confiança.
- No terceiro andar?


- Isso mesmo - disse Trent. - Espero não estar perturbando. O
fato é que um grupo do hospital veio ao Bull Finch Pub. Falaram no seu
nome. Alguém disse que você morava perto. Tiramos a sorte para ver quem
vinha chamá-la para se reunir a nós. Bem, acontece que eu ganhei.
- É muita gentileza sua - disse Gail -, mas cheguei em casa
agora. Acabei de sair do trabalho.
- Nós também. Mas venha. Você conhece todo mundo.
- Quem mais está lá?
- Regina Puksar, por exemplo - respondeu Trent.
- Ainda há pouco me despedi dela. Disse que ia à casa do
namorado.
- Ora, certamente ela mudou de idéia. Ou talvez o namorado não
estivesse em casa. Seja como for, agora está conosco. E fez questão de
que alguém viesse buscá-la. Supôs que lhe faria bem distrair-se um
pouco.
Houve uma pausa. Trent sorriu. Sabia que a pegara.
- Ainda estou de uniforme - disse Gail.
- Tem mais gente de uniforme. - Trent tinha resposta para tudo.
- Bem, então tomarei um banho.
- Não é problema. Eu espero.
- Posso me encontrar com você lá.
- Não, eu espero. Basta que você me abra a porta.
- Vou precisar de uns dez minutos.
- Leve o tempo que precisar.
- Está bem - concordou Gail. - Moro no 3C.
De repente o trinco interno da porta começou a zumbir. Trent
adiantou-se e empurrou-a. Entrando, sorriu de novo. Aquilo não ia ser
apenas fácil, mas também divertido. Verificou a arma. Estava no lugar.
Depois, a seringa. Segura, no bolso.
Trent subiu a escada rapidamente até o terceiro andar. O
essencial era entrar no apartamento de Gail antes que alguém o visse. Se
esbarrasse com algum dos moradores, fingiria estar indo para outro
lugar. Mas não havia ninguém à vista no corredor do terceiro andar. E, o
que era ótimo, Gail deixara a porta aberta para ele. Entrou no
apartamento, fechou a porta e a trancou. Ouviu o barulho do chuveiro
funcionando no banheiro. Gail estava tomando banho.
- Fique à vontade - gritou ela, quando ouviu o barulho da porta
da frente se fechando. - Saio num segundo.
Trent deu uma olhada geral. Primeiro foi à cozinha. Estava
vazia. Checou depois o segundo quarto. Acendeu a luz, não havia ninguém.
Gail estava sozinha em casa. O cenário era perfeito.
Sacando sua amada pistola, Trent empunhou-a, descansando
delicadamente o dedo no gatilho. Ajustava-se com perfeição. Avançando
até a porta do quarto de Gail, empurrou-a cautelosamente. A porta


abriu alguns centímetros. Deu uma espiada no interior. A cama não fora
feita e o uniforme de enfermeira estava jogado em cima dela. No chão viu
calcinhas, um par de meias brancas e uma cinta-liga. A porta para o
banheiro estava fechada, mas mesmo assim se ouvia o barulho da água.
Passou ao lado da cinta-liga e cutucou-a com o pé. Sua mãe
sempre usara uma. Dezenas de vezes lhe dissera que meias-calças eram
desconfortáveis. E como insistia que dormisse com ela quando seu pai
estava fora, em numerosas missões do exército, Trent crescera vendo
muito mais cintas-ligas do que gostaria.
Trent aproximou-se devagar e em silêncio da porta do banheiro e
experimentou-a. A maçaneta girou facilmente. Ele abriu uma fresta de uns
dois centímetros. Um bafo de ar quente e úmido escapou lá de dentro.
Apontou a arma para o teto, como Don Johnson em Miami Vice, empunhandoa
com as duas mãos. Usando o pé, escancarou a porta totalmente. A louça
era de estilo antigo, tal como a banheira, um velho modelo de porcelana
com pés em forma de garras. A cortina, branca e com grandes flores
estampadas, estava cerrada. Por trás dela, pôde perceber o contorno de
Gail passando xampu no cabelo. Trent deu dois passos na direção da
banheira e puxou a cortina, quase que num só movimento. O suporte cedeu
e caiu ruidosamente no chão, juntamente com a cortina. Gail cruzou as
mãos sobre os seios.
- O que... Quem... - exclamou, gaguejando. Em seguida, furiosa,
gritou: - Saia daqui!
A água escorria pelo seu corpo ensaboado. Foi preciso um momento
para Trent recuperar o controle. Gail certamente tinha um corpo melhor
que o da sua mãe.
- Saia do chuveiro - intimou, apontando com frieza a arma, para
ter certeza de que ela a veria.
- Fora! - repetiu, quando Gail permaneceu imóvel. Mas ela estava
paralisada pelo terror. Trent encostou-lhe a arma na cabeça para fazê-la
sair de uma vez.
Gail começou a gritar. No recinto acanhado do banheiro foi um
berro agudo e horrível. Para silenciá-la depressa, Trent levantou a arma
bem alto e bateu com a coronha fortemente na cabeça dela. Pegou
exatamente na linha do cabelo.
No instante em que ela caiu, soube que batera com demasiada
força. Gail desabou encolhida dentro da banheira e ficou inerte. Um
longo talho começava na testa, descendo até a orelha. O ferimento
parecia
profundo, e se podia ver até o osso, na sua base. Num minuto havia
tanto sangue que a banheira ficou rosada.
Ele inclinou-se e fechou a torneira do chuveiro. Depois correu
para a sala, apurando o ouvido para algum barulho de socorro a


caminho. Num dos apartamentos havia uma televisão ligada. Não havia
outro ruído além desse. Encostou a orelha na porta; o corredor estava
em silêncio. O grito de Gail não fora ouvido; de qualquer maneira,
ninguém vinha em seu auxílio. Trent voltou ao banheiro.
Encontrou Gail semi-sentada, as pernas enfiadas sob o corpo, a
cabeça apoiada num canto da parede. Seus olhos estavam fechados.
Do corte ainda brotava sangue, mas o fluxo diminuíra ao se extinguir
a força da água do chuveiro.
Enfiando a pistola no cinto, Trent agarrou Gail pelas pernas e
começou a puxá-la. Mas deteve-se. Sentiu um arroubo de cólera. Vendo
aquele corpo nu à sua frente, esperara sentir alguma espécie de
excitação sexual, mas não sentiu nada, exceto talvez repugnância. E talvez
um pouco de pânico.
Num súbito ataque de raiva, sacou a arma de novo. Segurando-a
pelo cano, ergueu-a. Queria esmagar o rosto agora inexpressivo de Gail.
Ia descer a arma com toda a força, mas se conteve a tempo. Abaixou
a pistola devagar. Por mais que desejasse mutilá-la, sabia que seria um
erro. A beleza do seu plano era que a morte dela ia parecer devida a
causas naturais, e não a um assassinato.
Recolocando a pistola no cinto, agarrou a seringa. Removendo
a tampa da agulha, inclinou-se. Aproveitando a abertura do corte, e
evitando assim perfurar a pele, injetou o conteúdo da seringa
diretamente na ferida.
Levantou-se. Recolocou a proteção da agulha e meteu no bolso
a seringa vazia. Então esperou, observando. Em menos de um
minuto, contrações dos feixes musculares contorceram o rosto de Gail,
transformando seus lábios imóveis e plácidos numa careta grotesca. As
contrações se espalharam rapidamente pelo resto do corpo. Alguns
minutos depois, passaram a ser espasmos violentos seguidos por um
ataque apoplético global. Como se tivesse vida própria, a cabeça bateu
contra a dura parede de azulejos e depois contra as ferragens, gerando
um barulho nauseante. Trent estremeceu enquanto observava.
Ele recuou, aterrado com o efeito da droga. O resultado era
verdadeiramente horrível, em especial quando Gail de repente começou
a expelir urina e fezes. Trent virou-se e correu para a sala.
Abrindo a porta para o corredor, olhou para todos os lados. NãO
havia movimento algum. Saiu e fechou a porta. Depois continuou na ponta
dos pés até a escada e desceu ao térreo. Ao sair do edifício,
esforçou-se para andar com naturalidade, como se estivesse simplesmente
passeando. Queria ter certeza de não chamar a atenção de ninguém.
Sentindo-se nervoso e agitado, virou à direita na Beacon Street
e seguiu até o Bull Finch Pub. Não compreendia por que acabara tão
perturbado. Pretendia ficar excitado com a violência, como acontecia ao
ver as reprises de Miami Vice.


Enquanto ia andando, convencia a si próprio que Gail, afinal,
não era tão atraente quanto supusera. Na verdade, devia ser até bastante
feia. Só podia ser essa a explicação de não se ter excitado com sua
nudez. Era muito magricela, quase sem seios. A única coisa que Trent
tinha certeza era a de não ser homossexual. A Marinha só usara isso como
desculpa, porque ele não se dava bem com os médicos.
Para provar a si mesmo que era normal, fez questão de travar
conhecimento com uma empertigada secretária moreninha no bar. Também
não
era muito atraente. Mas não fazia mal. Á medida que iam conversando,
podia assegurar que ficara impressionada com o seu corpo. Chegou
inclusive a perguntar se fazia malhação. Que pergunta idiota, pensou.
Qualquer homem quê se preocupe consigo tinha que malhar. Os únicos que
não faziam isso eram as bichas desmunhecadas que ocasionalmente
encontrava na Cambridge Street quando saía procurando briga.
Não levou muito tempo para Jeffrey deixar a ante-sala da Cirurgia mais
limpa que nunca. A Administração tinha um armário no hall, junto da
sala. Lá ele encontrou um aspirador de pó. Usou-o para limpar não só a
sala como também a área externa e o corredor até os elevadores. A
seguir, atacou a quitinete que atendia a ante-sala. Sempre a achara meio
suja, e na verdade gostou da oportunidade de limpá-la. A faxina incluiu
a geladeira, o fogão e a pia.
David ainda não voltara. Entrando no vestiário, Jeffrey
descobriu o motivo. O modus operandi dele era trabalhar cinco ou dez
minutos e fazer uma pausa de cinco ou dez minutos para fumar um cigarro.
As vezes a pausa abrangia um café além do cigarro.
David pareceu não ficar satisfeito por Jeffrey cumprir a tarefa
em tão Pouco tempo. Disse-lhe para reduzir o ritmo se não quisesse
sofrer um "esgotamento causado por excesso de faxina". Mas Jeffrey
achava mais difícil ficar ocioso do que trabalhar.
Tão logo David desistiu de encenar o jogo da supervisão, deu a
Jeffrey o seu conjunto de chaves mestras. E autorizou-o a ir direto para
a ala das salas de cirurgia.
- Vou ficar por aqui e terminar a limpeza do vestiário - disse.
- Depois irei ajudá-lo. Comece pelo corredor. Não se esqueça do
quadro-negro grande. Na verdade, cuide dele primeiro. O diretor da
enfermagem tem uma crise sempre que a gente esquece de lavar o quadro.
Depois limpe as salas de operação que tenham sido usadas esta noite. As
outras já devem ter sido limpas durante a tarde.
Jeffrey preferia ir diretamente para a patologia, a fim de
examinar o relatório de Patty Owen, mas ficou satisfeito por entrar na
Cirurgia. Vestiu uma roupa esterilizada, como tinham mandado. Quando se
fitou no espelho, ficou alarmado ao ver que, exceto pela nova cor do
cabelo e o bigode raspado, sua aparência atual era igual à antiga.


Rapidamente pôs uma máscara cirúrgica, como planejara.
- Não precisa da máscara - disse David, quando o viu.
- Estou começando a ficar resfriado - explicou Jeffrey. - Achei
conveniente usar uma máscara.
David concordou, balançando a cabeça.
- Bem lembrado.
Empurrando o carrinho, Jeffrey passou pelas portas duplas que
davam acesso à Cirurgia. Não ia ali desde que o hospital o pusera de
licença, mas o lugar parecia exatamente o mesmo. Por mais que o
examinasse, nada tinha mudado.
Seguindo as instruções de David, Jeffrey atacou primeiro o
quadro-negro. Só alguns membros da equipe do hospital entraram e saíram
enquanto ele trabalhava. Alguns o conheciam de nome, mas ninguém lhe
dirigiu um segundo olhar. Jeffrey não podia deixar de acreditar que as
atividades de faxineiro protegiam tanto-a sua verdadeira identidade
quanto as mudanças na sua aparência. Fazia questão de não se afastar do
esfregão e do carrinho enquanto trabalhava.
Mesmo assim, ao término de uma apendicectomia que estavam
realizando quando ele chegara, e a equipe cirúrgica apareceu, fez
questão de voltar as costas para o grupo. Tanto o anestesista quanto o
cirurgião eram amigos seus.
Depois que as portas de vaivém se fecharam para a equipe que se
retirava, o silêncio baixou na Cirurgia. Jeffrey pôde inclusive ouvir o
fraco som de um rádio vindo do Suprimento Geral. Esfregando O chão, foi
se aproximando da mesa principal das salas de cirurgia.
Era mais um balcão comprido com diversos locais para as pessoas
se sentarem. Servia como posto de comando para controlar a entrada
e saída nos centros de cirurgia. Por ali os pacientes eram trazidos dos
Seus quartos e transferidos da área de espera para a respectiva sala de
operaçõeS. Na parte central do balcão havia um grande número de gavetões
de arquivo. Uma delas estava rotulada "Marcação de cirurgias".
Jeffrey olhou para um lado e outro do corredor, a fim de se
assegurar que estava realmente deserto. Só depois abriu a gaveta. Como a
programação das cirurgias era arquivada pelas datas, encontrou
facilmente a do dia fatídico: 9 de setembro. Examinou os casos daquele
dia, procurando anestesias pendurais que pudessem ter requerido Marcaína
a 0,75%, mas não encontrou nada. Havia inúmeros casos de ráqui, mas
deviam ter usado a Marcaína apropriada - se é que usaram - e não a
variedade de 30 mililitros empregada em peridurais ou anestesias
parciais.
Recuando um dia, ele retirou a programação de 8 de setembro.
Embora o recipiente de coleta de material usado de risco biológico,
existente ao lado do aparelho de anestesia fosse esvaziado todos os
dias, havia uma chance de que, por algum motivo, isso deixasse de ser


feito. Mas a programação do dia 8 não proporcionou maiores
esclarecimentos que a do dia 9. Jeffrey viu-se forçado a desconfiar que
lera errado a etiqueta da Marcaína para a peridural de Patty Owen. De
outro modo, como justificar o frasco de 0,75% encontrado?
Justamente quando Jeffrey ia terminando, as portas de vaivém se
abriram. Ele pegou o esfregão e começou a trabalhar freneticamente. Por
um momento não se atreveu sequer a olhar. Tão logo sentiu que ninguém se
aproximava, ergueu a cabeça a tempo de ver uma equipe cirúrgica
empurrando um paciente deitado sobre uma maca na direção da sala de
cirurgia reservada para emergências. Diversos recipientes contendo
sangue estavam pendurados na haste que guarnecia a maca. Jeffrey supôs
que o paciente devia ter sofrido um acidente de automóvel.
Só depois que a calma baixou de novo foi que Jeffrey voltou às
programações. Recolocou as dos dias 8 e 9 nos respectivos lugares. O
caso de emergência que acabara de entrar o fez ficar pensativo.
Emergências não deviam aparecer em programações da sala de cirurgia.
Aliás, tampouco um caso como o de Patty Owen. A cesariana dela não
tivera Previsão de data. Como, então, poderia ter sido programada?
Jeffrey passou para o livro do ano anterior, que continha todos os casos
de Cirurgia, inclusive emergências e operações marcadas, mas canceladas
Ou adiadas.
A não ser nos casos de cesáreas, sabia que a anestesia peridural
geralmente não era usada em emergências, mas decidiu assim mesmo
examinar o livro, para ter certeza. Havia exceções. Examinou os
registros do dia 8, correndo o dedo de cima a baixo. Não era fácil de
ler, já que havia muitas caligrafias diferentes. Não encontrou nada que
pudesse parecer suspeito. Virou a página para o dia 9 e começou a
acompanhar a lista. Não teve que ir muito longe. Na sala de cirurgia nº
15, onde Patty fora atendida, fora realizada uma cirurgia para reparar
uma laceração da córnea às cinco da manhã. O pulso de Jeffrey se
acelerou. Uma emergência oftálmica era, na verdade, bastante promissora.
Jeffrey arrancou a folha de um bloco que estava em cima do
balcão e anotou rapidamente o nome do paciente. Depois fechou o livro e
recolocou-o na prateleira. Empurrando o balde sobre as rodinhas
oscilantes, atravessou o hall na direção da sala de controle da
anestesia. Abriu a porta e acendeu a luz. Correu até o arquivo de
registros e tirou o daquele paciente.
- Bingo! - murmurou. O registro dizia que o operado recebera
anestesia retrobulbar com Marcaína a 0,75%! Colocou a ficha no lugar e
fechou a gaveta. Kelly tinha razão. Mal podia acreditar. Na mesma hora
sentiu-se melhor a respeito de si mesmo, e mais confiante no seu
julgamento. Sabia que o que encontrara não teria muita importância na
corte, mas significava tudo para ele. Não se havia enganado na leitura
do rótulo!


Na hora do intervalo para o lanche, David apareceu procurando
Jeffrey. Este terminara o corredor principal e limpara duas salas de
operação que tinham sido usadas para emergências. Estava atarefado no
Suprimento Geral quando David o encontrou.
- Eu preferia continuar trabalhando - disse Jeffrey. - Vou para
os laboratórios, começarei por lá.
- Trate de maneirar - aconselhou David, agora um pouco menos
amável do que fora inicialmente. - Vai acabar prejudicando seus outros
colegas. Jeffrey sorriu timidamente.
- Acho que é só porque estou ansioso por ser o meu primeiro dia.
Não se preocupe. Vou maneirar.
- Espero que sim - resmungou David, virando-se e indo embora.
Jeffrey terminou o que estava fazendo no Suprimento Geral, empurrou o
carrinho em toda a extensão do corredor da Cirurgia e saiu pelas portas
de vaivém. Vestindo de novo o uniforme de faxineiro, seguiu para o
departamento de patologia. Queria aproveitar o fato de David e o resto
do pessoal da limpeza estarem lanchando. Experimentou as chaves mestras
na porta que dava na seção administrativa do departamento. A terceira serviu. Jeffrey ficou
assombrado ao ver o uniforme e as chaves eram capazes de levá-lo.
Não encontrou ninguém em parte alguma. As únicas pessoas que
trabalhavam naquela seção do hospital eram os técnicos dos laboratórios
de química, hematologia e microbiologia. Jeffrey não perdeu tempo.
Encostando o esfregão nos arquivos grandes e compactos, procurou a pasta
de Patty Owen. Encontrou-a com facilidade.
Abriu-a em cima de uma mesa. Folheando, encontrou cópias do
relatório da autópsia. Passou para a parte de toxicologia, que tinha
gráficos com os resultados da cromatografia e espectrografia do sangue,
fluido cerebroespinhal e urina. O único composto que constava como
encontrado era a bupivacaína, o nome genérico da Marcaína. Os testes não
haviam descoberto nenhum outro elemento químico naquele caso.
Jeffrey deu uma olhada no resto da pasta, página por página.
Ficou surpreso ao encontrar fotos 20X25. Soltou-as. Eram micrografias
eletrônicas feitas no Boston Memorial. A curiosidade de Jeffrey foi
despertada: claro que aquilo não era feito em todas as autópsias.
Lastimou não ser mais habilitado na interpretação das micrografias.
Achou difícil até mesmo decidir qual era a parte de cima. Após estudar
as micrografias cuidadosamente, acabou por perceber que estava fitando
imagens muito ampliadas de células ganglionares e axônios dos nervos.
Lendo as descrições nas costas de cada foto, aprendeu que as
micrografias eletrônicas mostravam nítida destruição da arquitetura
intracelular. Ficou intrigado. Aquelas fotos não haviam aparecido
durante a exibição compulsória de documentos pertinentes ao caso que
antecede o julgamento. Estando o hospital indiciado no mesmo caso que


ele, o departamento de patologia não agira considerando o interesse de
Jeffrey. Aliás, ele nem fora informado da existência daquelas fotos. Se
ele e Randolph tivessem sabido delas, poderiam ter intimado o hospital a
apresentá-las, mesmo que naquela época não estivesse particularmente
interessado numa possível degeneração axonal.
Ao observar a degeneração axonal tão evidente na micrografia de
Patty Owen, Jeffrey lembrou-se da mesma degeneração descrita por Cbris
Everson na autópsia do seu paciente. O que era alarmante quanto a isso
nos dois casos é que os anestésicos locais não podiam ter sido Os
causadores. Tinha que haver outra explicação.
Jeffrey levou a pasta para a máquina de copiar e reproduziu as
Partes que achou conveniente. Isso incluia as descrições das
micrografias, embora não as fotos. Incluía também a seção de
toxicologia, com
os gráficos da cromatografia e da espectrografia. Para decifrá-los
adequadamente, sabia que teria de passar mais tempo na biblioteca.
Quando terminou de fazer as cópias, conseguiu um envelope grande
de papel-manilha e pôs tudo dentro. Depois recolocou os originais na
pasta e a pasta no arquivo. Para terminar, enfiou o envelope de
papel-manilha na prateleira inferior do carrinho, sob os rolos de papel
higiênico.
Só então pôde voltar a atenção ao trabalho de limpeza. Estava
excitado com o que descobrira. A idéia de um contaminante, sem dúvida,
era viável. Na verdade, ante os resultados das micrografias, era quase
uma certeza.
Com o passar das horas, a energia de Jeffrey foi diminuindo.
Quando o céu começou a clarear, estava totalmente exausto. Passara
aquele tempo todo funcionando à base de pura energia nervosa. Às 6:15,
aproveitou um telefone na sala vazia do serviço social para falar com
Kelly. Se ela devia sair de casa às 6:45, com certeza já estava
acordada.
Assim que ela atendeu, Jeffrey contou-lhe, excitado, sobre a
emergência oftálmica na mesma manhã do desastre de Patty Owen, e que
nela fora usada Marcaína a 0,75%.
- Kelly, você estava absolutamente certa. Não entendo por que
ninguém pensou nesta possibilidade. Randolph não pensou, eu também não.
- Em seguida, falou a respeito das micrografias.
- Isso sugere um contaminante? - perguntou Kelly.
- Torna quase certo. O próximo passo é tentar descobrir o que
pode ter sido e por que não apareceu no exame toxicológico. - Tudo isso
me assusta - disse Kelly.
- A mim também - concordou Jeffrey. Em seguida, perguntou a ela
se conhecia alguém na patologia do Valley Hospital.
- Não na patologia - respondeu Kelly -, mas conheço vários


anestesistas. Hart Ruddock era o melhor amigo de Chris. Tenho certeza de
que ele conhece alguém na patologia.
- Você pode telefonar para ele? - pediu Jeffrey. - Veja se está
disposto a obter cópias de qualquer coisa que o departamento de
patologia tenha sobre Henry Noble. Estou particularmente interessado em
micrografias eletrônicas ou histologia do tecido nervoso.
- E o que direi se ele me perguntar por que quero isso?
- Não sei. Diga que se interessa porque esteve consultando as
anotações de Chris e leu que havia degeneração axonal. Isso deverá
despertar a curiosidade dele.
- Está bem - prometeu Kelly. - E agora é melhor você voltar para
casa e descansar um POUCO. Deve estar dormindo em pé.
- Estou exausto - admitiu Jeffrey. - Fazer limpeza é muito mais
cansativo que aplicar anestesia.
Bem cedo naquela manhã, Trent percorreu o corredor da Cirurgia do
Hospital St. Joseph com o frasco adulterado enfiado na sunga. Repetiu os
mesmos gestos do dia anterior, assegurando-se especialmente de que não
havia ninguém nas proximidades do Suprimento Geral antes de entrar para
trocar as ampolas. Como agora só havia duas ampolas de Marcaína a 0,5%
na caixa, as chances de que sua ampola seria usada naquele dia eram
boas, sobretudo com duas pendurais programadas no quadro. Claro, não era
certo que fossem usar Marcaína, e logo a 0,5%. Mas havia uma boa
possibilidade. Os casos programados eram uma hérnia e uma laparoscopia.
Se fosse para escolher entre uma e outra, esperava que sua ampola fosse
para a laparoscopia. Seria perfeito demais; aquele presunçoso do Doherty
estava escalado como anestesista.
Dirigindo-se com naturalidade para o vestiário, escondeu a
ampola boa no seu armário. Ao fechar e trancar a porta, pensou em Gail
Shaffer. A coisa com ela não fora tão divertida quanto antecipara, mas,
decerto modo, achara boa a experiência. O fato de Gail tê-lo
surpreendido lhe causara a necessidade de ficar alerta o tempo todo. Não
podia se dar ao luxo de ser descuidado. Havia muito problema em jogo. Se
estragasse tudo, seria um inferno. Trent não podia deixar de sentir que
as autoridades seriam a última de suas preocupações.
O radiorrelógio estava preparado para despertar às 6:45, sintonizado na
WBZ, com um volume baixo. Karen acordou em etapas, até que por fim seus
olhos piscaram e se abriram.
Rolou de lado e sentou-se na beira da cama. Ainda se sentia
drogada por causa da medicação que o Dr. Silvan lhe dera para ajudá-la a
dormir. O Dalmane funcionara melhor do que previra.
- Está acordada? - perguntou Marcia, atrás da porta fechada.
- Estou acordada - confirmou Karen. Levantou-se, insegura. Meio
tonta por um momento, amparou-se na cama. Depois foi para o banheiro.
A despeito da impressão de que tinha algodão na língua e da


secura na garganta, Karen foi escrupulosamente cuidadosa para não beber
nada, obedecendo ao que o Dr. Silvan lhe dissera. Não ingeriu água nem
mesmo quando escovou os dentes.
Gostaria que o dia estivesse terminando, e não apenas no começo.
Então a sua cirurgia já estaria feita e acabada. Sabia que era tolice,
mas ainda assim sentia-se apreensiva, O Dalmane não podia ajudar neste
ponto. Fez o melhor que pôde para ocupar a mente com o processo de tomar
um banho e se vestir.
Quando chegou a hora de ir para o hospital, Marcia dirigiu o
carro. Pela maior parte do trajeto, esforçou-se ao máximo para sustentar
uma conversa, mas Karen estava preocupada demais para responder. Quando
estacionaram no hospital, já vinham em silêncio há um bocado de tempo.
- Você está meio assustada, não está? - perguntou Marcia
finalmente.
- Não posso fazer nada - admitiu Karen. - Mesmo sabendo que é
tolice.
- Não é tolice coisa nenhuma - retrucou Marcia. - Mas garanto
que não vai sentir nada. O desconforto virá depois. Ainda assim, será
mais fácil do que pensa. A pior parte de tudo é esta de agora: o medo.
- Espero que esteja certa - disse Karen. Não gostava do tempo
ter mudado. Chovia de novo, O céu parecia tão triste quanto ela.
Havia uma entrada especial para as cirurgias diurnas. Karen e
Marcia ficaram esperando um quarto de hora juntamente com muitas outras
pessoas. Era fácil distinguir os pacientes dos acompanhantes. Os
pacientes, em vez de lerem, só folheavam as revistas.
Karen folheara três revistas quando foi chamada a uma mesa e
cumprimentada por uma enfermeira, que examinou a sua papelada e
certificou-se de que tudo estava em ordem. Na véspera, Karen estivera no
hospital para um eletrocardiograma e exame de sangue. O formulário de
consentimento já fora assinado, inclusive pela testemunha. Uma pulseira
de identificação fora impressa. A enfermeira ajudou Karen a colocá-la.
Deram-lhe uma camisolinha curta de hospital e um robe, mostrando
depois o cômodo onde deveria se trocar. Sentiu uma leve onda de pânico
quando subiu na maca e foi levada para uma área de espera. Nesta etapa
Marcia teve permissão para ficar com ela durante alguns instantes.
Marcia estava com a mala que continha as roupas de Karen.
Realizou algumas tentativas para fazê-la rir, mas Karen estava tensa
demais para isso. Apareceu um servente, checou a tabuleta ao pé da maca,
assim como a identificação de Karen, e disse:
- Hora de ir.
- Estarei esperando - exclamou Marcia, quando empurraram a maca
de Karen. Ela acenou, mas logo deixou a cabeça cair no travesseiro.
Pensou em mandar o servente parar, saltando depois da maca. Podia voltar
para o quarto, apanhar suas roupas com Marcia e vesti-las de novo,


deixando calmamente o hospital. A endometrite não fora assim tão ruim.
Vivera com ela até agora.
Mas nada fez. Era como se tivesse sido envolvida por uma
sucessão inevitável de eventos que aconteceriam, fizesse o que fizesse.
Em algum ponto, durante o processo de decidir sobre a operação, perdera
a liberdade de escolha. Era uma prisioneira do sistema. As portas do
elevador se fecharam. Sentiu que estava sendo levada para cima, e a
última chance de fugir fora afastada.
O servente deixou Karen em outra área de espera, junto com umas
outras dez macas como a dela. Deu uma olhada nos demais pacientes. A
maioria repousava confortavelmente, com os olhos fechados. Uns poucos
também olhavam em torno, mas não pareciam tão assustados quanto ela.
- Karen Hodges? - exclamou uma voz.
Karen virou a cabeça. Um médico em trajes cirúrgicos estava a
seu lado. Aparecera tão subitamente que não chegara a ver de onde viera.
- Sou o Dr. Bill Doherty - disse ele. Era mais ou menos da idade
do seu pai. Tinha um bigode e bondosos olhos castanhos. - Serei
seu anestesista.
Karen fez que sim. O Dr. Doherty examinou mais uma vez sua ficha
médica. Não levou muito tempo. Não havia muita coisa a ser dita. Ele fez
as perguntas habituais sobre alergias e doenças anteriores. E por fim
explicou que o médico dela pedira anestesia peridural.
- Você está familiarizada com este tipo de anestesia? perguntou o Dr. Doherty.
Karen disse que seu médico tinha explicado. O Dr. Doherty
balançou a cabeça, mas repetiu tudo cuidadosamente, enfatizando os
benefícios específicos no caso dela.
- Este tipo de anestesia proporciona grande relaxamento
muscular, o que será uma excelente ajuda para o exame a ser feito pelo
dr. Silvan. Além disso, é mais segura do que a anestesia geral.
Karen acenou com a cabeça.
- Tem certeza de que vai funcionar mesmo e que não vou sentir
nada quando estiverem me examinando?
O Dr. Doherty apertou-lhe o braço procurando transmitir
segurança.
- Estou absolutamente certo de que sim. Sabe de uma coisa? Todo
mundo acha que a anestesia não vai funcionar na primeira vez... mas
sempre funciona. Portanto, não se preocupe, está bem?
- Posso fazer outra pergunta? - indagou Karen.
- Tantas quantas quiser. - O senhor já leu o livro Coma?
- Já li, e vi o filme - disse o doutor, rindo.
- Nunca acontece nada como aquilo, acontece?
- Não! Jamais acontece uma coisa como aquela - assegurou. - Mais
alguma pergunta?


Karen sacudiu a cabeça.
- Então está bem - disse o Dr. Doherty. - Vou mandar a
enfermeira lhe dar uma injeçãozinha. Para acalmá-la. Depois, quando
soubermos que o seu médico está no vestiário, farei com que a levem para
a sala de operações. E creia, Karen, você não sentirá absolutamente
nada. Confie em mim. Já fiz isto um milhão de vezes.
- Confio no senhor - disse Karen. Conseguiu até mesmo sorrir.
O Dr. Doherty deixou a área de espera e passou pelas portas de
vaivém que davam na sala de Cirurgia. Escreveu uma ordem para a
aplicação do tranqüilizante em Karen, e depois foi pegar os narcóticos
no gabinete da Anestesia. Em seguida dirigiu-se ao Suprimento Geral.
Lá, apanhou alguns frascos de soro, e, equilibrando-os, enfiou a
mão na caixa aberta de Marcaína a 0,5% e pegou uma ampola. Sempre
cuidadoso, verificou a etiqueta. Era Marcaína a 0,5 %, sem dúvida. O que
o Dr. Doherty não notou foi a ligeira mossa que a ampola apresentava na
parte de cima, justamente a parte que romperia para aspirar o líquido do
seu interior.
Annie Winthrop estava mais cansada que nunca quando subiu a escada para
a porta de entrada do seu prédio. O guarda-chuva aberto a protegia do
aguaceiro. A temperatura caíra para cerca de 10º; parecia mais o inverno
voltando do que a chegada do verão.
Que noite, aquela: três paradas cardíacas na UTI. Um recorde nos
últimos quatro meses. Cuidar das três, além de tomar conta dos outros
pacientes, tinha minado as forças e a paciência de todos. Só queria
agora tomar um bom banho de chuveiro, com a água bem quente, e se jogar
na cama.
Chegando à porta do apartamento, custou a encontrar as chaveS,
deixando que caíssem no processo de procurá-las. A exaustão a fazia
desajeitada. Pegou-as, enfiou a que sabia ser a daquela porta. Quando
foi girá-la, percebeu que não precisava - a porta estava destrancada.
Annie fez uma pausa. Ela e Gail sempre conservavam a porta
trancada, mesmo quando se encontravam no apartamento. Era uma regra que
tinham discutido exaustivamente.
Com uma leve apreensão, Annie torceu a maçaneta e abriu a porta.
As luzes da sala estavam acesas e Annie perguntou-se se Gail estaria em
casa.
Sua intuição a fez deter-se no patamar. Alguma coisa a estava
advertindo de que havia perigo. Mas não percebeu qualquer barulho. O
apartamento estava assustadoramente silencioso.
Empurrou a porta mais um pouco. Tudo parecia em ordem. Avançou
um passo e imediatamente sentiu um cheiro terrível. Sendo enfermeira,
soube do que se tratava.
- Gail? - chamou. Em geral, Gail estava dormindo quando ela
chegava. Foi até o quarto da colega e deu uma olhada pela porta aberta.


Também ali a luz estava acesa. O mau cheiro piorou. Chamou o nome de
Gail de novo, e se deteve. A porta do banheiro estava aberta. Annie foi
olhar. E gritou.
Naquele dia, a missão de Trent era circular na sala quatro, onde
várias biópsias de seio estavam programadas. Achou que seria um dia
tranqüilo, a menos que houvesse biópsias positivas, mas isso não era de
esperar. Aquele tipo de trabalho era bom porque lhe dava liberdade para
ficar de olho no seu frasco de Marcaína, coisa que não pudera fazer na
véspera.
A primeira biópsia estava começando a ser realizada quando a
enfermeira anestesista o mandou buscar outro litro de Ringer lactado.
Trent não podia se sentir mais feliz ao obedecer.
Havia vários membros da equipe no Suprimento Geral quando Trent
entrou. Sabia que tinha de parecer extremamente circunspecto ao procurar
o frasco. Mas não lhe deram atenção. Estavam ocupados montando conjuntos
cirúrgicos para substituir os que seriam usados naquele dia. Trent
dirigiu-se à área onde os líquidos intravenosos eram guardados. As
drogas não-narcóticas ficavam à sua esquerda.
Pegou o frasco que fora buscar numa prateleira. Através da
entrada sem porta daquela seção do Suprimento Geral podia ver os outros
Contando os instrumentos de cada conjunto.
Com um olho nos colegas, enfiou a mão disfarçadamente na caixa aberta de Marcaína. Sentiu um arrepio. Só havia uma ampola e sua
extremidade arredondada era lisa. A ampola dele sumira.
Quase sem conter sua excitação, Trent deixou o Suprimento Geral
e voltou à sala quatro. Entregou o frasco à enfermeira. Depois perguntou
à instrumentadora se precisava de alguma coisa. Ela disse que não. As
coisas estavam correndo bem. A biópsia fora enviada à seção de
congelamento e eles estavam fechando o corte. Trent disse a uma das
enfermeiras que logo estaria de volta.
Saindo da sala quatro, dirigiu-se apressadamente para o quarto
grande. Ficou entusiasmado com o que viu: a única peridural marcada para
as sete e meia era uma laparoscopia, sendo Doherty o anestesista! A
hérnia estava programada para mais tarde.
Trent verificou onde seria realizada a laparoscopia. Sala doze.
Voltou pelo corredor e entrou na saleta de anestesia daquela sala. Lá
estava Doherty com mais alguém. Em cima de uma mesa de aço inoxidável
encontrava-se a sua ampola.
Trent não acreditava na sua sorte. Não só o anestesista era
Doherty, como também a paciente era uma garota jovem e saudável. As
coisas não poderiam ter sido melhores.
Não desejando ser visto por ali, Trent saiu logo. Retornou à
sala de cirurgia para onde fora designado, mas estava tão nervoso que
não conseguia ficar quieto. Andou de um lado para o outro furiosamente,


até que o cirurgião que estava fazendo outra biópsia teve que lhe pedir
para sentar-se ou sair.
Normalmente uma ordem dessas, vindo de um médico, teria
enfurecido Trent. Mas não naquele dia. Sentia-se excitado demais
pensando no que estava por acontecer e no que precisava fazer. Teria que
voltar à sala doze assim que a confusão se armasse, e apanhar a ampola
usada. Esta parte era sempre um pouco perigosa, embora nas ocasiões
anteriores o pandemônio geral que a reação causava sempre tivesse
distraído adequadamente a atenção de todos. Ainda assim, era esse o "elo
mais fraco" de toda a operação. Não queria que alguém o visse pegando a
ampola.
Olhou o relógio e ficou observando o ponteiro dos segundos a
girar. Tudo ia acontecer numa questão de minutos. Um arrepio de prazer
lhe percorreu a espinha. Adorava o suspense!
***
Capítulo 9.
QUINTA-FEIRA, 18 DE MAIO DE 1989,
07:52.
Com a sirene zunindo, a ambulância que levava Gail Shaffer
entrou na área de emergência do St. Joseph's e deu uma ré para a região
de desembarque. Os integrantes da equipe de emergência já tinham avisado
o hospital pelo telefone móvel para informar que tipo de caso estava
dando entrada, necessitando de apoio cardíaco e neurológico.
Ao chegarem no apartamento de Gail, atendendo ao telefonema da
amiga que morava com ela, Annie Winthrop, deduziram rapidamente o que
acontecera. Gail Shaffer sofrera um ataque epiléptico debaixo do
chuveiro. Acreditavam que ela tivesse tido algum aviso de que o ataque
estava se aproximando, porque a moça com quem morava insistira em dizer
que o jato d'água estava fechado. Lastimavelmente, Gail não fora capaz
de sair de dentro da banheira com a rapidez necessária, razão pela qual
batera com a cabeça inúmeras vezes na banheira e nas torneiras.
Apresentava múltiplos ferimentos no couro cabeludo e no rosto, assim
como um corte particularmente fundo na testa, à altura da linha do
cabelo.
A primeira coisa que os integrantes da equipe de emergência
obServaram ao tirar Gail da banheira foi uma falta total de tônus
muscular, como se ela estivesse completamente paralisada. Repararam
também na acentuada anormalidade do ritmo dos batimentos cardíacos, que
se mostrava totalmente irregular. Tentaram estabilizá-lo dando-lhe soro
e Oxigênio a cem por cento.
Assim que as portas da ambulância foram abertas, levaram Gail
rapidamente para uma das unidades de emergência. Graças ao pedido da
equipe que fora buscá-la, dois residentes, um neurologista e um
cardiologista, estavam a postos.


A equipe trabalhou febrilmente. Era evidente que a vida de Gail
estava pelo mais fino dos fios. O sistema de transmissão elétrica do
coração, responsável pela coordenação dos movimentos, fora seriamente
lesado.
O neurologista confirmou rapidamente a impressão inicial da
equipe da ambulância: Gail estava sofrendo de uma paralisia quase total,
que incluía os nervos cranianos. Particularmente estranho nessa
paralisia era que alguns grupos musculares ainda sugeriam um certo
comportamento reflexivo, embora não parecessem obedecer a um padrão
regular. Os reflexos que apresentavam eram apenas aleatórios.
Logo se estabeleceu o consenso de que Gail sofrera um ataque
epiléptico causado por hemorragia intracraniana e/ou tumor cerebral. Foi
este o diagnóstico provisório, a despeito do fato de o líquido
cerebro-espinhal estar claro. Uma residente de clínica médica não
concordou. Ela deduziu que todo o episódio se devia a um tipo qualquer
de intoxicação aguda por drogas. Insistiu que fosse retirada uma amostra
de sangue e efetuada uma análise para verificar a existência de alguma
droga do tipo chamado recreativo, em particular as mais recentes.
Outro neurologista residente também apresentou reservas quanto
ao diagnóstico provisório. No seu julgamento, uma lesão central não
podia explicar a paralisia. Concordou com a residente de clínica médica,
na suspeita de uma intoxicação aguda qualquer. Mas não especularia mais
nada antes de estudar os resultados de testes adicionais.
Todos concordaram quanto ao trauma craniano. A evidência física
não podia ser mais clara. A radiografia fez todos se arrepiarem. A
ferida na linha do cabelo estava ligada à fratura de um dos seios da
face. Na opinião geral, contudo, nem mesmo um trauma severo como aquele
era suficiente para explicar o estado de Gail.
A despeito do precário estado cardíaco da paciente, programou-se
um exame de ressonância magnética de emergência. O neurologista
residente conseguiu vencer a burocracia e amaciar o caminho. Rebocada
por diversos residentes, Gail foi levada à radiologia e enfiada dentro
da máquina imensa em forma de rosca. Todos ficaram um pouco preocupados,
receando que o campo magnético pudesse afetar seu instável sistema
cardíaco, mas a urgência de chegar a um diagnóstico intracraniano se
sobrepôs às demais preocupações. E todos os que estavam
envolvidoS naquele caso ficaram grudados na tela quando as primeiras
imagenS começaram a aparecer.
Bill DohertY levantou a seringa de cinco ml à altura da luz e,
delicadamente, deu um piparote na base. As poucas bolhas que tinha
aderido às paredes desapareceram, subindo para a superfície. A seringa
continha dois ml de Marcaína do tipo espinhal, com adrenalina. O Dr.
Doherty já se adiantara bastante na administração da peridural contínua
em Karen Hodges. A picada inicial não causara a menor dor. A agulha


Touhey se comportara magnificamente. Ele examinara, até se dar por
plenamente satisfeito, que ela se encontrava no espaço peridural, pois
não havia qualquer resistência no cilindro da pequena seringa de vidro
quando pressionada. A dose para teste que administrara também confirmara
isso. E, finalmente, o pequeno cateter se acomodara no devido lugar com
a prevista facilidade.
Só lhe restava confirmar que o cateter encontrara o espaço
peridural. Depois poderia prosseguir com a dose terapêutica.
- Como está se sentindo? - perguntou o Dr. Doherty a Karen, que
estava deitada sobre o lado direito, virada de costas para ele. O Dr.
Doherty a poria em decúbito dorsal após administrar a anestesia.
- Acho que estou bem - respondeu Karen. - Já terminou? Por
enquanto, não sinto nada.
- Ainda não está na hora de sentir coisa alguma - explicou o
médico.
Injetou mais da dose de teste, e em seguida mediu a pressão de
Karen, que não se alterou, e tampouco o pulso. Enquanto esperava,
preparou uma pequena atadura para prender o cateter. Após alguns
minutos, tirou a pressão de novo. Sem mudanças. Testou a sensação na
parte inferior das pernas. Não estavam anestesiadas, significando que o
cateter não se encontrava no espaço onde era administrada a anestesia
espinhal, portanto só podia estar no espaço peridural. Tudo pronto para
a injeção principal.
- Minhas pernas estão absolutamente normais - reclamou karen,
ainda preocupada com a idéia de que a anestesia não fosse funCIOnar.
- Suas pernas não tinham mesmo que estar anestesiadas por
enquanto - assegurou o Dr. Doherty. - Lembre-se do que lhe disse quando
começamos. Ele tivera o cuidado de esclarecer a Karen o que devia
esperar. Mas não ficou surpreso por ter esquecido. Era um homem paciente
e sabia que ela estava apreensiva.
- Como vamos indo?
O Dr. Doherty ergueu a cabeça. Era o Dr. Silvan, no seu traje
cirúrgico.
- Estaremos prontos em dez minutos - disse o Dr. Doherty.
Virou-se para a sua mesinha de aço inoxidável, apanhou a ampola de 30 ml
de Marcaína e checou o rótulo de novo. - Vou injetar a peridural acrescentou.
- Bem na hora - disse o Dr. Silvan. - Feita a minha assepsia,
logo começamos. Quanto mais cedo, melhor. - Deu um tapinha no braço de
Karen, cuidando para não mover a gaze que o Dr. Doherty pusera. - Você
fica calminha, está bem? - pediu.
O Dr. Doherty quebrou a extremidade superior da ampola e aspirou
a Marcaína com uma seringa. Por força do hábito, bateu também nas
paredes da seringa a fim de remover bolhas de ar, embora a entrada de ar


no espaço peridural não causasse problemas. O gesto fora mais pela força
do hábito.
Inclinando-se ligeiramente, o médico conectou a seringa com o
cateter que enfiara no espaço peridural. Começou então a aplicar a
injeção. O calibre fino do cateter apresentava certa resistência, de
modo que ele teve que comprimir firmemente o êmbolo. Acabara de esvaziar
a seringa quando Karen teve um movimento súbito.
- Não se mova ainda! - exclamou o Dr. Doherty.
- Sinto uma câimbra terrível - choramingou ela.
- Onde? - perguntou o Dr. Doherty. - Nas pernas?
- Não, no estômago - disse Karen, que gemeu e esticou as pernas.
O médico pousou uma mão no seu quadril para firmá-la. A
enfermeira que o assistia adiantou-se e agarrou os tornozelos de Karen.
A despeito da tentativa do Dr. Doherty para contê-la com outra
mão, Karen rolou e deitou-se de costas. Apoiou-se num dos cotovelos e
olhou para ele. Seus olhos estavam arregalados de pavor.
- Ajude-me - exclamou, desesperada.
O médico ficou confuso. Não tinha a menor idéia do que estava
acontecendo de errado. Seu primeiro pensamento foi o de que Karen
simplesmente entrara em pânico. Largou a seringa e, com ambas as mãos,
agarrou-a pelos ombros e tentou forçá-la a se deitar. Por sua vez, a
enfermeira segurou com mais força os tornozelos da jovem.
Doherty decidiu aplicar uma dose de diazepam na veia, mas, antes
que pudesse fazê-lo, o rosto de Karen distorceu-se com fasciculações
ondulantes dos músculos faciais. Simultaneamente, saliva
borbulhou da sua boca, e de seus olhos começaram a fluir lágrimas. A
pele ficou instantaneamente molhada de suor. A respiração tornou-se
estertorante e rouca.
O anestesista avançou para a atropina. Quando a estava
aplicando, as costas de Karen se arquearam. Seu corpo ficou rígido e, em
seguida, explodiu numa série de convulsões. A enfermeira correu para o
seu lado, a fim de impedi-la de cair no chão. Ouvindo o barulho, o Dr.
Silvan deixou a pia onde escovava as mãos e veio ajudar.
Doherty muniu-se de um pouco de succinilcolina e injetou-a na
veia. Em seguida, aplicou diazepam. Abriu o oxigênio e segurou a máscara
sobre o rosto de Karen. O monitor do ECG começou a registrar oscilações.
A notícia se espalhou, e começou a chegar gente. Levaram Karen
para uma sala de cirurgia, em busca de mais espaço. A succinilcolina
atenuou a crise. O Dr. Doherty intubou-a. Viu que a pressão sanguínea
estava caindo. O pulso apresentava-se irregular.
O anestesista injetou mais atropina. Nunca vira tanta saliva e
tantas lágrimas. Colocou o oximetro. Nesse momento o coração de Karen
parou.
Um sinal em código foi acionado, e mais integrantes da equipe


hospitalar apareceram na sala doze para oferecer ajuda. Quando o número
de pessoas ultrapassou a vinte, ninguém percebeu quando alguém apanhou o
frasco meio vazio de Marcaína, despejou o conteúdo num ralo e sumiu com
ele, vazio.
Kelly desligou o telefone da unidade de tratamento intensivo.
Sentia-se extremamente aflita. Acabara de ser informada da admissão de
uma pessoa na sala de emergência. Mas não era por isso que estava
angustiada. O que a deixara aflita era o fato da paciente ser Gail
Shaffer, enfermeira da Cirurgia. Uma amiga.
Kelly conhecia Gail há algum tempo. Ela andava saindo com um dos
residentes de anestesia do Valley Hospital, ex-aluno de Chris. Gail
Comparecera ao jantar que Kelly oferecia anualmente aos residentes de
anestesia. Quando Kelly passara a trabalhar no St. Joseph, Gail fora
gentil e a apresentara a muitas pessoas.
Kelly procurou não deixar que seus sentimentos pessoais
interferissem. Era importantíssimo comportar-se profissionalmente.
ConvocOu uma das outras enfermeiras, mandando-a preparar a cama três
para uma nova ocupante.
Uma equipe trouxe Gail e ajudou a conectá-la a um monitor e um
respirador. A respiração natural dela era insuficiente para conservar os
gases do sangue em nível normal. Enquanto o pessoal da equipe
trabalhava, Kelly foi posta a par do que ocorrera.
Ainda não havia um diagnóstico, o que tornava o problema de Gail
muito mais difícil de ser tratado. O exame de ressonância magnética
resultara negativo, salvo por uma fratura no seio frontal. Isso
eliminava a possibilidade de um tumor e/ou uma hemorragia intracraniana.
Gail não recuperara a consciência, e sua paralisia se aprofundara em vez
de melhorar. A ameaça mais grave e mais imediata à condição de Gail era
a instabilidade do seu estado cardíaco. Até mesmo isso se agravara. Á
radiologia ela deixara todo mundo assustado com uma sucessão de
taquicardias ventriculares - todos pensaram que estivesse prestes a
sofrer uma parada cardíaca. Foi quase um milagre isso não ocorrer.
Gail estava instalada no CTI quando o resultado do teste de
cocaína chegou. Negativo. Uma pesquisa mais ampla em busca de indícios
de outras drogas continuava pendente, mas Kelly tinha certeza absoluta
de que Gail não usava drogas.
A equipe que a trouxera ainda se encontrava no centro de
tratamento quando Gail teve uma parada cardíaca. Um contrachoque
eliminou a fibrilação, mas resultou em assistolia, ou seja, nenhuma
atividade elétrica, nenhuma batida. Um marca-passo ligado ao seu coração
a partir de um corte na virilha restaurou um batimento cardíaco
irregular, mas o prognóstico continuou ruim.
- Já enfrentei um bocado de confusões nesta linha de trabalho - disse
Devlin, enfurecido. - Armas, facas, um cano de chumbo. Mas não podia


esperar uma injeção no rabo contendo um veneno usado em flechas no
Amazonas. E, ainda por cima, de um sujeito algemado.
Michael Mosconi limitou-se a sacudir a cabeça. Devlin era o
melhor caçador de recompensas que conhecia. Já tinha agarrado
traficantes de drogas, assassinos de aluguel, mafiosos e muitos
ladrõezinhos baratos. Encontrar tanta dificuldade com aquele merdinha
daquele doutor era algo além da compreensão de Mosconi. Talvez Devlin
não fosse mais o mesmo.
- Deixe ver se entendi direito - disse Mosconi. - Você estava
com o sujeito algemado dentro do carro? Aquilo parecia loucura.
- Estou lhe dizendo que ele me deu uma injeção com um troço que
me paralisou. Num minuto eu tava legal, no minuto seguinte não podia
mover um músculo. Não havia nada que pudesse fazer. O cara tem a
medicina moderna trabalhando a favor dele.
- Talvez você devesse pensar em trocar de trabalho. Que tal ser
inspetor de disciplina num colégio?
- Muito engraçado - disse Devlin, que claramente não estava
achando a menor graça.
- Como vai conseguir lidar com um criminoso real, se não pode
apanhar nem mesmo um anestesista magricela? - ridicularizou Michael. - A
verdade é que a situação está horrível. Cada vez que o telefone toca
tenho palpitações, com medo de que seja o tribunal avisando que o
dinheiro da fiança foi confiscado. Você entende a seriedade de tudo
isso? Agora não quero saber de mais desculpas. Você tem que me trazer
esse doutor.
- Vou pegá-lo - assegurou Devlin. - Tenho um sujeito seguindo a
mulher dele. Mais importante ainda, grampeei o telefone dele. Ele vai
ser obrigado a telefonar um dia, não vai?
- Será preciso fazer mais do que isso - disse Michael. - Receio
que a polícia esteja perdendo o interesse em manter o doutor na cidade.
Devlin, não posso me dar ao luxo de perder esse cara. Não devemos deixar
que escape.
- Não acho que ele vá sair daqui.
- É mesmo? Será que você desenvolveu algum novo poder intuitivo?
Ou é apenas um desejo que você tem?
Devlin examinou Michael do seu lugar no sofá desconfortável. O
sarcasmo do outro estava começando a lhe dar nos nervos. Mas não disse
nada. Em vez disso, inclinou-se para a frente e tirou do bolso traseiro
uma porção de papéis. Colocou-os em cima da mesa, desdobrou e alisou.
- O doutor deixou esse troço no quarto do hotel - disse,
empurrando as folhas na direção de Michael. - É por isso que ele não
deve ir a parte alguma. Na verdade, suponho que está a fim de descobrir
algo. Algo que o prende aqui. O que você acha destes papéis?
Michael apanhou uma página das anotações de Chris Everson.


- É palavrório científico. Não entendo nada.
- Algumas anotações têm a letra do doutor - disse Devlin. - Mas
a maioria tem outra letra. Presumo que seja desse tal Christopher
Everson, seja ele quem for. O nome está em muitas folhas; significa
alguma coisa para você?
- De jeito nenhum - respondeu Michael.
- Deixe-me ver o catálogo telefônico - pediu Devlin.
Michael entregou-lhe o catálogo. Devlin encontrou a página onde
estavam os Eversons. Havia vários, mas nenhum Chris. O mais parecido era
um tal K. C. Everson, em Brookline.
- O homem não está no catálogo - disse Devlin. - Suponho que, se
estivesse, seria fácil demais.
- Talvez ele também seja médico - sugeriu Michael. - E o número
dele pode não constar da lista.
Devlin concordou, balançando a cabeça. Era uma boa
possibilidade. Abriu a seção das Páginas Amarelas e procurou sob o
título Médicos. Não havia Eversons. Fechou o catálogo.
- O fato é - disse Devlin - que o doutor está trabalhando nesse
troço científico, fugido e escondido num hotel que é um pulgueiro. Não
faz muita lógica. Ele está querendo alguma coisa, mas não sei o que é.
Estou pensando em encontrar esse Chris Everson e perguntar a ele.
- Tudo bem - disse Mosconi, perdendo a paciência. - Mas não leve
quatro anos fazendo um curso de medicina. Quero resultados. Se não for
capaz de pegá-lo, basta dizer. Arranjo outro.
Devlin levantou-se. Pôs o catálogo em cima da escrivaninha de
Michael e apanhou as anotações de Jeffrey e Chris.
- Não se preocupe - disse. - Vou encontrá-lo. Nesta altura o
caso está virando uma coisa mais ou menos pessoal.
Saindo do escritório de Michael, Devlin foi para a rua. Chovia
mais forte agora do que ao chegar. Por sorte deixara o carro perto de
uma marquise, de modo que só tinha de dar uma corrida curta sob a chuva.
Estacionara numa zona de carregamento da Cambridge Street. Uma das suas
vantagens de ser ex-policial era a de estacionar onde lhe convinha. Os
guardas de trânsito fingiam não ver. Cortesia profissional.
Entrando no carro, Devlin contornou a State House para pegar a
Beacon Street. O trajeto era complicado, como quase todo o trânsito de
Boston. Virou à esquerda na Exeter e estacionou junto do hidrante mais
próximo da Biblioteca Pública de Boston. Saltando do automóvel, disparou
para a entrada.
Na seção de livros de consulta pegou os catálogos de Boston e
das cidades vizinhas. Havia muitos Eversons, mas nenhum Christopher.
Organizou uma lista dos que encontrou.
No telefone público mais próximo fez a primeira tentativa,
discando o número de K. C. Everson em Brookline. A princípio ficou


encorajado: atendeu uma sonolenta voz masculina.
- Quem está falando, é Christopher Everson? - perguntou Devlin.
Houve uma pausa. - Não - disse a voz. - Quer falar com Kelly? Ela
esta...
Devlin desligou o telefone. Acertara. K. C. Everson era uma
mulher.
Examinando sua lista de Eversons, perguntou-se qual seria agora
o mais promissor. Difícil resolver. Não havia nenhum outro com C. como
segunda inicial. Isso significava que teria de realizar muitas chamadas.
Tal processo iria consumir muito tempo, mas não conseguia imaginar outra
alternativa. Um daqueles Eversons, afinal, deveria conhecer o tal
Christopher. Devlin tinha o palpite de que essa seria a sua melhor
pista.
Cansado como estava, Jeffrey não conseguiu dormir de novo depois de ser
acordado pelo telefone. Se estivesse totalmente desperto, provavelmente
nem teria atendido. Nada combinara com Kelly sobre telefonemas, e
provavelmente era mais seguro não atender. Deitado na cama, jeffrey
continuou vagamente perturbado pelo telefonema. Quem estaria perguntando
por Chris? Sua primeira idéia foi a de um trote cruel. Mas também podia
ter sido alguém querendo vender alguma coisa. Podiam ter conseguido o
nome de Chris numa lista qualquer. Talvez não devesse mencionar o fato a
Kelly. Detestaria recordar-lhe o passado exatamente quando ela estava
começando a deixá-lo para trás.
O cérebro de Jeffrey voltou a se ocupar com a teoria do
contaminante, pondo de lado o misterioso telefonema. Deitando-se de
costas, passou em revista os detalhes. Depois decidiu levantar-se, tomar
baalio e fazer a barba.
Enquanto preparava o café, começou a perguntar-se se o seu
problema e o de Chris haviam sido episódios isolados ou se teriam
ocorrido fatalidades similares na área de Boston. E se o assassino
tivesse adulterado a Marcaína em outras ocasiões, além das duas de que
tinha Conhecimento? Se fosse esse o caso, teria pelo menos ouvido falar
da existência de outras reações igualmente estranhas. Por outro lado,
tinha que analisar o que acontecera com ele e Chris. Ambos haviam sido
processados imediatamente por imperícia, o que tornava a defesa do caso
tão importante que as outras questões eram quase esquecidas.
Lembrando-se de que o papel da Junta de Registro de Medicina do
estado de Massachusetts fora expandido para acompanhar "incidentes
importantes" ocorridos em instalações dos órgãos de saúde estaduais,
Jeffrey telefonou para lá.
Após breve rodeio, foi atendido por uma integrante do Comitê
de Avaliação do Cuidado aos Pacientes. Explicou o tipo de incidentes em
que estava interessado. Ela pediu que esperasse um pouco.
- Você disse que tinha interesse em mortes ocorridas durante


anestesias peridurais? - perguntou ela, quando retornou.
- Exatamente - confirmou Jeffrey.
- Posso encontrar quatro - disse a mulher. - Aconteceram nos
últimos quatro anos.
Jeffrey ficou assombrado. Quatro lhe parecia um número alto. Os
casos fatais durante anestesias peridurais eram raríssimos,
especialmente depois que a Marcaína a 0,75% fora proibida para uso
obstétrico. Quatro casos nos últimos quatro anos deveriam ter levantado
algumas bandeiras vermelhas.
- Quer saber onde ocorreram? - perguntou a mulher.
- Por favor.
- Houve um no ano passado, no Boston Memorial. - Ele escreveu,
"Memorial, 1988". Só podia ser o seu caso. - Um no Valley Hospital, em
1987 - continuou ela. Jeffrey anotou. Este deveria ter sido o de Chris.
- E o Commonwealth Hospital em 1986 e o Suftolk General em 1985. Mais
nada.
Um bocado, pensou Jeffrey. Estava espantado também com o fato de
todos os casos terem sido em Boston.
- A Junta tomou alguma providência a respeito disso? perguntou.
- Não, não tomamos. Se todos tivessem ocorrido numa única
instituição, tal instituição seria investigada. Mas como eram quatro
hospitais e quatro médicos diferentes envolvidos, não pareceu apropriado
envolver-nos. Por Outro lado, sabemos que todos os casos resultaram em
processos por imperícia.
- Quais são os médicos envolvidos no Commonwealth e no Suffolk?
- quis saber Jeffrey. Gostaria de discutir detalhadamente os casos com
esses médicos para ver até que ponto a experiência deles era similar à
sua. Queria saber, particularmente, se tinham usado Marcaína extraída de
uma ampola de 30 ml para uma anestesia local.
- Os nomes dos médicos? Sinto muito, mas esta informação é
confidencial.
Jeffrey pensou um momento, e perguntou:
- Que tal o nome dos pacientes ou dos querelantes nesses casos?
- Não sei se é confidencial ou não - respondeu a interlocutOra Espere um momentinho.
Enquanto esperava, Jeffrey admirou-se novamente com o fato de
Boston ter tido quatro mortes durante anestesias peridurais sem que ele
tomasse conhecimento. Não conseguia compreender por que uma série de
complicações não se transformara em motivo de estudos e preocupações.
Concluiu então que só podia ser porque todos os casos tinham resultado
num processo por imperícia. Sabia que um dos efeitos pérfidos desses
processos era o sigilo que os advogados exigiam. Lembrou-Se de que
Randolph, seu defensor, lhe dissera, no início do processo, que não


devia discutir o caso com outra pessoa.
- Ninguém sabe se é ou não confidencial a informação que o
senhor pediu - disse a mulher, quando voltou ao telefone. - Mas me
parece que é uma questão de domínio público. Os dois pacientes foram
Clark DeVries e Lucy Havalin.
Anotou os nomes, agradeceu e desligou. De volta ao quarto de
hóspedes que Kelly arrumara para ele, puxou a bolsa debaixo da cama e
apanhou duas notas de cem dólares. Tinha que encontrar tempo e comprar
roupas para substituirem as que deixara no Essex Hotel. Por um momento
pensou no que a Pan Am teria feito com sua valise pequena, embora não
fosse aconselhável sair atrás dela.
Em seguida, chamou um táxi pelo telefone. Imaginava que seria
seguro, desde que não fizesse nada para despertar suspeitas no
motorista. O tempo não melhorara desde que viera do hospital pela manhã,
e por isso procurou um guarda-chuva no armário do hall. Quando o táxi
chegou, já estava nos degraus da frente, de guarda-chuva em punho.
O primeiro objetivo de Jeffrey era comprar outro par de óculos
sem grau e de armação escura. Fez o táxi esperar enquanto entrou numa
ótica, durante o trajeto. Seguiria depois para a corte. Era estranho
entrar no prédio onde apenas alguns dias antes um júri o considerara
culpado de homicídio de segundo grau.
Quando passou pelo detector de metais, sua ansiedade aumentou.
Lembrou-se nitidamente do episódio no aeroporto. Esforçou-se para
aparentar calma. Sabia que, parecendo nervoso, chamaria a atenção de
todo mundo. A despeito das boas intenções, contudo, estava visivelmente
trêmulo quando entrou na sala do primeiro andar do velho prédio. Esperou
sua vez no balcão. A maioria das pessoas eram advogados; vestiam ternos
escuros com calças que, curiosamente, pareciam curtas demais. Quando uma
das mulheres que atendiam o público finalmente olhou na sua direção e
disse "O próximo", Jeffrey adiantou-se e perguntou o que devia fazer
para consultar um determinado processo. - Já julgado ou pendente? perguntou ela.
- Tem que anotar o número de registro naquele arquivo - disse,
com um bocejo. - São aqueles cadernos de folhas soltas. Depois que tiver
o número, traga aqui. Um de nós irá pegar o processo lá dentro.
Jeffrey fez que sim e agradeceu. Dirigiu-se às prateleiras que
ela indicara. Os casos estavam listados em ordem alfabética, ano por
ano. Ele começou em 1986, e procurou o nome Clark DeVnies como queixoso.
Quando encontrou o cartão, viu que a informação desejada estava ali; não
precisava ver o processo.
O cartão relacionava os defensores, os queixosos e os advogados
de acusação. Naquele caso, o anestesista era um tal Dr. Lawrence Mann.
Jeffrey usou um aparelho manual de copiar para tirar uma cópia do
cartão, no caso de vir a precisar do número dele mais tarde.


Fez a mesma coisa no caso Lucy Havalin. O processo dela fora
contra uma anestesista chamada Madaline Bowman. Jeffrey tivera algum
relacionamento profissional com a Dra. Bowman, mas não a via há anos.
Ao remover a cópia do aparelho manual, deu uma olhada para ver
se estava bem legível. Ao fazê-lo, notou que o nome do advogado era
Matthew Davidson.
Jeffrey estremeceu. A cópia quase lhe escapou das mãos. Fora
Matthew Davidson quem o acusara por imperícia em nome do espólio de
Patty Owen.
Racionalmente, Jeffrey sabia que era ridículo odiar o homem.
Afinal, Davidson apenas cumprira sua obrigação, e o espólio de Patty
Owen tinha direito àquela representação legal. Ele ouvira todos esses
argumentos, mas não faziam qualquer diferença. Davidson o arruinara,
destacando um problema de droga irrelevante para o caso. Fora algo
injusto, uma manobra calculada exclusivamente para ganhar o caso.
Justiça e verdade não tinham sido o objetivo dele; não houvera realmente
imperícia. Jeffrey tinha certeza disso, sobretudo agora que eliminara a
desconfiança de ter-se enganado ao ler o rótulo e estava cada vez mais
seguro de haver um contaminante envolvido.
Mas a curto prazo tinha mais o que fazer do que ruminar
injustiças passadas. Mudando de idéia, decidiu dar uma olhada nos
registros do tribunal. Às vezes não se sabe o que se procura senão
depois de encontrar, disse consigo mesmo. Voltando ao balcão, forneceu à
mesma mulher que o atendera antes os números dos processos.
- Agora queira preencher um desses formulários que estão ali, em
cima do balcão.
Burocracia típica, pensou Jeffrey, com alguma irritação. Mas fez
o que ela disse. Depois de preencher o papel, teve que esperar numa fila
pela terceira vez. Foi atendido agora por outra funcionária. Quando
entregOU as duas folhas, ela deu uma olhada e sacudiu a cabeça, dizendo:
"Vai demorar uma hora, no mínimo."
Enquanto esperava, Jeffrey foi até uma banca de máquinas
automáticas que vira no caminho. Comprou um lanche rápido, suco de
laranja e sanduíche de atum. Depois acomodou-se num banco na rotunda,
observando O movimento. Havia tantos policiais uniformizados que
Jeffrey, afinal, começou a se acostumar a vê-los. Uma espécie de terapia
comportamental reduziu bastante a sua ansiedade.
Decorrida mais que uma hora, Jeffrey voltou para a sala em que
fora atendido. Já tinham trazido os processos que o interessavam. Levou
as enormes pastas para outro balcão, onde teria espaço suficiente para
examinar os documentos. Havia uma quantidade enorme de material. Parte
estava redigida numa linguagem legal tão estritamente técnica que
Jeffrey, não sendo advogado, não conseguia decifrar. Mesmo assim, queria
ver o que havia de informação disponível. Viu também páginas e páginas


de depoimentos, assim como vários despachos e sumários.
Folheou os depoimentos das testemunhas. Queria saber que
anestésico estava envolvido em cada caso. Começou com a papelada do
Suffolk General. Conforme suspeitara, o anestésico fora a Marcaína.
Agora que sabia onde procurar, achou rapidamente o que queria ver no
caso do Commonwealth Hospital. Também nele fora a Marcaína.
sua teoria estivesse correta, isto significava que o Dr. ou Sr.
ou Sra. X de Boston já atacara quatro vezes. Se ao menos conseguisse
obter provas antes do assassino agir de novo...
Jeffrey ia recolocar o processo do Commonwealth na pasta quando
viu, por acaso, a decisão sobre a indenização. Sacudiu a cabeça,
assombrado. Como no caso dele, a coisa fora na base dos milhões de
dólares. Que desperdício, pensou. Verificou a soma constante do outro
processo. Era ainda mais alta.
Jeffrey pôs os documentos numa cesta destinada às devoluções.
Depois abandonou o tribunal. Finalmente parara de chover, mas o céu
continuava nublado, fazia frio e tudo levava a crer que cairia outra
chuva a qualquer minuto.
Pegou um táxi na Cambnidge Street e instruiu o motorista para
levá-lo à Biblioteca Médica Countway. Sentado no carro, relaxou.
Sentia-se ansioso para passar aquela tarde chuvosa na biblioteca. Uma
das coisas que desejava era estudar toxicologia. Queria reavivar seus
conhecimentos sobre as duas principais ferramentas para chegar a um
diagnóstico nesse campo: a cromatografia e a espectrografia.
***
Capítulo 10.
QUINTA-FEIRA, 18 DE MAIO DE 1989,
16:07.
Kelly abriu a porta da frente e empurrou com o pé, pois tinha as mãos
ocupadas pelo guarda-chuva, um saquinho de compras do armazém e um
envelope grande.
- Jeffrey! - exclamou, colocando os envelopes e as compras na
mesa do vestíbulo, para o que teve de afastar a bandeja com o serviço de
chá. Deixou o guarda-chuva sobre o chão de ladrilhos do lavabo, recuou e
fechou a porta da frente. - Jeffrey! - exclamou de novo, sem saber se
ele estaria ou não em casa. Quando se virou, não pôde COnter um gritinho
de espanto. Jeffrey estava de pé, diante do arco que dava para a sala de
jantar. - Você me assustou - disse ela, levando uma das mãos sobre o
peito.
- Não me ouviu? Eu estava na outra sala e respondi quando você
me chamou primeiro.
- Ufa! - exclamou Kelly, recuperando o controle. - Que bom
encontrálo em casa. Tenho algo para lhe dar. - Apanhou o envelope na
mesa e colocou-o nas mãos de Jeffrey. - Também tenho um bocado de coisas


para lhe contar - acrescentou. Pegou as compras e levou-as para a
cozinha.
- Que é isto? - perguntou ele, seguindo-a com o envelope na mão.
- Uma cópia de exame patológico de Henry Noble feito no Vallay
Hospital - respondeu Kelly, olhando por cima do ombro.
- Já? - Jeffrey ficou impressionado. - Como conseguiu tão
depressa?
- Fácil. Hart Ruddock mandou um mensageiro me entregar. Nem
perguntou por que eu a queria.
Jeffrey tirou a cópia do exame de dentro do envelope enquanto ia
andando. Não havia micrografias eletrônicas, mas também não esperava
encontrá-las. Não faziam parte de uma autópsia de rotina. Mesmo assim, o
conjunto estava muito reduzido. Jeffrey percebeu uma anotação que dizia
haver mais material no gabinete do médico-legista. Bem, estava
explicado.
Kelly guardou as compras e Jeffrey retirou-se com os papéis para
o sofá da sala dos fundos. Encontrou um resumo do relatório da autópsia.
Lendo-o rapidamente, soube que um exame toxicológico fora feito, mas
nada de suspeito se descobrira, O exame microscópico denunciara a
existência de dano histológico às células nervosas de certos gânglios,
assim como ao músculo cardíaco.
Kelly juntou-se a Jeffrey no sofá. Seu rosto denunciava que ela
tinha algo sério para lhe contar.
- Houve um importante problema anestésico hoje no St. Joe's disse Kelly. - Ninguém quis falar muito, mas sei que foi um caso de
peridural. A paciente era uma jovem chamada Karen Hodges.
- Marcaína? - perguntou Jeffrey.
- Não sei ao certo. Mas vou descobrir, provavelmente amanhã. A
pessoa que me contou apenas supunha que devia ter sido Marcaína.
- Vítima número cinco - disse Jeffrey, com um suspiro.
- O que está dizendo?
Jeffrey contou-lhe tudo sobre o seu dia de pesquisas, começando
pela visita à Junta.
- Creio que o fato das mortes terem ocorrido em hospitais
diferentes aumenta as chances de uma adulteração deliberada. Estamos
lidando com alguém que é esperto o bastante para saber que mais de uma
morte à administração de anestesia peridural numa única instituição
despertaria suspeitas e provavelmente levaria a um inquéritO oficial.
- Então você acha realmente que alguém... uma pessoa... está
atrás de tudo isso?
- Cada vez mais - disse Jeffrey. - Estou quase certo da
existência de um contaminante. Fui à biblioteca hoje e, entre outras
coisas, me assegurei de que os anestésicos locais, e a Marcaína em
particular, não causam dano celular.., como o descrito na autópsia de


Henry Noble ou revelado nas micrografias eletrônicas de Patty Owen. A
Marcaína simplesmente não faz isso. Não por si mesma.
- Então o que poderia ter causado os acidentes?
- Ainda não estou certo - disse Jeffrey. - Li também muita coisa
sobre toxicologia e venenos na biblioteca. Estou convencido de que não
pode ser um veneno tradicional, pois então apareceria no exame
toxicológico. Minha tendência é pensar que seria uma toxina.
- Não são a mesma coisa?
- Não - disse Jeffrey. - Veneno é um termo mais geral. Aplica-se
a qualquer coisa que cause dano às células ou interrompa a função
celular. Geralmente, quando se fala em veneno pensa-se em mercúrio,
nicotina, estricnina.
- Também arsênico - acrescentou Kelly.
- Exatamente - concordou Jeffrey. - São todos elementos ou
produtos químicos inorgânicos. A toxina, porém, embora seja um tipo de
veneno, é produzida por uma célula viva. Como a que causa a sindrome do
choque tóxico. É produzida por uma bactéria.
- Todas as toxinas são produzidas por bactérias? - perguntou
Kelly.
- Nem todas - respondeu Jeffrey. - Algumas, muito potentes,
provêm de vegetais, como, por exemplo, o rícino da fava da mamona. Mas
as pessoas normalmente são muito familiarizadas com as toxinas sob a
forma de peçonha, como as produzidas por serpentes, escorpiões e certas
aranhas, O que quer que se tenha acrescentado à Marcaína deverá ser
muito potente. Tem que ser algo que possa ser fatal em quantidades
mínimas e ao mesmo tempo imite o efeito dos anestésicos locais com
grande perfeição. Não fosse assim, sua presença seria suspeitada. A
diferença, é claro, é que ela destrói as células nervosas, não se limita
apenas a bloquear a função delas, como fazem os anestésicos.
- Se isso foi injetado junto com a Marcaína, por que não aparece
no exame toxicológico?
Por duas razões. Primeiro, porque provavelmente é introduzido em
quantidades muito pequenas, e resta tão pouco na amostra, que não pode
ser detectado. Segundo, porque é um composto orgânico que pode se
esconder entre os milhares de compostos orgânicos que normalmente
existem na amostra de qualquer tecido. Para separar os compostos num
laboratório de toxicologia usa-se um instrumento chamado romatógrafo.
Contudo, esse instrumento não os separa de modo perfeito. Sempre ocorrem
sobreposições. Você termina com um gráfico
revelando uma série de picos e vales. Os picos podem refletir a presença
de um grande número de substâncias. É o espectrógrafo que revela
realmente os compostos que existem na amostra. Mas uma toxina pode ficar
obscurecida em um dos picos do cromatógrafo. A menos que você suspeite
da sua presença e saiba especificamente o que vai procurar, não encontra


nada.
- Puxa! Quer dizer então que se há alguém por trás disso, deve
realmente saber o que está fazendo. Isto é, tem que ser um cara
familiarizado com a toxicologia básica, não acha?
Jeffrey concordou, balançando a cabeça.
- Vim pensando nisto desde que saí da biblioteca até chegar
aqui. O assassino tem que ser médico. Alguém com um conhecimento bem
amplo de fisiologia e farmacologia. Um médico também teria acesso a uma
grande variedade de toxinas e a ampolas de Marcaína. Para ser franco,
meu suspeito ideal seria um dos meus colegas de especialidade: um
anestesista.
- Alguma idéia do motivo pelo qual um médico faria uma coisa
dessas? - perguntou Kelly.
- Pode ser que jamais se descubra - respondeu Jeffrey. - Por que
o Dr. X matou toda aquela gente? Por que puseram veneno nas pílulas de
Tilenol? Não creio que alguém saiba com certeza absoluta. É evidente que
se trata de pessoas mentalmente instáveis. Talvez as razões estejam na
mentalidade irracional de um indivíduo psicótico que tenha raiva do
mundo, da profissão médica ou dos hospitais e que, na sua mente
distorcida, acredite ser este o modo apropriado de se vingar.
Kelly estremeceu.
- Fico assustada ao pensar que um médico assim possa andar por
aí à solta.
- Eu também - disse Jeffrey. - Esse indivíduo pode ser normal a
maior parte do tempo mas sofrer episódios psicóticos. Pode ser a última
pessoa a despertar suspeitas. E, seja lá quem for, tem que desempenhar
uma função de confiança para ter acesso a tantas salas de cirurgia
hospitalares.
- Muitos médicos têm privilégios em tantos hospitais? perguntou Kelly.
Jeffrey deu de ombros.
- Não tenho a menor idéia, mas verificar isso provavelmente será
o próximo passo. Você poderia arranjar uma listagem de computador dos
profissionais de saúde do St. Joe's?
- Não vejo motivo para não conseguir. Sou amiga de Polly
Arnsdorf, a diretora de enfermagem. Quer também uma listagem dos
empregadOS?
- Por que não? - A pergunta dela o fez pensar no acesso
extraordinariamente fácil que ele tinha no Boston Memorial graças ao seu
cargo da equipe de limpeza. Jeffrey estremeceu, percebendo a enorme
vulnerabilidade de um hospital.
- Tem certeza de que não devemos procurar a polícia? - quis
saber Kelly.
Jeffrey sacudiu a cabeça.


- Nada de polícia, por enquanto - disse. - Mesmo que tudo pareça
muito convincente agora, é preciso lembrar que não temos uma única prova
para confirmar a nossa teoria. Por enquanto ainda é especulação da nossa
parte. Assim que obtivermos alguma evidência real, poderemos procurar as
autoridades. Se vai ser a polícia ou não, ainda não sei.
- Mas quanto mais esperarmos, mais chance o assassino terá de
atacar novamente...
- Eu sei - assentiu Jeffrey. - Mas sem mais provas e sem a menor
idéia de quem poderia ser o assassino, não estamos exatamente em
condição de detê-lo.
- Ou detê-la. - acrescentou Kelly, melancólica. Jeffrey
concordou. - Ou detê-la. - O que poderíamos fazer para acelerar as
coisas?
- Quais são as chances que você tem de me arranjar essas listas
dos médicos e empregados do Valley Hospital? Preste atenção: listas
preferivelmente do tempo em que Chris perdeu seu paciente.
Kelly deu um assobio.
- Bem, isso já me parece um bocado difícil - disse. - Posso
telefonar de novo para Hart Ruddock, ou tentar as poucas supervisoras de
enfermagem conhecidas que ainda estão lá. De um modo ou de outro, farei
uma tentativa amanhã.
- E vou tentar a mesma coisa no Memorial - disse Jeffrey,
perguntando-se em que lugar do hospital existiria uma lista daquelas.
Quanto mais cedo tivermos essas informações, melhor.
- Por que não ligo para Polly agora? - lembrou Kelly,
verifiCando as horas. - Ela geralmente fica até as cinco.
Ela dirigiu-se à cozinha para telefonar e Jeffrey ficou pensando
no horror daquele novo desastre com uma peridural no St. ioe's. Confirmava sua teoria do contaminante. Estava mais seguro ainda de que
havia um Dr. X solto na área de Boston.
Embora supusesse que o provável criminoso fosse um médico,
reconhecia que qualquer indivíduo com conhecimento de farmacologia podia
adulterar a Marcaína; não tinha que ser seguramente um médico. O
problema do acesso à droga levava-o a pensar em alguém da farmácia.
Desligando o telefone, Kelly voltou para o lado de Jeffrey, mas
não se sentou.
- Polly afirmou que posso ter a lista. Sem problema. De fato,
disse que se eu quisesse passar lá agora mesmo para pegar, podia. Sendo
assim, eu disse que ia.
- Maravilhoso - exclamou Jeffrey. - Só espero que tenhamos a
mesma cooperação nos outros hospitais. - Em seguida pôs-se de pé.
- Aonde vai? - perguntou Kelly.
- Vou lá com você.
- Não, nada disso. Vai ficar aqui e descansar. Acho-o muito


abatido. Devia ter dormido hoje, e em vez de dormir foi à biblioteca.
Você fica. Volto num segundo.
Jeffrey concordou com ela. Kelly tinha razão, sentia-se exausto.
Deitou no sofá e fechou os olhos. Ouviu Kelly dar a partida no carro e
sair, depois ainda ouviu a porta elétrica da garagem se fechando. A casa
ficou silenciosa, salvo pelo tique-taque do relógio carrilhão da sala.
Lá fora um tordo piou.
Jeffrey abriu os olhos. Dormir estava fora de questão; a
ansiedade não deixava. Levantou-se e foi até a cozinha telefonar. Ligou
para a sala do médico-legista, perguntando por Karen Hodges. Causada por
uma complicação anestésica, a morte dela caía na área de competência do
legista.
A secretária que atendeu Jeffrey informou que a autópsia de
Karen Hodges estava marcada para a manhã seguinte.
A seguir, ligou para o serviço de informações da companhia
telefônica para conseguir os números dos hospitais Commonwealth e
Suffolk General. Ligou para o Commonwealth primeiro. Quando a
telefonista atendeu, Jeffrey pediu o departamento de anestesia.
Completada a ligação, perguntou se o Dr. Mann ainda estava no hospital.
- Dr. Lawrence Mann?
- Correto - confirmou Jeffrey.
- Diabo, não trabalha aqui há mais de dois anos.
- Pode me dizer onde ele trabalha agora? - perguntou Jeffrey.
- Não sei exatamente. Em algum lugar de Londres. Mas não pratica
mais a medicina; parece que está no ramo de antiguidades.
Mais uma baixa por processo de imperícia, pensou Jeffrey. Ouvira
falar de Outros médicos que tinham desistido da profissão após serem
processados, mesmo que injustamente. Que desperdício de saber e talento!
A seguir ligou para o departamento de anestesia do Suffolk
General. Uma voz alegre de mulher atendeu.
- A Dra. Madaline Bowman ainda clinica nesse hospital? perguntou Jeffrey.
- Quem está falando? - O tom de voz tornou-se decididamente
menoS alegre.
- Dr. Webber - respondeu Jeffrey, inventando um nome. • Desculpe, Dr. Webber. Aqui é a Dra. Asher. Não quis ser rude, mas sua
pergunta me pegou de surpresa. Poucas pessoas perguntam pela Dra. Bowman
nos últimos tempos. Ela cometeu suicídio há alguns anos.
Jeffrey desligou lentamente o telefone. As baixas causadas pelo
assassino não eram somente vítimas submetidas a anestesia, pensou,
melancólico. Que rastro de destruição! Quanto mais pensava, mais se
convencia de que havia alguém por trás daquela sucessão de desastres
médicos aparentemente não relacionados: alguém com acesso às salas de
operação dos hospitais; e familiarizado, pelo menos, com a toxicologia


básica. Mas quem? Jeffrey estava mais determinado que nunca a ir até o
fim na sua pesquisa.
Dirigiu-se ao escritório de Chris. Apanhou o livro de
toxicologia que vira na primeira visita a Kelly e o levou para a sala
dos fundos. Ao se estirar, livrou-se dos sapatos e abriu o livro do
índice. Queria checar o texto no verbete Toxinas.
Devlin encostou junto à casa e estacionou. Abaixando-se, pôs-se a
observar a fachada. Era uma casa indefinível de tijolos, igual a tantas
Outras na área de Boston. Examinou de novo a lista. Estava relacionada
como sendo de um tal Jack Everson.
Já estivera em sete endereços de Eversons. Até agora não tivera
a menor sorte e começava a se perguntar se aquele trabalho todo valia a
pena. Mesmo que encontrasse o tal Christopher Everson, quem podia
garantir que o homem o levaria até Rhodes? Tudo podia não passar de uma
busca inútil.
Devlin também estava achando os Eversons um clã decididamente não cooperativo. Podia-se pensar que fazia perguntas íntimas sobre a
vida sexual daquela gente, e não meramente se conheciam um tal
Christopher Everson. Gostaria de saber o que tornava o morador comum da
área de Boston tão malditamente paranóico.
Em uma das casas tivera literalmente que agarrar um imundo tipo
barrigudo e dar-lhe uma boa sacudidela. O resultado foi que a mulher
dele apareceu, e era ainda mais feia que o marido, o que, na opinião de
Devlin, era algo extraordinário. Como um desses personagens de desenho
animado, ela trazia um rolo de amassar pastéis e ameaçou agredir Devlin,
a menos que largasse o marido. Devlin teve que arrancar-lhe o rolo das
mãos e atirá-lo na casa vizinha, onde havia um enorme pastor alemão
rangendo os dentes.
Depois disso os dois se acomodaram e, emburrados, garantiram
nunca ter ouvido falar de nenhum Christopher Everson. Devlin não
entendeu por que não lhe tinham dito isso logo.
Saltou do carro e espreguiçou-se. Não adiantava adiar o
inevitável, pensou, por mais que a idéia lhe agradasse. Subiu a escada e
tocou a campainha, dando uma olhada na vizinhança enquanto aguardava. As
casas não despertavam atenção, mas tinham jardins bem cuidados.
Observou novamente a porta interior, que era protegida por outra
porta exterior contra o inverno, esta de alumínio, guarnecida com dois
grandes vidros. Desejou que não fosse a sua segunda casa vazia. Nesse
caso teria que voltar, a menos que conseguisse uma pista de Christopher
Everson em outro lugar qualquer. A casa vazia que Devlin encontrara
anteriormente ficava em Watertown.
Tocou a campainha de novo. Já ia embora quando percebeu o
morador olhando-o por uma janelinha lateral. Era outra beldade com uma
barriga de bebedor de cerveja. Usava uma camiseta que não conseguia


cobrir toda a extensão do ventre. Tufos de cabelo parecendo palha de aço
saiam de baixo dos sovacos. Uma barba de cinco dias lhe cobria o rosto.
Devlin gritou que queria uma informação. O homem abriu a porta
interior, não mais que uns dois centímetros.
- Tarde - disse Devlin, através da porta de alumínio. - Desculpe
incomodá-lo...
- Dê o fora, cara - disse o homem.
- Ora, sua atitude não é muito simpática - disse Devlin. - Só
quero perguntar...
- O que há com você, é surdo? Eu disse para dar o fora, se nãO
quer arranjar encrenca.
- Encrenca? - indagou Devlin.
O homem fez um gesto para fechar a porta; Devlin perdeu a
paciência. Um golpe rápido, estilo caratê, espatifou o vidro superior da
porta de fora. Um pontapé arrancou a parte inferior e escancarou a porta
de dentro.
Num piscar de olhos, Devlin atravessou a porta de alumínio e
agarrou o homem pelo pescoço. Os olhos dele começaram a ficar
arregalados. - Quero fazer uma pergunta - berrou Devlin -, e é a
seguinte: estou procurando um cara chamado Christopher Everson. Você
conhece? Soltou o pescoço do homem, que tossiu, lançando perdigotos. Não me faça esperar - advertiu Devlin.
- Meu nome é Jack - disse o outro, com voz rouca. - Jack
Everson.
- Isto eu sabia - disse Devlin, recuperando o controle. - E o
que sabe sobre Christopher Everson? Você conhece? Já ouviu falar dele?
Creio que é um médico.
- Nunca ouvi falar - soprou o homem.
Desgostoso com a sorte, Devlin voltou ao carro. Riscou Jack
Everson e consultou o próximo nome da lista: K. C. Everson, em
Brookline. Inclinou-se e virou a chave da ignição. Pelo seu telefonema
anterior sabia que K era de Kelly. Gostaria de saber o significado do C.
Deu uma volta completa para pegar a Washington Street, que dava
na Chestnut Hill Avenue, de lá desembocando em Brookline. Chegaria à
casa desse K. C. Everson em cinco minutos, dez no máximo, se houvesse
trânsito em Cleveland Circle.
- A Sra. Arnsdorf o receberá agora - disse o secretário, um rapaz dois
Ou três anos mais moço que Trent, ou pelo menos foi o que este calcuJou.
Não tinha má aparência. Devia também praticar musculação. Trent gostaria
de saber por que a diretora de enfermagem tinha um secretário homem.
Imaginou que devia ser uma espécie de exibição, uma mostra de poder por
parte da mulher. Trent não gostava de Polly Arnsdorf.
Levantou-se e se estirou preguiçosamente. Não ia apressar-se
depois que ela o fizera esperar durante meia hora. Jogou a Time da


semana anterior sobre a mesinha. Voltou os olhos para o secretário e
surpreendeuse porque o outro o encarava fixamente.
- Algo errado? - perguntou Trent.
- Se quer falar com a Sra. Arnsdorf sugiro que entre logo na
sala - disse o secretário. - A agenda dela está cheia.
Vá tomar no rabo, pensou Trent. Gostaria de saber por que todo
mundo ligado à administração acha que seu tempo é mais valioso que o das
demais pessoas. Gostaria de dizer algo ofensivo ao secretário mas
conteve-se. Em vez disso, abaixou-se, tocou com as mãos nas pontas dos
pés e alongou os músculos da perna.
- A gente fica meio enferrujado sentado aí - disse. Em seguida
endireitou-se e estalou os dedos. Só então entrou na sala da chefe de
enfermagem.
Teve que sorrir quando a viu. Todas as supervisoras de
enfermagem tinham a mesma cara - pareciam bruxas. E também sempre eram
incapazes de decidir o que queriam ser: se enfermeiras ou
administradoras. Odiava todas elas. Como permanecia em cada hospital
aproximadamente uns oito meses, passara a ver mais supervisoras do que
gostaria nos últimos anos. Contudo, a entrevista de hoje era do tipo que
ele apreciava. Adorava causar problemas aos diretores. Com a atual
grande falta de enfermeiros, sabia como fazer isso.
- Sr. Harding - disse a Sra. Arnsdorf -, o que posso fazer pelo
senhor? Desculpe tê-lo feito esperar, mas com o problema que tivemos na
Cirurgia hoje, estou certa de que pode compreender.
Trent sorriu intimamente. Claro que podia compreender o problema
que ocorrera na Cirurgia. Mal sabia ela o quanto era capaz de
compreender...
- Eu devo avisá-la de que estou deixando o St. Joseph's Hospital
- disse Trent. - A partir de agora.
A Sra. Arnsdorf sentou-se, empertigada. Trent viu que mexera com
ela. Gostava disso.
- Sinto muito saber - disse ela. - Há algum problema que
possamos discutir?
- Não creio que eu esteja sendo aproveitado em todo o meu
potencial - respondeu Trent. - Como sabe, fui treinado na Marinha, onde
gozava de uma autonomia bastante maior.
- Talvez pudéssemos transferi-lo para outra seção - sugeriu ela.
- Receio não ser esta a solução - comentou Trent. - A senhora
vê, eu gosto da Cirurgia. O que me ocorreu é se não seria melhor para
mim um ambiente acadêmico, como o do Boston City Hospital. Decidi me
candidatar a um lugar lá.
- Tem certeza de que não vai reconsiderar?
- Receio que não. Há também outro problema. Nunca me dei bem com
a supervisora das salas de cirurgia, a Sra. Raleigh. Cá entre nós, ela


não sabe como tocar o barco, se entende o que quero dizer.
- Não estou certa de que entenda - disse a Sra. Arnsdorf.
Trent estendeu-lhe então uma lista que preparara com tudo o que
via como problemas na organização e funcionamento das salas de cirurgia.
Sempre sentira menosprezo pela Sra. Raleigh, e esperava que aquela
conversinha com a diretora das enfermeiras proporcionasse a ela sérios
aborrecimentos.
Saiu da sala de Polly Arnsdorf sentindo-se feliz. Pensou até em
bater um papo com aquele secretário para saber onde ele praticava
musculaçãO, mas havia outra pessoa na sala de espera. Trent a
reconheceu. Era a supervisora diurna do CTI.
Menos de meia hora após sua entrevista com Polly Arnsdorf, Trent
saiu do hospital com todos os seus pertences de higiene enfiados numa
fronha. Raramente se sentia tão bem. Tudo saíra melhor do que poderia
esperar. Enquanto se encaminhava para o ponto da Linha Laranja,
perguntou-se se conviria ir diretamente ao Boston City candidatar-se a
um emprego. Consultando o relógio, achou que era tarde demais. Amanhã
faria isso. Dedicou-se então a pensar para onde iria depois do Boston
City. San Francisco foi a primeira lembrança. Ouvira dizer que San
Francisco era um lugar onde um cara podia se divertir.
Quando a campainha da porta soou pela primeira vez, a mente de Jeftrey
incorporou-a com perfeição ao sonho que estava tendo. Encontrava-se de
novo no colégio, enfrentando o exame final de um curso no qual sequer se
matriculara, não tendo freqüentado nenhuma aula.
Foi um sonho terrível para ele, e sua testa ficou molhada de
suor. Sempre fora consciencioso nessa questão de estudos, sempre tivera
pavor de fracassar. No sonho, a campainha da porta soava como a
campainha do colégio.
Jeffrey adormecera profundamente, com o pesado livro de
toxicologia equilibrado sobre o peito. Quando a campainha tocou uma
segunda vez, ele pestanejou e o livro caiu no chão, fazendo barulho.
Momentaneamente confuso quanto ao local onde se encontrava, sentou-se na
cama e olhou em volta. Só então se orientou.
A princípio esperou que Kelly atendesse, mas lembrou então
que ela saira para ir ao St. Joe's. Levantou-se, mas o fez depressa
demais. O pouco sono aliado à sua exaustão geral fez com que se sentisse
subitamente tonto. Precisou apoiar a mão no braço do sofá para se
firmar. Levou um minuto inteiro para se recuperar e, de meias,
atravessou a cozinha e a sala de jantar até o hall da frente.
Agarrando a maçaneta, Jeffrey estava prestes a abrir a porta
quando notou o olho mágico. Inclinando-se, deu uma espiada. Ainda aturdido,
sua cabeça não estava funcionando bem. Quando se deu finalmente conta
que via dele o nariz bulboso e vermelho e os olhos lacrimosos de Devlin,


seu coração saltou e foi parar na garganta.
Jeffrey engoliu em seco e, cautelosamente, deu uma segunda
espiada. Era Devlin, sim. Ninguém mais podia ser tão feio.
A campainha soou de novo. Abaixando-se, Jeffrey deu um passo
atrás. O medo apertou com toda a força o seu peito. Para onde ir? O que
podia fazer? Como teria Devlin conseguido encontrá-lo? Estava apavorado
- não queria ser preso nem levar um tiro, especialmente agora, que ele e
Kelly tinham conseguido obter algum progresso. Se não descobrissem a
verdade, quem poderia dizer quando o monstro responsável por tantas
mortes e tanta angústia seria apanhado ou impedido de continuar agindo?
Para horror de Jeffrey, a maçaneta começou a girar. Estava um
tanto esperançoso de que o trinco estivesse corrido, mas por experiência
própria sabia que, se Devlin estivesse disposto a entrar, podia-se
apostar que conseguiria. Observou a maçaneta girando na direção
contrária. Deu outro passo para trás e esbarrou no serviço de chá que
ficava sobre a mesa do vestíbulo.
A terrina de creme e o açucareiro caíram no chão com um barulho
tremendo. O coração de Jeffrey deu outro pulo. A campainha tocou
diversas vezes seguidas. Jeffrey receou que tudo estivesse acabado. Era
o fim dele. Devlin certamente tinha ouvido aquele estrondo.
Viu então a cara dele comprimindo-se numa das estreitas
aberturas laterais que ficavam do lado da porta. Estava tapada por uma
cortina de renda, de modo que Jeffrey não tinha idéia do que Devlin
seria capaz de enxergar. Rapidamente, caminhando de lado, cruzou a
passagem em arco para a sala de jantar.
Como se antecipasse aquele movimento, Devlin apareceu em seguida
na janela da sala de jantar. Assim que ele pôs as mãos em concha e se
adiantou para o vidro, Jeffrey caiu sobre pés e mãos e engatinhou para
debaixo da mesa da sala. Em seguida, deslocando-se como um caranguejo,
bateu em retirada para a cozinha.
O coração de Jeffrey estava disparado. Quando conseguiu chegar
na cozinha, pôs-se de pé. Sabia que precisava encontrar um esconderijo.
A porta da despensa, parcialmente aberta, chamou sua atenção. Correu e
enveredou para aquela aromática escuridão. Nesse momento, bateu
desajeitadamente num esfregão encostado na porta, fazendo-O desabar no
chão da cozinha.
Fortes batidas na porta da frente pareciam sacudir a casa toda.
Jeffrey ficou meio surpreso por Devlin simplesmente não abrir caminho a
tiros. Fechou a porta da despensa. Preocupado com o esfregão, ficou
indeciso se valia a pena correr o risco de abrir a porta e pegá-lo, mas
decidiu que não. E se Devlin estivesse circulando em torno da casa e o
visse através de uma das janelas dos fundos? Alguma coisa esfregou-se
contra a perna de Jeffrey, que pulou e deu com a cabeça numa prateleira
cheia de latas. Algumas caíram no chão. O miado alto de um gato o


assustou mais ainda. Era Dalila, a gata prenhe. Jeffrey gostaria de
saber o que mais iria dar errado.
Depois que cessaram as batidas fortes na porta da frente, a casa
ficou em silêncio. Suando, Jeffrey esforçou-se para ouvir algo que lhe
desse uma pista do que Devlin estava fazendo. Súbito ouviu passos altos
no deque que ficava nos fundos da casa. Em seguida, outra porta foi
espancada com tanta violência que por certo seria arrancada das
dobradiças. Jeffrey supôs que Devlin estivesse na porta que levava à
sala dos fundos. Tinha certeza de que a qualquer minuto ouviria o
barulho do vidro se estilhaçando, um sinal de que Devlin entrara.
Apesar disso, o silêncio voltou. Dois minutos se passaram,
depois três. Jeffrey não estava certo sobre quanto tempo decorreu a
partir daí. Talvez fossem uns dez minutos até liberar a porta da
despensa, mas para ele pareceu uma eternidade. Dalila parecia ansiosa
por atenção, insistindo em se esfregar na sua perna. Jeffrey esperava
que se mantivesse quieta. Abaixou-se para dedicar-lhe uns afagos. Quando
começou a acariciá-la, ela arqueou o dorso, satisfeita, e relaxou. Após
alguns instantes, ele perdeu definitivamente a noção do tempo. Podia
ouvir o latejar do sangue nos ouvidos, mas não conseguia ver nada
naquela escuridão de breu. O suor pingava da nuca. A temperatura na
pequena despensa subia sempre. Subitamente houve outro barulho. Jeffrey
procurou inteirar-se do que era. Talvez a porta da frente sendo aberta!
O barulho seguinte não deixava dúvidas: a porta da frente bateu com
tanta força que sacudiu a casa.
Os dedos exaustos de Jeffrey agarraram de novo a porta da
despensa. Devlin conseguira entrar! Talvez tivesse usado uma gazua. Não
precisava ouvir a porta batendo com tanta força para saber que o homem
estava furioso.
Começou a se preocupar novamente por causa daquele estúpido
esfregão que, no chão da cozinha, apontava para a despensa, como
uma espécie de sinal. Devia tê-lo puxado para dentro na mesma hora em
que caíra. A única esperança de Jeffrey, agora, era que Devlin subisse,
dando-lhe uma chance de fugir pela porta dos fundos.
Passos leves percorreram rapidamente o andar térreo da casa e
entraram na cozinha, onde se detivera abruptamente. Jeffrey conteve a
respiração. Podia visualizar Devlin estudando o esfregão a apontar para
a despensa e coçando a cabeça. Com o último resquício de forças que lhe
restavam, enfiou as unhas na porta. Talvez Devlin, ao tentar abri-la,
pensasse que estava trancada.
Os braços de Jeffrey contorceram-se quando ele sentiu a porta da
despensa vibrar. Devlin pusera a mão no trinco e puxara com força.
Jeffrey resistiu, mas ainda assim a porta cedeu. O pequeno puxão foi
seguido por outro mais forte, que fez a porta abrir-se uns dois
centímetros antes de se fechar ruidosamente.


O puxão seguinte foi irresistível. A porta escancarou-se e
Jeffrey, arrancado de dentro da despensa, veio aos tropeços para a
cozinha, levantando as mãos para proteger a cabeça...
Cambaleando para trás de medo, Kelly levou uma das mãos ao peito
e deixou escapar um grito curto e agudo. Soltou o esfregão que apanhara,
junto com o envelope que vinha trazendo do St. Joe's. Dalila saiu
soprando da despensa e desapareceu na sala de jantar.
Os dois ficaram se olhando por um minuto. Foi Kelly a primeira a
se recuperar.
- O que há, algum tipo de jogo para me assustar sempre que chego
em casa? - perguntou. - Passei por aqui na ponta dos pés, pensando que
você podia estar dormindo.
Tudo o que Jeffrey conseguiu fazer foi desculpar-se; não
tencionara assustá-la. Agarrou-lhe a mão e puxou-a de encontro à parede
que separava a sala da cozinha.
- O que está fazendo agora? - perguntou Kelly, alarmada.
Jeffrey levou um dedo aos lábios para que ela fizesse silêncio.
- Lembra-se daquele homem de que lhe falei, o que atirou em mim?
Devlin? - Kelly abanou a cabeça em sinal afirmativo.
- Ele esteve aqui. Na porta da frente. Chegou a dar a volta pela
casa e experimentar a porta dos fundos.
- Não havia ninguém quando cheguei.
- Tem certeza?
- Absoluta - garantiu Kelly. - Vou verificar.
Ela se levantou, mas Jeffrey a segurou pelo braço. Só então
percebeu o quanto estava apavorado.
- Devlin sempre traz a sua arma. - Quer que eu chame a polícia?
- Não - respondeu Jeffrey. Na verdade não sabia exatamente o que
desejava que ela fizesse.
- Ora, por que não entra de novo na despensa enquanto vou dar
uma olhada? - sugeriu ela.
Jeffrey fez que sim. Não gostava da idéia de Kelly sozinha com
Devlin, mas como era a ele que Devlin queria, concluiu que a deixaria em
paz. De um modo ou de outro, tinham que descobrir se o homem estava
escondido nas proximidades da casa. Jeffrey voltou para a despensa.
Kelly saiu e checou a frente da casa. Olhou para um lado e outro da rua.
Depois, contornando a casa, verificou os fundos. Encontrou pegadas de
lama no deque, mas foi só. Voltou e fez Jeffrey sair da despensa. Assim
que ele saiu, Dalila entrou novamente, sempre soprando.
Ainda não convencido, Jeffrey fez cautelosamente a sua inspeção,
primeiro dentro, depois fora de casa, Kelly a acompanhá-lo. Estava
genuinamente assombrado. Por que Devlin teria desistido? Contudo, não ia
questionar essa sorte inesperada.
Voltando para o interior da casa, exclamou:


- Como diabos Devlin conseguiu me encontrar? Não falei com
ninguém que eu estava aqui! Você falou?
- Não. A ninguém.
Jeffrey foi diretamente ao quarto de hóspedes e puxou sua bolsa
debaixo da cama. Kelly ficou esperando na porta.
- O que vai fazer? - perguntou.
- Preciso ir embora antes que ele volte.
- Espere um minuto. Vamos conversar sobre isso. Talvez devamos
bater um papo antes de você sair. Pensei que estivéssemos nisto juntos.
- Não posso estar aqui quando ele voltar.
- Acha mesmo que Devlin sabe que você está aqui?
- É óbvio - respondeu Jeffrey, quase irritado. - Você acha que
ele anda por aí tocando a campainha de todas as casas de Boston?
- Não precisa ser tão sarcástico - disse Kelly, sem perder a
paciência.
- Desculpe. Não sou muito delicado quando me assustam. - Creio
que sei por que ele veio tocar a campainha aqui - disse Kelly. Você
deixou as anotações de Chris no hotel. O nome dele
estava em todas as folhas. Devlin deve estar seguindo essa pista com a
intenção de me fazer algumas perguntas.
Os olhos de Jeffrey se estreitaram enquanto ele avaliou aquela
possibilidade.
- Você acha mesmo que pode ser isso? - perguntou, animando-se
com a idéia.
- Quanto mais penso, mais me parece a única explicação razoável.
De outro modo, por que teria ido embora? Se soubesse que você se
encontra aqui, bastaria ficar estacionado aí fora até você aparecer.
Teria sido mais persistente.
Jeffrey aquiesceu. O argumento de Kelly fazia sentido.
- Penso que ele pode voltar - continuou Kelly -, mas não creio
que saiba da sua presença. Tudo isso só significa que você deve ser mais
cuidadoso ainda e que temos de imaginar uma explicação para o fato das
anotações de Chris estarem em seu poder, para o caso dele me perguntar.
Jeffrey aquiesceu de novo.
- Alguma sugestão?
Ele deu de ombros.
- Somos anestesistas. Você podia dizer que Chris e eu andamos
fazendo uma pesquisa juntos.
- Talvez precisemos de um argumento melhor, mas já é uma idéia.
De qualquer modo, você deve ficar, e não sair, de modo que é melhor pôr
de novo sua bolsa embaixo da cama.
Jeffrey suspirou, aliviado. Não queria realmente ir embora.
Jogou a bolsa para baixo da cama e seguiu Kelly.
A primeira coisa que ela fez foi baixar as cortinas da sala de


jantar, cozinha e sala dos fundos. Em seguida dirigiu-se à cozinha e
guardou o esfregão. Deu a Jeffrey as listas do pessoal de saúde e
empregados administrativos do St. Joe's.
Ele levou o envelope para o sofá e abriu-o. Havia uma boa
quantidade de nomes. Queria ver se descobria algum conhecido do Memorial
que tivesse tido privilégios no St. Joe's.
- Vamos preparar o jantar? - perguntou Kelly.
- Vamos - respondeu ele, erguendo a cabeça. Depois do episódio
na despensa não tinha certeza se seria capaz de comer. Mas também meia
hora antes não poderia supor que estaria agora descansando no sofá,
pensando em jantar.
***
Capítulo 11.
QUINTA-FEIRA, 18 DE MAIO DE 1989, 18:30.
- Por favor - começou Devlin. Uma senhora com aparência de seus sessenta
e tantos anos, cabelo branco, abriu a porta da sua casa em Newton.
Estava impecavelmente vestida com uma saia de linho branco, suéter azul
e colar de pérolas. Tentando focalizar o rosto de Devlin, apanhou os
óculos pendurados numa corrente dourada passada pelo pescoço.
- Dou-lhe a minha palavra, meu rapaz - disse, após uma boa
olhada em Devlin. - Você parece membro dos Hell's Angels.
- A semelhança já foi observada antes, madame, mas, para dizer a
verdade, nunca pus os pés numa moto. São perigosas demais.
- Então por que se veste desse jeito tão esquisito? - perguntou
ela, claramente intrigada.
Devlin sustentou o olhar da mulher, que parecia genuinamente
interessada. Sua recepção não podia ser mais diferente daquelas que
tivera nas outras residências de Eversons.
- A senhora quer mesmo saber? - perguntou.
- Estou sempre interessada no que motiva vocês, jovens.
Ser considerado jovem aqueceu o coração de Devlin. Aos 48 anos
de idade, há muito tempo não pensava mais em si como jovem.
- Descobri que este tipo de roupa ajuda no meu trabalho - disse.
- Então me diga, por favor, qual é o trabalho que requer que
adote uma aparência tao... - ela fez uma pausa, procurando a palavra
certa - ... tão assustadora?
Devlin riu, e começou a tossir. Sabia que precisava largar o
cigarro.
- Sou caçador de recompensas. Prendo criminosos que tentam
escapar à lei.
- Que excitante! - exclamou ela. - E nobre, também.
- Não sei bem se chega a ser nobre, madame. Faço isso por
dinheiro.


- Todo mundo tem que ser pago pelo que faz. Mas afinal, o que o
traz à minha porta?
Devlin explicou o caso de Christopher Everson, enfatizando que
não se tratava do fugitivo, mas sim de uma pessoa que poderia ter
informações sobre o fugitivo.
- Ninguém na família se chama Christopher - disse ela -, mas
acho que ouvi esse nome há alguns anos. Creio que o homem em que estou
pensando era médico.
- Isso parece encorajador - comentou Devlin. - Eu imaginava que
Christopher Everson fosse médico.
- Talvez eu possa perguntar a meu marido quando ele chegar. Ele
conhece melhor o lado Everson da nossa família. Afinal, é o lado dele.
De que modo eu posso entrar em contato com você?
Devlin deu seu nome e o telefone do escritório de Michael
Mosconi, e disse que podia deixar recado lá. Depois agradeceu pela ajuda
e voltou para o carro.
Devlin sacudiu a cabeça quando fez um círculo em torno do nome
de Ralph Everson na sua lista. Achou que valia a pena telefonar para lá,
se não aparecesse coisa mais promissora.
Deu a partida e arrancou com o carro. A próxima cidade da sua
lista era Dedham. Havia dois Eversons lá. Seu plano era pesquisar a zona
ao sul de Boston, ou seja, Dedham, Canton e Milton antes de retornar aos
limites da cidade.
Pegou a Hammond Street na direção de Tremont, e depois a antiga
Via Um. Esta o levaria diretamente ao centro de Dedham. Enquanto
dirigia, ia rindo da gama de experiências que estava tendo. Variavam de
um extremo a outro. Pensou no episódio da casa de Kelly C. Everson.
Tinha certeza de que havia alguém em casa - ouvira o barulho de alguma
coisa caindo no chão bem perto da porta. A menos que fosse um cachorro
ou um gato. Fez um círculo em torno daquele endereço também. Voltaria lá
se não aparecesse nada melhor.
Encontrar aquele doutor decididamente não era o trabalho fácil
que Devlin imaginara no começo. Pela primeira vez ele começou a matutar
sobre quais seriam as circunstâncias da prisão de Jeffrey por homicídio de segundo grau. Normalmente não se dava ao trabalho de
pesquisar a natureza do crime praticado, a não ser para ter uma idéia do
poder de fogo que seria necessário. A culpa ou inocência do réu não era
preocupação para ele.
Mas Jeffrey Rhodes estava se tornando um mistério, e também um
desafio. Mosconi não falara muito, exceto para explicar a situação da
fiança e dizer que o médico provavelmente não iria se comportar comO um
criminoso. E os pedidos de informação que Devlin fizera à sua rede no
submundo não tinham dado nenhum resultado. Ninguém sabia absolutamente
nada a respeito de Jeffrey Rhodes. Pelo visto, nunca fizera nada de


errado, uma situação única na sua experiência de caçador de recompensas.
Nesse caso, por que uma fiança tão vultosa? O Dr. Jeffrey Rhodes fizera
exatamente o quê?
Também não conseguia entender o comportamento de Rhodes desde
que tentara fugir para o Rio. Agora parecia outra pessoa. Não agia mais
como o fugitivo padrão. Na verdade, desde que lhe tomara o bilhete aéreo
para a América do Sul, não parecia mais disposto a fugir para lugar
algum. Estava trabalhando para um determinado fim - Devlin tinha certeza
disso. Sentia que os papéis que achara no Essex comprovariam essa
hipótese. Gostaria de saber se adiantaria alguma coisa pedir a um dos
médicos da polícia para dar uma olhada naquele mateterial. Como a
pesquisa dos Eversons não estava dando resultado, talvez conviesse usar
outra abordagem.
À despeito da insistência de Kelly para que não o fizesse,
Jeffrey ajudou com a louça depois do jantar, que consistiu em
peixe-espada com alcachofra. Ela ficou na pia, limpando os restos de
comida dos pratos, enquanto ele os trazia da sala dos fundos.
- A Cirurgia não foi o único lugar em que ocorreu uma tragédia disse Kelly, tentando limpar o suor da testa com a parte do braço acima
da luva de borracha. - Tivemos os nossos problemas no CTI também.
Jeffrey pegou uma esponja para limpar a mesa. - O que aconteceu?
- perguntou, distraído. Estava imerso em seus próprios pensamentos.
Preocupado com a próxima, e inevitável, visita de Devlin.
- Uma das enfermeiras do hospital morreu - disse Kelly. - Boa
enfermeira e boa amiga.
- Ela estava trabalhando quando aconteceu?
- Não, ela trabalhava no turno da noite da Cirurgia - respondeu Kelly. - Uma ambulância a trouxe de manhã, por volta das oito.
- Acidente de automóvel?
Kelly sacudiu a cabeça, e voltou ao trabalho.
- Nada disso. Pelo pouco que se sabe, teve uma crise.., um
insulto apoplético dentro de casa.
Jeffrey interrompeu o que fazia e ficou parado, com a esponja na
mão. A expressão usada por Kelly evocou-lhe a lembrança do que
acontecera com Patty Owen. Como se tivesse ocorrido ontem, podia ver seu
rosto fitando-o a suplicar ajuda, pouco antes da crise.
- Foi terrível - prosseguiu Kelly. - Ela teve esse insulto, ou o
que quer que tenha sido, na banheira. Bateu com a cabeça em alguma
coisa, com força. O bastante para fraturar o crânio.
- Terrível - comentou Jeffrey. - Foi o que a matou?
- Certamente não a ajudou a viver - disse Kelly. - Mas não foi o
que a matou. Desde o instante em que a equipe de emergência começou o
atendimento, seus batimentos cardíacos estavam irregulares. Acabou
morrendo de parada cardíaca no CTI. Conseguimos que o coração


funcionasse um pouco mais com um marca-passo. Mas já estava muito fraco.
- Espere um instante - disse Jeffrey, atônito com as semelhanças
entre a descrição da seqüência de eventos feita por Kelly e aqueles que
vira em Patty Owen ao reagir à Marcaína na desastrosa cesariana. Jeffrey
quis ter certeza de que entendera direito.
- Quer dizer então que uma das enfermeiras da Cirurgia foi
levada ao hospital após um insulto apoplético e uma espécie de problema
cardíaco? - insistiu.
- Exatamente - confirmou Kelly. Ela abriu a máquina de lavar
louça e começou a arrumar os pratos sujos. - Foi triste demais. Como
perder uma pessoa da família.
- Algum diagnóstico?
Kelly sacudiu a cabeça.
- Não. A primeira coisa em que pensaram foi em tumor cerebral,
mas o exame de ressonância magnética não acusou nada. Ela deve ter tido
algum problema cardíaco que se agravou. Foi o que um dos residentes de
clínica geral me disse.
- Qual era o nome dela?
- Gail Shaffer.
- Conhece alguma coisa sobre a sua vida particular? - perguntou
Jeffrey.
- Um pouco. Como lhe disse, era minha amiga.
- Conte-me.
- Era solteira, mas creio que tinha namorado firme.
- Você o conhece?
- Não. Só sei que era estudante de medicina. Ei, por que o
interrogatório?
- Nao estou muito certo - respondeu Jeffrey -, mas assim que
você começou a falar de Gail, não pude deixar de pensar em Patty. A
seqüência foi igual. Um problema cerebral e um problema cardíaco.
- Você não está querendo dizer... - Kelly não conseguiu terminar
a frase.
Jeffrey sacudiu a cabeça.
- Eu sei. Eu sei. Estou começando a parecer um desses obcecados
que vêem uma conspiração por trás de tudo. Mas é uma seqüência tão
incomum! Acho que, nesta altura, estou sensível demais a tudo que pareça
SuSpeito, mesmo que remotamente.
Às onze horas, Devlin achou que era tempo de desistir e dar a
noite por terminada. Tornara-se tarde demais para esperar que as pessoas
fossem abrir a porta de suas casas a um estranho. Além disso, ele tinha
trabalhado demais naquele dia, e estava exausto. Esperava que o seu
palpite de encontrar Chris Everson na área de Boston fosse correto.
Visitara todos os Eversons nos subúrbios ao sul da cidade, sem
resultados apreciáveis. Uma ou outra pessoa dissera ter ouvido falar num


Dr. Christopher Everson, mas ninguém sabia onde o homem morava ou
trabalhava.
Já que se encontrava agora nas proximidades, decidiu fazer uma
visita a Michael Mosconi. Sabia que era tarde, mas não se incomodou.
Entrou pela North End e estacionou em fila dupla, junto com muitos
outros, na Hanover Street. Dali seguiu pelas ruas estreitas que iam dar
na Unity Street, onde Michael tinha uma casa modesta de três andares.
- Espero que isto signifique que você tem boas-novas para mim disse Michael, abrindo a porta para Devlin. Michael estava com um robe
marrom de poliéster imitando cetim, e tinha os pés enfiados em velhos
chinelos de couro. A Sra. Mosconi apareceu no topo da escada para ver
quem seria a visita daquela hora da noite. Estava com um robe de
chenille vermelho e tinha o cabelo preso com grampos, coisa que Devlin
achava que não existia mais desde os anos 50. Tinha uma gosma qualquer
aplicada no rosto; Devlin supôs que devia ser para retardar o processo
de envelhecimento. Deus ajude o ladrão que,
inadvertidamente, arrombe esta casa, pensou. Uma olhada na Sra. Mosconi
no escuro e o cara morreria de terror.
Mosconi levou Devlin para a cozinha e ofereceu-lhe uma cerveja,
aceita com entusiasmo. Foi até a geladeira e tirou uma garrafa de
Rolling Rock.
- E o copo? - perguntou Devlin com um sorriso.
Mosconi fechou a cara. - Não abuse da sorte.
Devlin tomou um gole dos grandes e esfregou as costas da mão na
boca.
- Como é... pegou o cara?
Devlin sacudiu a cabeça.
- Ainda não.
- Então o que é isto, uma visita social? - perguntou Michael,
com o sarcasmo de sempre.
- Negócios - respondeu Devlin. - Por que esse tal Jeffrey Rhodes
está sendo procurado?
- Cristo, dê-me paciência - exclamou Michael, com os olhos
erguidos para o céu, fingindo rezar. Depois voltou-se de novo para
Devlin e disse: - Já lhe expliquei: homicídio em segundo grau. Ele foi
condenado por homicídio em segundo grau.
- E foi ele mesmo? - Como diabos posso saber? - retrucou
Michael, exasperado. - Ele foi condenado. Para mim é o bastante. Que
droga de diferença isso faz?
- Este não é um caso comum. Preciso de mais informação.
Mosconi deixou escapar um suspiro de raiva.
- O cara é um médico. A condenação dele tem qualquer coisa a ver
com imperícia e drogas. Não sei mais nada além disso. Devlin, que diabo
está acontecendo com você? Que diferença faz? Quero Rhodes preso,


entende?
- Preciso de mais informação - repetiu Devlin. - Acho que se
souber mais a respeito da condenação, terei uma idéia melhor do que o
cara está pretendendo fazer.
- Talvez eu deva simplesmente convocar reforços - disse Mosconi.
- Talvez um pouco de competição amigável entre, digamos, uma meia dúzia
de vocês, caçadores de recompensas, venha propiciar resultados mais
rápidos.
Competição não era bem o que Devlin queria. Havia muito dinheiro
em jogo. Pensando depressa, ele contrapôs:
- A única coisa a nosso favor, no momento, é o fato do doutor em Boston.
Se quiser que ele fuja, que vá para a América do Sul, onde estaria agora
se eu não o detivesse, então pode acionar os seus reforços. - Tudo o que
quero saber é quando você o porá na cadeia. - Dê-me uma semana - pediu
Devlin. - Dê-me cinco dias. Mas tem de me arranjar a informação que
preciso. Esse médico está pretendendo fazer alguma coisa. Assim que
souber o que é, ponho as mãos nele.
Devlin deixou a casa de Mosconi e voltou para o carro. Mal
conseguia manter os olhos abertos no trajeto para o seu apartamento, em
arlestown. Mas ainda tinha que entrar em contato com Bill Bartley, o
tipo que contratara para seguir Carol Rhodes. Apanhou o telefone do
carro.
A ligação não estava muito boa. Teve que gritar para se fazer
ouvir acima da estática.
- Algum telefonema do doutor? - berrou Devlin.
- Nada, nada - respondeu Bill, parecendo que falava da lua. - A
única coisa vagamente interessante foi uma ligação de um possível
amante. Um corretor de Los Angeles. Você sabia que ela está se mudando
para Los Angeles?
- Tem certeza de que não era Rhodes? - berrou Devlin.
- Não creio que fosse - disse Bill. - Eles inclusive fizeram
piadas sobre o doutor em termos nada lisonjeiros.
Maravilhoso, pensou Devlin após desligar. Não admira que Mosconi
tivesse achado que Carol e Jeffrey não eram um casalzinho apaixonado.
Pelo jeito, estavam se separando. Teve a sensação de que ter Bill na
folha de pagamento era jogar dinheiro fora, mas considerava grande o
risco de não seguir Carol. Ainda não podia abandoná-la.
Quando Devlin galgou a escada da frente do seu prédio, na
Monument Square, suas pernas pesavam feito chumbo, como se tivesse
lutado na batalha de Bunker Hill. Não conseguia se lembrar da última vez
em que se deitara. Sabia que estaria adormecido antes da cabeça encostar
no travesseiro.
Acendeu a luz e parou na porta. A casa estava uma bagunça.
Revistas e garrafas vazias espalhadas por toda parte. Cheiro de mofo, de


abandono. Inesperadamente, sentiu-se solitário. Cinco anos atrás tinha
mulher, dois filhos, um cachorro. Depois houve aquele lance da tentação.
"Ora vamos, Dev. O que há com você? Não me diga que
não tem o que fazer com cinco mil extras. Só precisa manter a boca
calada. Vamos, todos nós fazemos isso. Praticamente todo mundo na
polícia."
Devlin jogou a jaqueta em cima do sofá e se livrou das botas de
caubói. Entrando na cozinha, pegou uma lata de cerveja. Voltando à sala,
sentou-se numa das poltronas puídas. Recordar o passado sempre o deixava
de mau humor.
Fora uma armadilha, uma operação destinada a enganá-lo. Devlin e
muitos outros policiais foram indiciados e expulsos da corporação.
Apanharam-no em flagrante, com o dinheiro na mão. Pagando a entrada de
uma casinha no Maine, para que os garotos tivessem para onde ir no
verão.
Acendeu um cigarro e puxou uma tragada funda. Logo em seguida
tossiu violentamente. Inclinando-se, esmagou o cigarro no chão e o
arremessou num canto da sala. Tomou outro gole de cerveja. O líquido
gelado ajudou a atenuar o ardor da garganta.
As coisas sempre tinham sido meio difíceis entre ele e Sheila,
mas antigamente sempre conseguiam dar um jeito. Pelo menos até o
episódio do suborno. Aí ela pegara os garotos e voltara para Indiana.
Houve uma disputa pela guarda deles, mas Devlin não tivera a menor
chance. Não com uma condenação por crime de suborno e uma curta estada
em Walpole na sua ficha.
Pensou em Jeffrey Rhodes. Como a de Devlin, a vida dele parecia
fazer-se em pedaços. Gostaria de saber que tipo de tentação o outro
enfrentara. Imperícia e drogas pareciam uma combinação estranha, e
Jeffrey certamente não parecia um drogado aos olhos de Devlin. De
repente, sorriu. Talvez Mosconi tivesse razão. Talvez estivesse ficando
mole.
Jeffrey trabalhou com um entusiasmo bastante menor que o da noite
anterior, e isso agradou muitíssimo a David, que inclusive repetiu O
comportamento amigável da primeira hora. Revelou a Jeffrey uns truques
espertos para realizar o trabalho, coisa um pouco melhor do que varrer a
sujeira para debaixo do tapete.
Com a visita de Devlin, Jeffrey passou a ver o trajeto para o
trabalho como uma verdadeira provação. Tinha certeza de que Devlin
estaria esperando para prendê-lo no instante em que saísse do tranqüilo
bairro onde morava Kelly. Ficou tão apreensivo que chegou a pensar em se
fazer de doente.
Contudo, ela surgiu com uma solução perfeita. Ofereceu-se gentilmente para levá-lo de carro, o que Jeffrey achou muito melhor que
pegar uma condução ou um táxi. Ainda assim, relutou em pôr em risco a


sua vida. Acabou decidindo que Kelly estaria a salvo se ele se
escondesse no carro desde o interior da garagem. Assim, se Devlin
cstivesse vigiando, pensaria que ele havia permanecido em casa. E foi o
que fizeram. Jeffrey deitou-se no banco de trás e Kelly, por medida de
segurança, o cobriu com uma manta. Só quando estavam a uns dois
quilômetros de casa é que Jeffrey passou para o banco da frente.
Por volta das três da madrugada, David anunciou que era a hora
do lanche. Jeffrey novamente disse que não tinha fome, o que lhe valeu
um demorado olhar de desaprovação. Depois que David e os outros se
encaminharam para a saleta que servia como refeitório para o pessoal da
limpeza, ele pegou seu carrinho e desceu para o primeiro andar.
Sempre empurrando o indispensável carrinho, Jeffrey passou pela
entrada principal e virou à esquerda no corredor do centro. Encontrou
poucas pessoas, a maioria empregados dirigindo-se à lanchonete.
Como de hábito, ninguém lhe deu a menor atenção, apesar do
barulho que o carrinho fazia.
Parou na frente dos escritórios do departamento de pessoal. Não
tinha certeza se as chaves mestras abririam a porta. Quando se ofereceu
para limpar aquele lugar, David dissera que a limpeza das áreas
administrativas do hospital era feita pelo pessoal do turno da tarde.
Esperando que não aparecessem pessoas familiarizadas com a
rotina da limpeza, Jeffrey experimentou as diversas chaves de argola que
David lhe dera. Não foi preciso muito tempo para descobrir a que servia.
Todas as luzes estavam acesas. Jeffrey empurrou o carrinho, entrou e
fechou a porta. Sempre empurrando o carrinho, foi de sala em sala,
verificando se o local estava mesmo deserto, até que por fim viu-se no
escritório de Carl Bodanski.
O primeiro lugar em que procurou foi a mesa de Bodanski. Abriu
rapidamente todas as gavetas. Não tinha sequer certeza se existia aquilo
que procurava, e muito menos onde seria guardado. Precisava de uma lista
do pessoal de saúde e empregados administrativos relativa à setembro de
1988. A seguir tentou o terminal de computador por uns quinze minutos.
Não teve sorte. Conhecia bastante o computador do hospital no que dizia
respeito aos registros de pacientes, mas não estava familiarizado com os
sistemas usados pelas áreas de pessoal e administrativa. Provavelmente
era preciso conhecer chaves de código ou senhas, e ele
não conhecia, de modo que tinha pouca chance de conseguir acesso aos
arquivos certos. Acabou desistindo.
Concentrou-se em seguida numa fileira de arquivos que tomavam
toda uma parede da sala. Escolheu uma gaveta qualquer e puxou. Foi então
que ouviu barulho da porta principal sendo aberta.
Jeffrey só teve tempo de correr e esconder-se atrás da porta
aberta da sala de Bodanski. Dali ouviu alguém atravessar a sala e
sentarse à mesa da secretária de Bodanski.


Dando uma olhada pela fresta entre a porta e o batente, só lhe
foi possível ver o perfil da pessoa inclinada sobre a mesa.
O que ouviu a seguir foi o barulho do fone sendo retirado do
gancho e os bipes melodiosos do teclado. E uma voz:
- Alô, mamãe! Como vai? Que tal esse tempo maravilhoso do Havaí?
- A cadeira da secretária rangeu, e a pessoa, recostando-se, surgiu
diante dos olhos de Jeffrey. Era David Arnold.
Jeffrey teve que esperar vinte minutos, enquanto David se
atualizava com as notícias de casa. Finalmente desligou e foi embora. Um
pouco enervado pela interrupção, Jeffrey voltou à gaveta que abrira.
Continha fichas individuais de empregado, arrumadas por departamento e
por ordem alfabética.
Na outra gaveta correu os olhos pelos marcadores de plástico que
serviam para dividir o arquivo. Já ia fechá-la quando se deteve num que
dizia: Fundo Unido.
Jeffrey tirou a pasta e abriu-a numa mesa próxima. Dentro dela
havia divisões destinadas a cada um dos últimos seis anos. Pegou a de
1988. Sabia que o hospital rodava a listagem do Fundo Unido em outubro.
Não era setembro, mas ficava bem perto. E dessa listagem constavam todos
os médicos, todos os empregados.
Tirou uma cópia e, depois de colocar o original exatamente no
mesmo lugar, enfiou-a na prateleira de suprimentos do carrinho. Um
momento depois estava no corredor principal.
Não voltou diretamente para o andar da Cirurgia. Em vez disso,
levou o carrinho até a farmácia, passando pela sala de emergênciaimpulsivamente, decidiu ver até onde seu uniforme de faxineiro o
levaria.
A farmácia tinha um balcão no qual os medicamentos pedidos pelas
diversas seções eram arrumados para distribuição. Parecia quase uma
farmácia de varejo. Ao lado do balcão havia uma porta. Encostando o
carrinho, Jeffrey experimentou suas chaves. Uma delas serviu.
Sabia que estava se arriscando, mas mesmo assim empurrou o
carrinho pela porta e seguiu pelo corredor interno. Á esquerda e à
direita
havia fileiras e mais fileiras de estantes de metal, do chão ao teto.
Cartões em cada prateleira informavam os remédios ali existentes.
Avançou vagarosamente, lendo com cuidado cada rótulo. Procurava os
anestésicos locais.
Saindo de trás de uma estante, uma das empregadas da farmácia do
turno da noite apareceu e aproximou-se de Jeffrey. Tinha as mãos cheias
de remédios. Ele parou, na expectativa de ter que se explicar, mas a
mulher limitou-se a cumprimentá-lo com um aceno de cabeça e continuoU
andando rumo ao balcão que se comunicava com o corredor do hospital.
Mais uma vez abismado com a facilidade de acesso que sua posição


de faxineiro lhe proporcionava, Jeffrey continuou a busca dos
anestésicos locais. Finalmente encontrou-os. Estavam numa prateleira
baixa, e muitas caixas de Marcaína com ampolas de diversos tamanhos,
inclusive 30 ml. Jeffrey não pôde deixar de notar como eram acessíveis.
Qualquer pessoa que trabalhasse na farmácia podia facilmente ter a
oportunidade de colocar uma ampola adulterada no suprimento. E essa
pessoa certamente teria também o tipo de conhecimento necessário.
Jeffrey suspirou. Ao que parece, em vez de estreitar, estava
ampliando o círculo dos suspeitos. Como poderia ter esperança de um dia
encontrar o criminoso? De qualquer modo, não podia deixar de lado a
farmácia. O argumento contra a hipótese do culpado ser alguém que
trabalhasse naquela seção era que não teria a mobilidade de um médico.
Embora pudesse desfrutar de livre acesso aos suprimentos do hospital,
não era provável que tivesse a mesma liberdade em outras dependências.
Fazendo a volta com o carrinho, Jeffrey dispôs-se a sair.
Enquanto caminhava, conscientizou-se de que não teria que pensar apenas
na farmácia - teria que pensar também no pessoal da limpeza.
Considerando as facilidades que ele próprio estava tendo no seu segundo
dia de hospital, podia imaginar como seria fácil para qualquer um dos
outros membros da limpeza esgueirar-se para o interior da farmácia, tal
como fizera. O único problema era que as pessoas que trabalham na faxina
não têm o conhecimento requerido em fisiologia e farmacologia. Podiam
ter acesso, mas lhes faltava o know-how.
Jeffrey parou subitamente. Mais uma vez pensou no seu caso.
Ninguém sabia que era um anestesista com um amplo campo de
conhecimentos. O que impediria alguém do mesmo nível de arranjar um
emprego de faxineiro, exatamente como ele fizera? O círculo de suspeitos
ampliou-se de novo.
Quando finalmente o relógio foi se aproximando das sete horas,
Jeffrey voltou a pensar em Devlin, com medo dele voltar e aterrorizar
Kelly. Se acontecesse algo a ela, jamais se perdoaria. Às seis e meia
telefonou para saber como estava e perguntar se houvera algum sinal de
Devlin.
- Não o vi nem ouvi nada a noite toda - assegurou Kelly. Quando
me levantei, há meia hora, fui olhar lá fora. Não havia carros estranhos
nem ninguém à vista.
- Talvez eu devesse ir para um hotel, para ficar absolutamente
seguro.
- Prefiro que você fique aqui - disse Kelly. - Estou convencida
de que é seguro. Para dizer a verdade, me sinto mais segura com você em
casa. Se está preocupado por ter que entrar pela porta da frente,
deixarei a dos fundos aberta. Faça com que o táxi o deixe na rua que
passa por trás da casa e caminhe protegido pelas árvores.
Jeffrey ficou comovido com o fato de Kelly querer tão


intensamente tê-lo em sua casa. Devia admitir que preferia mil vezes ir
para lá do que para um hotel. Na verdade, preferia a casa de Kelly à
sua.
- Deixarei as cortinas abaixadas. Basta que não atenda à porta
ou ao telefone. Ninguém saberá que está aqui.
- Está bem, está bem. Eu vou.
- Mas tenho um pedido a fazer - disse Kelly.
- Qual é?
- Não saia de repente de dentro da despensa, me assustando
quando eu voltar.
- Prometo que não - disse Jeffrey, dando uma risada. Gostaria de
saber quem levou o susto maior naquele episódio.
Às sete da manhã levou o carrinho para o depósito. Enquanto o
elevador descia, fechou os olhos. Parecia-lhe que estavam cheios de
areia. Estava tão exausto que começava a se sentir enjoado.
Guardou o carrinho e entrou no vestiário para trocar de roupa.
Já em trajes caseiros enfiou as cópias que tirara no bolso de trás.
Fechando o armário e dando um giro na combinação, Jeffrey
levantou-se. David entrou e aproximou-se dele.
- Recebi um telefonema - disse, olhando desconfiado para
Jeffrey. - Você deve ir ver o Sr. Bodanski imediatamente na sala dele.
- Eu? - Jeffrey sentiu uma pontada de medo. Seu disfarce teria
sido descoberto?
David examinou-o, inclinando a cabeça para um lado.
- Tem qualquer coisa de suspeito em você, Frank - disse. você será algum tipo de espião que a administração mandou para ver se
estamos fazendo o nosso trabalho?
Jeffrey deu uma risada curta e nervosa.
- Nada disso - respondeu. O fato de que David pudesse suspeitar
de tal coisa jamais lhe ocorrera.
- Então por que é que o diretor do pessoal quer ver você às sete
da manhã? O homem geralmente não chega antes das oito.
- Não tenho a menor idéia - disse Jeffrey. Contornou David e
saiu porta afora. David seguiu-o, e juntos eles subiram a escada.
- Por que você não come na hora do lanche como fazem as pessoaS
normais?
- É só porque não sinto fome - respondeu Jeffrey. Mas as
suspeitas de David não o preocupavam muito. Preocupado ele estava era
com o motivo pelo qual Bodanski queria vê-lo. A princípio pensou que sua
verdadeira identidade fora descoberta. Mas, nesse caso, não fazia
sentido Bodanski falar com ele. O mais lógico seria simplesmente chamar
a polícia.
Chegaram no primeiro andar e Jeffrey abriu a porta que dava no
corredor principal. Poderia fugir pela frente se David não o estivesse


seguindo, ainda receoso de que ele fosse uma espécie de vigia da
administração. Jeffrey dirigiu-se para o departamento do pessoal.
Foi quando teve outra idéia. Podia ser que alguém o tivesse
visto ali de madrugada, usando a copiadora. Ou talvez na farmácia. Mas
se fosse um desses dois problemas, o normal não teria sido uma
comunicação a David, o supervisor do seu turno? Ou a José Martinez,
chefe do departamento de manutenção e limpeza? Não teria recebido de um
deles a reprimenda ou mesmo a ordem de demissão?
Não sabia o que pensar. Respirou fundo e empurrou a porta do
departamento. Tudo parecia tão deserto quanto às três e meia da manhã.
Todas as mesas vazias. As máquinas de escrever em silêncio. As telas dos
computadores, escuras. O único ruído vinha do lado da copiadora e era de
uma máquina de café funcionando.
Entrando no escritório de Bodanski, Jeffrey viu o homem sentado
à sua mesa. Tinha uma listagem de computador na frente e um lápis
vermelho na mão. Jeffrey bateu duas vezes na porta aberta. bOdanski
levantou a cabeça. - Ah, Sr. Amendola - disse Bodanski, pondo-se de pé
num pulo, como se Jeffrey fosse uma visita importante. - Obrigado por
vir. Por favor, sente-se.
Jeffrey sentouse, mais confuso que nunca quanto ao motivo pelo
qual fora chamado. Bodanski perguntou se queria um café. Quando Jeffrey
recusou, sentou-se também.
- Primeiro, eu gostaria de dizer que todos os relatórios indicam
que o senhor se tornou um empregado valioso para o Boston Memorial.
- Fico satisfeito em saber - disse Jeffrey.
- Gostaremos de tê-lo conosco tanto tempo quanto quiser continuou Bodanski. - Na verdade, esperamos que fique conosco. Pigarreou e brincou com o lápis vermelho.
Jeffrey teve a nítida impressão de que Bodanski estava mais
nervoso que ele.
- Suponho que queira saber por que o chamei aqui. É um pouco
cedo para mim, mas quis vê-lo antes que fosse para casa. Sei que está
cansado e com sono.
Vamos logo, pensou Jeffrey.
- Tem certeza de que não quer café? - perguntou Bodanski de
novo.
- Para dizer a verdade, eu gostaria de ir para casa e dormir.
Talvez o senhor possa simplesmente me dizer por que queria me ver.
- Sim, claro - disse Bodanski. Levantando-se, começou a andar de
um lado para o outro no pequeno espaço atrás da sua mesa. - Não sou bom
nesse tipo de coisa - acrescentou. - Talvez devesse ter pedido ajuda ao
departamento de psiquiatria ou, no mínimo, do serviço social. Realmente
não gosto de me meter na vida dos outros.
Uma bandeira vermelha foi hasteada na cabeça de Jeffrey. Alguma


coisa ruim estava a caminho; podia sentir.
- A rigor, o que o senhor está tentando dizer? - perguntou
Jeffrey.
- Bem, deixe que eu coloque da seguinte forma. Sei que o senhor
andou se escondendo.
A boca de Jeffrey ficou seca. Ele sabe, pensou. Ele sabe.
- Na minha opinião entendo que o senhor teve grandes problemas.
Achei que podia prestar-lhe uma pequena ajuda, e por isso liguei para
sua mulher.
Jeffrey agarrou os braços da cadeira e chegou o corpo para a
frente.
- Ligou para minha mulher? - perguntou, incrédulo.
- Tenha calma - aconselhou Bodanski, erguendo as mãos, com as
palmas para baixo. Sabia que aquilo ia irritar o homem.
Calma, pensou Jeffrey, alarmado. Estava além da sua compreensão
o motivo pelo qual Bodanski falara com Carol.
- Na verdade, sua esposa encontra-se aqui - prosseguiu Bodanski
apontando em direção à porta. - Está ansiosa para vê-lo. Sei que
tem algumas coisas importantes para discutir com o senhor, mas
achei melhor avisá-lo da sua presença do que deixar que o surpreendesse.
Jeffrey sentiu um súbito ímpeto de ódio. Estava furioso com
aquele diretor de pessoal intrometido e também com Carol. Logo agora,
que estava fazendo algum progresso, aquilo tinha de acontecer.
- O senhor chamou a polícia? - perguntou Jeffrey, tentando se
preparar para o pior.
- Não, claro que não - disse Bodanski, encaminhando-se para as
portas duplas de vaivém.
Jeffrey o seguiu. Avaliava se ainda poderia evitar aquela
catástrofe. Bodanski abriu uma das portas e afastou-se para um lado a
fim de deixar Jeffrey passar. O sorriso condescendente que exibia
irritou-o ainda mais. Acabou entrando numa sala de conferências onde
havia uma mesa comprida, cercada por cadeiras do tipo universitário.
Com o canto do olho, viu uma figura correndo na sua direção.
Numa fração de segundo, concluiu que se tratava de uma armadilha. Não
era Carol quem estava ali, mas Devlin! Só que a figura correndo para ele
era uma mulher. Enlaçou-o, apertando-o nos braços, enterrando a cabeça
no peito dele. Soluçava.
Jeffrey olhou para Bodanski, em busca de socorro. Certamente não
se tratava de Carol. Aquela mulher tinha três vezes o peso dela. Seu
cabelo emaranhado tinha a cor da palha.
Os soluços da mulher começaram a cessar. Largou uma das mãos e
levou um lenço de papel ao nariz. Assoou com força e levantou os olhos.
Jeffrey encarou seu rosto largo. Os olhos, que inicialmente
refletiam alegria, passaram imediatamente a cintilar de raiva. As


lágrimas cessaram tão abruptamente quanto tinham começado.
- Você não é meu marido! - berrou a mulher, indignada. Empurrou
Jeffrey para longe.
- Não sou? - perguntou ele, tentando dar algum sentido àquela
cena.
- Não! - gritou ela, agora dominada pela emoção. Avançou cOntra
Jeffrey com os punhos cerrados. Lágrimas de frustração deslizavam pelo
seu rosto.
Jeffrey recuou, contornando a mesa de conferências, enquanto o
apalermado diretor tentava ir em seu auxílio.
A mulher voltou-se então contra Bodanski, acusando-o, aos gritos, de ter se aproveitado dela. Mas, um minuto depois, exausta de tanto
chorar, desmaiou nos braços dele. Era peso demais para um homem normal,
mas com grande esforço Bodanski conseguiu manobrar aquela montanha
feminina para uma das cadeiras onde ela desabou, transformada numa massa
soluçante.
Um aturdido Bodanski pegou o lenço branco que aparecia no bolso
do seu paletó e limpou a boca onde a mulher o atingira. Um pouquinho de
sangue manchou a seda do lenço.
- Eu nunca devia ter tido esperanças - lamentou-se ela. - Não
podia ter acreditado que Frank tivesse arranjado um emprego de faxineiro
num hospital.
Jeffrey finalmente entendeu a situação. Aquela era a Sra.
Amendola, a mulher do homem de terno esfarrapado. Agora que já sabia,
não pôde acreditar que tivesse levado tanto tempo para entender o que se
passava. Deu-se conta também de que Bodanski não demoraria muito para
atinar com a situação. E quando isto acontecesse, podia insistir em
chamar a polícia. Muitas explicações seriam necessárias para sair
daquela embrulhada.
Enquanto o diretor tentava consolar a Sra. Amendola, Jeffrey
recuou até as portas de vaivém. Bodanski lhe disse para esperar, mas ele
ignorou-o. Saindo do departamento do pessoal, correu para a porta de
fora, confiando que Bodanski se sentiria compelido a permanecer com a
Sra. Amendola.
Uma vez afastado do hospital, reduziu a velocidade. Não queria
dar ao pessoal da segurança motivo para persegui-lo.
Caminhando num passo vivo, foi até o ponto de táxis e pegou o
primeiro que estava disponível. Deu ao motorista instrução para levá-lo
a Brookline. Só depois que o carro começou a virar à direita, na Beacon
Street, Jeffrey arriscou um olhar para trás. A rua na frente do hospital
parecia tranqüila. O afluxo matinal de clientes procurando os
ambulatórios ainda estava por começar e Carl Bodanski não aparecera.
Depois que o motorista atravessou Kenmore Square, olhou para
Jeffrey pelo retrovisor e disse: - O senhor vai ter que ser mais


específico. Brookline é grande.
Forneceu ao homem o nome da rua que ficava atrás da casa de
Kelly. Disse ignorar o número da casa, mas que a reconheceria.
Com a preocupação de saber que Devlin poderia estar nas
proximidades, Jeffrey foi incapaz de se recuperar do confronto com a
Sra. Amendola. Sentia um doloroso nó no estômago, e perguntava-se quanto
tempo mais seu corpo suportaria a tensão em que vivera nos últimos
quatro ou cinco dias. A anestesia tinha seus momentos de terror, mas
eram de vida curta. Não estava acostumado com um período tão
longo de ansiedade. E, para agravar tudo, sentia-se exausto.
Explicando que era de fora e que só tinha estado ali uma vez, fez
com que O motorista desse uma volta no bairro em torno da casa de
KellY. Encolheu-se disfarçadamente no banco para não ser visto. Ao
mesmo tempo ficou de olho à procura de Devlin. Não havia sinal do
homem. Não havia também automóveis estacionados perto da casa.
Tudo parecia convidativamente em paz.
Ao cabo de algum tempo fez o chofer do táxi deixá-lo uma casa
adiante da de Kelly. Depois que o carro saiu e virou a esquina,
contornou a casa e esgueirou-se até o pequeno renque de árvores que
separava as duas propriedades. Examinou a de Kelly por alguns minutos,
escondido, antes de atravessar o quintal e entrar pela porta que ela
deixara aberta.
Ficou parado, tentando ouvir algo, antes de verificar todos os
cômodos. Só então fechou e trancou a porta de trás.
Na esperança de apaziguar o estômago, apanhou o leite e o cereal
e foi para a mesa da sala de trás. Levou também a listagem que Kelly
trouxera do St. Joe's. Tirando do bolso a que conseguira no Boston
Memorial naquela noite, colocou-as lado a lado.
Enquanto comia, comparou as duas listas. Estava ansioso para
ver que médicos tinham privilégios em ambos hospitais. Numa folha
de papel separada, começou a relacionar os médicos cujos nomes
apaeciam duas vezes. Ficou mortificado ao ver que encontrara mais de
rinta. Trinta e quatro pessoas era um número grande demais para
investigar em qualquer grau de profundidade, especialmente naquelas
circunstâncias. Tinha que dar um jeito de reduzi-lo. Pegou o telefone,
ligou para o St. Joe's e pediu o ramal de Kelly.
Que bom você ter ligado - alegrou-se Kelly. - Algum
problema em casa?
Nenhum problema. Só queria lembrar você de fazer aquela
ligação com o Vallev Hospital hoje.
Já fiz. Não consegui decidir quem deveria chamar, de modo
que telefonei para diversas pessoas, inclusive Hart. Ele é uma ótima
criatura.
Jeffrey contou que 34 médicos tinham privilégios no hospital dela


e no Memorial. Kelly entendeu imediatamente o problema.
Espero ter a resposta do Valley hoje à tarde - falou. Então a lista deverá ficar reduzida a alguns poucos. Tem que haver menos gente com privilégios no St. Joe's, no Memorial e no Valley. Jeffrey
ia desligar quando se lembrou de pedir para repetir o nome da amiga que
morrera na véspera. - Gail Shaffer. Por que pergunta?
- Vou hoje, não sei a que horas, ao gabinete do médicolegista
verificar o caso de Karen Hodges. Enquanto estiver lá, verei o que Posso
descobrir sobre Gail Shaffer.
- Você está me assustando de novo.
- É que eu mesmo estou assustado.
Jeffrey desligou e foi comer o resto do seu cereal. Ao terminar,
colocou na pia a louça suja. Em seguida voltou para a mesa, a fim de
estudar de novo as listas. Para fazer um trabalho completo, pensou,
tinha também que comparar as listas de empregados. Era mais difícil que
comparar as dos médicos; estas tinham sido organizadas em ordem
alfabética, tanto num hospital quanto no outro. As dos empregados eram
diferentes. A do St. Joe's era por departamento, e a do Memorial por
salário, provavelmente porque aquela lista fora elaborada com a
finalidade de solicitar contribuições para o Fundo Unido.
Para fazer uma comparação precisa, Jeffrey tinha que colocar
ambas em ordem alfabética. Quando chegou na letra E, seus olhos estavam
fechando. Sua primeira descoberta fez com que despertasse. Notou que uma
tal Maureen Gallop tinha trabalhado em ambos hospitais.
Procurou o nome dela na lista do St. Joe's. Descobriu que
atualmente trabalhava na limpeza.
Esfregou os olhos, considerando mais uma vez como tinha sido
fácil entrar na farmácia do hospital. Acrescentou o nome de Maureen à
lista dos médicos.
Animado com a descoberta inesperada, voltou ao trabalho. Na
letra seguinte encontrou outro nome que aparecia nas duas listas: Harding, Trent. Pegando de novo a lista do St. Joe's, encontrou o nome dele
no departamento de enfermagem. Escreveu Trent Harding embaixo de
Maureen
Gallop.
Jeffrey ficou espantado. Não esperara encontrar duplicatas nas
listas de empregados. Achou que era uma coincidência e tanto. Mais
desperto agora, terminou a demorada conferência, mas não encontrou
outros casos. Maureen Gallop e Trent Harding eram os únicos nomes que
apareciam em ambas as listas.
Estava tão cansado quando acabou que só conseguiu sair da mesa e
atirar-se no sofá, onde caiu num sono profundo e sem sonhos. Nem
se mexeu quando Dalila saiu da despensa e pulou no sofá para se enroscar
a seu lado.


Havia algo no Boston City Hospital de que Trent gostou assim que
passou pela porta. Achou que fosse o ambiente "macho" de um hospital no
centro da cidade. Nada de muitas delicadezas por aqui, como nos luxuosos
hospitais dos subúrbios. Tinha certeza de que não teria que trabalhar em
plásticas de nariz disfarçadas como operações de desvio de septo por
causa da cobertura do seguro. Em vez disso, viveria as voltas com
ferimentos causados por tiros ou facadas. Estaria na trincheira, lutando
contra o terror urbano, mais ou menos como Don Johnon em Miami Vice.
Havia uma fila na sala de admissão de empregados, mas só de
gente que queria trabalhar nos serviços de alimentação e limpeza. Na sua
especialidade, foi mandado diretamente ao departamento de enfermagem.
Sabia o motivo, claro. Como todos os hospitais, eles estavam
desesperados por mais enfermeiros. E para homens a demanda era maior
ainda. Havia sempre vaga para um enfermeiro nas áreas do hospital onde
um pouco de força era necessária, como na seção de emergências. Mas
Trent não queria a Emergência. Queria a Cirurgia.
Após preencher o formulário, foi chamado para uma entrevista.
Não entendia por que se davam ao trabalho de encenar aquela palhaçada.
Sabia de antemão o final. E sentia prazer com aquilo. Gostava da
sensação de que precisavam dele, de que era desejado. Quando criança,
seu pai sempre lhe dissera que não passava de um maricas inútil,
sobretudo depois que Trent decidira não jogar na liga de futebol
infantil que o velho ajudara a fundar na base do Exército em San
Antonio.
Ficou observando a expressão da mulher enquanto lia seu
formulário. A placa com o nome sobre a mesa dizia: SRA. DIANE
MECKLENBURG, ENF., SUPERVISORA.
Supervisora droga nenhuma, pensou Trent. Era capaz de apostar
que não entendia nada de coisa nenhuma. Na experiência dele, os
supervisores geralmente eram uns imbecis. A de agora provavelmente se
formara em enfermagem no tempo em que se usava uísque como anestésico.
De lá para cá, com certeza fizera uma porção de cursos do tipo
enfermagem numa Sociedade Complexa. Trent seria capaz de apostar como
não conseguiria distinguir entre um par de tesouras Mayo e uma pinça
Metzenbaum. Numa sala de operações seria tão útil quanto um orangotango.
Trent estava previamente ansioso pelo dia em que entraria ali
para pedir sua demissão, arruinando assim o dia da Sra. Mecklenburg.
- Sr. Harding - disse a Sra. Mecklenburg, desviando a atenção da
proposta para o proponente. O rosto oval era parcialmente escondido por
grandes óculos redondos. - O senhor diz aqui que já trabalhou em quatro
outros hospitais de Boston. O que é um pouquinho raro.
Trent sentiu-se tentado a gemer em voz alta. Aquela senhora
parecia estar disposta a levar o jogo da entrevista até o amargo fim.


Embora achasse que podia ficar em silêncio e ainda assim ser contratado,
resolveu adotar a linha mais segura: fazer o tipo que gosta de cooperar.
Estava sempre preparado para perguntas como aquela.
- Cada um desses hospitais me ofereceu oportunidades diferentes
em termos de educação e responsabilidades - justificou. - Meu objetivo
tem sido sempre maximizar minha experiência. Dei a cada instituição
quase um ano. Finalmente concluí que o que preciso é o estímulo de um
ambiente acadêmico do tipo que o Boston City proporciona.
- Entendo - disse a Sra. Mecklenburg.
Trent não tinha acabado. Acrescentou:
- Estou confiante em que posso ser útil aqui. Não tenho medo de
trabalho ou de desafios. Mas na verdade tenho uma condição. Quero
trabalhar na Cirurgia.
- Não creio que isso venha a ser um problema - disse a Sra.
Mecklenburg. - A questão é: quando pode começar?
Trent sorriu. Fora fácil demais.
O dia de Devlin não estava sendo nem um pouco melhor que o anterior.
Encontrava-se em North Shore e visitara duas casas de Eversons em
Peabody, uma em Salem, e agora estava a caminho de outra, em Marblehead
Neck. A casinha ficava à sua esquerda e o oceano à direita. Pelo menos o
tempo e a paisagem eram lindos.
Por sorte encontrara gente em casa em cada uma das suas paradas.
Desta vez, todos se mostraram razoavelmente dispostos a cooperar, mesmo
que cautelosos. Mas ninguém ouvira falar em Christopher Everson. Mais
uma vez Devlin começou a questionar sua intuição. Por que resolvera que
Christopher Everson era da área de Boston?
Alcançando a Harbor Avenue, Devlin virou à esquerda. E foi com
um olhar de admiração que observou aquela impressionante série de casas.
Ficou imaginando como seria agradável ter todo o dinheiro necessário
para morar assim. Tinha ganhado uma boa nota nos últimos dois anos, mas
perdera tudo em Las Vegas e Atlantic City.
A primeira coisa que fizera pela manhã fora ir ao
quartel-general da policia, na Berkeley Street. Ali visitar Sawbones
Bromlley. O Dr. Rromlley trabalhava para o Departamento de Polícia de
Boston desde o seculo XIX, ou pelo menos assim dizia a lenda. Submetia o
pessoal a exames médicos e tratava de coisas simples como resfriados e
arranhões. Não inspirava muita confiança.
Devlin mostrou as anotações que apanhara no quarto de hotel de
Rhodes e perguntou sobre elas. Foi como se tivesse aberto uma torneira.
Sawbones desandou a falar e fez uma palestra de vinte minutos sobre o
sistema nervoso, e o fato de que se dividia em duas partes. Uma para
fazer coisas que você quer fazer, como beber, ou apalpar um troço
qualquer. Outra para fazer coisas sobre as quais você nem precisa
pensar, como respirar ou digerir um bife.


Até este ponto Devlin se saiu bem, entendendo tudo. Mas depois
Bromlley acrescentou que a parte do sistema nervoso que faz as coisas
sobre as quais a gente não precisa pensar tinha também duas partes, uma
chamada simpática, a outra parassimpática. Estas duas partes brigavam
entre si. Por exemplo: uma dilatava a pupila, a outra a reduzia; ou uma
provocava diarréia, a outra prisão de ventre.
Devlin conseguiu também chegar razoavelmente até aqui, mas
depois Bromlley começou a explicar como os nervos funcionavam e como os
anestésicos os impediam de funcionar.
Daí em diante, Devlin teve dificuldade para acompanhar, mas
imaginou que, como seu interesse era apenas pelas notas, pouco
importava. Bromlley adorava uma platéia atenta, de modo que Devlin
simplesmente continuou representando o papel. Quando achou que Sawbones
chegara ao ponto de concluir a arenga, insistiu na pergunta inicial.
- Ótimo, doutor, ótimo! Mas vamos voltar às notas por um minuto.
Há alguma coisa nelas que pareça suspeita ou que lhe cause espanto?
Por um momento, Sawbones pareceu aturdido. Estudou as notas de
novo, lendo-as com a ajuda dos seus grossos óculos bifocais. Finalmente
disse um lacônico não; tudo parecia bastante simples, e quem quer que
tivesse reunido aquelas informações sobre o sistema nervoso não cometera
erros. Devlin agradeceu e se despediu. A visita fora útil apenas porque
o deixara sabendo com certeza que, como Rhodes, esse Christopher também
era médico.
Em Marblehead Neck, Devlin parou ante a porta de uma casa de um
só andar. Verificou o número na lista. Estava certo. Saltou do carro e espreguiçou-se. A casa não ficava à beira d'água, mas podiase ver
os seus reflexos entre as árvores que delimitavam o caminho até a
enseada.
Tocou a campainha e quem atendeu foi uma atraente loura que
devia ser mais ou menos da sua idade. Assim que o viu, tentou fechar a
porta, mas ele, delicadamente, enfiou a ponta da bota na fresta. A porta
ficou bloqueada. A loura olhou para baixo.
- Acho que a sua bota não está me deixando fechar a porta disse, sem levantar a voz. Encarou-o diretamente nos olhos. - Deixe-me
adivinhar: você está vendendo biscoitos para ajudar os escoteiros.
Devlin sacudiu a cabeça, sem acreditar. Nunca se podia antecipar
as reações das pessoas. Mas o que sempre mais apreciava nos outros era o
senso de humor. Gostou do senso de humor daquela mulher.
- Desculpe-me por parecer tão rude - disse. - Só queria fazer
uma perguntinha. Uma única pergunta. Supus que você ia fechar a porta.
- Sou faixa-preta de caratê - avisou ela.
- Não precisa ser desagradável. Estou procurando uma pessoa
chamada Christopher Everson. Como esta casa pertence a um Everson,
pensei que houvesse uma possibilidade de alguém aqui saber dele.


- E qual é o seu interesse nesse Everson?
Quando Devlin explicou, ela soltou a porta.
- Acho que li qualquer coisa a respeito de um Christopher
Everson no jornal - disse ela, franzindo a testa. - Pelo menos tenho
certeza absoluta que era Christopher.
- Num jornal de Boston?
Ela balançou a cabeça, afirmativamente.
- O Globe. Faz algum tempo. Chamou minha atenção por causa do
nome, é claro. Não há muitos Eversons por aqui. Meu marido e a família
dele são de Minnesota.
Devlin não concordava quanto ao número de Eversons na área, mas
não discutiu.
- Lembra-se a respeito de que era o artigo?
- Sem dúvida. Foi na página de obituários, O homem tinha
morrido.
Devlin voltou para o carro, furioso consigo mesmo. A idéia de
que Christopher Everson estivesse morto nunca lhe ocorrera. Fez uma
curva de 180 graus e voltou para Boston. Agora sabia exatamente onde
queria ir. O percurso tomou-lhe meia hora. Parando junto a um hidrante
da West Street, caminhou até a Tremont e entrou no Departamento Estadual
de Saúde Pública.
O Cartório de Registros e Estatísticas ficava no primeiro andar.
Devlin preencheu um papel requerendo a certidão de óbito de Christopher
Everson. No local destinado ao ano, escreveu 1988. Sabia que poderia ser
alterado, se necessário. Pagou cinco dólares no balcão e sentou-se para
esperar. Não foi preciso muito tempo. O ano não era 1988, mas 1987. De
qualquer maneira, em menos de vinte minutos estava de volta no carro com
a certidão de óbito de Christopher Everson no bolso.
Antes de entrar no automóvel, deu uma olhada no documento. A
primeira coisa que chamou sua atenção foi o fato de que aquele Everson
fora casado. Deixara uma viúva, Kelly Everson.
Relembrou sua ida à casa dela, onde ouvira um barulho esquisito,
como latas caindo no chão, mas ninguém atendera. Pegou sua lista de
Eversons, na qual fizera um círculo em K. C. Everson para lembrá-lo de
voltar lá. Comparou com o endereço constante na certidão. Conferia.
Voltou à certidão de óbito. Christopher Everson fora um médico.
A causa da morte constava como tendo sido suicídio. A causa técnica era
uma parada respiratória, mas embaixo uma anotação dizia que tal parada
sucedera à auto-administração de succinilcolina. Num ímpeto de raiva,
Devlin amarrotou o documento e jogou no banco de trás. Succinilcolina
era aquela merda que o tal de Jeffrey Rhodes injetara nele. Era de
espantar que não o tivesse assassinado.
Dando a partida, arrancou e misturou-se ao tráfego da Tremont
reet. Mais uma vez estava ansioso para pôr as mãos em Jeffrey Rhodes.


O trânsito do meio-dia o retardou um pouco. Demorou mais tempo
para ir do centro de Boston a Brookline do que levara para vir de
Marblehead à cidade. Era quase uma hora da tarde quando virou na rua
onde morava Kelly Everson e passou pela sua casa. Não viu nenhuma
atividade, mas reparou numa mudança definitiva. Todas as cortinas
do primeiro andar estavam cerradas. Na véspera as vira abertas.
Lembrou-se de ter posto as mãos diante dos vidros para dar uma espiada
na sala de jantar. Devlin sorriu. Não era preciso ser um cirurgião de
cérebros para saber que alguma coisa estava acontecendo.
Depois de fazer uma curva de 180 graus no meio do quarteirão
seguinte, Devlin passou uma segunda vez pela casa, tentando decidir o
que fazer. Deu mais uma volta completa e parou do outro lado da rua,
duas casas antes da de Everson. Não pôde, naquele instante, decidir qual
seria a melhor linha de ação. Pela sua experiência, sabia que naquele
caso o melhor era não fazer nada.
***
Capítulo 12.
SEXTA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 1989, 11:25
Guarde o troco - disse Jeffrey ao motorista de táxi quando saltou
em frente ao necrotério da cidade. O motorista murmurou algo que
ele não ouviu. Abaixou-se.
Desculpe, o que foi que disse? - perguntou.
Eu disse: que diabo de gorjeta são cinqüenta cents? - Para
demonstrar seus sentimentos, o motorista atirou o troco pela janela
e saiu, cantando pneu.
Jeffrey observou as duas moedas de 25 cents rolando na calçada
e sacudiu a cabeça. Os motoristas de táxi de Boston eram uma raça
à parte. Abaixou-se e apanhou as moedas. Depois olhou para a
fachada do necrotério da cidade.
Era uma velha construção coberta por uma pátina de sujeira que
vinha do tempo em que o carvão era a principal fonte de calor da
cidade. O prédio era ornamentado com motivos egípcios estilizados. A
estrutura mais parecia o cenário de um filme de horror de Hollywood
do que uma casa de medicina científica.
Jeffrey entrou e foi seguindo as plaquetas indicativas do
escritório do médico-legista.
Ás suas ordens - atendeu uma senhora de aspecto matronal,
quando Jeffrey se aproximou do balcão. Atrás dela havia cinco mesas
antiquadas, de metal, dispostas ao acaso. Sobre cada uma das mesas
havia uma pilha alta de ofícios, formulários, envelopes e manuais. Jeffrey sentiu-se como se estivesse recuado vinte anos no passado. Os
telefones, todos pretos, eram de discar.
- Sou médico do St. Joseph's Hospital - disse Jeffrey. - Estou


interessado em um caso cuja autópsia, creio, foi marcada para hoje. O
nome é Karen Hodges.
Em vez de responder, a mulher pegou uma prancheta e correu o
dedo pela lista. Quando chegou no meio da página, disse:
- É um dos casos do Dr. Warren Seibert. Não tenho certeza de
onde ele se encontra. Provavelmente na sala de autópsias.
- E onde fica isso? - perguntou Jeffrey. Embora praticasse
medicina em Boston há quase vinte anos, nunca estivera naquele
necrotério.
- O senhor pode tomar o elevador, mas não aconselho - disse ela.
- Vá até ali adiante e suba a escada. Lá em cima, vire primeiro à
direita, depois à esquerda. Não pode errar.
Jeffrey fez o que ela disse. Já ouvira essa história de "não
pode errar" inúmeras vezes. Desta vez, era verdade. Antes de chegar na
sala de autópsias, sentiu o cheiro.
A porta estava entreaberta. Jeffrey deu uma espiada tímida, meio
receoso de continuar. A sala tinha uns seis metros de comprimento por
doze de largura. Uma das paredes era quase toda de vidro fosco. O ar
fétido circulava impulsionado por um antigo ventilador giratório em cima
de um arquivo de aço.
Havia três mesas de autópsia de aço inoxidável, todas as três
ocupadas por corpos nus. Dois dos corpos eram de homens. O terceiro era
uma mulher. Jovem e loura, a pele branca como marfim, com um leve matiz
azulado.
Cada mesa tinha uma equipe de duas pessoas trabalhando. Podia-se
ouvir o barulho abafado das facas cortando, das serras, das conversas
cochichadas. Jeffrey achou que todos os legistas deviam ser homens, mas
não tinha certeza. Vestiam trajes esterilizados cobertos por aventais de
plástico. Tinham protetores sobre os olhos e os rostos escondidos por
máscaras cirúrgicas. As mãos eram cobertas por grossas luvas de
borracha. Num canto havia uma grande pia de pedra onde corria água
continuamente, e, equilibrado sobre sua beirada, um rádio tocava um
estranho rock suave. Jeffrey gostaria de saber o que BillY Ocean diria
se pudesse ver aquela cena.
Ficou perto da porta quase quinze minutos, até que um dos homens
reparasse nele. Foi quando passou na direção da pia com o que parecia um
fígado para lavar em água corrente. Deteve-se no instante em que viu
Jeffrey.
- Deseja alguma coisa? - perguntou, desconfiado. - Estou procurando o
Dr. Seibert - respondeu Jeffrey, lutando contra uma leve náusea. Jamais
gostara de patologia. Na faculdade as autópsias sempre tinham sido uma
provação para ele.
- Ei, Seibert, companhia para você - exclamou o sujeito, por
cima do ombro.


Um dos homens que estava ao lado do corpo da mulher ergueu a
cabeça e examinou Jeffrey. Tinha um escalpelo numa das mãos. A outra
estava mergulhada fundo no torso do cadáver.
- O que posso fazer por você? - O tom de voz dele era muito mais
amável que o do primeiro homem.
Jeffrey engoliu em seco. Sentia-se um pouco tonto. - Sou médico
do St. Joe's - disse. - Departamento de anestesia. Estou interessado em
saber o que foi encontrado no corpo de uma paciente chamada Karen
Hodges.
O Dr. Seibert afastou-se da mesa, após acenar com a cabeça para
o assistente, e aproximou-se de Jeffrey. Era uns três centímetros mais
alto que ele. Devia ter cerca de 1,85 m.
- Você foi o anestesista neste caso? - perguntou. Ainda tinha
escalpelo na mão. A outra estava sangrenta. Jeffrey não podia olhar
abaixo da linha dos ombros dele. Seu avental estava indescritivelmente
manchado. Concentrou-se nos olhos de Seibert. Eram azuis e brilhantes. Não, não fui - admitiu Jeffrey. - Mas soube que o problema ocorreu
durante a aplicação de uma anestesia peridural. Meu interesse no caso
deriva do fato de ter havido pelo menos quatro casos semelhantes nos
últimos quatro anos. O anestésico usado no caso Karen Hodges foi
Marcaína? - Não sei ainda - disse Seibert -, mas o registro está na
minha sala. No corredor, à esquerda, logo depois da biblioteca. Vá até
lá e fique à vontade. Devo terminar em quinze ou vinte minutos. - O caso
em que está trabalhando agora deve ser Gail Shaffer, não é? - indagou
Jeffrey. - Exato - respondeu Seibert. - Pela primeira vez na minha
carreira tenho duas jovens de boa aparência uma atrás da outra. É o meu
dia de sorte. Jeffrey fingiu não tomar conhecimento do comentário. Nunca
se sentia à vontade com o humor do pessoal da patologia. - Algun indício
quanto à causa da morte? - Venha até aqui - disse Seibert, acenando com
a mão da luva
ensangüentada. - Está vendo isto? - perguntou Seibert, após apresentá-lo
a Harold, seu assistente. Apontou com o cabo do escalpelo o corte na
testa de Gail. - Foi uma pancada e tanto. Fraturou o crânio até o seio
frontal.
Jeffrey acenou que sim. Começou a respirar pela boca. Não podia
suportar aquele cheiro. Harold estava ocupado, removendo as entranhas.
- Esse golpe pode ter causado a morte dela?
- É possível, mas o exame de ressonância magnética deu negativo.
Veremos ao retirar o cérebro. Parece que ela teve também um problema
cardíaco, embora não houvesse uma história prévia. Por isto, vamos
examinar o coração com muito cuidado. - Vai determinar a existência de
drogas?
- Sem dúvida. Faremos um exame completo de sangue, bile, urina,
fluido cerebroespinhal e do aspirado do estômago. Espere, deixe que


ajudo - disse Seibert ao seu assistente, quando viu que este conseguira
soltar os órgãos abdominais. Pegou um recipiente comprido e raso e
segurou enquanto Haroki levantava a massa escorregadia das vísceras e a
transferia.
Jeffrey virou as costas por um momento. Quando olhou de novo, o
corpo já fora eviscerado e Harold estava a caminho da pia com os órgãos.
Seibert examinava a cavidade abdominal.
- A gente sempre tem que estar preparado para imprevistos. Nunca
se sabe o que vai encontrar aqui dentro.
- E se eu lhe dissesse que essas duas mulheres foram
envenenadas? - perguntou Jeffrey, de súbito. - Você procederia de modo
diferente? Faria também outros exames?
Seibert parou abruptamente. Naquele momento sua mão enluvada
estava enfiada no corpo de Gail. Levantou a cabeça devagar para dar
outra olhada em Jeffrey, quase como se quisesse reavaliar a opinião que
fizera dele.
- Conhece alguma coisa que eu deveria saber? - perguntou, seu
tom mais sério.
- Digamos que estou levantando uma hipótese - respondeu Jeffrey,
evasivo. - Ambas as mulheres têm crises convulsivas e problemas
cardíacos, sem antecedentes de uma coisa ou outra... pelo menoS é o que
me parece.
Retirando a mão, Seibert ergueu-se e encarou Jeffrey por cima do
corpo vazio de Gail Shaffer. Pensou um momento e depois olhou para
Jeffrey.
- Não, eu não faria nada diferente. Na verdade, não há diferença
entre o auto-envenenamento, eufemisticamente conhecido como uso de
drogas recreacionais, e ser envenenado.., pelo menos do ponto de vista
da patologia. Ou o veneno se encontra no sistema do morto, ou não. Se me
dissessem que um determinado veneno estaria envolvido, isso
influenciaria a maneira de processar os tecidos. Existem testes
específicos para cada veneno.
- E o que me diz de uma toxina?
Seibert assobiou.
- Agora você está falando de coisa séria. Refere-se a coisas
como as fitotoxinas ou tetraodontoxinas. Já ouviu falar desta, não
ouviu? É o veneno do baiacu ou sapo-do-mar. Acredita que estão
autorizando as casas de sushi a servir esse troço? Eu não tocaria nisso.
Jeffrey pôde ver que tinha descoberto, sem querer, uma das áreas
de interesse de Seibert. O entusiasmo dele por toxinas era evidente.
- As toxinas são fenomenais - prosseguiu Seibert. - Cara, se eu
quisesse cometer um assassinato, não tenho a menor dúvida de que usaria
uma toxina. Muitas vezes ninguém pensa em procurar traços delas. A causa
da morte parece natural. Lembra daquele diplomata turco que foi


liquidado em Paris? Só pode ter sido uma toxina. Estava na ponta de um
guarda-chuva, e alguém simplesmente passou pelo cara e lhe deu uma
espetadela no traseiro. Pronto, num instante o sujeito estava se
contorcendo na calçada. Morto em questão de minutos. eles descobriram o
que foi? Claro que não. Toxinas são uma desgraça para identificar.
- Mas pode-se detectá-las? - perguntou Jeffrey.
Seibert sacudiu a cabeça, incerto.
- É por isso que eu usaria uma toxina se fosse liquidar alguém:
elas são muito difíceis de descobrir. Quanto a se é possível
detectá-las, devo dizer sim e não. O problema é que uma quantidade muito
pequena de toxinas faz muita coisa. São necessárias apenas umas poucas
moléculas para realizar um trabalho sujo. Quero dizer, quantidades
realmente infinitesimais. Isso significa que o nosso velho cromatógrafo
de gases, combinado com o espectrógrafo de massa, muitas vezes não
conseguem separar a toxina de todos os outros compostos orgânicos
flutuando na mesma sopa. Mas se você souber o que está procurando, como,
por exemplo a tetraodontoxina, porque a pessoa caiu morta numa festa em
que serviram sushi, então existem alguns anticorpos monoclonais marcados
com fluoresceina ou um elemento radioativo que podem distinguir a
toxina. Mas, como estou lhe dizendo, não é fácil.
- Portanto, às vezes não se pode achar a toxina a menos que se
saiba especificamente qual é - repetiu Jeffrey, subitamente
desencorajado. - Ou seja, trata-se de uma situação fadada à derrota.
- É por isso que o crime pode ser perfeito.
Harold voltou da pia com a bandeja de órgãos. Jeffrey aproveitou
para examinar o teto do laboratório.
- Harold, quer tirar o cérebro? - perguntou Seibert ao
assistente. Este fez que sim, largou a bandeja na extremidade da mesa e
foi se colocar ao lado da cabeça.
- Desculpe por estar interrompendo - disse Jeffrey.
- Ora, não tem problema. Este tipo de interrupção eu até gosto.
Autópsia é uma coisa que fica um pouco chato após algum tempo. O
divertido da autópsia é a análise. Jamais gostei de limpar os peixes
quando ia pescar, e não há muita diferença entre limpar um peixe e fazer
uma autópsia. Contudo, você despertou minha curiosidade. Qual é a
explicação para as perguntas sobre toxinas? Um homem ocupado, como
suponho que você seja, não viria aqui para fazer o jogo das vinte
perguntas.
- Eu lhe disse que houve pelo menos quatro mortes durante a
aplicação de anestesia peridural. Trata-se de algo pouquíssimo comum. E,
pelo menos em dois casos, os sintomas iniciais foram sutilmente
diferentes dos que se esperaria de uma reação a um anestésico local.
- Como assim? - perguntou Seibert.
Um dos outros patologistas levantou a cabeça e exclamou:


- Ei, Seibert, pretende fazer deste caso a obra da sua vida só
porque ela tinha um corpo bonito?
- Não chateia, Nelson - exclamou Seibert, sem se virar. Depois,
para Jeffrey, disse: - Ele está com ciúmes porque peguei duas em
seguida. Mas depois a gente acerta. Minha próxima autópsia provavelmente
será de um alcoólatra de sessenta anos que passou três semanas boiando
no porto de Boston. Você devia ver como é. Horrível! Tem tanto gás que
daria para fazer um automóvel andar durante uma semana.
Jeffrey tentou sorrir, mas achou difícil. As imagens mentais
daquela gente eram quase tão nojentas quanto a realidade.
Reagindo à piada do outro patologista, Seibert pegou o material
de sutura e começou a fechar a cicatriz em forma de Y que resultara da
autópsia.
- Onde estávamos mesmo? - disse. - Ah, sim. De que modo os
sintomas eram diferentes.
- Logo depois que a Marcaina foi administrada, os pacientes
tiveram uma repentina e surpreendente reação parassimpática, com dores
abdominais, salivação, muito suor e pupilas mióticas. Durou apenas
alguns segundos e depois ocorreu um ataque epiléptico.
Harold tinha feito um corte em torno da cabeça de Gail com o
escalpelo. Depois, com um barulho horrível de alguma coisa sendo
rasgada, puxou o couro cabeludo por sobre o rosto da mulher, O crânio
ficou exposto. Jeffrey virou a cabeça para não ver.
- Você não considera esse tipo de sintomas como uma reação
tóxica ao anestésico local? - perguntou Seibert. Ele levantava a agulha
acimada cabeça, como um sapateiro remendão, depois de cada ponto, para
tirar a folga da pele.
- Sim e não - respondeu Jeffrey. - As convulsões, certamente que
sim. As pupilas mióticas também são descritas na literatura, embora em
toda minha vida eu nunca as tenha visto, nem tenha sido capaz de
explicá-las fisiologicamente. Mas a salivação passageira, a sudação e a
lacrimação, nunca li nada sobre isso.
- Acho que estou começando a entender o quadro - disse Seibert.
Houve um súbito zumbido e o corpo de Gail começou a vibrar. Harold
estava usando uma serra elétrica para cortar a parte superior do crânio.
Logo estaria retirando o cérebro. Seibert teve que falar mais alto para
ser ouvido. - Pelo que me lembro, os anestésicos locais bloqueiam a
transmissão nas sinapses. Qualquer estimulo inicial que você possa ter é
porque as fibras inibidoras podem ser bloqueadas primeiro. Estou me
lembrando direito?
- Está me impressionando - disse Jeffrey. - Vá em frente.
- E o bloqueio decorre da impossibilidade dos íons sódio
atravessarem as membranas, estou certo?
- Você deve ter tirado dez com louvor em neurofisiologia na


faculdade.
- Ora, este é o tipo de troço que me interessa - disse Seibert.
Andei fazendo uma revisão para um caso de miastenia grave. E também
constava de um trabalho que li sobre tetraodontoxina. Você sabia que
essa droga imita os anestésicos locais? A propósito, há quem esteja
formulando a hipótese de que talvez seja um anestésico natural.
Jeffrey lembrou-se vagamente de ter lido algo a este respeito,
agora que Seibert mencionara.
O zumbido da serra cessou de repente. Jeffrey não queria
assistir o passo seguinte, de modo que deu uma volta completa.
- De qualquer forma - prosseguiu Seibert -, é que com a anestesia peridural qualquer alteração previsível seria ligada ao sistema
simpático e não ao parassimpático, por causa do risco de injetar
inadvertidamente o líquido onde é administrado a anestesia raquiana.
Acertei?
- Bem na mosca - respondeu Jeffrey.
- Mas a verdadeira preocupação não é de, por engano, injetar o
anestésico diretamente na corrente sanguínea?
- Exatamente - concordou Jeffrey. - E é aí que entram os
problemas representados pelas convulsões nervosas e toxicidade cardíaca.
Mas não há como explicar uma súbita e forte estimulação parassimpática.
Faz a gente pensar que existe outra droga envolvida. Algo que não cause
apenas convulsões e problemas cardíacos, mas também, por um breve
momento, estimulação parassimpática.
- Raios! - exclamou Seibert. - É o meu tipo de caso. Exatamente
como um patologista pensaria.
- Suponho que sim. Para falar a verdade, eu estava pensando num
anestesista.
- Não daria nem para comparar - disse Seibert, sacudindo um par
de pinças denteadas. - O patologista é muito mais qualificado para
imaginar um modo de matar.
Jeffrey ia começando a responder, mas se deteve, consciente do
ridículo de discutir qual especialidade poderia cultivar um assassino
mais requintado.
- Há algo mais acerca destes dois casos de que estou falando. Na
autópsia, ambos evidenciaram danos acentuados nos axônios e células
nervosas. Num dos casos chegaram a tirar micrografias eletrônicas,
mostrando acentuadas avarias na estrutura de nervos e músculos.
- Sem brincadeira? - Seibert parou com a sutura. Jeffrey podia
garantir que o outro estava fascinado. - Então, tudo o que temos a fazer
é descobrir uma toxina que cause convulsões e toxidez cardíaca,
danificando as células nervosas e musculares e que, além disso, cause
forte estimulação parassimpática! Pelo menos inicialmente. Ei! Sabe de
uma coisa? Você está certo. Isto parece uma questão num exame de


neurofisiOlOgia do primeiro ano. Vou ter que pensar no problema por
algum tempo.
- Sabe se Karen Hodges apresentou os mesmos sintomas iniciais? perguntou Jeffrey.
Seibert deu de ombros.
- Ainda não. Em geral só estudo os registros detalhadamente
depois de fazer a autópsia. Gosto de conservar a mente aberta. Assim
tenho menos chance de esquecer alguma coisa.
- Não se incomoda se eu der uma olhada? - perguntou JeffreY.
- Claro que não! Como já falei, fique à vontade. Não vou demorar
aqui.
Contente de poder fugir do opressivo cheiro do laboratório,
Jeffrey dirigiu-se à minúscula sala de Seibert, a mais agradável que
vira no prédio, com uma porção de toques pessoais. Em cima da mesa havia
uma cobertura de couro de tamanho proporcional, uma cesta de entrada e
saída para documentos, um jogo de caneta e lapiseira e um
porta-retratos. A foto no porta-retratos era de Seibert com uma mulher
atraente e duas crianças sorrindo. Envergando roupas de esquiar, a
família posara ante uma montanha coberta de neve ao fundo.
Sobre a cobertura de couro estavam as duas fichas. A de cima era
de Gail Shaffer. Jeffrey empurrou-a para o lado. Apanhou a de baixo, que
era de Karen Hodges, e sentou-se numa poltrona forrada de vinil.
O relatório da anestesia era o que mais o interessava. O nome do
anestesista era William Doherty. Jeffrey o conhecia vagamente de
conferências médicas. Dando uma olhada na página, viu que o anestésico
fora mesmo a Marcaína, numa solução a 0,5%. A julgar pela dose, deduziu
que Doherty usara uma ampola de 30 ml. A seguir, leu com atenção um
tenso resumo dos acontecimentos, o que imediatamente lhe trouxe à
memória o desastre de Patty Owen. Jeffrey chegou a ficar arrepiado
enquanto lia. Karen Hodges sofrera inicialmente os mesmos
desconcertantes sintomas parassimpáticos antes se instalasse o ataque.
Jeffrey sentiu enorme empatia por Doherty. Sabia muitíssimo bem
o que devia estar passando. Num impulso, pegou o telefone de Seibert
para ligar para o St. Joseph's. Pediu a Anestesia e depois o Dr.
Doherty. Quando Doherty atendeu, Jeffrey lhe disse o quanto sentia pela
experiência que tivera no dia anterior, assegurando que podia avaliá-la
bem; passara por episódio semelhante.
- Quem está falando? - perguntou Doherty, cortando as palavras
de Jeffrey.
- Jeffrey Rhodes - respondeu Jeffrey, usando o nome verdadeiro
pela primeira vez em dias.
- O Dr. Jeffrey Rhodes, do Memorial?
- Sim. Eu queria lhe fazer uma pergunta. Quando você aplicou a
dose do teste...


- Sinto muito - interrompeu Doherty -,mas tenho ordens
explícitas do meu advogado para não discutir o caso com ninguém.
- Eu entendo-disse Jeffrey. -Já deram entrada no processo por
imperícia?
- Não, ainda não. Mas, infelizmente, todos esperamos por isso.
Creia, não posso continuar falando a respeito. Mas agradeço o seu
telefonema. Muito obrigado.
Jeffrey desligou, frustrado por não ter podido se valer da
experiência mais recente do Dr. Doherty. Contudo, podia compreender os
motivos dele para comportar-se com tanta reserva. Recebera a mesma
proibição do seu advogado no caso de Patty Owen.
- Já tenho algumas idéias - disse Seibert ao entrar com passo
ligeiro, vestindo uma roupa limpa. Sem o avental, a máscara e o gorro,
Jeffrey pôde vê-lo bem pela primeira vez. Seibert tinha um porte
atlético. O cabelo era louro-areia, combinando com os olhos azuis. Tinha
o rosto anguloso e simpático. Jeffrey calculou que andasse pelos trinta
e poucos anos.
Seibert sentou, reclinou-se e descansou os pés sobre um canto da
mesa.
- Nós estamos falando de uma espécie qualquer de bloqueador
despolarizante histotóxico. Daria um choque inicial como se fosse
injetado uma cápsula de acetilcolina em todas as sinapses ganglionares e
extremidades delgadas dos nervos que transportam impulsos do sistema
nervoso central para os músculos. Resultado: desencadeiam-se sintomas
parassimpáticos antes de sobrevir o caos total decorrente da destruição
das células musculares e nervosas. O único problema é que causaria
também contrações musculares.
- Mas houve fibrilações musculares! - exclamou Jeffrey, com
interesse crescente. Pelo jeito, Seibert tinha realmente descoberto
algo.
- Não me surpreende - disse ele. Em seguida, tirou os pés de
cima da mesa e adiantou-se, olhando para Jeffrey. - E esta última
paciente? Karen Hodges apresentou o mesmo tipo de sintomas sobre os
quais estamos falando?
- Exatamente os mesmos - assegurou Jeffrey.
- E você tem certeza de que não poderiam ser causados por
anestésico local?
Jeffrey balançou a cabeça, confirmando.
- Bem, então vai ser interessante ver os resultados da
toxicologia.
- Dei uma olhada em duas autópsias de dois dos quatro casos de
fatalidades peridurais. Resultado negativo em ambos.
- Quais são os nomes dos quatro casos? - perguntou Seibert,
pegando uma caneta e um bloco.


- Patty Owen, Henry Noble, Clark DeVries e Lucy Havalin, disse
Jeffrey. - Verifiquei as autópsias de Owen e Noble.
- Não estou familiarizado com nenhum desses casos. Vou ter que verificar
o que temos nos arquivos.
- Alguma chance de haver ainda algum fluido corporal para exame?
- Guardamos amostras congeladas de casos selecionados por cerca
de um ano. Qual é o caso mais recente?
- Patty Owen - respondeu Jeffrey. - Se tiver o fluido, você
poderia fazer alguns exames para identificar toxinas?
- Você faz tudo parecer muito simples - disse Seibert. - Como
lhe disse antes, é um bocado difícil descobrir uma toxina, a menos que
se tenha a sorte de dispor da antitoxina específica previamente
classificada. Não se pode simplesmente tentar um monte de antitoxinas,
aplicar tudo de uma vez e esperar pelo melhor.
- Há algum modo de estreitar a gama de possibilidades?
- É possível - respondeu Seibert. - Mas talvez valha a pena
abordar o problema de outro ângulo. Se houve mesmo uma toxina, como foi
aplicada nos pacientes?
- Aí está um problema totalmente diferente - admitiu Jeffrey.
Relutava em falar de sua teoria do Dr. X. - Vamos deixar de lado por
enquanto. Quando você chegou, há um minuto, achei que tinha algo
específico na mente.
- E tinha mesmo - disse Seibert. - Estava pensando em uma classe
de toxinas da qual muitos toxicologistas vêm falando. É tirada das
glândulas epidérmicas de um sapo do gênero dendrobates da Colômbia, na
América do Sul.
- Essas toxinas preencheriam as especificações da toxina
misteriosa de que estivemos falando?
- Preciso dar uma olhada em alguns textos para ter certeza admitiu Seibert. - Mas, pelo que me lembro, a resposta é sim. Elas foram
descobertas da mesma maneira que o curare. Os índios costumavam moer os
tais sapos e usar um extrato para envenenar suas flechas. Ei, talvez
seja este o caso: um desses índios colombianos engajado numa guerra Seibert começou a rir.
- Você poderia me dar algumas fontes de referência? - perguntou
Jeffrey. - Eu gostaria de estudar um pouco.
- Claro - disse Seibert. Começou a se dirigir para o seu
armário, mas parou e voltou-se. - Esta conversa me fez pensar no
coquetel para um crime perfeito. Se eu tivesse que escolher o que
adicionar a um anestésico local, usaria o veneno do sushi, a
tetraodontoxina. Como tem um efeito parecido com o dos anestésicos
locais, ninguém suspeitaria. São os sintomas parassimpáticos transitórios que preocupam
você. Com tetraodontoxina não teria nenhum.


- Você está esquecendo algo - disse Jeffrey. - Acredito que a
tetraodontoxina seja reversível. Ela paralisa a respiração, mas durante
a anestesia isso não tem importância. Você pode respirar pelo paciente.
Seibert estalou os dedos, desapontado.
- Tem razão, esqueci. Tem que destruir as células e também como
bloquear a tunção delas. - ele seguiu até o armário e puxou a gaveta de
cima. - Agora, onde diabos arquivei aquele troço? - murmurou. Mexeu nas
pastas por alguns minutos, obviamente frustrado.
- Ah, aqui está! - exclamou, triunfante, puxando uma das pastas.
- Arquivei em "sapos". Que idiota!
A pasta continha uma série de reproduções de artigos publicados
em diversas revistas, algumas delas comuns, como Science, outras de
compreensão mais difícil, como Advances in Cytopharmacology. Por alguns
minutos, os dois homens permaneceram em silêncio, folheando revistas.
- Qual é o motivo de você guardar essa literatura toda? - quis
saber Jeffrey.
- Na minha especialidade, qualquer coisa que cause a morte é
interessante, sobretudo quando tem a eficiência das toxinas. E como pode
alguém resistir a esses nomes? Olhe só este aqui: histrionicotoxina Seibert pôs o artigo diante de Jeffrey, que o recolheu e começou a ler o
sumário. - Aqui está uma belezinha - disse Seibert, apanhando um artigo
e batendo nele com a mão livre. - É uma das substâncias mais tóxicas que
se conhece: a batracotoxina.
- Deixe-me ver - pediu Jeffrey. Lembrava-se daquele nome entre
os muitos que tinha visto no capítulo sobre toxinas no livro de
toxicologia de Chris. Pegou o artigo e leu o sumário. Parecia promissor.
Conforme Seibert sugerira, a batracotoxina funcionava como um agente
despolarizante nas junções nervosas. Constava ali que também causava
extensos danos à ultra-estrutura das células dos músculos e dos nervos.
Levantando os olhos, Jeffrey estendeu o artigo na direção de Seibert.
- Que tal procurar este aqui no material de alguns desses casos?
- Seria muito difícil, sem dúvida nenhuma. É potente demais.
Trata-se de um alcalóide esteroidal, o que significa que pode se esconder facilmente nos lipídios e esteróides da célula. Talvez um extrato do
tecido muscular fosse melhor, já que a toxina é ativa nas extremidades
dos nervos motores. Provavelmente o único recurso para encontrar algo
como a batracotoxina é descobrir uma maneira de concentrá-la numa
amostra.
- Como é que você faria isso?
- Como um esteróide, seria metabolizada pelo fígado e expelida
pela bile - explicou Seibert. - Assim sendo, uma amostra de bile poderia
resolver a coisa, se não fosse por um probleminha.
- Qual? - perguntou Jeffrey.
- O troço mata tão depressa que o fígado não chega a ter chance


de processar nada.
- Um dos casos demorou a morrer mais que os outros - lembrou
Jeffrey, pensando em Henry Noble. - Aparentemente, recebeu dose menor e
viveu uma semana. Acha que este fato ajudaria?
- Na base do palpite, eu diria que sim. Sua bile provavelmente
apresentará a mais alta concentração de todo o corpo.
- Ele morreu há quase dois anos. Suponho que não existe a menor
possibilidade de haver sequer uma amostra do corpo dele.
Warren sacudiu a cabeça.
- De jeito nenhum. Nós só dispomos do espaço existente no
congelador.
- Adiantaria alguma coisa exumar o corpo? - perguntou Jeffrey.
- Possivelmente - respondeu Seibert. - Depende do grau de
decomposição. Se o corpo estiver em estado aproveitável, digamos que
enterrado num local com sombra e tenha sido razoavelmente embalsamado,
pode funcionar. Mas exumar um corpo não é a coisa mais fácil deste
mundo. Você tem que conseguir uma permissão, o que quase sempre é
problemático. É preciso ter uma ordem do tribunal ou permissão do
parente mais próximo. Como pode imaginar, nem os tribunais nem os
parentes são muito inclinados a atender a esse tipo de pedido.
Jeffrey deu uma olhada no relógio. Passava das duas horas.
Ergueu o artigo que segurava.
- Posso levar isto emprestado? - perguntou.
- Desde que eu receba de volta - respondeu Seibert. - Posso dar
também os resultados dos exames toxicológicos de Karen Hodges e da
amostra do soro de Patty Owen. O único problema é que não sei o seu
nome.
- Desculpe - disse Jeffrey. - O nome é Peter Webber. Mas é
sempre difícil me encontrar no hospital. Fica mais conveniente eu
telefonar para você. Quando sugere que eu o faça?
- Que tal amanhã? Quando estamos atolados de trabalho como agora
trabalhamos nos fins de semana. Vou ver se consigo apressar as coisas,
já que está tão interessado.
Deixando o necrotério, Jeffrey teve que caminhar até o Boston
City Hospital para pegar um táxi. Mandou que o motorista o levasse ao
St. Joseph's. A idéia era organizar o seu tempo de tal modo que pudesse
ir para casa com Kelly, que, como supervisora, tinha uma vaga na área de
estacionamento.
Durante o percurso, Jeffrey conseguiu dar uma olhada no artigo
sobre a batracotoxina. Era difícil de entender, vazado como estava em
termos altamente técnicos. Mas pôde perceber que a toxina
definitivamente causava danos irreversíveis às células nervosas e
musculares, e embora não dissesse especificamente que produzia muita
saliva, lágrimas e pupilas mióticas, era muito sugestivo, informando que


a toxina estimulava o sistema parassimpáticO e produzia fibrilações
musculares.
***
Capítulo 13.
No St. Joe's, Jeffrey encontrou Kelly no lugar de costume, na
sala de enfermagem do CTI. Estava muito atarefada. O CTI acabara de
receber um paciente e, para complicar, era a hora da mudança de turno.
- Só tenho um segundo - disse ela. - E olhe, esqueci de lhe
entregar isto. - Passou a Jeffrey um envelope do St. Joseph's.
- O que é? - perguntou, quando Kelly já ia voltar ao trabalho.
- As listas do Valley Hospital. Hart conseguiu de novo.
Passou-me isto pelo fax esta tarde. Só que desta vez mostrou-se um pouco
curioso.
- O que foi que você disse.
- A verdade. Que havia algo no caso de Chris que ainda me
intrigava. Mas, Jeffrey, não posso falar agora. Vá para a sala dos
fundos. Largo o serviço em poucos minutos.
Jeffrey foi para a pequena sala de estar e sentou-se. Em
acentuado contraste com a confusão do CTI, o único ruido que se ouvia
vinha do compressor de uma pequena geladeira e da onipresente máquina de
café. Ele abriu o envelope e tirou o fax.
Eram duas folhas separadas. Uma tinha a lista dos médicos que
haviam recebido adesivos de estacionamento válidos para o ano de 1987 e
estava organizada por departamentos. A outra era uma folha de pagamento
de todos os empregados, referente ao mesmo ano.
Ansiosamente, pegou sua lista de 34 médicos com privilégios tanto no Memorial quanto no St. Joseph's. Cotejando com a do Valley, foi
possível reduzir o número para seis. Um dos seis era uma certa Dra.
Nancy Bennett, do departamento de anestesia do Valley Hospital. Por
enquanto era a principal suspeita de Jeffrey. Teria agora que conseguir
listas equivalentes no Commonwealth e no Suffolk General. Então tinha
certeza, a lista seria ainda menor. Na verdade esperava vê-la reduzida a
um único indivíduo.
A porta de acesso ao CTI abriu-se e Kelly entrou. Parecia estar
realmente muito cansada. Sentou-se do lado dele.
- Que dia! - suspirou. - Cinco admissões só no nosso turno.
- Tenho uma notícia animadora - afirmou Jeffrey. - Usando a
relação dos médicos do Valley, estamos reduzidos a uma lista com seis
nomes. Precisamos agora pensar numa maneira de conseguir as listas dos
outros dois hospitais.
- Não creio que eu possa ajudar nisso - disse Kelly. - Não
conheçO vivalma nem no Commonwealth nem no Suffolk.
- O que diria de simplesmente ir até lá e falar com o departamento
de enfermagem?


- Espere um minuto! - exclamou Kelly, de repente. - Amy
trabalhou no CTI do Suffolk!
- Quem é Amy?
- Uma das minhas enfermeiras - respondeu Kelly. - Vou ver se já
saiu. - Kelly pulou da poltrona e desapareceu novamente no CTI.
Os olhos de Jeffrey voltaram para a lista dos seis nomes e
depois para a de 34. Sem dúvida, era um progresso encorajador. Seis
pessoas era um número muito mais razoável para investigar. Viu então os
dois nomes à direita da lista de médicos. Esquecera dos empregados.
Pegou a relação do Valley e procurou Maureen Gallop. Como esperava, não
estava lá. A seguir, procurou o nome de Trent Harding. Para seu grande
espanto, o nome do homem constava da lista do Valley Hospital.
Trabalhara no departamento de enfermagem em 1987!
O coração de Jeffrey bateu mais forte. O nome parecia gritar
para ele a partir da página. Trent Harding trabalhara no Valley, no
Memorial e no St. Joseph's! Permaneça frio, aconselhou-se Jeffrey ao ver
que estava se animando demais. Provavelmente não passava de simples
coincidência. Mas era uma coincidência fantástica, e muito menos fácil
de explicar que um médico com privilégios múltiplos.
A porta do CTI abriu-se e Kelly reapareceu. Desabou no sofá,
afastando o cabelo diante dos olhos.
- Não a encontrei mais - soprou, desapontada. - Mas eu a verei
amanhã, e então lhe pergunto se pode me ajudar.
- Não estou certo de que venha a ser necessário - disse Jeffrey.
- Olhe só o que achei! - Pôs a lista de empregados do Valley diante dela
e apontou para o nome de Trent Harding. - Este cara trabalhou em todos
os três hospitais nas ocasiões críticas. Sei que é um dado
circunstancial, mas é difícil acreditar que seja mera coincidência.
- E ele está trabalhando no St. Joseph's agora?
- De acordo com a lista que você me trouxe.
- Você sabe exatamente onde?
- Não, mas sei em que departamento - disse Jeffrey. - Trabalha
no mesmo departamento que você: enfermagem.
Kelly respirou fundo.
- Não!
- É o que consta na lista. Você o conhece?
Kelly sacudiu a cabeça.
- Nunca ouvi falar nesse nome, mas é claro que não posso
conhecer todo mundo.
- Temos que descobrir onde trabalha - disse Jeffrey.
- Vamos ver Polly Arnsdorf - sugeriu Kelly, pondo-se de pé.
Jeffrey segurou-lhe o braço.
- Espere aí. É preciso ter cuidado. Não quero Polly Arnsdorf
assustando esse sujeito. Lembre-se, não temos provas. Tudo é


circunstancial. Se esse tal de Harding suspeitar que estamos atrás dele,
poderá fugir, e isso é a última coisa que desejamos. Além do mais, não
podemos usar meu nome verdadeiro. Ela poderia lembrar-se dele.
- Mas se Harding for o criminoso, é um perigo tê-lo andando
pelos corredores do hospital.
- Os intervalos entre as mortes resultantes de anestesias têm
sido de oito meses ou mais - lembrou Jeffrey. - Alguns dias não farão
diferença.
- E o que me diz de Gail? - quis saber Kelly.
- Ainda não sabemos o que estava por trás da morte dela.
- Mas você deu a entender... - começou Kelly.
- Eu disse que estava desconfiado - interrompeu Jeffrey. Calma. Você está ficando mais entusiasmada que eu. Lembre-se de que, com
certeza, o que sabemos é que esse tal Harding trabalhou nos três
hospitais à época dos problemas. Vamos precisar muito mais que isso para
pegá-lo. E pode ser que estejamos enganados. Não estou dizendo
que não devemos falar com Polly. Só temos que combinar uma história para
contar a ela, mais nada.
- Está bem - concordou Kelly. - Como deverei apresentá-lo?
- Tenho usado o nome de Webber, mas acho que não me fixei muito
num prenome. Vamos usar Dr. Justin Webber. E quanto ao Harding, diremos
que nos preocupamos com a competência dele.
Desceram a escada juntos, entraram no escritório da
administração e, quando chegaram na ante-sala de Polly Arnsdorf, foram
informados de que ela estava ocupada, respondendo a uma ligação
interurbana. Ficaram sentados na área de espera, aguardando que pudesse
atendê-los. Pela agitação em torno da sua sala, percebia-se o quanto
andava ocupada.
Quando finalmente puderam entrar, Kelly apresentou Jeffrey como
sendo o Dr. Justin Webber, de acordo com o plano.
- E o que posso fazer por vocês? - perguntou Polly. Seu tom de
voz era amistoso, mas impessoal.
Kelly olhou rapidamente para Jeffrey, e começou.
- Queremos fazer umas perguntas sobre um enfermeiro do hospital
- disse. - O nome é Trent Harding.
Polly assentiu e esperou. Como Kelly ficou em silêncio, ela
perguntou:
- E o que desejam saber?
- Primeiro, estamos interessados em saber onde ele trabalha adiantou Jeffrey.
- Trabalhava - corrigiu Polly. - O Sr. Harding demitiu-se ontem.
Jeffrey sentiu uma pontada de decepção. Oh, não, pensou; ia
perder o homem depois de ter chegado tão perto? Pelo lado positivo, o
fato de Harding demitir-se após a última complicação anestésica era mais


uma informação circunstancialmente incriminadora.
- Onde ele trabalhava? - insistiu Jeffrey.
- Na Cirurgia - respondeu Polly. Olhou de Jeffrey para Kelly e
desta para ele. Seu instinto lhe dizia que algo estava acontecendo,
bastante sério.
- Em que turno ele trabalhava? - perguntou Kelly.
- No primeiro mês, à tarde - respondeu Polly. - Mas depois
passou para o turno da manhã, onde ficou até ontem.
- Foi uma surpresa ele ter se demitido? - perguntou Jeffrey.
- Na verdade, não. Se não houvesse uma falta tão grande de bons
enfermeiros, eu mesma o teria dispensado há algum tempo. Ele tem
uma história de problemas de relacionamento com os superiores, e não
apenas aqui, como também nas outras instituições onde trabalhou. A Sra.
Raleigh já estava farta. O cretino vivia dizendo como ela deveria
dirigir as salas cirúrgicas. Mas como enfermeiro era muito bom.
Extremamente hábil, eu poderia acrescentar.
- Onde mais o homem trabalhou? - perguntou Jeffrey.
- Na maioria dos hospitais de Boston. Acredito que o Único de
maior porte em que ainda não trabalhou é o Boston City.
- Então ele esteve no Commonwealth e no Suffolk General? - jogou
Jeffrey.
Polly aquiesceu.
- Se não me falha a memória, sim.
Jeffrey mal podia se conter.
- Será que eu poderia dar uma olhada na ficha dele?
- Impossível - respondeu Polly. - Nossos arquivos de pessoal são
confidenciais.
Jeffrey balançou a cabeça, concordando. Já esperava por isso.
- E uma foto? Certamente que não haveria problema.
Polly falou com o secretário pelo interfone e lhe pediu para
localizar um retrato de Trent Harding. Só então perguntou:
- Posso saber o motivo desse seu interesse pelo Sr. Harding?
Ambos começaram a falar ao mesmo tempo. Jeffrey fez um sinal,
deixando que ela prosseguisse.
- Temos certa dúvida quanto às suas credenciais e competência justificou Kelly.
- Não é esta a parte que eu questionaria - disse Polly, no
momento em que o secretário entrou com uma foto. Ela a pegou e passou-a
para Jeffrey. Kelly debruçou-se para dar também uma olhada.
Jeffrey vira aquele homem nas salas de cirurgia do Memorial em
muitas ocasiões. Reconheceu o típico cabelo louro cortado à escovinha e
a compleição atlética. Pelo que podia lembrar, nunca falara diretamente
com ele, mas tinha a impressão de se tratar de pessoa responsável e
conscienciosa. Certamente não tinha um tipo de assassino. Parecia mais


um americano clássico, um jogador de futebol de uma universidade do
Texas. Levantando os olhos do retrato, Jeffrey perguntou: - A senhora
tem alguma idéia dos planos dele?
- Tenho, sim. O Sr. Harding foi bem especifico. Disse que ia se
candidatar a uma vaga no Boston City porque queria um programa mais
acadêmico.
- Outra coisa - acrescentou Jeffrey. - Poderia nos dar o endereço e o
número do telefone dele?
- Suponho que não seria inconveniente - respondeu Polly. - com
certeza está no catálogo telefônico. - Apanhou papel e lápis, pegou o
retrato das mãos de Kelly, copiou a informação que estava no verso, e
entregou o papel a Jeffrey.
Jeffrey agradeceu a Polly pelo tempo gasto e Kelly fez o mesmo.
Em seguida deixaram a administração. Saindo pela porta da frente,
dirigiram-se para o carro de Kelly.
- Talvez seja realmente isso! - exclamou Jeffrey, excitado,
quando já não poderiam mais ouvi-lo. - Trent Harding pode ser o
assassino!
- Concordo - disse Kelly. Chegaram ao carro e se encararam por
cima dele. - E acho também que temos a obrigação de procurar a polícia
imediatamente. Precisamos detê-lo antes que ataque de novo. Se é ele
mesmo o assassino, tem que ser um louco.
- Não podemos ir à polícia - contrapôs Jeffrey. um tanto
exasperado. - E pelas mesmas razões que lhe expliquei da última vez. Por
mais incriminadora que julguemos esta informação, ela continua sendo
circunstancial. Lembre-se de que não temos provas. Nenhuma! Nem sequer
uma única prova de que os pacientes foram envenenados. Tenho o
médico-legista procurando uma toxina, mas as chances de isolá-la não são
boas. Existem limites para a capacidade toxicológica.
- Mas a idéia de alguém como ele andando por aí me assusta disse
Kelly.
- Bem, concordo com você.., mas a verdade é que as autoridades
não poderiam fazer nada a partir do ponto em que estamos... mesmo que
acreditassem em nós. Além disso, pelo menos neste momento, ele não se
encontra no hospital.
Relutante, Kelly abriu a porta do carro e ambos entraram.
- O que precisamos é de provas - disse Jeffrey. - E a primeira
coisa que temos a fazer é certificar-nos de que esse sujeito ainda se
encontra na cidade.
- E como vamos saber disso? - perguntou Kelly.
Jeffrey desdobrou a folha de papel que Polly lhe dera.
- Passamos no apartamento dele para ver se ainda está ocupado.
- Você não vai tentar falar com Trent Harding, vai?
- Ainda não - respondeu Jeffrey. - Mas provavelmente terei que


falar com ele um dia. Vamos. O endereço é Garden Street, em BeaKelly obedeceu a Jeffrey, mesmo que não gostasse da idéia de
passar perto da casa daquele monstro. Com prova ou sem ela,
convencera-se da culpa de Harding. Que outra razão poderia haver para
ele estar em cada um daqueles hospitais precisamente na época certa?
Ela dirigiu até a Storrow Drive, depois virou à direita na
Revere Street, que dava direto em Beacon Hill. Contornaram a Garden
Street e desceram na direção da Cambridge. Permaneceram mudos até
chegarem no número de Trent. Kelly parou em fila dupla e puxou o freio
de mão. Era uma ladeira íngreme.
Jeffrey debruçou-se sobre o colo de Kelly a fim de dar uma
olhada no edifício. Em contraste com os demais, o de Harding era de
tijolinhos amarelos, e não vermelhos. Mas, como os outros, tinha cinco
andares. Por causa da acentuada inclinação da ladeira, os telhados se
sucediam como degraus de uma grande escada. O edifício onde Trent morava
tinha um parapeito decorativo forrado de cobre, que, com a ação do
tempo, ficara esverdeado. Seria atraente se o canto direito não tivesse
rachado, fazendo desabar uma seção lateral. A porta da frente, a escada
de incêndio e os arremates estavam necessitando reparos e, como os
vizinhos, o prédio tinha uma aparência decadente.
- Não parece ser um bairro muito bom - disse Kelly. Havia lixo
espalhado pela rua. Os carros estacionados de um lado e do outro eram
velhos e amassados, exceto um: um Corvette vermelho.
- Volto já - disse Jeffrey, erguendo o braço para abrir a porta.
Kelly o deteve.
- Tem certeza de que deve fazer isto?
- Tem uma idéia melhor? Ademais, só vou verificar na entrada se
o nome dele consta da lista. Voltarei logo.
A preocupação de Kelly fez com que Jeffrey se detivesse. Ficou
por um momento imóvel na rua, perguntando-se se estaria fazendo a coisa
certa. Mas precisava saber se Harding ainda se encontrava em Boston.
Cerrando os dentes, passou entre os carros estacionados e experimentou a
porta externa do edifício amarelo, que dava numa sala pequena.
Jeffrey entrou. O prédio se encontrava em pior estado por dentro
do que por fora. Uma luminária barata, presa num fio exposto, balançava,
pendurada no teto. Um dia a porta de dentro teria sido forçada com um
pé-de-cabra e nunca mais a consertaram. Um saco plástico de lixo fora
jogado num canto. Como o saco estava rasgado, O lixo se espalhara pelo
chão, agravando o cheiro desagradável.
Havia uma lista de seis apartamentos junto do interfone. Jeffrey
deduziu então que havia um apartamento por andar, além do porão. o nome
de Trent Harding era o primeiro da lista. Aparecia também na frente de
uma das caixas de correio, cujos fechos estavam quebrados. Abriu a de
Trent, para ver se havia correspondência. No instante em que sua mão


encostou na caixa, a porta de dentro se escancarou.
Jeffrey viu-se face a face com Trent Harding. Não se lembrava de
que fosse um tipo tão forte. Tinha também uma expressão de maldade que
não percebera antes, nas ocasiões em que o vira nas salas de cirurgia do
Memorial. Os olhos azuis eram frios e fundos sob as sobrancelhas
espessas. Também tinha uma cicatriz da qual Jeffrey se esquecera e que
não aparecia na foto.
Tinha retirado a mão da caixa de correspondência uma fração de
segundo antes que Harding o visse. A princípio ficou receoso de ser
reconhecido. Mas com uma espécie de sorriso escarninho o homem passou
rispidamente por ele, sem uma pausa.
Jeffrey respirou fundo e apoiou-se por um instante na parede
onde ficavam as caixas de correio, para recuperar o fôlego. Aquele
encontro súbito e breve chegara a assustá-lo. Paciência. Pelo menos
conseguira concretizar seu objetivo. Sabia agora que Trent Harding não
deixara a cidade. Tinha se demitido do St. Joe's, mas ainda estava em
Boston.
Saindo do edifício, Jeffrey retornou por entre os carros
estacionados e acomodou-se novamente no de Kelly, que encontrou lívida.
- O sujeito acabou de sair! - exclamou. - Eu sabia que era
melhor você não ter entrado. Eu sabia!
- Não aconteceu nada - assegurou Jeffrey. - E pelo menos ficamos
sabendo que ele não deixou a cidade. Mas admito que me assustei. Não
posso dizer ao certo se é o assassino, mas de perto sua aparencia dá
medo. Tem uma cicatriz que não aparece no retrato, e qualquer coisa de
selvagem no olhar.
- Ele só pode ser louco se anda por aí pondo veneno no
anestésico - disse Kelly, ligando o motor.
Jeffrey pôs a mão no braço dela.
- Espere - pediu.
- Agora, o que é?
- Espere um segundo - disse Jeffrey. Saltou do carro e correu
atë a esquina com a Revere Street. Olhando ao longo da rua, ainda pode
ver o vulto de Trent desaparecendo ao longe.
Correu de volta até Kelly, mas, em vez de entrar no carro,
abaixou-se junto à janela do motorista.
- Esta oportunidade é boa demais para desprezar - disse.
- O que você está querendo fazer? - fosse lá o que fosse, tinha
certeza de que não ia gostar.
- A porta de entrada do prédio está aberta. Acho que vou dar uma
olhada rápida no apartamento dele. Talvez encontre uma prova qualquer
que confirme nossas suspeitas.
- Não creio que seja uma boa idéia. Além do mais, como é que
você vai entrar no apartamento?


Jeffrey apontou para o telhado. Kelly esticou o pescoço.
- Está vendo aquela janela perto da escada de incêndio, no andar
de cima? Também está aberta. Trent Harding mora no último andar. Posso
ir até o telhado, descer pela escada de incêndio e entrar por aquela
janela.
- Acho que o melhor seria dar o fora daqui - disse Kelly.
- Poucos minutos atrás era você quem estava preocupada por esse
cara andar por aí à solta - lembrou Jeffrey. - Se eu puder conseguir a
prova de que precisamos para detê-lo, não vale o risco? Não creio que
devamos perder a oportunidade.
- E o que acontecerá se o Sr. Músculos voltar e encontrar você
lá dentro? Ele é capaz de quebrá-lo em dois com as mãos.
- Serei rápido - disse Jeffrey. - Além disso, no caso improvável
dele voltar enquanto eu estiver lá, deixe-o entrar. Espere cinco
segundos, entre e toque a campainha do interfone. O nome está ao lado do
botão. Se eu ouvir a campainha, sairei pela janela e subirei novamente
para o telhado.
- Algo pode terminar errado - aventou Kelly, sacudindo a cabeça.
- Nada vai terminar errado - garantiu Jeffrey. - Confie em mim.
Antes que ela pudesse concordar ou discordar, deu um tapinha no
seu braço e voltou ao edifício. Abriu a porta e entrou. Do lado direito
havia uma escada estreita. Uma lâmpada iluminava cada lanço. Jeffrey
ergueu os olhos e viu uma clarabóia de vidro fosco.
Subiu a escada depressa, e quando chegou na casinhola que ficava
no telhado, estava sem fôlego. Foi preciso um pouco de esforço para
abrir a porta, mas finalmente conseguiu.
A laje da cobertura era revestida de asfalto e cascalho. Havia
um muro de um metro e meio separando aquele prédio do prédio vizinho,
ladeira acima. O mesmo acontecia com o prédio seguinte. Cada edifício
tinha a sua casinhola na cobertura. Poucas tinham uma boa pintura
e pareciam em boas condições. A maioria encontrava-se em ruínas, algumas
até sem as portas. Havia lajes revestidas com deques improvisados
exibindo móveis de jardim cheios de ferrugem.
Aproximando-se da beirada e olhando para baixo, viu o carro de
Kelly. Jeffrey nunca fora muito afeito a alturas e foi preciso reunir
toda a coragem para pisar na grade de ferro da escada de incêndio. Entre
um pé e outro podia ver a calçada, cinco andares abaixo.
Movendo-se cautelosamente, desceu até o patamar à altura da
janela do andar de Trent. Sentiu-se exposto, e subitamente ficou
preocupado com a possibilidade de algum vizinho estar olhando. A última
coisa que precisava era que alguém chamasse a polícia.
Foi preciso lutar com a tela antiga para abrir caminho. Quando
conseguiu entrar, debruçou-se na janela e fez um sinal com o polegar
erguido para Kelly. Em seguida, voltou-se para dentro.


Trent viu a revista Playgirl na prateleira. Curioso, pensou em
folheá-la, só para ver o que as garotas apreciavam num corpo de homem.
Mas preferiu não fazê-lo. Encontrava-se na Gary's Drug Store, na Charles
Street, e sabia que o proprietário estava no balcão à sua esquerda. Não
queria que o cara tivesse idéias erradas sobre o motivo pelo qual se
interessava pela Playgirl. Diante disso, pegou uma revista de viagens,
cuja reportagem de capa tinha como tema férias em San Francisco.
Aproximando-se do balcão, largou a revista e pôs um Globe em
cima. Em seguida pediu dois maços de Camel sem filtro, sua marca
preferida. No seu modo de ver, já que resolvera fumar, queria um cigarro
forte.
Depois de pagar as compras, Trent saiu, incerto sobre o que
fazer. Pensou em dar um pulo na Agência de Viagens Beacon Hill e
informar-se ali a respeito de ir a San Francisco numas pequenas férias.
Estava no intervalo entre um trabalho e outro, tinha tempo e dinheiro
para queimar. Mas a preguiça foi maior. Talvez fosse à agência de
viagens amanhã. Preferiu atravessar a rua e entrar numa casa de bebidas.
Queria cerveja.
O que acabou decidindo, finalmente, foi voltar para casa e tirar
um cochilo. Assim poderia ficar acordado até tarde da noite. Talvez
fosse a um cinema e depois saísse atrás de umas bichas para intimidar.
Jeffrey deu uma olhada na sala, procurando orientar-se. Viu a mobília,
cujas peças não combinavam, as garrafas vazias de cerveja e o pôster da
Harley-Davidson. Não tinha certeza do que queria encontrar; era
uma expedição puramente exploratória. E embora tivesse fingido por causa
de Kelly, que entrar no apartamento seria fácil, estava muito mais
nervoso do que deixara transparecer. Não podia esquecer a possibilidade
de um dos vizinhos ter chamado a polícia. Receava ouvir o uivo de uma
sirene a qualquer instante.
A primeira coisa que fez foi dar uma rápida volta pelo
apartamento. Ocorreu-lhe que era melhor certificar-se de que realmente
não havia ninguém. Quando se convenceu de que estava sozinho, voltou
para a sala e começou a examinar tudo detidamente.
Na mesinha de centro havia inúmeras revistas sobre assuntos de
assistência médica, assim como outras pornográficas, de sadomasoquismo.
Havia também um par de algemas, com a respectiva chave. Encostada na
parede que separava a sala do quarto, observou, numa estante de madeira,
vários livros. A maioria era de química, fisiologia e também didáticos
de enfermagem, mas havia alguns volumes sobre o Holocausto. Perto do
sofá ficava um aquário contendo uma enorme jibóia; Jeffrey considerou
aquilo um toque delicado.
Em contraste com o resto do apartamento, a superfície da
escrivaninha encostada numa das paredes parecia bem-arrumada. Outros
livros de referência estavam cuidadosamente dispostos entre dois pesos


de metal com a forma de corujas. Havia também uma secretária eletrônica.
Jeffrey chegou até a mesa e abriu a gaveta do centro, lápis e
papel caprichosamente arrumados. Uma pilha de fichas grandes, um caderno
de endereços, um talão de cheques. Folheou o caderno de endereços. Num
impulso, decidiu levá-lo. Enfiou-o no bolso. Deu uma olhada no talão de
cheques. Ficou surpreso com o saldo. Harding tinha mais de dez mil
dólares na conta. Recolocou o talão no lugar.
Abaixando-se, abriu a primeira gaveta. Nesse instante o telefone
soou. Jeffrey ficou imobilizado. Após alguns toques, a secretária
eletrônica entrou em funcionamento. Jeffrey recuperou o autocontrOle e
continuou sua busca. Na gaveta encontrou diversas pastas. Cada uma delas
tinha uma etiqueta: Enfermagem Cirúrgica, Anestesia para Enfermeiros, e
assim por diante. Jeffrey começou a se perguntar se não se precipitara
nas conclusões sobre aquele sujeito.
Terminada a mensagem de Trent, o aparelho emitiu novo bipe e ele
ouviu o recado de quem chamara:
- Alô, Trent! Aqui é Matt. Só estou telefonando para lhe dizer
que estou muito satisfeito. Você é fantástico. Ligarei de novo. Tome
cuidado.
Jeffrey perguntou-se vagamente quem seria esse tal Matt e por
que estava tão satisfeito. Passou para o quarto. A cama não fora feita.
O quarto tinha somente uma mesinha-de-cabeceira, uma cômoda e uma
cadeira. O armário estava aberto. Jeffrey viu uma porção de uniformes da
Marinha, todos passados, prontos para uso. Passou a mão neles
perguntando-se por que motivo Harding os teria.
Em cima da cômoda ficava a televisão. Espalhados ao lado havia
uns dez vídeos pornográficos, a maioria do tipo sadomasoquista. Fotos de
homens e mulheres acorrentados cobriam os estojos. Na
mesinha-de-cabeceira ao lado da cama havia uma brochura intitulada
Gestapo, em cuja capa via-se o retrato de um homenzarrão barbado,
trajando um uniforme nazista e com o pé sobre uma loura nua,
acorrentada.
Jeffrey abriu a gaveta superior da cômoda e encontrou um pé de
meia cheio de maconha. Encontrou também várias peças de lingerie
feminina. Que cara mais saudável, pensou Jeffrey, sarcástico. Ao lado da
lingerie, havia uma pilha de fotos. Eram retratos de Trent Harding.
Aparentemente ele mesmo os tirara. Posara na cama em vários estágios de
nudez. Em algumas fotos parecia estar vestindo a lingerie da gaveta.
Jeffrey as estava recolocando no lugar quando teve uma idéia. Selecionou
três e as enfiou no bolso. Depois juntou o resto e fechou a gaveta.
Passou para o banheiro e acendeu a luz. Aproximou-se do
armarinho dos remédios e abriu a porta com espelho. Só viu as coisas de
costume: Pepto-Bismol, Band-Aids e similares. Nada diferente, como
ampolas de Marcaína.


Fechando o pequeno armário, Jeffrey dirigiu-se para a cozinha.
Um por um, foi olhando todos os armários.
Kelly tamborilava os dedos no volante. Não lhe agradava nada aquela
espera. Preferia que Jeffrey não tivesse ido ao apartamento. Olhava
nervosamente a janela aberta no quinto andar. Uma cortina azul
projetava-se para fora e se agitava ao vento. A tela ainda se encontrava
no mesmo lugar onde Jeffrey a deixara, encostada na parede.
Kelly olhou para baixo. Podia ver o tráfego da Cambridge Street.
Mudou de posição e deu uma olhada no relógio do painel. Jeffrey estava
no apartamento há quase vinte minutos. Que diabo estaria fazendo?
Incapaz de ficar sentada por um minuto mais, resolveu sair do
carro. Já abrira um pouco a porta e tinha um pé no meio-fio quando viu
Trent Harding. Ele voltara! Estava bem próximo do seu prédio e se
encaminhava diretamente para a porta. Não havia dúvida: Trent Harding ia
entrar no apartamento!
Kelly sentiu-se gelar. O homem vinha na sua direção. Podia ver a
expressão que Jeffrey descrevera nos seus olhos. Eram como os de um
felino, intensamente ferozes. Pareceu fitá-la fixamente, mas não alterou
o passo. Ao chegar no prédio, abriu a porta com um gesto brusco e sumiu.
Kelly precisou de alguns segundos para se livrar da paralisia
que o aparecimento do homem causara. Em pânico, empurrou a porta do
carro, abrindo-a inteiramente, e pulou para a rua. Correu até o prédio e
agarrou a porta, disposta a escancará-la, mas se deteve. Trent teria
tido tempo de atravessar a salinha de entrada? Após outro segundo de
hesitação, abriu a porta uns dois centímetros e espiou. Vendo que estava
vazia, entrou correndo e procurou desesperadamente o nome Trent na lista
do interfone. Encontrando-o no alto, levantou o dedo trêmulo e
pressionou o botão.
- Não! - exclamou. Lágrimas de medo e frustração surgiram em
seus olhos. O botão não se movia. Examinando mais atentamente, viu que o
mecanismo há muito tempo fora desligado. O fio cortado estava exposto. O
botão ficara permanentemente preso. Se o fio não tivesse sido cortado, a
campainha do apartamento de Harding ficaria tocando o tempo todo. Kelly
deu um soco no painel do interfone. Tinha que pensar em alguma coisa.
Considerou suas opções. Não havia muitas.
Correu até o meio da rua, pôs as mãos em concha diante da boca e
gritou para a janela aberta:
- Jeffrey! - Não houve resposta. Gritou ainda mais alto,
repetindo o nome duas vezes.
Se Jeffrey ouviu, não deu sinal. Kelly ficou perplexa. Que mais
poderia fazer? Imaginou Harding subindo a escada. Provavelmente estava
diante da sua porta naquele instante. Correndo até o carro, pulou dentro
dele e arriou a mão na buzina.
Jeffrey endireitou o corpo e estirou-se. Examinara praticamente todos os


armários sob a bancada e só encontrara um enorme ninho de baratas. A
distância ouviu uma buzina tocando continuamente. Perguntou-se qual
seria o problema. Qualquer que fosse, o motorista era muito insistente.
Jeffrey esperara ter, nessa altura da pesquisa, esbarrado em
alguma coisa incriminadora no apartamento de Trent, mas nada encontrara.
conseguira apenas descobrir evidências de uma personalidade suspeita e
possivelmente violenta, além de sérias dúvidas sobre a sua identidade
sexual. Mas isso certamente não fazia dele um assassino contumaz que
adulterava frascos de anestésicos de uso local.
Começou a abrir outras gavetas. Nada que não fosse o trivial:
louças, talheres, vários abridores e outros instrumentos de cozinha.
Passou ao armário debaixo da pia, onde encontrou uma lata de lixo, uma
caixa com utensílios para primeiros socorros, uma pilha de jornais
velhos e um maçarico a gás.
Pegou o maçarico e examinou-o detidamente. Era do tipo usado por
bombeiros amadores. Um tripé portátil estava ao seu lado. A primeira
pergunta que Jeffrey se fez foi se aquele maçarico podia ser usado para
adulterar frascos de Marcaína. Rememorou sua experiência no fogão de
Kelly. Um maçarico como aquele seria excelente para direcionar a chama.
Mas embora fosse útil para tal propósito, por si só dificilmente
comprovava que era para isso que Trent o guardava debaixo da pia. Havia
muitos outros modos de usar um maçarico além de adulterar ampolas de uso
medicinal.
O coração de Jeffrey falhou uma batida. O barulho de passos
pesados subindo a escada chegou-lhe aos ouvidos. Rapidamente, recolocou
o maçarico no lugar e fechou as portas do armário. Passou logo para a
sala, preparando-se para bater rapidamente em retirada, se fosse o caso.
Não ouvira a campainha do interfone, mas achou melhor estar preparado.
Mesmo que pouco provável, Trent podia ter entrado sem que Kelly o visse.
O ruído de uma chave sendo enfiada na fechadura o deixou
retesado. A janela aberta ficava a uns seis metros, logo depois da
porta. Jeffrey sabia que não teria tempo de chegar lá. Só podia colar-se
à parede da cozinha e esperar não ser visto.
Com o coração disparado, ouviu a porta batendo e o barulho de
revistas sendo jogadas em cima da mesinha de centro; a seguir, as mesmas
passadas fortes atravessando a sala. Em pouco tempo, o ritmo grave e
exaltado de um rock enchia o apartamento. Jeffrey pensou na sua
situação. A janela da cozinha abria para um pátio, mas ali não havia
escada de incêndio. A queda seria de cinco andares até o chão. Sua única
rota de fuga era a janela da frente, a menos que pudesse alcançar
primeiro a porta do apartamento. Mas duvidava que conseguisse sair pela
porta, porque, mesmo chegando lá, não abriria tantos fechos e trancas
com a rapidez necessária. Contudo, urgia fazer algo. Era só uma questão
de tempo, logo Trent notaria a tela fora do lugar.


Antes que Jeffrey pudesse encontrar uma solução, Trent
surpreendeu-o de novo dirigindo-se para a geladeira com uma embalagem de
seis cervejas na mão.
Sabendo que seria descoberto nos próximos segundos, Jeffrey saiu
voando pela porta, na tentativa de chegar à janela aberta.
O súbito movimento espantou Trent, mas apenas por um momento.
Com uma rajada de palavrões ele largou a cerveja, que se espatifou no
linóleo, e pulou atrás de Jeffrey.
Jeffrey só tinha um desejo na mente: chegar à janela.
Alcançando-a, ele praticamente mergulhou, batendo no peitoril com um
lado do corpo. Agarrado no balaústre da escada de incêndio, tentou puxar
as pernas que ainda estavam no lado da sala, mas não foi bastante
rápido. Trent segurou sua perna direita na altura do joelho e começou a
puxar.
Daí resultou uma espécie de cabo-de-guerra, os dois homens
grunhindo e arfando. Jeffrey não era páreo para a força e juventude de
Trent. Percebendo que estava prestes a ser puxado de volta para o
apartamento, Jeffrey encolheu a perna livre e chutou Trent com toda a
força, acertando-o no peito.
A pancada fez Trent afrouxar. Com um segundo coice, Jeffrey
viu-se livre. Passou por cima do peitoril e, atabalhoadamente,
agarrou-se à escada de incêndio.
Trent meteu a cabeça para fora da janela, e viu Jeffrey.
Decidindo cortar seu caminho, voltou para o apartamento, resolvido a
usar a escada interna. No caminho, agarrou um martelo que ficava sempre
na estante.
Jeffrey nunca fora tão rápido na sua vida. Tão logo chegou no
telhado, não perdeu tempo. Correu diretamente para a parede do prédio
vizinho e saltou para aquele telhado. Disparou para a casinhola que
protegia o acesso à escada e, freneticamente, sacudiu a porta. Trancada!
Quando voava para o outro muro, ouviu a porta do terraço de Trent
abrir-se com força e bater na parede.
Deu uma olhada e viu Trent galopando para ele com uma careta de
raiva e determinação contorcendo-lhe o rosto. Viu também que segurava um
martelo.
Jeffrey chegou na segunda casa de terraço, a dois prédios do de
Trent. Deu um puxão na porta. Para seu alívio, a porta abriu. Em um
segundo passou para o lado de dentro, fechou a porta e pôs-se a lutar
com o cadeado, que não funcionava. Mas havia um trinco. As mãos de
Jeffrey tremiam tanto que ele quase não conseguiu fechá-lo. Conseguiu bem na hora em que Trent se atirou contra o outro lado da porta.
O enfermeiro sacudiu a porta com violência, tentando abri-la. Jeffrey
recuou, esperando que o frágil trinco agüentasse. Quando Trent aliviou
sua frustração, malhando a porta com o martelo, diversos golkpes


atravessaram a madeira fina, estilhaçando-a. Jeffrey voou escadas
abaixo. Conseguira descer dois andares quando ouviu a porta da casinhola
se abrindo.
No terceiro lanço, Jeffrey tropeçou, e se não estivesse
segurando com força no corrimão, teria caído. Por sorte, conseguiu
recuperar o equilíbrio e continuar a descida.
No andar térreo, empurrou a porta da rua. Kelly estava de pé ao
lado do carro.
- Depressa! - gritou ele, sempre em disparada, agora rumo ao
automóvel. Quando chegou, Kelly já tinha ligado o motor.
Trent apareceu, de martelo na mão. Kelly afundou o pé no
acelerador. Ouviram um baque surdo no teto do automóvel. Trent
arremessara o martelo.
Jeffrey apoiou-se no painel, enquanto Kelly partia Garden Street
abaixo. Os pneus protestaram ruidosamente mais uma vez quando freou ao
pé da colina. Sem parar, ela avançou no tráfego pesado da Cambridge
Street e seguiu para o centro da cidade.
Nenhum dos dois falou até que tiveram de parar num sinal, na
esquina da New Chardon. Kelly virou-se então para Jeffrey, furiosa.
- "Nada vai sair errado. Confie em mim" - repetiu, imitando a
segurança que houvera na voz dele. - Eu lhe disse para não entrar gritou.
- Você devia ter tocado a campainha! - retrucou Jeffrey, ainda
recuperando o fôlego.
- Eu tentei - contrapôs ela. - Você observou se funcionava? É
claro que não. Seria pedir demais. Pois bem, a campainha estava quebrada
e Trent poderia fazê-lo em pedaços. Aquele cretino tinha um martelo! Mas
por que deixei você entrar lá? - lamentou-se, batendo na testa com a
palma da mão.
O sinal abriu e eles seguiram em frente. Jeffrey permaneceu em
silencio. Kelly tinha razão. Ele talvez não devesse ter entrado no
apartamento de Trent. Mas parecia uma oportunidade ideal.
Continuaram em silêncio por mais alguns quilômetros. Finalmente,
Kelly perguntou:
- Pelo menos você achou alguma coisa que justificasse o risco?
Jeffrey sacudiu a cabeça.
- Na verdade, não - respondeu. - Encontrei um maçarico a gás,
mas dificilmente seria considerado uma prova aceitável.
- Nenhum frasco de veneno na mesa da cozinha? - perguntou ela,
zombando.
- Receio que não - disse Jeffrey, começando a se sentir um pouco
irritado. Sabia que Kelly estava temerosa, e que tinha razão para se
enfurecer com aquela sua atividade de detetive amador, mas supunha que
ela exagerava. Afinal de contas, fora ele quem arriscara o pescoço, não


ela.
- Acho que é hora de chamarmos a polícia, com prova ou sem
prova. Um maluco carregando um martelo é prova suficiente para mim. A
polícia é que devia entrar naquele apartamento, não você.
- Não! - gritou Jeffrey, agora com raiva mesmo. Não queria se
envolver novamente naquela discussão. Mas assim que levantou a voz,
arrependeu-se. Depois que tudo que fizera por ele, Kelly merecia melhor
tratamento. Jeffrey suspirou. Enfrentaria a discussão mais uma vez. - A
polícia sequer iria conseguir um mandado de busca. Tudo que temos é mera
especulação.
Continuaram o trajeto para a casa de Kelly, em Brookline,
conservando silêncio. Quando se aproximaram, Jeffrey disse:
- Desculpe ter gritado com você. Aquele sujeito realmente me
assustou. Detesto imaginar o que teria feito se me agarrasse.
- Meus nervos também estão um pouco à flor da pele - admitiu
Kelly. - Fiquei horrorizada quando o vi entrando no prédio, e, mais
ainda depois, quando percebi que não podia avisá-lo. Senti-me muito
impotente. E quando o vi brigando na janela, acabei de perder o
controle. Como foi que conseguiu escapar?
- Sorte - respondeu Jeffrey, reconhecendo o enorme perigo por
que passara. Estremeceu e tentou banir da memória a lembrança da imagem
de Trent correndo atrás dele com um martelo na mão.
Quando viraram na rua onde Kelly morava, Jeffrey lembrou-se do
seu outro problema: Devlin. Pensou em passar para o banco de trás, mas
não havia mais tempo. Resolveu se encolher ali mesmo, e seus joelhos
ficaram grudados no painel.
Kelly viu a manobra com o canto do olho.
- Qual é o problema agora?
- Quase me esqueci de Devlin - explicou Jeffrey, enquanto KellY
virava na entrada da sua casa. Ela premiu o abridor automático da porta
da garagem, e, assim que entrou, premiu outra vez. A porta fechou-se
atrás deles.
- Agora só me faltava Devlin aparecer - gemeu Jeffrey ao saltar
do carro. Já não sabia quem temia mais, se Trent ou Devlin. Entraram em
casa juntos.
- Que tal um chá de ervas? - sugeriu ela. - Talvez seja bom para
nos acalmar.
- Acho que o que estou precisando mesmo são uns 10 miligramas de
Valium na veia - disse Jeffrey. - Mas me satisfaço com o chá. Na verdade
será muito bom. Talvez pudéssemos acrescentar uma gota de conhaque.
Ajudaria.
Livrando-se dos sapatos, Jeffrey atirou-se no sofá da sala dos
fundos. Kelly pôs água para ferver.
- Temos que imaginar outro modo de descobrir se Trent Harding é


culpado ou não - disse Jeffrey. - O problema é que não disponho de muito
tempo. Devlin vai me achar um dia desses. Talvez muito em breve.
- Sempre há a policia - insistiu Kelly. Quando Jeffrey começou a
protestar, ela acrescentou: - Eu sei, eu sei. Não podemos procurar a
polícia etc. e tal. Mas lembre-se de que você é o fugitivo, não eu.
Talvez eles me ouvissem.
Jeffrey ignorou-a. Se não tinha compreendido ainda, não ia
tentar explicar de novo. Enquanto não houvesse uma prova concreta, seria
ridículo procurar as autoridades. Era bastante realista para saber
disso.
Erguendo os pés sobre a mesinha, Jeffrey recostou-se. Ainda
tremia por causa da experiência que tivera com Trent Harding. A visão
daquele sujeito correndo atrás dele com um martelo na mão o perseguiria
pelo resto da vida.
Tentou analisar em que ponto da investigação se encontrava.
Embora não tivesse prova da existência de um contaminante na Marcaína,
seu instinto lhe dizia que fora exatamente o que acontecera. Não havia
outra explicação para os sintomas que todos aqueles pacientes
apresentaram. Não tinha muita esperança de que o Dr. Seibert viesse a
encontrar alguma solução, mas a conversa que tivera com ele lhe
permitira sentir-se relativamente seguro de que algum tipo de toxina,
talvez a batracotoxina, fora acrescentado à Marcaína. Bem, pelo menos O
Dr. Seibert ficara interessado o bastante para pesquisar.
Jeffrey também estava praticamente certo de que Harding era o
asSassino. O fato de trabalhar em todos os hospitais envolvidos era
coincidência demais. Contudo, precisava ter certeza. Se fosse mesmo
coincidência, seria preciso conseguir as listas de médicos dos outros
dois hospitais.
- Talvez você devesse simplesmente telefonar para ele - disse
Kelly, da cozinha.
- Telefonar para quem?
- Harding.
- Oh, claro! - exclamou Jeffrey, olhando para o teto. - E dizer
o quê? Ei, Trent! É você o cara que vem pondo veneno na Marcaína?
- Não seria mais estúpido do que entrar no apartamento dele retrucou Kelly, tirando a chaleira do fogo.
Virou-se para ela, procurando ver se falava sério. Kelly ergueu
as sobrancelhas, como que desafiando-o a discordar dessa última
afirmativa. Jeffrey desviou o rosto de novo e ficou olhando fixamente
para o jardim. Imaginou-se tendo uma conversa hipotética com Trent
Harding pelo telefone. Talvez, afinal, a sugestão de Kelly não fosse
nada estúpida.
- Claro que não poderia fazer-lhe nenhuma pergunta direta acrescentou ela, trazendo o chá. - Talvez você pudesse apenas insinuar a


acusação e ver como ele reagia.
Jeffrey assentiu. Por mais que detestasse admitir, ela podia ter
lembrado uma coisa útil.
- Encontrei um troço numa gaveta da cômoda dele que pode ser
útil numa conversa desse tipo - disse.
- O que foi?
- Uma pilha de fotos Polaroid. Perversão sexual. Retratos
exibicionistas.
- De quem?
- Dele mesmo. Nu, ou quase. E havia outras coisas no
apartamento: algemas, lingerie, vídeos pornô violentos... o que me faz
pensar que, além de criminoso, o enfermeiro Harding tem um problema de
identidade sexual, entre outros igualmente sérios, também sexuais.
Talvez possamos usar este tipo de dados como arma.
- De que jeito?
- Não sei bem - respondeu Jeffrey. - Mas não posso crer que ele
queira que esses retratos sejam vistos por muitas pessoas. Provavelmente
é um tipo muito vaidoso.
- Acha que é gay? - quis saber Kelly.
- Penso que há uma chance - respondeu Jeffrey. - Mas meu palpite
é que nem ele mesmo está seguro, ou seja, Harding se sente confuso e
luta contra suas tendências homossexuais. Este seria o problema que o
vem levando a fazer loucuras. Isto é, na hipótese de ser o criminoso.
- Ele parece ser um sujeito encantador - disse Kelly.
- O tipo do filho que só mesmo a mãe poderia amar - completou
Jeffrey. Pegou no bolso os três retratos e os entregou a Kelly. - Dê uma
espiada.
Kelly pegou as fotos, olhou rapidamente e devolveu com uma
expressão de nojo.
- A única questão agora é saber se uma gravação seria aceita
pelo tribunal, se acaso tivermos sorte. Talvez esteja na hora de ligar
para o velho Randolph.
- Quem é Randolph? - perguntou Kelly. Verificou se o chá estava
no ponto certo e serviu duas xícaras.
- Meu advogado.
Jeffrey foi até a cozinha e ligou para o escritório de Randolph.
Mandaram que esperasse, depois que ele se identificou. Kelly trouxe a
xícara e pôs em cima do balcão. Ele tomou um gole. Estava muito quente.
Quando Randolph atendeu, não se mostrou muito amável.
- Onde você está, Jeffrey? - perguntou, abruptamente.
- Ainda em Boston.
- A corte já sabe da sua tentativa de fuga para a América do Sul
- disse Randolph. - Há uma ordem de prisão expedida contra você.
- Cale a boca por um minuto, Randolph! - berrou Jeffrey. - E


deixe que eu lhe diga algo. Tenho plena compreensão da seriedade deste
caso desde o primeiro dia. Se alguém errou no que diz respeito ao caso,
fui eu, e não você. Vocês, advogados, vêem um caso igual ao meu como
sendo uma espécie de rotina, de mais um dia de trabalho. Pois bem,
deixe-me dizer algo: é a minha vida que está em jogo. E vou lhe dizer
ainda outra coisa: não estou correndo na praia de Ipanema, nem me
divertindo. Penso que descobri uma coisa que pode cancelar minha
condenação. No momento, tudo o que quero é fazer uma pergunta e talvez
conseguir uma resposta, depois de todo o dinheiro que lhe paguei.
Houve um silêncio breve. Jeffrey receou que Randolph tivesse
desligado o telefone.
- Está me ouvindo, Randolph? - Qual é a sua pergunta? - Uma
gravação é aceitável como prova?
- A pessoa sabe que o que diz está sendo gravado? - indagou
Randolph.
- Não - respondeu Jeffrey. - Não sabe.
- Então não seria aceitável.
- Por que diabos não seria?
- Questão de direito à privacidade - respondeu Randolph,
começando a explicar a lei.
Desgostoso, Jeffrey desligou o telefone.
- Ainda estamos na estaca zero - disse Kelly. Depois pegou o chá
e foi sentar-se no sofá do lado dela.
- Não posso acreditar nesse homem - disse Jeffrey. - Ele não
consegue superar pelo menos uma dificuldade.
- Não foi ele quem fez a lei.
- Não estou tão certo assim. Acho que a maioria dos legisladores
se compõe de advogados. É como um clube privado. Fazem as suas regras e
desprezam a humanidade.
- E qual é o problema da gravação não ter valor legal? - indagou
Kelly. - Posso ouvir na extensão. Não sou um gravador, e certamente
posso ser chamada para confirmar o que foi dito. Posso ser testemunha.
Jeffrey estudou o rosto dela com admiração.
- É isso mesmo.., nunca pensei nisso. Agora só temos que decidir
como vai ser a minha conversa com Trent Harding.
***
Capítulo 14.
SEXTA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 1989, 19:46.
Devlin foi arrancado da sua indecisão pelo telefone do carro. Ainda
estava parado a duas casas da residência de Kelly Everson. Há 25 minutos
vira o carro entrar e desaparecer na garagem. Dera uma olhada na
motorista: uma morena bonita de cabelo comprido. Devia ser Kelly.


Antes disso ele tinha ido até a casa e tocado a campainha, mas
ninguém atendera. A casa devia estar vazia. O silêncio era total, nada
parecia com sua primeira visita. Devlin voltara ao automóvel. Mas agora
que Kelly chegara, não sabia se ia ter logo uma conversa com ela ou se
esperava um pouco para ver se chegavam visitas ou se ela ia a algum
lugar. Indeciso, ficou sentado mais um pouco; isso, sabia ele, por si só
já era uma decisão. Uma coisa que chamava a atenção é que Kelly não
abrira nenhuma das cortinas. Não parecia normal, de Jeito nenhum.
Era Mosconi ao telefone. Devlin teve que segurar o aparelho com
o braço estendido, tão alto ele gritava. A fiança estava prestes a ser
Confiscada.
- Por que ainda não encontrou o doutor? - berrou Mosconi, quase
sem fôlego depois do seu histérico monólogo.
Devlin disse que sua semana ainda não terminara, mas de nada
adiantou, pois a observação caiu em ouvidos moucos.
- Já liguei para outros caçadores de recompensa.
- Por que fez uma coisa dessa? - reclamou Devlin. - Eu lhe
disse que vou pegá-lo, e vou. Já fiz algum progresso, de modo que quando
suas ligações começarem a ser respondidas, diga aos homens que não são
mais necessários.
- Você pode me prometer alguma coisa para as próximas vinte e
quatro horas?
- Estou com uma boa pista. A minha sensação é de que verei o
doutor ainda esta noite.
- Não respondeu à minha pergunta - insistiu Michael. - Quero
resultados em vinte e quatro horas. Do contrário, cairei fora do
negócio.
- Está bem - concordou Devlin. - Vinte e quatro horas.
- Não está mentindo só para me agradar, está, Devlin?
- Já fiz isso alguma vez?
- O tempo todo. Mas agora vou fazer com que você cumpra a sua
palavra. Está entendendo?
- Descobriu alguma coisa mais sobre o julgamento do doutor? retrucou Devlin.
Mosconi contara a Devlin o essencial do caso naquela tarde. Ao
tomar conhecimento de mais detalhes da história, ele sentiu por Rhodes
algo que era quase um sentimento de solidariedade. Ter um problema com
morfina e vencer tal problema, e depois o jogarem na sua cara na
primeira oportunidade adversa, lhe parecia injusto. Sabendo que tipo de
"assassino" Rhodes era, Devlin sentiu-se até culpado por ter atirado
nele no Essex. Em parte, o motivo pelo qual jogara tão duro contra
Rhodes fora o fato de ter pensado que estava tratando com um criminoso
de verdade - um bandido de colarinho-branco, do tipo que Devlin sempre
odiara. Saber mais coisas sobre a natureza do crime fê-lo sentir-se como


se ele mesmo fosse mais uma onda de azar perseguindo o cara.
Mas Devlin não estava disposto a deixar que sua empatia por
Jeffrey fugisse ao controle. Agiria como um profissional. Era o que ia
fazer. Pegaria o Dr. Jeffrey Rhodes, tudo bem, certamente o traria vivo,
e não morto.
- Pare de se preocupar com a condenação do homem - disse
Mosconi, bruscamente. - Ou você traz o calhorda ou arranjo outro para
fazer o serviço. Está me ouvindo?
Devlin desligou. Havia ocasiões em que Mosconi conseguia dar-lhe
nos nervos, e essa era uma delas. Claro que não queria perder a
recompensa daquele caso, e nem gostava de ser ameaçado com a
possibilidade de não recebê-la. Detestava também ter sido forçado a
fazer
uma promessa que podia não ser capaz de cumprir. Iria esforçar-se ao
máximo. Mas agora não podia mais se dar ao luxo de esperar que as coisas
acontecessem. Tinha de fazê-las acontecerem. Ligou o motor e parou na
entrada para carros de Kelly. Saltou, foi até a porta da frente e
apertou o botão da campainha.
Jeffrey estava profundamente imerso em seus pensamentos quando a
campainha tocou, assustando-o. Kelly levantou-se e foi até a porta. Ele
escondeu-se atrás do sofá e disse:
- Trate de ver direito quem é. Ela parou na porta da sala de
jantar. - Eu sempre verifico quem é - respondeu, um tanto irritada.
Jeffrey balançou a cabeça, concordando. Sentia muito que os nervos de
ambos estivessem tão desgastados. Talvez devesse fazer a Kelly o favor
de se mudar para um hotel. Não podia esperar que ela suportasse todas as
tensões decorrentes daquela situação. Em seguida, voltou seus
pensamentos para Trent Harding e o que poderia lhe dizer ao telefone.
Devia haver um modo de levá-lo a engolir a isca. Se ao menos pudesse
fazê-lo falar...
Nesse momento Kelly voltou, na ponta dos pés.
- Não é ninguém que eu conheça - cochichou. - Deve ser esse tal
de Devlin. Rabo-de-cavalo, roupa de zuarte. Brinco com uma
cruz-de-malta. Creio que você devia dar uma olhada.
- Oh, não! - exclamou Jeffrey. Levantou-se e seguiu-a através da
sala e do hall. Não estava em condições de se submeter a outra
confrontação. No momento exato em que chegaram junto da porta, a
campainha soou várias vezes, em rápida sucessão. Jeffrey adiantou-se com
cuidado e, cautelosamente, deu uma espiada pelo olho mágico.
O sangue gelou nas suas veias. Era Devlin, sim! Abaixou-se e se
afastou, fazendo um sinal para Kelly segui-lo até a sala.
- É o Devlin, sim - sussurrou. - Pode ser que, se ficarmos
quietos, ele pense que não tem ninguém em casa e vá embora, como da
última vez.


- Mas nós acabamos de entrar de carro - disse ela. - Se ele viu
o carro, sabe que tem gente em casa. E se fingirmos que não tem ninguém,
vai logo supor que você está aqui.
Jeffrey fitou-a com renovada surpresa.
- Por que tenho a impressão de que você é sempre melhor nas
soluções do que eu? - perguntou.
- Não podemos deixar que ele desconfie - repetiu Kelly, indo
novamente atender a porta. - Trate de se esconder. Vou falar com ele,
mas não deixarei que entre.
Freneticamente, Jeffrey procurou um lugar para se esconder. Não
queria voltar à despensa. Preferiu esgueirar-se dentro do armário
construido embaixo da escada e se enfiar por trás dos casacos.
Junto à porta, Kelly perguntou:
- Quem é?
- Desculpe perturbar, madame - respondeu Devlin, do outro lado.
- Estou trabalhando para que a lei seja cumprida, e procuro um homem
perigoso, um criminoso condenado. Gostaria de falar com a senhora por um
momento.
- Receio que seja uma hora inconveniente - disse Kelly. - Acabo
de sair do chuveiro e estou sozinha em casa. Não gosto de abrir a porta
para estranhos. Espero que o senhor entenda.
- Posso entender, sem dúvida - concordou Devlin. - Especialmente
com a aparência que tenho. O homem que estou procurando chama-se Jeffrey
Rhodes, embora tenha usado outros nomes. O motivo pelo qual estou lhe
falando é que alguém me disse que a senhora foi vista há pouco tempo com
esse homem.
- Oh! - exclamou Kelly, estupefata com o fato de alguém ter
contado isso para Devlin. - Quem lhe disse uma coisa dessas? - gaguejou.
Rapidamente tentou adivinhar com quem Devlin poderia ter conversado. Uma
vizinha? Polly Arnsdorf?
- Não estou autorizado a dizer - disse Devlin. - Mas é um fato
que a senhora o conhece, não é verdade?
Rapidamente Kelly recuperou o controle, percebendo que Devlin
estivera jogando verde, exatamente o que Jeffrey e ela pretendiam fazer
com Trent Harding.
- Já ouvi esse nome, sim - disse. - Alguns anos atrás, antes de
morrer, acho que meu marido fez algumas pesquisas com um tal de Jeffrey
Rhodes. Mas não vejo esse homem desde o funeral.
- Nesse caso, desculpe-me por ter importunado - disse Devlin. Talvez a pessoa que me deu a informação não seja confiável. Mas deixe-me
pedir-lhe uma coisa. Vou enfiar meu cartão por baixo da porta, com o
número do telefone. Se vir Jeffrey Rhodes, ou tiver notícias dele, ligue
para mim.
Olhando para o chão, Kelly viu um cartão surgir sob a porta.


- Pegou? - quis saber Devlin.
- Peguei, e com certeza telefonarei se o vir.
Puxou para um lado a cortina de renda que protegia a janelinha
do lado da porta. Viu Devlin descer a pequena escada na frente da casa e
desaparecer. Depois ouviu o motor de um carro sendo ligado. Um Buick
Regal preto recuou até a rua e acelerou, partindo. O carro afastou-se na
direção de Boston. Esperou um momento, e saiu para dar uma olhada ao
redor da casa. Voltou correndo, fechou e trancou a porta da frente. Em
seguida, abriu a porta do armário. Jeffrey estava bem no fundo. E piscou
um bocado quando saiu para a luz.
Devlin teve que sorrir. As vezes até mesmo pessoas inteligentes se
portavam como burras. Kelly caíra no laço assim que ele mencionara que
alguém a teria visto com Jeffrey Rhodes. Ela dera a volta, mas tarde
demais. Devlin sabia que Kelly estava mentindo, e portanto tentava
esconder alguma coisa. Além disso, ele a vira sair e examinar a casa do
lado de fora, enquanto se afastava.
Assim que se viu bem longe, fez rapidamente uma curva total. Em
seguida, manobrou por pequenas ruas secundárias até se aproximar
novamente, desta vez pelo lado oposto. Enveredou pela entrada de
cascalho de uma casa próxima, que parecia deserta, e desligou o motor.
Dali tinha uma boa visão da casa de Kelly por entre um renque de
bétulas.
Pelo modo como ela agira, tinha certeza de que sabia de alguma
coisa. A questão era o quanto. Devlin achou que havia uma boa
possibilidade de ela entrar em contato com Jeffrey para avisá-lo de que
ele estivera lá. Quisera ter tido uma oportunidade para grampear seu
telefone. Pensou em contornar a casa e achar a caixa de entrada da linha
telefônica, mas não podia fazer isso à luz do sol. Era preciso esperar
que a noite caísse.
Se estivesse realmente com sorte, e Devlin acreditava que
merecia pelo menos um pouco, Kelly iria visitar Jeffrey onde quer que o
cara estivesse se escondendo. Havia uma chance mínima de que o doutor
aparecesse ali mesmo na porta dela. Devlin ia esperar para ver.
Acontecesse o que acontecesse, de uma coisa tinha certeza: da próxima
vez o bom doutor não ia escapar.
- Você não ouviu o que ele disse? - perguntou Kelly.
- Não - respondeu Jeffrey. - Eu podia ouvir você, mas não a ele.
- Ele disse que alguém lhe contara ter-nos visto juntos, e eu
afirmei que não tinha contato com você desde o funeral de Chris. Deixou
nome e telefone para o caso de eu encontrar você. Tenho certeza de
que não sabe que está aqui, Jeffrey. Se soubesse, não teria desistido
tão facilmente, e por certo não teria se dado ao trabalho de deixar o
número do telefone.
- Mas é a segunda vez que vem aqui - disse Jeffrey. - Deve saber


de alguma coisa, de outro modo não voltaria. Até agora temos tido sorte.
Ele tem uma arma, e a usa com toda a facilidade e quando bem entende.
- Ele está jogando verde - disse Kelly, confiante. - Estou lhe
dizendo, Devlin não sabe que você está aqui. Confie em mim!
- É em Devlin que não confio. O problema é ele. Sinto-me culpado
por arriscar sua segurança.
- Você não está arriscando a minha segurança. Quem resolve isso
sou eu! Sou uma participante ativa nesta confusão toda. Você não vai
conseguir me assustar mais do que Devlin ou Harding. Além do mais - ela
adotou um tom de voz um pouco mais suave -, você precisa de mim.
Jeffrey estudou o rosto de Kelly. Examinou seus olhos
castanho-escuros, notando que eram raiados de ouro. Pela primeira vez
quase sentiu que tudo o que tinha passado nos últimos dias valera a pena
só para chegar àquele momento com ela. Sempre a considerara atraente;
súbito, via que era linda. Linda, afetuosa, interessada, e, oh!, tão
feminina.
Estavam sentados no sofá da sala dos fundos, para onde foram
depois que Kelly tirara Jeffrey das profundezas do armário sob a escada.
Com as cortinas ainda abaixadas, a única fonte da luz naquele fim de
tarde eram as janelas vazadas em cima da pia, o que deixava a sala com
uma iluminação suave e uniforme. Do quintal, vinha um canto de
passarinhos.
- Apesar do perigo, você quer mesmo que eu fique? - indagou
Jeffrey. Um dos seus braços estava apoiado no encosto do sofá.
- Você consegue ser tão obtuso - disse Kelly, sorrindo. - É bem
um homem. - Riu sua risada cristalina, e seus olhos e dentes cintilaram
na luz macia. - Então está combinado - disse. Alegremente, apoiou a
cabeça no braço dele, ergueu a mão e, com toda a gentileza do mundo,
tocou na ponta do seu nariz, e depois no lábio superior. - Tenho uma
certa idéia de como você deve ter se sentido solitário durante todos
estes dias. Estes meses. Sei, porque senti a mesma coisa. Pude ver nos
seus olhos na noite em que chegou aqui, vindo do aeroporto.
- Foi tão óbvio? - perguntou Jeffrey. Mas não esperou respoSta. Fora uma pergunta retórica, e naquela hora uma grande mudança
operou-se nele. O universo estava encolhendo. Subitamente, reduziu-se à
sala. O tempo foi se alentando, depois parou. Inclinando-se
delicadamente, beijou aquela boca que se voltara para o alto. Como em
câmera lenta, os dois se abraçaram de um modo terno, emocionado e
faminto de carinho. No princípio fizeram amor devagar, depois com
entusiasmo e por fim com voracidade. Foi uma união feliz, na medida em
que a necessidade mútua foi saciada pela mútua gratificação.
Finalmente, o canto dos pássaros reentrou na consciência deles.
Tão esmagadora e inesperada como surgira o seu amor, a realidade foi
voltando em etapas. Por um breve instante tinham sido as únicas pessoas


na terra, esquecidas do espaço e do tempo. Foi com certo embaraço,
reminiscente da perda original da inocência que se separaram o bastante
para olharem nos olhos um do outro. Começaram a rir. Sentiam-se como
adolescentes.
- E agora - disse Kelly, quebrando finalmente o silêncio -, você
fica?
Ambos riram.
- Fico - concordou Jeffrey.
- Que tal jantarmos?
- Puxa, que transição! - exclamou Jeffrey. - Não tenho pensado
muito em comida. Está com fome?
- Estou sempre com fome - admitiu Kelly, afastando-se.
Fizeram o jantar juntos, Kelly ficando com a parte de leão no
trabalho mas dando a Jeffrey tarefas como lavar e secar a alface.
Jeffrey ficou espantado por se sentir tão calmo. O medo de
Devlin ainda estava presente, mas agora o tinha sob controle. Com Kelly
a seu lado, já não se sentia sozinho. De quebra, achou que ela estava
certa. Devlin não podia saber de sua presença ali. Se soubesse teria
entrado, mesmo que desmontando a porta, quer Kelly a tivesse aberto ou
não.
Consultando a hora, Jeffrey tirou uma folga das suas tarefas e
resolveu telefonar para o gabinete do legista. Esperava que o Dr. Warren
Seibert ainda estivesse lá. Queria perguntar-lhe se conseguira
identificar alguma toxina.
- Nada por enquanto - disse Seibert assim que atendeu. - Passei
amostras de Karen Hodges, Gail Shaffer e até mesmo Patty Owen no
cromatógrafo.
- Agradeço muito por sua tentativa - disse Jeffrey. - Mas pelo
que me disse esta manhã, isso não chega a ser uma surpresa. E só
porque você não encontrou uma toxina, não quer dizer que não Possa
existir uma. Certo?
- Certo - confirmou Seibert. - Mesmo que eu não tenha achado,
ela pode estar escondida num dos picos. Mas falei com um patologista da
Califórnia que fez algumas pesquisas sobre a batracotoxina e sua família
de toxinas. Estou esperando que me ligue de volta e me diga onde o troço
pode estar na coluna cromatográfica. De repente, talvez saiba onde
podemos achar uma antitoxina conhecida. Andei lendo mais um pouco, e,
ante as especificações que você me deu, acho que a batracotoxina é a
principal candidata.
- Muito obrigado por sua ajuda - repetiu Jeffrey.
- Bem, não há problema. Esse é o tipo de caso que me faz seguir
neste campo. Deixou-me superanimado, quer dizer, se suas suspeitas se
confirmarem vai ser um negócio da maior importância. Vamos conseguir
escrever uns dois trabalhos de primeira em cima disso.


Depois que Jeffrey desligou, Kelly quis saber:
- Ele teve sorte?
Jeffrey sacudiu a cabeça negativamente.
- Está animadíssimo, mas não descobriu nada. É um bocado
frustrante estar assim tão perto mas não ter ainda prova nem do crime
nem da culpa do principal suspeito.
Kelly adiantou-se e abraçou Jeffrey.
- Não se preocupe, vamos descobrir o que aconteceu de um jeito
ou de outro.
- Sinceramente, espero que sim. E isso antes que Devlin ou a
polícia me prendam. Acho melhor a gente seguir adiante e fazer logo a
ligação para o tal Trent Harding.
- Depois do jantar - disse Kelly. - As primeiras coisas em
primeiro lugar. Até lá, que tal abrir uma garrafa de vinho? Acho que
podíamos tomar um pouco.
Jeffrey pegou na geladeira uma garrafa de Chardonnay e tirou o
selo de metal laminado.
- Se for esse Trent o responsável pelos crimes, eu gostaria de
saber como decorreu sua infância. Deve haver algum tipo de explicação,
mesmo que seja irracional.
- O problema é que ele parece bem normal - comentou KellY. - Sei
que seu olhar é um bocado intenso, mas talvez estejamos vendo nele o que
sabemos. A não ser por isso, é até parecido com o sujeito que foi
capitão do time de futebol da minha série no ginásio.
- O que me deixa aturdido é a natureza gratuita dos crimes disse Jeffrey, puxando o saca-rolhas. - Matar alguém já é horrível, mas
adulterar um anestésico e matar aleatoriamente é tão insano que tenho
dificuldade em conceber uma coisa dessas.
- Se for ele o culpado - disse Kelly -, eu gostaria de saber
como consegue funcionar adequadamente no resto da sua vida.
Com um grunhido, Jeffrey tirou a rolha da garrafa de vinho.
- Especialmente sendo enfermeiro - completou. - Ele deve ter
sentido algum dia motivações altruístas. Mais que os médicos, os
enfermeiros têm que ser motivados pelo desejo de ajudar os outros de um
modo concreto, com as próprias mãos. E, além disso, tem que ser
inteligente. Se o contaminante for mesmo a batracotoxina, foi uma
escolha diabolicamente engenhosa. Eu jamais teria pensado num
contaminante se não fosse pelas suspeitas de Chris.
- É bondade sua dizer isso - comentou Kelly.
- Bem, acontece que é a verdade. Agora, se Trent for o culpado,
admito que jamais compreenderei o que o levou a proceder assim.
Psiquiatria nunca foi um dos meus pontos fortes.
- Se terminou com o vinho, que tal pôr a mesa? - perguntou
Kelly, virando-se para o fogão.


A comida estava deliciosa, e embora Jeffrey não tivesse
percebido que sentia fome, comeu mais do que a sua porção de filé de
linguado à milanesa e brócolis cozidos.
Servindo-se pela segunda vez de salada, ele disse:
- Se Seibert não for capaz de isolar uma toxina de um dos três
corpos agora disponíveis, aventamos a possibilidade de exumar Henry
Noble.
- Ele está morto e enterrado há quase dois anos.
Jeffrey deu de ombros.
- Sei que parece um pouco brutal, mas o fato dele ter vivido uma
semana após a reação adversa pode ajudar. A toxina, como é o caso da
batracotoxina, concentra-se no fígado e é expelida na bile. Se foi isso
o que Trent Harding usou, o melhor lugar para encontrar é na bile de
Henry Noble.
- Mas dois anos após o fato?
- Seibert disse que se o corpo tiver sido adequadamente
embalsamado e enterrado num lugar com sombra, a toxina ainda poderá ser
encontrada.
- Que nojo! Será que não podemos falar de outra coisa, pelo
menos enquanto estivermos jantando? Voltemos ao que vai dizer a Trent
Harding.
- Acho que precisamos ser diretos. Fazê-lo saber que
suspeitamos. E não posso esquecer o fato de que temos as fotos a nosso
favor. Ele não vai querer que uma coisa daquelas circule por aí.
- E se só servir para enfurecê-lo? - indagou Kelly, lembrando da
fúria com que Trent jogara o martelo. O teto do carro ficara com uma
mossa do tamanho de uma bola de beisebol.
- Espero que se irrite bastante. Com raiva, talvez diga algo que
o incrimine.
- Como ameaçar você? - disse Kelly, duvidando. - "Já matei
antes, posso matar de novo", esse tipo de coisa?
- Sei que é uma probabilidade remota - disse Jeffrey -, mas você
tem idéia melhor?
Kelly sacudiu a cabeça. Valia a pena arriscar a idéia de
Jeffrey. Afinal, àquela altura dos acontecimentos já não havia o que
perder.
- Vou trazer uma extensão para cá - disse ela. - Existe uma
tomada perto da televisão.
Jeffrey começou a se preparar para o telefonema. Procurou
colocar-se no lugar de Trent. Se fosse inocente, com certeza desligaria
na mesma hora. Se fosse culpado, ficaria nervoso e tentaria descobrir
exatamente o que o interlocutor sabia. Mas tudo não passava de pura
adivinhação, O fato de Trent não bater com o telefone certamente que não
poderia ser usado como prova da sua culpa.


Kelly retornou à cozinha com um telefone vermelho empoeirado.
- De alguma forma achei que seria adequado usar o telefone do
escritório de Chris - explicou. Puxou a mesinha da TV, abaixou-se e
ligou o aparelho na tomada. Depois testou, para ver se dava o ruido de
discar. - Vai querer usar este ou o da cozinha? - perguntou a Jeffrey.
- O da cozinha - disse Jeffrey, embora não fizesse muita
diferença. Ia ser um telefonema difícil, qualquer que fosse o lugar da
sua escolha.
Pegou o papel que Polly Arnsdorf lhe dera, com o endereço e o
telefone de Trent. Discou o número dele e fez um gesto para Kelly pegar
o aparelho assim que a campainha começasse a soar.
Houve três toques antes de Trent atender. Sua voz era muito mais
suave do que Jeffrey antecipara.
- Alô... Matt? - disse, antes que ele pudesse abrir a boca.
- Não é Matt - respondeu Jeffrey.
- Quem é? - indagou Harding. Sua voz tornou-se fria, até mesmo
zangada.
- Para que diabos está me ligando? Não trabalho mais no Boston
Memorial. Demiti-me há quase um ano.
- Eu sei - disse Jeffrey. - Depois foi para o St. Joseph's e
acaba de sair também de lá. Sei uma porção de coisas sobre você, Trent.
E sobre o que andou fazendo.
- Do que é que você está falando?
- Patty Owen, Henry Noble, Karen Hodges - disse Jeffrey. - Estes
nomes não fazem soar uma campainha na sua cabeça?
- Não sei de que você está falando, cara.
- Oh, claro que sabe, Trent. Você está sendo modesto, mais nada.
Além disso, posso imaginar que não lhe interessa haver muita gente
sabendo. Afinal, você teve tanto trabalho para escolher a toxina
adequada. Entende o que quero dizer?
- Ei, cara, não sei do que você está falando. E não tenho a
menor idéia do motivo pelo qual me ligou.
- Você sabe quem eu sou, não sabe, Trent? - perguntou Jeffrey.
- Sim, sei quem é. Lembro-me de tê-lo visto no Boston Memorial e
li a seu respeito nos jornais.
- Era o que eu pensava - disse Jeffrey. - Você leu, sim, a meu
respeito. Só que talvez não passe muito tempo até as pessoas começarem a
ler a respeito de você.
- O que quer dizer com isso?
Jeffrey sabia que estava irritando Trent, e o fato dele ainda se
encontrar ao telefone era encorajador.
- Essas coisas podem ser descobertas - continuou Jeffrey. - Mas
sei perfeitamente que não estou dizendo nada que você já não sabia.
- Não sei do que está falando. Pegou o cara errado, homem.


- Oh, não - disse Jeffrey. - Peguei o cara certo. Como já lhe
disse, de um jeito ou de outro você vai ser notícia de jornal. Tenho
alguns retratos seus que ficarão ótimos se forem reproduzidos. Digamos que eu espalhe cópias pelo Boston City. Seus colegas ficariam
impressionados com essa sua nova faceta.
- De que retratos está falando? - indagou Trent.
- Foram uma verdadeira delícia para mim - disse Jeffrey,
ignorando-o, e uma surpresa e tanto.
- Ainda não sei do que está falando.
- Polaroids - disse Jeffrey -, brilhantes fotografias coloridas
suas e de pouca gente mais. Olhe na sua cômoda, ao lado do saco de
maconha. Vai descobrir que estão faltando algumas fotos.
Trent praguejou e Jeffrey ouviu o barulho do telefone sendo
pousado em algum lugar. Um minuto depois ele estava de volta, berrando:
- Então foi você quem esteve aqui, hem, Rhodes? Muito bem, eu
lhe aviso: quero esses retratos de volta.
- Tenho certeza de que quer. Eles são bem.., reveladores. Grande
lingerie. Gostei especialmente da cor-de-rosa.
Kelly lançou um olhar de nojo para Jeffrey.
- Afinal, o que você quer? - perguntou Trent.
- Eu gostaria que tivéssemos um encontro - respondeu Jeffrey. Quero conhecer você pessoalmente.
Parecia bem claro que não seria capaz de arrancar nada de Trent
pelo telefone.
- E se eu não quiser me encontrar com você?
- É um direito seu - respondeu Jeffrey. - Mas se não nos
encontrarmos, não posso me responsabilizar pelo destino que vão ter as
cópias destas fotos.
- Isso é chantagem.
- Muito bem - disse Jeffrey. - Fico contente por ver que agora
nos entendemos. Bem, temos um encontro ou não?
- Claro - disse Trent, mudando de tom. - Por que não vem até
aqui? Claro, não preciso lhe dizer onde moro.
Kelly agitou os braços e articulou por gestos a palavra não.
- Por mais que eu goste da idéia de algo tão intimo e pessoal disse Jeffrey -, não penso que seria bem recebido no seu apartamento. Ia
me sentir mais confortável com gente por perto.
- Diga o nome do lugar.
Agora Jeffrey podia afirmar que fisgara Harding. Pensou um
instante. Onde havia um lugar público e seguro onde se pudessem
encontrar? Lembrou do rio Charles. Lá havia sempre muita gente e espaço.
- Que tal a Esplanada, junto do rio Charles? - sugeriu Jeffrey.
- Como poderei reconhecê-lo? - perguntou Trent.
- Não se preocupe. Eu reconhecerei você, mesmo vestido. Mas vou


lhe dizer. Procure-me no palco da Hatch Shell. Que tal?
- A que hora? - indagou Trent, mal podendo conter a raiva.
- Que tal nove e meia?
- Presumo que você estará sozinho.
- Não tenho muitos amigos atualmente - disse Jeffrey. - E minha
mãe está ocupada.
Harding não riu.
- Só espero que você não tenha espalhado histórias absurdas por
aí. Não vou tolerar nenhuma calúnia.
Tenho certeza de que não vai mesmo, pensou Jeffrey.
- Vejo você na Esplanada. - E desligou antes que Trent pudesse
dizer mais alguma coisa.
- Você está maluco? - esbravejou Kelly. - Não pode ir se
encontrar com aquele lunático. Isso não fazia parte do plano!
- Tive que improvisar - disse Jeffrey. - O cara é esperto. Eu
não estava conseguindo nada. Falando com ele pessoalmente, poderei ver
seu rosto, julgar suas reações. Haverá muito mais chance de ele se
implicar.
- O cara é um maníaco. Caçou você com um martelo na mão.
- Foi numa circunstância diferente - disse Jeffrey. - Pegou-me
invadindo o apartamento dele. Tinha o direito de ficar furioso.
Kelly olhou para o teto, aturdida.
- Que coisa! Você agora está defendendo o assassino!
- Trent quer seus retratos - disse Jeffrey. - Não me fará nada
enquanto não estiver com eles na mão. E eu não os levarei. Vou deixar
aqui.
- Acho que deveríamos voltar à idéia original de desenterrar
Henry Noble. Parece um piquenique dominical, comparado com um encontro
cara a cara com esse louco.
- Encontrar a toxina no corpo de Henry Noble resolveria o caso
de Chris e limparia o nome dele, mas não implicaria Trent. Trent é a
chave de todo este assunto pavoroso.
- Mas será perigoso.., e não venha me dizer que nada vai sair
errado. Já ouvi essa história.
- Admito que há algum perigo. Seria tolice pensar de outro modo.
Contudo, estaremos nos encontrando em público. Não creio que Trent vá
tentar alguma coisa no meio de uma multidão.
- Você se esquece de uma coisa muito importante. Está pensando
racionalmente Coisa de que ele não é capaz de fazer.
- Até aqui ele foi um assassino muito esperto - lembrou Jeffrey.
- E agora é um assassino desesperado. Quem sabe o que tentará?
Jeffrey puxou-a de encontro a si.
- Olhe - disse -, Seibert não vai descobrir nada. Preciso
tentar. É a nossa única esperança. E não tenho muito tempo.


- E como é que vou testemunhar a conversa? Mesmo que você tenha
sorte e Harding confesse, ainda assim estará sem a sua preciosa prova.
Jeffrey suspirou.
- Eu não tinha pensado nisso.
- Não pensou em uma porção de coisas - disse Kelly, por entre
lágrimas de frustração. - Como o fato de que não quero perdê-lo.
- Vai me perder se não conseguirmos provar que Trent é o nosso
homem - disse Jeffrey. - Temos que imaginar um modo de você ouvir nossa
conversa. Talvez se eu levasse o cara para dar uma volta... - Calou-se.
Na verdade, não tinha nenhuma idéia.
Os dois permaneceram sentados, melancolicamente silenciosos.
- Já sei! - exclamou Kelly por fim. - Pelo menos é uma idéia.
- O quê?
- Bem, não ria, mas existe um aparelhinho que eu vi quando
folheava um catálogo da Sharper Image. É um troço chamado Listenaider.
Parece um walkman, mas o que faz é amplificar o som ambiente. É usado
por caçadores e observadores de pássaros. E também por espectadores no
teatro. Pode funcionar perfeitamente se você estiver no palco da Hatch
Shell.
- Parece fantástico - disse Jeffrey, subitamente entusiasmado. Onde fica a loja mais próxima?
- Tem uma em Copley Place.
- Ótimo. Podemos comprar no caminho.
- Ainda resta um problema.
- Qual?
- Garantir a sua segurança!
- Sem coragem não há glória - disse Jeffrey, com um sorriso
amarelo.
- Estou falando sério.
- OK, então vou levar qualquer coisa debaixo do paletó, para o
caso dele se tornar ingovernável.
- Como o quê, por exemplo? Uma espingarda de caçar elefante?
- Impossível. Você tem uma chave de roda no carro?
- Não tenho a menor idéia.
- Estou certo de que tem - garantiu Jeffrey. - Levarei a chave
de roda. Assim estarei com algo "escondido na manga" para que, se ele se
tornar agressivo, eu possa me defender. Mas sinceramente, não penso que
Harding vá tentar algo em público.
- E se tentar?
- Não vamos nos preocupar com isso. É impossível eliminar todos
os riscos. Se ele tentar me agredir, talvez isso nos ajude a estabelecer
alguma prova. Mas vamos andando. Não temos muito tempo. Precisamos
chegar na Hatch Shell antes das nove e meia e temos que parar em Copley
Place no caminho.


- Droga! - urrou Trent. Encolheu o braço, cerrou o punho e deu um soco
na parede em cima do telefone com a força de um bate-estacas. Com um
rangido que o surpreendeu, seu punho atravessou a parede de gesso e
espuma. Puxando a mão, examinou-a para ver se tinha se machucado. Não
havia o menor arranhão.
Virando-se para a sala, deu um chute na mesinha de centro,
arrancando uma de suas pernas e arremessou o resto violentamente de
encontro à parede. Revistas, algemas e diversos livros saíram voando.
Olhando em torno, à busca de algo mais em que dar vazão à sua
raiva, viu uma garrafa de cerveja vazia. Atirou-a na parede da cozinha
com toda a força. Ela se espatifou, espalhando estilhaços de vidro pelo
chão. Só então Trent começou a recuperar o controle.
Como pudera acontecer? Sempre fora tão cuidadoso, atento aos
menores detalhes. Primeiro fora a maldita enfermeira e agora esse médico
maluco. Como diabo sabia tanta coisa? E agora estava com aqueles
retratos. Bem sabia que não devia ter tirado retrato nenhum. Fora apenas
uma brincadeira. Queria ver com que aparência ficaria... Mas quem iria
compreender? Era preciso recuperar aquelas fotos do maldito doutor. Não
podia acreditar que aquele sujeito tivesse tido a coragem de revistar
sua casa.
Trent ficou imóvel. Outra idéia horrível lhe veio à cabeça. Com
uma nova onda de pânico, correu até a cozinha. Abriu a porta do armário
ao lado da geladeira e tirou os copos com um tapa. Diversos quebraram ao
cair no balcão.
Com os dedos trêmulos, removeu o fundo falso e deu uma olhada no
esconderijo. Deixou escapar um suspiro de alivio. Nada fora mexido.
Estava tudo em ordem.
Enfiando a mão, Trent apanhou sua querida pistola .45. Esfregou
o cano com a fralda da camisa. A arma estava limpa, lubrificada,
pronta para ser usada. Meteu a mão de novo no esconderijo e extraiu o
pente. Depois de assegurar-se de que o pente estava completo, meteuo no
punho da arma até ouvir um dique bem audível.
A maior preocupação de Trent era saber se Jeffrey revelara a
alguém a sua descoberta. Como era um fugitivo, Trent chegou à conclusão
de que provavelmente não tinha contado a ninguém. De qualquer modo, era
preciso acabar com ele. Trent riu. Evidentemente o cara não tinha idéia
de com quem se metera.
Retornando ao cofre improvisado, apanhou uma pequena seringa de
cinco mililitros e, exatamente como fizera no caso de Gail Shaffer,
sugou uma gota do líquido amarelo e diluiu em água destilada. Em seguida
guardou o frasco. Mentalmente, podia ver Jeffrey Rhodes tendo uma
espécie de ataque epiléptico no palco da Hatch Shell. A imagem trouxe um
sorriso aos seus lábios. Seria um desempenho e tanto.
Apanhando o pedaço de compensado, Trent cuidadosamente o colocou


no fundo do armário e devolveu ao lugar os copos que não se tinham
quebrado. O resto ficou como estava; faria uma limpeza ao voltar.
Completos os preparativos, ele conferiu as horas. Tinha uma hora
e meia ainda. Passando à sala, deu uma olhada no telefone e ficou
pensando no que devia fazer. A presença de Rhodes representava o tipo de
interferência em potencial sobre a qual fora avisado. Ficou na dúvida se
devia ou não telefonar. Ao cabo de alguns momentos, pegou o aparelho.
Estava ligando conforme as instruções, disse a si mesmo enquanto
discava, para notificar, não para pedir ajuda.
***
Capítulo 15.
SEXTA-FEIRA, 19 DE MAIO DE 1989, 20:42.
- Lá vamos nós - murmurou Devlin ao ver a porta de Kelly começando a
abrir. O carro dela trepidou quando o motor foi ligado. Em seguida
recuou até a rua com o dobro da velocidade que seria de esperar, e,
largando uma trilha de borracha na rua, saiu na direção de Boston.
Ele se atrapalhou com a ignição. Não esperava que fossem sair
com tanta rapidez. Quando conseguiu arrancar, o carro dela já estava
quase fora de vista. Devlin teve que acelerar bastante para se
aproximar.
- Ora, ora! - exclamou ele, depois que tinham se afastado alguns
quilômetros. Uma segunda cabeça surgira misteriosamente no banco de
trás. Em seguida o novo personagem pulara por cima do encosto e passara
para a frente, ficando ao lado de Kelly.
Devlin aconselhou-se a não ficar animado demais com aquele fato
inesperado porém interessante, mas não precisava ter-se preocupado.
Quando ela parou em frente ao shopping-center de Coplev Place, Jeffrey
saltou e correu para dentro.
- Excelente, excelente - disse Devlin, extasiado, ultrapassando
o Honda de Kelly e estacionando. Finalmente sua sorte tinha mudado.
Jeffrey se encontrava no interior do shopping-center, no meio do
percurso da escada rolante, quando Devlin desligou o motor do carro.
Escorregou pelo banco e já estava quase saindo quando perccebeu que a
janela fora encoberta por um pedaço de tecido azul-marinho. Havia
também um cinto preto de couro e um coldre com um Smith and Wesson .38.
- Desculpe, mas não pode estacionar - disse o policial.
Devlin deu uma olhada no patrulheiro. Parecia ter uns dezoito
anos. Um recruta, pensou. Mas quem mais poderia estar de serviço numa
noite de sexta-feira? Pegou o cartão que lhe permitia estacionar em
qualquer parte da cidade, mas o garoto se recusou a ver.
- Vá andando - disse ele, desta vez com menos cordialidade.
- Mas eu... - Devlin começou a explicar quem era. Não fazia mais
diferença. Jeffrey tinha desaparecido.


- Eu não ia me importar nem que você fosse o governador Dukakis
- assegurou o jovem policial. - Não pode estacionar. Agora, vá dando o
fora! - Apontou para a frente com o cassetete.
Resignado a uma mudança nos seus planos, Devlin escorregou de
novo pelo banco até o lugar do motorista e ligou o motor. Contornou
rapidamente o quarteirão, e, ao ver o carro de Kelly parado no mesmo
lugar, não se preocupou mais. O pequeno desentendimento com o policial
poderia ter sido até melhor. Afinal de contas, talvez tivesse perdido
Jeffrey no meio da multidão do shopping. Estacionou a uma distância
razoável atrás do carro dela, e, em seguida, os dois - Devlin no seu
carro, e Kelly, sem se dar conta da sua presença, no dela - ficaram
esperando Jeffrey reaparecer.
Pondo nele os fones de ouvido, o vendedor instrui Jeffrey para
ligar o aparelho. Em seguida mandou que o apontasse na direção de um
casal que se encontrava na extremidade oposta da loja. Jeffrey obedeceu
às instruções.
- Não ficaria impressionante na mesinha da nossa sala? perguntou o homem. O casal estava diante de uma esfera de vidro que
poderia ter feito parte do cenário de um velho filme de Frankenstein.
Continha uma espécie de plasma emissor de minúsculos raios de luz azul.
- Pode ser - disse a mulher -, mas olhe só o preço. Eu poderia
comprar um par de sapatos Ferragamo com esse dinheiro.
Jeffrey ficou impressionado. Ouvira também o murmúrio abafado
das outras vozes ao redor, mas pudera entender cada palavra da conversa
do casal.
- Conhece a Hatch Shell na Esplanada? - perguntou Jeffrey.
- Claro.
- O que você acha que se poderia ouvir com este negócio, parado
ali, perto do quiosque?
- Um alfinete caindo.
Jeffrey efetuou a compra e voltou correndo para o carro de
Kelly. Ela permanecia no mesmo lugar em que a deixara.
- Comprou? - perguntou Kelly quando ele bateu a porta.
Jeffrey mostrou o embrulho.
- Estamos prontos - disse. - O negócio realmente funciona. O
rapaz fez uma demonstração para mim.
Kelly arrancou e tomou o rumo da Esplanada.
Nenhum dos dois olhou para trás. Não tomaram conhecimento do
Buick Regal preto que os seguia a três carros de distância.
Kelly pegou a Storrow Drive para chegar a Beacon Hill. Logo
depois que emergiram de uma passagem subterrânea, Jeffrey teve uma
rápida visão da área relvosa em frente à Hatch Shell, na Esplanada. O
sol se pusera, mas havia bastante luz e era possível perceber que
inúmeras pessoas ainda desfrutavam o clima agradável daquele dia de


primavera. Sentiu-se um pouco mais à vontade.
Viraram à direita na Revere Street, e de novo na Charles.
Passaram pela maioria das lojas e dobraram à direita, voltando à
Chestnut e estacionando na parte baixa dessa rua, onde saltaram do
carro.
Nos últimos minutos do percurso nenhum dos dois falara. A
excitação dos preparativos e das voltas para chegar ali cessara, sendo
substituída pela ansiedade de ver se as coisas sairiam de acordo com os
planos. Jeffrey quebrou o silêncio depois que saltaram, ao pedir as
chaves do carro. Ela acabara de trancar as portas.
- Esqueceu alguma coisa? - perguntou.
- A chave de roda - respondeu ele, dando a volta e abrindo a
mala do carro. Não era do tipo comum, mas uma combinação de chave de
roda e alavanca para acionar o macaco. Um pedaço de ferro com cerca de
quarenta centímetros de comprimento. Jeffrey bateu com ele na palma da
mão. Serviria perfeitamente, se viesse a precisar. Uma boa pancada nas
canelas faria qualquer um moderar o passo. Esperava que não viesse a ser
preciso.
Foram para a Esplanada pela ponte de pedestres Arthur Fiedler.
Caía a noite, uma agradável noite de primavera. Jeffrey notou as velas
coloridas de alguns barcos que voltavam para suas respectivas marinas. A
distância, um trem da companhia de transportes metropolitanos de Boston
atravessou ruidosamente a ponte Longfellow.
Devlin praguejou. Foi difícil encontrar uma vaga perto de um hidrante em
Beacon Hill. Conseguiu finalmente encontrar, numa zona de estacionamento proibido, na entrada para a Storrow Drive. Jeffrey e Kelly
já iam atravessando a ponte de pedestres em direção à Esplanada. Devlin
pegou as algemas no carro e desceu correndo até a base da ponte.
Não conseguia entender nada do que estava acontecendo. Para ele,
passear à noite na Esplanada era um comportamento estranho para um
criminoso condenado, um fugitivo que sabia estar sendo perseguido por um
caçador de recompensas profissional. De mãos dadas com a garota, mais
parecia estar namorando. Devlin teve uma forte intuição de que alguma
coisa importante iria acontecer dentro de pouquíssimo tempo, e sua
curiosidade aumentou. Lembrava-se de ter dito a Mosconi que Jeffrey
tinha algum plano. Talvez fosse o que estava por acontecer.
Atravessando a ponte, Devlin desceu a rampa do outro lado e
pisou no gramado muito verde. Não achou que precisasse ter que correr
para prender Jeffrey, já que dali era difícil escapar. Efetivamente, ele
o tinha encurralado entre o rio Charles de um lado e a Storrow Drive do
outro. Além disso, a cadeia da Charles Street ficava convenientemente
próxima. Por isso, não se importou em aguardar mais alguns minutos.
Queria descobrir o que Jeffrey estava querendo fazer.
Com o canto do olho, viu algo vindo na sua direção por trás e à


direita. Num reflexo, deslocou-se para a esquerda e girou, agachando-se.
A mão voou para o cabo da pistola no coldre, sob a jaqueta.
Sentiu o sangue subir ao rosto quando um projétil de madeira
passou voando, seguido de perto por um Labrador preto, que o pegou antes
de cair no chão.
Endireitou-se e respirou um bocado. Não percebera até então como
estava nervoso.
A Esplanada tinha umas trinta ou quarenta pessoas, todas
entregues às suas respectivas atividades. Além daquelas que ali
treinavam seus cães, havia gente jogando uma pelada de futebol. Do outro
lado do gramado, na área pavimentada em frente à Hatch Shell, um grupo
de patinadores se agitava ao som de um grande toca-fitas, do tipo
popular nos guetos. E na pista de macadame concentravam-se os corredores
e os ciclistas.
Devlin apreciou toda a cena, perguntando-se o que teria trazido
Jeffrey e Kelly até ali. Não estavam participando de nenhuma daquelas
atividades. Limitavam-se a conversar à sombra das árvores que cercavam o
quiosque fechado. A única coisa que ele conseguiu ver foi Jeffrey
ajudando Kelly a colocar um walkman.
Devlin pôs a mão nos quadris. Que diabo estava acontecendo? Enquanto observava, viu Jeffrey fazer algo inesperado. Ele se inclinou e
beijou Kelly.
- Garotinho levado - sussurrou. Por um momento ficaram de mãos
dadas, os braços esticados. Por fim, Jeffrey soltou-se e, se abaixando,
pegou uma peça fina de ferro.
Com o ferro na mão, começou a atravessar o gramado, correndo na
direção do palco. Devlin chegou a fazer um gesto para segui-lo, receoso
de que Jeffrey pudesse desaparecer atrás da Hatch Shell, mas parou
quando o viu subir no palco pelo lado direito.
Diante dos olhos cada vez mais curiosos de Devlin, Jeffrey foi
diretamente para o centro do palco. Ficando de frente para o quiosque,
começou a falar. Claro que não ouvia, mas podia ver perfeitamente seus
lábios se mexendo.
Do quiosque, Kelly fez para Rhodes um gesto enfático de polegar
para cima. O que estaria acontecendo?, perguntou-se Devlin. Estaria o
cara recitando Shakespeare? A garota estava usando o walkman. Ele coçou
a cabeça. Aquele caso ficava mais estranho a cada minuto.
Trent Harding enfiou a .45 no cinto exatamente como fizera ao dirigir-se
à casa de Gail Shaffer. Pôs a seringa, com a tampa da agulha bem presa
no lugar, no bolso exterior direito. Olhou as horas. Passava um pouco
das nove. Tinha que ir andando.
Trent desceu até Charles Circle, via Revere Street. Depois, para
atravessar o rio, seguiu pela ponte de pedestres que ficava à direita do
viaduto Longfellow.


Era tarde quando percorreu o caminho, já escuro, demarcado por
balaústres de granito e sob a densa cobertura das copas das árvores, com
suas folhas recém-nascidas. As águas do rio tremeluziam, incendiadas
pela cor do céu ainda pintado de rosa pelo sol que se pusera meia hora
antes.
A princípio ficara nervoso e preocupado por causa do desastre
que Jeffrey Rhodes representava, sem saber o que o homem queria. A
ameaça de chantagem feita por ele foi tão inesperada quanto chocante.
Mas agora sentia-se preparado. Sua ansiedade tornara-se
consideravelmente menor. Queria suas fotos, e também estar seguro de que
Rhodes agia por conta própria. A não ser por isso, não tinha o menor
interesse no cara, ao qual aplicaria a injeção. Tendo presenciado o que
acontecera a Gail Shaffer, sabia que funcionava rápida e efetivamente.
Alguém chamaria uma ambulância, e pronto, tudo estaria acabado.
Dois corredores passaram raspando por Trent, fazendo-o dar um
pulo. Teve ímpetos de puxar a pistola e derrubar os dois calhordas.
Faria igualzinho ao Miami Vice: pernas bem separadas, braços esticados,
ambas as mãos segurando a arma.
Adiante, assomava o imenso hemisfério da Hatch Shell. Trent
estava se aproximando do palco por trás, pela parte convexa. Sentiu um
súbito arrepio quando a adrenalina entrou no seu sistema. Estava ansioso
para se encontrar com o Dr. Jeffrey Rhodes. Enfiando a mão sob a
jaqueta, cerrou os dedos em torno do cabo da .45. O indicador escorregou
para o gatilho. Formidável. Rhodes ia ter uma grande surpresa.
Parou. Tinha que tomar uma decisão. Contornar pela direita ou
pela esquerda? Tentou lembrar-se do layout do palco, especulando se
faria alguma diferença. Decidiu que preferia ter Storrow Drive às suas
costas. Depois que resolvesse o problema de Jeffrey, se tivesse que
fugir, correria para lá.
Jeffrey andou nervosamente pelo palco, parando à direita do centro. Os
patinadores que aproveitavam a pequena área de macadame entre o palco e
a grama também estavam à direita, e Jeffrey queria manter-se o mais
perto possível deles, a uma distância que não fizesse Trent supor que
poderiam ser ouvidos. A princípio os patinadores olharam desconfiados,
mas após alguns minutos passaram a ignorá-lo.
O aparelho auditivo surpreendera Jeffrey porque era capaz de
ignorar a música dos patinadores. Presumiu que a razão era estar o
toca-fitas deles fora e do lado, e não dentro da sombra acústica da
grande superfície côncava da Hatch Shell. O mesmo devia acontecer com o
barulho do trânsito passando tão perto, na Storrow Drive.
Escurecia rapidamente. O céu ainda exibia um azul-claro
prateado, mas as estrelas começavam a aparecer, e as sombras das árvores
tinham agora uma cor púrpura bem escura. Não conseguia mais ver Kelly. A
maior parte do pessoal com os cachorros e os jogadores de futebol tinha


ido embora. Mas ainda havia algumas pessoas na grama. E também um
pequeno número de corredores usando a pista na extrema direita, e um ou
outro ciclista.
Jeffrey consultou o relógio. Nove e meia, hora de Harding
chegar. Quando passou um pouco da hora, começou a pensar no que faria se
ele não aparecesse. Por algum motivo, até agora essa possibilidade nem
lhe passara pela cabeça.
Aconselhou-se a permanecer calmo. Trent viria. Perturbado como
ele era, devia estar louco para recuperar as fotos. Deteve-se e olhou
para a superfície gramada na frente do palco. Se o sujeito resolvesse
endurecer o jogo, teria um bom espaço para correr. Também tinha a chave
de roda do carro de Kelly enfiada por dentro da manga direita. Podia ser
útil, nem que servisse apenas como ameaça.
Semicerrou os olhos. Por mais que tentasse, não conseguia
enxergar Kelly na escuridão, sob as árvores próximas ao quiosque. O que
significava que Harding também não seria capaz de vê-la. Ele jamais iria
desconfiar que havia uma testemunha da conversa.
Uma sirene a distância causou-lhe um sobressalto. Conteve a
respiração e ficou ouvindo atentamente. Vinha se aproximando. Seria a
polícia? Harding o teria denunciado? O barulho aumentou mais ainda, e
ele acabou por ver a fonte: uma ambulância passou veloz pela Storrow
Drive.
Suspirou. A tensão o estava deixando exausto. Recomeçou a andar,
e parou abruptamente. Dos degraus do palco, à esquerda, Trent Harding o
fitava. Tinha uma das mãos ao lado do corpo e a outra nas costas, sob a
jaqueta de couro.
A coragem de Jeffrey desapareceu ao olhar para Trent, que, por
enquanto, se mantinha imóvel. Vestia uma jaqueta de couro preto, leve,
sem gola, e jeans desbotados. À meia luz do final do dia, seu cabelo
parecia ainda mais louro que antes, quase branco. Os olhos que eram
firmes, faiscavam.
Jeffrey examinou o homem que considerava suspeito de pelo menos
seis assassinatos. Mais uma vez pensou nas possíveis motivações dele.
Pareciam insondáveis. Mesmo com a chave de roda na manga do casaco e com
todas aquelas testemunhas em potencial, Jeffrey subitamente sentiu medo.
Trent Harding era absolutamente imprevisível. Impossível antecipar qual
seria sua reação ao estratagema daquela chantagem.
Trent subiu os degraus lentamente. Antes do último passo, que o
colocaria no mesmo plano de Jeffrey, deu uma olhada em volta. Parecendo
satisfeito, fixou os olhos em Jeffrey. Aproximou-se com um movimento
arrogante, atrevido, e uma expressão de desdém no rosto.
- Você é Jeffrey Rhodes? - perguntou, quebrando finalmente o
silêncio.
- Não se lembra de mim, no Memorial? - perguntou Jeffrey, a voz


trêmula. Pigarreou.
- Eu lembro de você. Agora quero saber por que está me
aborrecendo.
o coração de Jeffrey batia com força.
- Chame-me de curioso - disse. - Eu estou levando a culpa pelo
seu trabalhinho. É um negócio insolúvel. Fui condenado duas vezes. Só
queria saber um pouco sobre os seus motivos. - Jeffrey sentia-se como
uma corda de piano esticada ao limite máximo. Seus músculos puseram-se
tensos e ele estava pronto para sair correndo a qualquer momento.
- Não sei do que você está falando.
- E suponho que também não saiba nada sobre as fotos.
- Quero as fotos de volta. Devolva-as. Agora.
- Tem tempo. Tudo tem seu tempo. Por que não me fala primeiro
sobre Patty Owen ou Henry Noble? Vamos, por favor, fale comigo. Fale.
- Quero saber com quem você conversou sobre essa louca teoria a
meu respeito.
- Com ninguém - disse Jeffrey. - Sou um proscrito. Um fugitivo
da lei. Um homem sem amigos. Com quem iria conversar?
- E as fotos? Trouxe?
- E não é para isso que estamos aqui? - indagou Jeffrey,
evasivo.
- Era só o que eu queria saber - afirmou Harding.
Num movimento suave mas repentino, tirou a mão das costas e
brandiu a pistola. Agarrando-a depois com ambas as mãos, exatamente como
Crockett em Miami Vice, apontou para a testa de Jeffrey.
Jeffrey ficou gelado e seu coração chegou a falhar. Não tinha
esperado uma arma. Apavorado, não foi capaz de tirar os olhos da boca do
cano. A chave de roda era brincadeira comparada com uma pistola
daquelas.
- Vire-se - ordenou Harding.
Jeffrey não conseguiu se mover.
Trent decidiu pegar a seringa, sem contudo desviar a arma.
Soltou a mão direita e enfiou-a no bolso. Quando a retirou com a
seringa, Jeffrey ficou horrorizado. Nesse instante ouviu um grito, vindo
da escuridão. Era Kelly! Oh, meu Deus, pensou, imaginando que ela
atravessava o gramado na direção do palco.
- Pensei que você tivesse vindo sozinho - rosnou Trent, dando um
passo à frente. Jeffrey pôde ver o dedo que estava sobre o gatilho
começando a se mexer.
Antes que pudesse reagir, ouviu-se o estrondo de um tiro,
seguido de gritos dos patinadores, que, aos tropeções, saíram correndo
para todos os lados.
As pernas de Jeffrey perderam as forças. A chave de roda caiu da
manga ruidosamente. Mas ele não sentiu dor. Pensou que fora alvejado,


mas, em vez disso, um buraco apareceu na testa de Trent, que cambaleou.
Em seguida, houve outro barulho, desta vez mais prolongado, de vários
tiros em rápida sucessão. Jeffrey achou que o barulho vinha de algum
lugar por cima do seu ombro, na boca de cena, à direita.
Trent foi atirado para trás pelos outros tiros, que acertaram em
cheio seu peito. Jeffrey olhou para o chão, mudo com o choque, quando a
pistola veio deslizando pelo palco, até chegar aos seus pés. A seringa
quicou no chão de madeira e ali ficou. Não conseguia mais agüentar - era
demais. Jeffrey deu uma olhada em Trent. Viu que estava morto. A nuca do
enfermeiro desaparecera.
No momento em que ouviu o tiro de fuzil, e o cara louro cambaleou
indicando que fora atingido, Devlin atirou-se na grama. Naquele momento
ele se encontrava no centro do gramado. Assim que vira o cara louro
sacar a pistola, Devlin correra para o palco. Tivera o cuidado de se
manter agachado, num esforço para surpreender o casal. Ouvira Kelly
gritar, mas ignorou-a. Em seguida, houve a rajada de tiros. Da sua
experiência na policia, mas principalmente do Vietnã, sabia reconhecer
um tiro de fuzil, sobretudo se fosse uma arma automática de assalto de
grande calibre.
Não reconhecera o cara louro. Presumia que fosse o tal talento
arrivista que Mosconi vinha ameaçando trazer. Devlin estava determinado
a não perder o dinheiro da recompensa. E teria uma boa conversa com
Mosconi quando o visse de novo. Mas primeiro devia resolver a questão
com que se defrontava agora, que estava se tornando demasiado complexa.
A entrada em cena de um fuzil significava o aparecimento de um terceiro
caçador de recompensas. Já havia enfrentado duras competições antes, mas
nunca ouvira dizer que um caçador de recompensas, por mais durão e
canalha que fosse, liquidasse um concorrente sem dizer uma só palavra.
Da posição em que se encontrava, deitado na grama, Devlin ergueu
a cabeça e deu uma espiada no palco. Daquele ângulo não podia ver o
louro. Lá estava o doutor, parado como um idiota. Devlin teve que se
conter para não dar um grito, mandando-o jogar-se no chão. Mas não quis
chamar a atenção sobre si antes de saber um pouco mais a respeito da
origem dos tiros de fuzil.
Com outro grito e evidentemente sem pensar na própria segurança,
Kelly recuperou-se do efeito causado pela rajada de tiros e saiu correndo na direção do palco. Quando passou por Devlin, ele rolou os olhos
para cima. Que dupla, pensou. Gostaria de saber qual deles conseguiria
ser morto primeiro.
Mas finalmente os gritos de Kelly pareceram tirar Rhodes do
transe. Ele virou-se e, erguendo a mão, ordenou-lhe que parasse. Ela
parou. Devlin levantou um pouco e ficou acocorado na grama. Da posição
em que estava agora, podia ver o cara louro caído no meio do palco.
Quase na mesma hora Devlin viu dois homens sairem calmamente da


sombra e subirem os degraus para o palco. Um deles carregava um fuzil de
assalto. Ambos usavam ternos escuros, camisas brancas e gravatas
clássicas. Como se tivessem todo o tempo do mundo, aproximaram-se do
doutor, que se voltou. Devlin achou que, para caçadores de recompensas,
o estilo deles era pouco usual, mas tão eficiente como o estilo durão.
Era óbvio que estavam atrás de Jeffrey Rhodes.
Sacando a arma e empunhando-a com ambas as mãos, Devlin correu
para o palco.
- Quietos! - gritou com autoridade, apontando a arma para o
peito do homem com o fuzil de assalto. - Rhodes me pertence! Quem o leva
daqui sou eu, entendem?
Os dois obedeceram, evidentemente surpresos com a aparição de
Devlin.
- Também estou admirado por vê-los, caras - murmurou o
ex-policial, metade para si, metade para os homens de terno.
Eles estavam apenas a uns seis metros. Distância para um tiro
praticamente à queima-roupa. Jeffrey estava à direita de Devlin, bem no
limite da sua visão periférica. Subitamente, Devlin reconheceu um dos
homens. Não era um caçador de recompensas.
Jeffrey estava com o coração na boca, e tinha a boca tão seca que não
conseguia engolir. Sentia o sangue latejar nas têmporas. O súbito
aparecimento de Devlin o surpreendera tanto quanto a chegada dos homens
de terno.
Se ao menos Kelly tivesse tido o bom senso de se conservar longe
do que estava acontecendo - e afinal, o que era mesmo que estava
acontecendo? Aliás, ele não devia tê-la envolvido naquela confusão. Mas
não era hora de se lastimar. Os caras de terno tinham parado. Agora,
toda a atenção deles se concentrava em Devlin, que estava na beira do
palco empunhando sua pistola com ambas as mãos. Ele olhava para os
homens com absoluta intensidade. Ninguém falava nem se movia.
- Frank? - disse Devlin finalmente. - Frank Feranno. Atina!, que
diabos está acontecendo?
- Não creio que você deva interferir, Devlin - disse o homem com
o fuzil. - Isto não é da sua conta. Nós só queremos o doutor.
- O doutor me pertence.
- Sinto muito - disse Frank.
Os dois homens começaram a se separar lentamente.
- Ninguém se mexa! - gritou Devlin.
Mas os homens o ignoraram. Continuaram a se separar,
afastando-se aos poucos.
Jeffrey começou a recuar. A princípio só um passo de cada vez.
Mas assim que viu que, pelo menos temporariamente, os três homens tinham
sido apanhados num beco sem saída, decidiu aproveitar. Naquele instante
não era ele o alvo. Assim que chegou na escada, girou nos calcanhares e


correu.
Ainda ouviu por cima do ombro Devlin intimar que os homens
ficassem quietos, senão ele atiraria. Apertou o passo e emparelhou com
Kelly, que parara no lugar onde a grama encontrava o macadame. Agarrou a
mão dela e, juntos, os dois dispararam para a ponte Arthur Fiedler.
Um tiro disparado subitamente no palco fê-los estremecer, mas
olharam para trás. A principio ouviram um único tiro, mas logo seguiu-se
uma rajada rápida e de uma arma automática. Jeffrey e Kelly atravessaram
correndo a Storrow Drive, descendo pelo outro lado. Ofegando, chegaram
no carro de Kelly. Ela procurou a chave freneticamente, enquanto Jeffrey
batia no teto com a palma da mão.
- Está com você! - gritou ela, lembrando-se de repente.
Jeffrey tirou a chave do bolso e jogou por cima do carro. Kelly
abriu as portas e os dois entraram. Ela ligou o motor e arrancou a toda,
virando na Storrow Drive. Em minutos acelerou para noventa. Quando
chegaram no fim da Storrow, virou de novo, agora entrando num labirinto
de ruas estreitas.
- O que está acontecendo, afinal? - indagou Kelly, assim que
recuperaram o fôlego.
- Eu gostaria de saber! - foi o que Jeffrey conseguiu dizer. Não faço idéia. Acho que lutavam por minha causa!
- E eu que deixei você me convencer a aceitar este plano - disse
Kelly, irritada. - Uma vez mais deveria ter ouvido a minha intuição. Não havia como pudéssemos antecipar o que aconteceu - disse Jeffrey. Não foi um mau plano. Algo muito louco está acontecendo. Nada faz sentido, a não ser o fato de que a unica pessoa que é capaz
de consertar minha vida agora está morta. - Jeffrey estremeceu,
recordando a imagem horrível de Trent Harding com um furo na testa.
- Agora temos que ir à polícia - frisou Kelly.
- Não podemos fazer isso.
- Mas vimos um homem ser morto!
- Eu não posso ir; se você quiser, vá sozinha. Pelo andar da
carruagem, ainda vão acabar me indiciando pelo assassinato de Trent
Harding. Seria a ironia final.
- Então, o que pretende fazer agora?
- Provavelmente aquilo que tentei dias atrás. Deixar o país. Ir
para a América do Sul. Com Trent morto, não creio que me reste muita
chance.
- Voltemos à minha casa para pensar - propôs Kelly. - Agora
nenhum de nós está em condições de tomar uma decisão tão importante.
- Não estou certo de que possamos ir para lá. Devlin deve
ter-nos seguido da sua casa. Certamente sabia que eu estava lá. Acho que
é melhor você me deixar num hotel.
- Se vai para um hotel, eu também vou - disse Kelly.


- Você quer realmente ficar comigo depois de tudo o que
aconteceu?
- Meu compromisso é acompanhar isto até o fim.
Jeffrey comoveu-se, mas achava que não devia deixá-la correr
mais riscos do que os que já correra. Contudo, ao mesmo tempo queria
tê-la a seu lado. Estavam juntos há apenas alguns dias, mas agora já não
saberia o que fazer sem ela.
Kelly estava certa numa coisa: ela não tinha condições de tomar
uma decisão. Fechou os olhos. Estava traumatizado pela confusão do
tiroteio. Acontecera muita coisa de uma vez só. Sentia-se emocionalmente
exausto.
- Que tal sair da cidade e ficar num motelzinho? - sugeriu
Kelly, vendo que Jeffrey não apresentava qualquer sugestão.
- Ótimo. - Ele estava alheado, a cabeça levando-o
involuntariamente de volta aos momentos tensos e horríveis que vivera no
palco. Lembrou que Devlin reconhecera um dos homens. Chamara-o de Frank
Feranno. O palpite de Jeffrey era que eles todos não passavam de
caçadores de recompensas, lutando avidamente pela considerável quantia
que estava valendo. Mas por que matar Harding? Isso não fazia sentido, a
menos que tivessem pensado que era outro caçador de
recompensas. Mesmo assim, será que os caçadores de recompensas se caçam
entre si?
Jeffrey abriu os olhos. Kelly conseguia ir progredindo naquele
trânsito de uma noite de sexta-feira.
- Você acha que tem condições para dirigir? - Tenho - respondeu
ela. - Se quiser, posso passar para o volante.
- Depois de tudo que você enfrentou, acho melhor relaxar - disse
Kelly.
Jeffrey fez que sim. Não podia negar que tinha razão.
Revelou-lhe então a sua idéia de que os homens de terno fossem todos da
mesma profissão de Devlin, e que estariam brigando pelo dinheiro da
recompensa.
- Não me parece que seja isso - opinou Kelly. - Quando vi
aqueles homens, pensei que estivessem do lado de Trent. Chegaram logo
depois dele. Mas pelo que pude observar, garanto que ambos estavam
contra Trent Harding, e não com ele. Mataram-no deliberadamente. Não
precisavam fazer isso. Fizeram de propósito. Não era você o alvo.
- Mas por que matar Trent? - perguntou Jeffrey. - Não faz
sentido. - Suspirou. - Bem, de certo modo faz, sim. Obtiveram algum
benefício. Estou convencido de que Trent Harding era um assassino, mesmo
que não tenhamos provas. O mundo vai melhorar muito sem ele. De repente,
Jeffrey deu uma risada. - O que há de engraçado? - quis saber Kelly.
- Estou assombrado com a minha ingenuidade. Como fui capaz de
pensar que poderia fazer Harding se implicar encontrando-me com ele?


Pensando melhor, vejo agora que desde o início a intenção dele era
aproveitar a oportunidade para me matar. Suponho que não com uma bala.
Ia me injetar sua toxina.
Kelly subitamente pisou no freio e encostou o carro.
- O que foi que houve? - perguntou Jeffrey, alarmado. Tinha medo
de que Devlin surgisse da escuridão. Os aparecimentos do homem eram
sempre assustadores.
- É que pensei numa coisa - disse Kelly, excitada.
Ele a encarou na semi-obscuridade. Carros passavam,
iluminando-os por curtos momentos com seus faróis. Ela virou-se para
Jeffrey. - A morte de Trent talvez tenha trazido um benefício.
- De que você está falando?
- A morte dele é capaz de nos proporcionar um indício que não
poderíamos ter se não o tivessem assassinado.
- Não percebo onde você quer chegar.
- Aqueles homens de terno estavam lá, sem dúvidas, para matar
Harding, e não você. Tenho certeza disso. E não se tratava de uma ação
de justiça. Aquela ação quer dizer uma coisa - prosseguiu Kelly, mais
animada a cada segundo. - Quer dizer que alguém considerava Harding uma
ameaça. Suponho que não quisessem vê-lo conversar com você. Acho que
aqueles homens com seus ternos elegantes e armas sofisticadas eram
matadores profissionais. - Fez uma pausa para tomar fôlego. - Acho que
essa coisa toda pode ser muito mais complicada do que imaginamos.
- Você quer dizer que Trent Harding não era apenas um maluco
agindo por conta própria?
- Exatamente isso. O que aconteceu hoje me faz pensar num tipo
qualquer de banditismo. Que talvez tenha ligação com os hospitais.
Quanto mais analiso isso, mais creio que deve haver um outro fator no
qual sequer pensamos, cegos por nos termos concentrado na idéia de um
psicopata operando sozinho. Convenço-me cada vez mais de que ele não
estava só.
Jeffrey lembrou-se do diálogo estre Frank Feranno e Devlin.
Frank dissera que o assunto não era da conta de Devlin e que eles só
queriam o doutor. Mas vivo, sem dúvida. Porque certamente que tiveram a
oportunidade de liquidá-lo com um tiro, junto com Harding.
- O que me diz das companhias de seguros? - perguntou Kelly. Ela
sempre tivera implicância com as companhias de seguros, especialmente
após o suicídio de Chris.
- O que você quer dizer agora? - perguntou Jeffrey. Depois das
atribulações por que passara, sentia-se meio tonto. Não conseguia
acompanhar o raciocínio de Kelly.
- Alguém se beneficia com esses crimes - disse Kelly. Lembre-se, todos os hospitais foram processados, assim como os médicos.
No caso de Chris, o seguro do hospital pagou tanto, ou até mais, quanto


o seguro dele. E era a mesma companhia.
Jeffrey pensou por um momento.
- Parece uma boa idéia, mas só se pensarmos em termos de
longuíssimo prazo. As companhias de seguros se beneficiam, sim, mais só
depois de passar muito tempo. A curto prazo elas perdem, e perdem feio.
Leva muito tempo até recuperarem as despesas feitas com
essas indenizações, cobrando mais dinheiro pelo seguro dos médicos.
- Mas acabam por se beneficiar - disse Kelly. - E se as
companhias de seguros se beneficiam, creio que conviria continuar
pensando que podem estar envolvidas nesses crimes.
- É uma idéia - concordou Jeffrey, mas sem se convencer. Detesto ser um desmancha-prazeres, mas, com Trent fora de cena, tudo
isso se torna acadêmico. Ou seja, continuamos sem ter prova alguma. Não
só não temos prova do envolvimento de Trent, como não temos sequer prova
de que existe uma toxina. E a despeito do interesse de Seibert, pode ser
que nunca venhamos a ter.
Jeffrey pensou na seringa. Trent o ameaçara com uma seringa no
palco. Se ao menos tivesse tido a presença de espírito de apanhá-la...
Então Seibert disporia de material suficiente para seus testes. Mas não
podia ser muito exigente. Afinal, naquela hora confusa estava apavorado,
acreditando que ia ser morto.
De repente lembrou-se do apartamento de Trent.
- Por que não pensei nisto antes? - disse excitado, dando um
tapa na testa. - Ainda temos uma chance para provar a existência de
toxina. O apartamento de Trent! Em algum lugar daquele apartamento deve
estar escondida a prova que precisamos.
- Oh, não - gemeu Kelly, balançando a cabeça lentamente. - Por
favor, diga que não está sugerindo que voltemos ao apartamento.
- É a nossa chance. Ande, vamos! Não temos agora que nos
preocupar com Trent. E amanhã pode ser que as autoridades estejam lá. É
preciso ir agora. Quanto mais cedo, melhor!
Kelly sacudiu a cabeça sem acreditar, mas engrenou o carro e
afastou-se do meio-fio.
Frank Feranno sentia-se em péssimo estado, achando que aquela fora a
pior noite da sua vida. E dizer que o começo fora tão promissor! Ele e
Tony iam embolsar dez mil para liquidar um cara louro chamado Trent
Harding e drogar um médico, um tal Jeffrey Rhodes. O que tinham a fazer
depois era embarcar o doutor num Learjet que aguardava no Aeroporto
Logan. Tudo muito simples, já que o Harding e o doutor iam se encontrar
na Hatch Shell, às nove e meia. Dois coelhos com uma cajadada. Não podia
haver nada mais fácil.
Mas as coisas não tinham saido conforme planejaram. Claro que
não podiam ter incluído o aparecimento de Devlin nos seus planos.
Frank saiu da farmácia em Charles Circle e voltou ao seu Lincoln


Town Car preto. Usou o espelho atrás do visor para se ver enquanto
limpava o arranhão na têmpora esquerda com o álcool que acabara de
comprar. Ardeu bastante, mas ele mordeu a língua. Devlin quase o pegara.
E a idéia de que isso por pouco não acontecera, o deixava com o estômago
enjoado.
Rompeu o selo da outra compra, um frasco de Maalox, e jogou dois
comprimidos na boca. Em seguida, pegando o telefone, ligou para o seu
contato em St. Louis.
Houve um pouco de estática quando um homem atendeu.
- Matt? - disse Frank. - Sou eu, Feranno.
- Espere um minuto.
Frank ouviu Matt dizer à mulher que ia atender na extensão, e
que devia desligar tão logo ele apanhasse o outro aparelho. Um instante
depois ouviu o barulho do fone sendo levantado do descanso e a voz de
Matt gritando para a mulher desligar.
- Que diabo está acontecendo? - berrou Matt. - Você não devia
ligar para este número, a menos que houvesse encrenca. Não me diga que
seus homens estragaram tudo.
- Houve encrenca, sim - lamuriou-se Frank. - E das grandes. Tony
foi alvejado. Está morto. Você se esqueceu de nos avisar uma coisa,
Matt. Que havia um preço pela cabeça do doutor. De repente apareceu um
dos mais perigosos caçadores de recompensas da cidade, e ele não teria
aparecido se não fosse por dinheiro.
- Mas vocês acabaram com o enfermeiro?
- Esse foi fácil. Pegar o doutor é que foi o problema. Quanta
grana está em jogo no caso dele?
- A fiança foi arbitrada em meio milhão de dólares.
Frank assobiou.
- Você sabe, Matt, esse não é um detalhe insignificante. Você
devia ter avisado. Trataríamos do problema de maneira um pouco
diferente, se tivéssemos sabido. Não sei quanto vale aquele doutor para
você, mas saiba que meu preço subiu. Além disso, perdi um dos meus
melhores homens. Preciso dizer-lhe também que estou muito desapontado,
Matt. Pensei que a gente se entendesse bem. Você devia ter me falado na
fiança desde o começo.
- Vamos indenizá-lo, Frank - prometeu Matt. - O doutor é
importante para nós. Não tanto quanto nos livrarmos de Trent Harding,
mas assim mesmo importante. Olhe, se pegar o doutor, aumentaremos sua
parte para setenta e cinco mil. Que tal?
- Setenta e cinco mil soa bem aos meus ouvidos. E quanto ao
seu doutor, que você diz ser também importante. Alguma idéia de onde
posso encontrá-lo?
- Não, mas isso é parte do motivo pelo qual estamos dispostos a
pagar tanto dinheiro. Você falou que era muito bom nisso. Agora tem uma


oportunidade para provar. O que me diz do corpo de Harding?
- Fiz o que pediu - respondeu Frank. - Por sorte acertei Devlin
depois que ele matou Tony, mas não sei se o ferimento foi grave ou não.
Não tive tempo para ver. Mas o corpo de Harding está limpo. Nenhuma
identificação. E você estava certo: havia uma seringa. Peguei e vou
mandar pelo avião.
- Excelente, Frank - disse Matt. - E o apartamento de Harding?
- É o próximo item da lista.
- Lembre-se, quero tudo absolutamente limpo. Não se esqueça do
esconderijo no armário ao lado da geladeira. Tire tudo de dentro e ponha
no avião também. E procure o caderno de endereços do garoto. O imbecil
pode ter escrito alguma coisa. Se encontrar, mande no avião junto com o
resto das coisas. Depois arrase o apartamento. Deve parecer um roubo.
Apanhou as chaves dele?
- Pode deixar, apanhei as chaves. Não tem problema para entrar
no apartamento.
- Perfeito - despediu-se Matt. - Sinto muito quanto a Tony.
- Bem, viver é um risco - filosofou Frank, sentindo-se melhor ao
pensar nos setenta e cinco mil. Desligou o telefone e fez outra chamada.
- Nicky, aqui é Frank. Preciso de ajuda. Não é grande coisa, apenas
estourar um apartamento. Que tal umas notinhas de cem? Pego você na
Hanover Street em frente ao Via Veneto Café. Traga seu berro, por via
das dúvidas.
Virando à esquerda na Garden Street, Kelly teve uma desagradável
sensação de de'jà vu. Relembrou Trent Harding correndo atrás deles com o
martelo na mão. Parou em fila dupla do lado direito da rua. Metendo a
cabeça pela janela, deu uma olhada para a janela do apartamento.
- Epa! - exclamou. - As luzes estão acesas.
- Trent provavelmente as deixou acesas, pensando que voltaria em
meia hora, por aí.
- Tem certeza?
- Claro que não tenho certeza - respondeu Jeffrey -, mas me
parece uma dedução razoável. Não me faça ficar mais nervoso do que já
estou.
- Talvez a polícia esteja lá.
- Não devem ter chegado nem ao local do crime, quanto mais aqui.
Tomarei cuidado. Vou prestar a maior atenção antes de entrar. Se a
policia aparecer enquanto eu estiver lá, buzine e rode até a Revere
Street. Se for preciso, atravesso por cima dos telhados e saio num dos
prédios que dão de frente para lá.
- Tentei buzinar da última vez.
- Agora vou ficar atento.
- O que pretende fazer se encontrar algo que incrimine Harding?
- Deixo onde está e ligo para Randolph - respondeu Jeffrey. -


Talvez ele possa conseguir que a polícia venha com um mandado de busca.
Feito isso, passo a investigação aos especialistas. Que o sistema legal
entre em ação... quero ouvir suas enferrujadas engrenagens rangerem.
Nesse meio-tempo acho melhor sair do país. Pelo menos até ser isentado
de culpa.
- Você faz tudo parecer muito fácil - comentou Kelly.
- E será fácil mesmo, se eu encontrar a toxina ou algo
equivalente - garantiu Jeffrey. - E, Kelly, se eu tiver que deixar o
país, gostaria muito que viesse comigo.
Kelly começou a falar, mas Jeffrey a interrompeu.
- Só quero que você pense nisso.
- Eu adoraria - disse Kelly. - Sinceramente.
Jeffrey sorriu.
- Falaremos sobre isso depois. Por ora só quero que me deseje
boa sorte.
- Boa sorte - disse Kelly -, e ande depressa!
Jeffrey saltou do carro e olhou para a janela aberta do
apartamento de Trent. Notou que a tela não fora recolocada. Ótimo.
Economizaria tempo.
Atravessou a rua e entrou no prédio. Não teve dificuldade com a
porta interior. Havia um forte cheiro de cebola frita e o som simultâneo
de diversos aparelhos tocando música. Á medida que ia subindo a escada
cheia de sujeira, sua apreensão crescia. Contudo, não tinha tempo para
ficar cultivando medos. Com uma determinação recémdescoberta, seguiu até
o telhado e desceu pela escada de incêndio.
Meteu a cabeça na sala e ficou atento. Só ouviu o barulho
amortecido da música estéreo que ouvira antes na escada. Achando que o
apartamento estava vazio, entrou.
Notou imediatamente que a desordem era muito maior que da outra
vez. A mesinha de centro, com uma perna quebrada, estava atirada num canto. As coisas que vira antes em cima dela jaziam agora
espalhadas pelo chão. Do lado do telefone surgira um buraco redondo na
parede de gesso. Havia estilhaços de vidro no chão, junto à porta da
cozinha, e uma garrafa de cerveja quebrada no meio daquela bagunça.
A toda pressa, certificou-se de que não havia mesmo ninguém.
Passou o trinco na porta da sala. Não queria se arriscar a uma surpresa.
Só depois começou a busca. Planejava inicialmente pegar a
correspondência. Não ia ler logo, mas levar para examinar com calma.
O lugar mais óbvio para encontrar a correspondência seria a
escrivaninha. Mas resolveu antes procurar na cozinha um saco vazio para
levar as cartas. Lá, encontrou mais estilhaços de vidro.
Atento, Jeffrey examinou os cacos. Estavam sobre a bancada, ao
lado da geladeira. Alguém quebrara de propósito uma porção de copos
limpos. Abriu a porta do armário na parte de cima. Na prateleira da


frente encontrou outros copos do mesmo tipo. Na prateleira superior
havia pratos.
Ficou curioso. O que teria acontecido no apartamento antes de
Trent sair? Percebeu então uma discrepância na profundidade do armário.
A prateleira dos copos tinha a metade da profundidade da prateleira dos
pratos.
Afastou os copos e bateu no fundo com os nós dos dedos. Sentiu
que a madeira não estava firme. Tentou puxar, mas ela não cedeu. Mudou
de tática, e empurrou. Quando fez pressão sobre a extremidade direita do
compensado, o painel girou. Jeffrey pegou a extremidade livre e puxou.
- Aleluia! - exclamou ao ver uma caixa fechada de ampolas de 30
ml de Marcaína, uma caixa de charutos, várias seringas e um vidro com um
líquido amarelo, viscoso, com rolha de borracha. Jeffrey procurou uma
toalha. Vendo uma pendente no puxador da geladeira, usou-a para apanhar
o vidro. Parecia ser de fabricação estrangeira. Jeffrey o reconheceu:
era do tipo usado para algumas medicações injetáveis. Com a mesma
toalha, tirou a caixa de charutos, colocou na bancada e levantou a
tampa. Dentro havia uma pilha impressionante de notas de cem, novinhas.
Calculou que ali houvesse entre vinte e trinta mil dólares naquela caixa
de charutos.
Devolveu tudo ao mesmo lugar em que encontrara. Chegou inclusive
a limpar a madeira e os copos em que mexera, para não deixar impressões
digitais. Sentia-se excitado e satisfeito. Não tinha dúvida de que o
líquido amarelo no frasco fosse a toxina fantasma, e que sua
Voltando a sala, examinou a mesa rapidamente e apanhou um bom
número de cartas e contas. Colocou tudo no saco de papel e foi para o
quarto, onde começou a revista pela cômoda. Na segunda gaveta encontrou
uma pilha de revistas Playgirl. Pôs de lado. Na terceira gaveta achou
cartas, em maior número do que esperara. Puxando uma cadeira, iniciou
uma seleção sumária.
Kelly estava nervosa, tamborilando os dedos no volante e se remexendo no
banco. Um carro saíra, deixando a vaga, próxima ao prédio de Trent, e
ela gastara alguns minutos para estacionar. Melhor. Olhando a janela
aberta, perguntou-se por que Jeffrey estaria demorando tanto. Quanto
mais o tempo ia passando, mais nervosa ela ficava. O que estaria ele
fazendo lá em cima? Quanto tempo era preciso para revistar um
apartamento de um quarto?
A Garden não era uma rua movimentada, mas enquanto Kelly
esperava, uns cinco carros passaram por ali, virando na esquina da
Revere. Todos aqueles motoristas pareciam procurar uma vaga. Assim,
Kelly não estranhou quando outro par de faróis apareceu na mesma esquina
e se aproximou lentamente. O que chamou sua atenção foi ter parado bem
na frente do prédio de Trent, estacionando em fila dupla. Os faróis
foram desligados, ficando os pisca-piscas acesos.


Kelly observou um homem de suéter escuro saltar do lado do
passageiro e dar a volta no carro. Na calçada ele se espreguiçou, ao
mesmo tempo que saltava o motorista, de camisa branca e mangas
arregaçadas. Carregava uma sacola. Os dois homens riam de alguma coisa.
O mais novo terminou um cigarro e atirou a ponta na sarjeta. Em seguida
entraram no edifício de Trent.
Kelly olhou para o carro. Era um enorme e reluzente Lincoln Town
Car preto, com várias antenas na parte traseira. Parecia claramente
deslocado e lhe causou um mau pressentimento. Ficou na dúvida, sem saber
se devia buzinar, mas não queria alarmar Jeffrey desnecessariamente. Chegou a se mexer para saltar, mas mudou de idéia e decidiu
permanecer ali mesmo. Ficou olhando para a janela de Trent, como se o
simples fato de olhar pudesse fazer Jeffrey sair em segurança.
- Se provar que posso contar com os seus serviços, tenho grandes
planos para você Nicky - disse Frank, enquanto subiam a escada. - Com a
morte de Tony, abriu-se uma vaga na minha organização. Entende o que
quero dizer?
- Basta falar comigo uma vez e o serviço está feito - garantiu
Nicky.
Frank estava se perguntando como diabos encontraria o doutor. Ia
precisar de alguém para percorrer a cidade. Nicky era perfeito, embora
um pouco burro.
Quando chegaram ao quinto andar, Frank estava ofegante.
- Tenho que comer menos massa - disse, tirando as chaves de
Trent do bolso. Deu uma olhada na fechadura e tentou identificar qual
seria a chave. Em dúvida, enfiou a primeira e não deu sorte. A segunda
girou a engrenagem. Empurrou a porta, que foi abruptamente detida pela
corrente da tranca. - Que diabo... - começou a exclamar Frank.
Jeffrey ouvira a primeira chave tentando entrar na fechadura. Sentou-se
trêmulo, assustado. Seu primeiro pensamento foi totalmente absurdo:
Trent estava vivo. Quando Frank experimentou a segunda chave, passou
correndo pela sala, em pânico. Depois que Nicky, após arrombar a porta,
entrou tropeçando, ele já estava na janela.
- É o doutor - Jeffrey ouviu alguém gritar. Pulou por cima do
peitoril como se disputasse uma corrida com barreiras. Desta vez passou
direto. Em segundos, estava escalando a escada de incêndio.
Chegando lá em cima, seguiu o caminho anterior, pulando de
telhado em telhado. Mas não tentou a porta que usara na véspera,
receando que o trinco ainda estivesse na posição em que o deixara. Atrás
dele, ouviu o barulho de passos que o perseguiam. Aqueles estranhos,
presumiu, deviam ser os homens da Hatch Shell, os tais que Kelly
supusera serem pistoleiros profissionais. Ao resolver a ida ao
apartamento de Trent, nem mesmo pensara neles.
Jeffrey tentou diversas portas nos sucessivos telhados,


encontrando todas fechadas. Só no prédio da esquina achou uma
entreaberta. Entrou às pressas, bateu a porta e procurou uma tranca.
Nada. Virou-se e desceu a escada, correndo. Os homens à sua retaguarda
ganharam
terreno. Ao chegar ao nível da rua, podia perceber que não estavam muito
distantes.
Lá embaixo, tomou uma decisão rápida. Sabendo que não teria
tempo de chegar ao carro, tomou a direção da Revere Street. Não ia
arriscar a segurança de Kelly mais ainda. Tinha que se livrar dos seus
perseguidores antes de procurá-la.
Já na rua, os dois homens saíram correndo atrás dele, que não
tinha uma dianteira muito vantajosa. Virou à esquerda na Cedar e passou
por uma lavanderia e uma loja de utilidades. Algumas pessoas andavam na
calçada. Começou a distinguir os passos do perseguidor mais rápido, que,
em melhor forma que o outro, diminuía cada vez mais a distância.
Virando de novo na Pinckney Street, Jeffrey desceu correndo a
ladeira. Não era muito familiarizado com Beacon Hill e rezou para não
dar num beco sem saída. Mas Pinckney desembocava na Louisburg Square.
Sabia que precisava encontrar um esconderijo se quisesse fugir
dos seus perseguidores. Não conseguiria correr mais do que eles. Vendo a
grade de ferro batido que cercava o gramado central da praça, correu
diretamente para ela e galgou-a, enfrentando as pontas das hastes
verticais na altura do peito. Ao pular, os pés afundaram na relva macia.
Avançou e mergulhou de cabeça na terra úmida da densa moita de arbustos.
Contendo a respiração, ficou na expectativa.
Ouviu os homens descerem correndo a Pinckney Street. O ruído dos
seus sapatos na calçada ecoava nas fachadas dos elegantes edifícios
revestidos de tijolos. Um deles apareceu na praça, ofegando. Tendo
perdido sua presa de vista, imediatamente reduziu a velocidade e parou.
O outro chegou momentos depois. Falaram-se rapidamente, entre um arquejo
e outro.
Jeffrey viu de relance seus rostos quando se separaram. Um foi
para a esquerda, o outro para a direita. Reconheceu um deles como o
homem do palco da Hatch Shell. O outro, um estranho, empunhava uma
pistola.
Examinaram metodicamente as entradas, as escadas e por baixo dos
carros, percorrendo a praça. Jeffrey não se mexeu nem quando os perdeu
de vista. Tinha medo de que qualquer gesto os fizesse voltar.
Quando finalmente supôs que deviam estar próximos ao outro lado
da praça, teve a idéia de escalar novamente a grade e correr para onde
se encontrava Kelly. Mas decidiu que não. Talvez fosse facilmente visto
quando a estivesse escalando.
Um miado fê-lo estremecer. A meio metro do seu rosto viu um gato
cinzento com cauda esticada no ar. O animal miou de novo e se aproximou,


esfregando o corpo na cabeça de Jeffrey. Passou a ronronar audivelmente
e Jeffrey lembrou-se do susto que Dalila lhe pregara na despensa de
Kelly. Noutros tempos, os gatos nunca lhe davam muita atenção; agora
apareciam toda vez que tentava esconder-se!
Virando a cabeça, espiando por entre os arbustos, viu os dois
homens conferenciando no lado da praça que dava para Mount Vernon. Um
pedestre solitário caminhava pela calçada. Pensou em gritar pedindo
socorro, mas o homem entrou numa das casas e desapareceu rapidamente.
Gritar agora provavelmente não resultaria em nada além de fazer algumas
luzes serem acesas. Mesmo que alguém tivesse a presença de espírito de
ligar para a polícia, seriam precisos uns dez ou quinze minutos para
chegar, na melhor das hipóteses. Além disso, não tinha certeza se queria
realmente ver a polícia.
Os dois homens se separaram de novo, retornando à Pinckney
Street, desta vez revistando a área gramada. Jeffrey sentiu o pânico
voltar, sobretudo porque o gato persistia em suas manobras para ganhar
atenção. Percebeu que não podia ficar parado. Tinha que sair dali.
Movendo as pernas com a máxima rapidez, disparou até a cerca.
Galgou-a com a mesma agilidade de antes, mas torceu o tornozelo direito
ao cair no pavimento do outro lado. Uma pontada de dor percorreu sua
espinha.
Mesmo assim, sem se importar com o tornozelo, voou pela Pinckney
Street. Atrás, ouviu um homem gritar para o outro. E logo um barulho de
passos correndo na rua. Passou pela West Cedar e prosseguiu para a
Charles. Desesperado, ficou no meio da rua tentando pegar uma carona,
mas os motoristas não paravam.
Com seus perseguidores descendo rapidamente a Pinckney, Jeffrey
atravessou a Charles e prosseguiu para a Brimmer Street, onde virou à
esquerda. Correu até o fim do quarteirão. Infelizmente, o mais rápido
dos dois homens estava ganhando terreno.
Desesperado, parou na igreja do Advento, pensando em se abrigar
no seu interior. Alcançou a porta, agarrou a pesada maçaneta e empurrou,
mas a porta não se mexeu. Estava trancada. Virou-se para a rua no
momento em que um dos homens apareceu - o que empunhava uma arma. O
outro chegou logo depois, parecendo mais cansado que o primeiro. Era o
tal que vira antes na Esplanada. Juntos, avançaram lentamente na sua
direção.
Jeffrey voltou-se para a porta da igreja e, em sua frustração,
esmurrou-a. Foi quando sentiu o cano de uma arma encostado na sua
cabeça. E ouviu o homem mais cansado dizer:
- Adeus, doutor!
Kelly deu um tapa no painel.
- Não acredito! - exclamou, em voz alta. O que poderia estar
fazendo para demorar tanto? Levantou os olhos, observando a janela do


apartamento de Trent pelo que devia ser, achou ela, a centésima vez. Nem
sinal de Jeffrey.
Saltou do carro, apoiou-se no teto e pensou no que devia fazer.
Podia usar a buzina, mas relutava em interrompê-lo só por sentir-se
ansiosa e apreensiva. Para demorar tanto, certamente ele tinha
encontrado alguma coisa. Estava quase decidida a subir, mas receava que,
ao bater na porta do apartamento, Jeffrey se pusesse em fuga.
Já não sabia o que pensar, quando reparou de novo no reluzente
Lincoln preto. Nem dez minutos haviam passado desde que vira um dos
homens voltar e apanhar o carro. Só que agora o homem viera da rua, e
não do edifício de Trent. Kelly observou o Lincoln estacionar em fila
dupla no mesmo ponto onde estivera antes. Em seguida, os mesmos
individuos saltaram e se dirigiram para o prédio onde ficava o
apartamento de Trent.
Kelly teve a curiosidade despertada e resolveu ir até o Lincoln
dar uma olhada. Enfiou as mãos nos bolsos, na esperança de parecer uma
eventual transeunte no caso de um dos dois homens voltar de repente. Ao
se aproximar do carro, olhou para os dois lados da rua, como se
estivesse fazendo algo errado ao satisfazer sua curiosidade. Abaixou-se
e deu uma olhada no painel. O carro tinha um telefone móvel, mas, exceto
por isso, parecia comum. Deu mais dois passos e olhou a traseira,
perguntando-se qual seria o motivo de existirem tantas antenas.
Endireitou o corpo rapidamente. Havia alguém no banco de trás,
encolhido, talvez dormindo. Abaixando-se de novo, mais devagar, deu
outra olhada. Uma das mãos do homem estava dobrada para trás de um modo
pouco natural. Meu Deus, gemeu Kelly, era Jeffrey!
Desesperada, tentou abrir a porta. Estava trancada. Experimentou
as outras. Todas estavam trancadas. Freneticamente, procurou alguma
coisa pesada, uma pedra. Encontrou um tijolo solto na calçada. Voltou ao
Lincoln e bateu com o tijolo no vidro da janela da porta traseira. Teve
que bater diversas vezes até conseguir que o vidro se estilhasse em
múltiplos fragmentos. Meteu a mão e abriu a porta pelo lado de dentro.
Quando se abaixou e tentou despertar Jeffrey, ouviu alguém lá em
cima gritar. Presumiu que fosse um dos dois homens que tinham chegado no
Lincoln. Deviam ter ouvido o barulho da janela quebrando.
- Jeffrey, Jeffrey! - gritou. Tinha qhe tirá-lo do carro.
Ouvindo seu nome, ele começou a se mexer. Tentou falar, mas as palavras
eram indistintas. Suas pálpebras ergueram-se um pouco quando franziu a
testa, com grande esforço.
Kelly sabia que tinha pouco tempo. Agarrando-o pelos pulsos,
puxou-o para fora. As pernas dele, inertes, caíram no chão. Seu corpo
era um peso morto. Parecia estar desmaiado. Largando os pulsos,
agarrou-o pelo peito, numa espécie de abraço de urso, e arrastou-o para
longe do carro.


- Tente ficar em pé, Jeffrey! - suplicou. Ele parecia uma boneca
de trapo. Kelly percebeu que, se o largasse, ele se estatelaria na
calçada. Certamente o tinham drogado.
- Jeffrey! - exclamou. - Ande! Tente andar!
Reunindo todas as forças, Kelly foi arrastando Jeffrey. Ele
tentou ajudar, mas era como se estivesse paralisado. Não podia apoiar
seu peso nas pernas, não podia ficar em pé.
Quando chegou ao lado do Honda, Jeffrey já conseguia apoiar-se
um pouco, mas ainda estava tonto demais para avaliar a situação. Ela
encostou-o no carro e o apoiou com o próprio corpo. Abrindo a porta de
trás, conseguiu empurrá-lo para dentro. Certificando-se de que todo o
corpo dele tinha entrado no carro, bateu a porta.
Avançou pela porta do motorista, e se acomodou dentro do
veículo. Ouviu a porta do edifício de Trent ser escancarada e estourar
com força no batente. Ligou o motor, girou o volante com força para a
esquerda e acelerou. Ao sair, bateu no carro que estava na frente,
fazendo com que o corpo de Jeffrey caísse no chão do banco traseiro.
Engrenando a ré, Kelly recuou, batendo agora no carro de trás.
Um dos homens chegara junto da sua janela. Ele abriu a porta, sem lhe
dar tempo para trancá-la. Agarrou-lhe o braço rudemente.
- Por que tanta pressa, madame? - rosnou no seu ouvido.
Com a mão livre, Kelly engrenou e pisou no acelerador até o
fundo. Agarrou-se na direção quando sentiu que estava sendo puxada pelo
brutamontes. O carro saltou, deixando de colidir de novo com o da frente
por alguns centímetros. Ela girou o volante para a esquerda, batendo com
a porta aberta nos automóveis estacionados no outro lado da rua. O homem
que agarrara seu braço gritou de dor ao ser esmagado entre um daqueles
veículos e a porta aberta do carro de Kelly.
Ela continuou pisando fundo no acelerador. Quando arremeteu pela
Garden, a porta ainda estava aberta. Com uma freada violenta, evitou
atropelar meia dúzia de pedestres que cruzavam a movimentada esquina da
Garden com a Cambridge. As pessoas se dispersaram correndo quando o
carro de Kelly derrapou de lado, com os pneus guinchando.
Kelly fechou os olhos, esperando pelo pior. Quando os abriu,
tinha parado, mas o carro executara um giro total para o lado contrário.
Agora estava parada na contramão, de frente para uma fila de motoristas
furiosos. Alguns já tinham saltado e se aproximavam. Engrenou a ré e
manobrou rapidamente, conseguindo voltar à direção certa. E então viu o
Lincoln preto descendo veloz a Garden Street, logo se pondo diretamente
à sua retaguarda. O carro estava quase encostando no seu pára-choque
traseiro.
Kelly concluiu que sua única esperança era escapar do enorme
Lincom nas ruas estreitas de Beacon Hill, onde o pequeno Honda seria
mais fácil de manobrar. Virou na primeira à esquerda. Ao fazer a curva,


passou com duas rodas por cima da calçada, batendo num latão de lixo.
Sua porta abriu-se com violência e fechou, com uma batida. Kelly
acelerou ladeira acima. No topo freou o suficiente para fazer uma curva
à esquerda na estreita Myrtle Street. Deu uma espiada no retrovisor e
viu que seu plano começava a dar certo. O Lincoln ficara para trás. Era
grande demais para fazer uma curva tão acentuada em alta velocidade.
Tendo morado em Beacon Hill alguns anos antes de se casar, Kelly
conhecia bem aquele labirinto de ruas estreitas e mão única. Virando à
direita no sentido contrário ao do tráfego na Joy Street, decidiu correr
o risco de tentar chegar na Mount Vernon. Lá, entrou de novo à direita e
desceu na direção da Charles. Seu plano era atravessar voando a
Louisburg Square e desaparecer no meio do trânsito da Pinckney. Mas
quando freou para entrar na praça, viu que o itinerário estava bloqueado
temporariamente por um táxi e um carro do qual desembarcava uma pessoa.
Mudando de idéia, continuou a descer a Mount Vernon. Mas a pausa
tivera seu preço. No espelho retrovisor viu que o Lincoln preto se
aproximava de novo. Olhando em frente, constatou que não dava para pegar
o sinal verde em Charles. Preferiu entrar à esquerda, na West Cedar.
Pegando a Chestnut à direita, Kelly acelerou. O sinal à frente,
na Charles, ficou amarelo, mas ela não reduziu a velocidade. Acelerando
no cruzamento, viu que um táxi se aproximava pela direita, piscando os
faróis. Kelly freou e girou o volante para a esquerda, provocando nova
derrapagem. Em vez de uma colisão direta, ocorreu uma batida de raspão.
O motor nem morreu, ao contrário do que houve com o outro veículo. O
motorista do táxi saltou, gritando e brandindo o punho cerrado, mas
Kelly não se deteve. Continuou descendo a Chestnut até a Brimmer, onde
tomou a esquerda. Enquanto fazia a curva, viu que o Lincoln contornava o
táxi parado.
Sentiu uma ponta de pânico. Seu plano não estava saindo conforme
esperava. O Lincoln continuava a segui-la. O motorista parecia conhecer
Beacon Hill.
Tinha que pensar em algo diferente. Manobrou para a esquerda na
Byron Street e entrou num edifício garagem do lado esquerdo da rua.
Passou pela cabine de vidro do atendente, fez uma curva fechada à
direita e parou diretamente sobre o elevador de automóveis.
Os dois atendentes, que tinham ficado espantados quando ela
entrara, acorreram, mas antes que pudessem dizer qualquer coisa, Kelly
gritou:
- Estou sendo perseguida por um homem num Lincoln preto! Vocês
precisam me ajudar! Ele quer me matar!
Os dois se olharam, perplexos. Um levantou as sobrancelhas,
enquanto o colega deu de ombros e se afastou um pouco. O outro puxou uma
cordinha, as portas se fecharam como mandíbulas de uma boca imensa e o
elevador subiu ruidosamente.


O rapaz abaixou-se junto da janela de Kelly.
- Que história é essa de alguém estar querendo matar você? perguntou, parecendo muito calmo.
- Ninguém acreditaria se eu contasse - respondeu Kelly. - Você
acha que seu amigo vai deixar o homem do Lincoln entrar?
- Acho que não vai deixar. Não é toda a noite que podemos salvar
uma dama em perigo.
Aliviada, Kelly fechou os olhos e apoiou a testa no volante.
- O que houve com esse cara aí atrás? - perguntou o rapaz.
Kelly não abriu os olhos.
- Bêbado - disse, fazendo um ar ingênuo. - Tomou margaritas
demais.
Frank ligou pela segunda vez e teve que esperar enquanto Matt cumpria o
confuso ritual da troca de telefones. Frank estava em casa e a ligação
era agora bem melhor que a que fizera do aparelho no carro.
- Mais problemas? - perguntou Matt. - Você não está conseguindo
me impressionar, Frank.
- Não poderia prever o que aconteceu - respondeu Frank. - Quando
Nicky e eu fomos ao apartamento de Trent, o doutor estava lá.
- E o bagulho que estava no armário? - indagou Matt.
- Não houve problema nenhum - assegurou Frank. - Estava lá,
intocado.
- Pegou o doutor?
- Aí está o problema. Nós perseguimos ele por todo Beacon Hill e
até o agarramos.
- Formidável!
- Não completamente, porque o perdemos de novo. Usamos nele a
droga que você mandou pelo avião, e funcionou como mágica. Em seguida
deixamos ele no meu carro enquanto subíamos para cuidar do apartamento e
pegar o troço que você queria. Pensamos: por que fazer duas viagens ao
Logan? Seja como for, a namorada do cara apareceu e arrombou o carro.
Espatifou o maldito vidro com um tijolo. Claro que descemos correndo a
escada para detê-la, mas o apartamento era no quinto andar. Nicky, um
dos meus associados, correu pela rua para segurá-la, mas ela arrancou
com o carro. Quebrou o braço de Nicky. Persegui-a no meu Lincoln, mas
acabei perdendo.
- E o que me diz do apartamento?
- Sem problema - assegurou Frank. - Voltei, rebentei tudo e pus
o troço que você queria dentro do avião. Portanto, está tudo feito,
exceto que não tenho o doutor. Mas penso que posso pegá-lo se usar um
pouco da sua influência. Anotei o número da placa da garota. Acha que é
capaz de descobrir seu nome e endereço?
- Não vai ser difícil - disse Matt. - Telefono para você amanhã
cedo.


***
Capítulo 16.
SÁBADO, 20 DE MAIO DE 1989, 08:11.
Jeffrey recuperou a consciência por etapas, relembrando sonhos estranhos
e incoerentes. Sua garganta estava tão seca que era difícil engolir.
Sentia o corpo pesado e rígido. Abriu os olhos e começou a estudar onde
se encontrava, para se orientar. Estava num quarto estranho, com paredes
azuis. Então, percebeu o soro. Fosse o que fosse que acontecera ontem,
terminara tomando soro na veia!
Quando sua mente começou a clarear, Jeffrey se virou. O sol da
manhã se coava pelas persianas da janela. Sobre a mesinha ao seu lado
havia um jarro e um copo. Sedento, bebeu um pouco d'água.
Sentou-se e examinou o aposento. Era um quarto de hospital, com
a costumeira cômoda de aço, o trilho para a cortina no teto em cima da
cama, e, no canto, uma cadeira de braços de aparência desconfortável,
forrada de plástico. Nela estava Kelly, encolhida e dormindo. Um dos
seus braços pendia para fora da cadeira, e no chão via-se um jornal que
ela devia ter largado ao adormecer.
Jeffrey passou as pernas para o lado de fora da cama, pensando
em se levantar e ir até Kelly, mas ficou preso pelo tubo do soro.
Olhando para trás, viu que era soro fisiológico e que corria muito
devagar.
Com um choque, lembrou-se subitamente da sua fuga em Beacon
Hill. O terror que sentira voltou com grande clareza. Recordava que fora
prensado na porta da igreja do Advento, uma pistola apontada
para a sua cabeça. Era só o que podia lembrar. Daí para a frente, tudo
era um grande vazio.
- Kelly - chamou baixinho. Kelly murmurou qualquer coisa mas não
acordou. - Kelly! - repetiu, agora mais alto. Ela pestanejou algumas
vezes e por fim pulou da cadeira e correu para Jeffrey. Agarrou-o pelos
ombros e fitou-o nos olhos.
- Oh, Jeffrey, graças a Deus você está bem. Como se sente?
- Tudo certo - disse ele. - Estou me sentindo bem.
- Fiquei apavorada Ontem. Não tinha idéia do que eles haviam
aplicado em você.
- Onde estou? - perguntou ele.
- St. Joe's. Eu não sabia o que fazer. Trouxe você aqui para a
Emergência. Eu tinha medo de que lhe acontecesse alguma coisa, como ter
dificuldade para respirar.
- E me admitiram sem fazer perguntas?
- Improvisei. Disse que você era um irmão que morava fora.
Ninguém fez perguntas. Conheço todo mundo na Emergência, médicos e
enfermeiras. Esvaziei seus bolsos, inclusive tirei a carteira. Não houve


problema, exceto quando o laboratório disse que você tinha tomado
cetamina. Precisei improvisar um pouco mais. Disse que você era
anestesista.
- Afinal, o que aconteceu ontem? - indagou Jeffrey. - Como foi
que você me encontrou?
- Um pouquinho de sorte - respondeu Kelly. Sentando-se na beira
da cama, contou todos os fatos desde o momento em que ele desaparecera
dentro do edifício de Trent até a hora em que ela entrou de carro no St.
Joe's.
Jeffrey estremeceu.
- Oh, Kelly, eu jamais deveria ter deixado você se envolver com
isso. Não sei o que me levou a...
- Fui eu que me envolvi - interrompeu Kelly. - Mas isso não é
importante. O importante é que ambos estamos bem. Como foi que você se
saiu no apartamento de Harding?
- Bem, até eles me surpreenderem - respondeu Jeffrey. - Achei o
que estávamos procurando. Descobri por acaso um esconderijo secreto com
uma caixa de Marcaína, seringas, bastante dinheiro e a toxina. O
esconderijo ficava por trás do fundo falso de um armário da cozinha. Não
há mais dúvida quanto às nossas suspeitas em relação a Trent Harding. É
a prova que tínhamos esperança de encontrar.
- Encontrou dinheiro?
- Sei exatamente o que está pensando. Assim que vi o dinheiro me
lembrei da sua teoria de que deve haver uma conspiração. Harding
trabalhava para alguém. Meu Deus! Que bom seria se ele não estivesse
morto. Nesta altura dos acontecimentos, provavelmente iria explicar
tudo. E até me devolver a minha vida antiga. - Jeffrey sacudiu a cabeça.
- Bem, teremos que trabalhar com pouco de que dispomos. Podia ser
melhor, mas também já foi pior.
- Qual será o próximo passo? Procurar Randolph Bingham e contar
a história toda. Ele tem
que dar um jeito de fazer a policia revistar o apartamento de
Trent. Eles que se preocupem em descobrir quem estava em conluio com
quem.
Descendo as pernas pelo lado onde estava o soro, Jeffrey pôs os
pés no chão e levantou-se. Ficou tonto por um momento, mas conseguiu
equilibrar-se. Vendo-o oscilar, Kelly aproximou-se e lhe deu a mão para
ajudá-lo.
Recuperado o equilíbrio, Jeffrey olhou para ela e disse:
- Estou começando a me convencer de que preciso de você por
perto o tempo todo.
- Acho que precisamos um do outro.
Jeffrey sorriu e meneou a cabeça. Na sua opinião sincera, Kelly
precisava tanto dele quanto de ser atropelada por um caminhão. O que


obtivera com ele, além de problemas? Só esperava ter a oportunidade de
retribuir.
- Onde estão as minhas roupas? - perguntou.
Kelly foi até o armário e abriu a porta. Com uma careta, Jeffrey
tirou o esparadrapo que prendia a agulha do soro e aproximou-se dela.
Kelly estendeu-lhe as roupas.
- Minha bolsa! - exclamou ele, surpreso. A bolsa estava
pendurada num cabide do armário.
- Fui até em casa pela manhã. Peguei roupas para mim, dei comida
aos gatos e apanhei a sua bolsa.
- Você se arriscou - comentou Jeffrey. - E Devlin? Observou se
havia alguém por lá, vigiando a casa?
- Pensei nisso. Mas quando comprei o jornal, supus que não ia
ter problema.
Ela foi pegar o Globe que estava no chão perto da cadeira, e o
entregou a Jeffrey, apontando uma coluna na primeira página da seção de
notícias da cidade. Ele leu a descrição do incidente da véspera. Um
enfermeiro recém-contratado pelo hospital St. Joseph fora abatido a
tiros por um conhecido pistoleiro, um fora-da-lei chamado Tony Marcello. Um ex-integrante
da polícia de Boston, Devlin O'Shea, matara o agressor com uma bala, mas
saíra seriamente ferido no tiroteio que se seguiu. Devlin fora levado
para o Boston Memorial e, segundo os médicos, suas condições eram
estáveis. Terminava dizendo que a polícia de Boston investigava o
incidente, que acreditava estar relacionado com drogas.
Pondo o jornal em cima da cama, Jeffrey abraçou Kelly e disse:
- Lastimo sinceramente ter metido você nesta confusão. Mas creio
que estamos chegando ao fim.
Afrouxando o abraço, inclinou-se um pouco para trás.
- Vamos procurar Randolph - disse. - Depois tentaremos dar o
fora. Podemos ir de carro para o Canadá e lá pegar um avião para
qualquer lugar onde possamos ter paz enquanto a investigação se realiza.
- Não sei se posso ir - disse Kelly. - Quando cheguei em casa vi
que os gatinhos de Dalila vão nascer a qualquer momento.
Jeffrey dirigiu um olhar incrédulo a Kelly.
- Você vai ficar por causa de uma gata?
- Bem, não posso simplesmente deixá-la na despensa. Ela está
para parir.
Jeffrey reconheceu a ligação carinhosa que Kelly tinha com seus
gatos.
- Está bem, está bem - disse, concordando rapidamente. Pensaremos em outra solução. Neste momento o importante é falar com
Randolph. O que devemos fazer para que eu saia daqui? E talvez fosse
melhor você me dizer qual é o meu nome.


- Seu nome é Richard Widdicomb - informou Kelly. - Espere um
momento. Vou falar com a enfermeira para liberar você.
Quando ela saiu, Jeffrey terminou de se vestir. A não ser por
uma leve dor de cabeça, sentia-se bem. Gostaria de saber que quantidade
de cetamina tinham injetado nele. Pelo sono profundo que o assaltara,
supunha que tivessem acrescentado algo como Innovar à cetamina.
Abrindo a bolsa, Jeffrey achou seus artigos de toalete, algumas
roupas de baixo limpas, o dinheiro, diversas folhas com as anotações que
fizera na biblioteca, as cópias que tirara no tribunal, sua carteira e
um caderninho preto.
Pôs a carteira no bolso e pegou o caderninho. Abriu-o, e, por
alguns momentos, não pôde imaginar por que motivo estaria na sua bolsa.
Era um caderno de endereços, mas não lhe pertencia.
Kelly voltou trazendo um médico.
- Este é o Dr. Sean Apple - disse. - Tem que examinar você para
lhe dar alta.
Jeffrey deixou o jovem médico auscultar-lhe o peito, tirar sua
pressão e fazer um exame neurológico superficial, que incluiu caminhar
em linha reta, colocando um pé diretamente na frente do outro.
Enquanto o médico o examinava, ele perguntou a Kelly de quem era
o caderno.
- Estava no seu bolso - afirmou ela.
Jeffrey ficou em silêncio até o médico dizer que ele tinha
condições para receber alta.
- Este caderno não é meu - assegurou Jeffrey, erguendo-o. Ao
mesmo tempo, porém, lembrou-se: era o caderno de endereços de Trent
Harding. Tanta coisa havia acontecido que ele até se esquecera. Explicou
a Kelly e, juntos, os dois examinaram algumas páginas.
- Talvez seja importante. Podemos entregá-lo a Randolph. Jeffrey enfiou o caderninho no bolso. - Estamos prontos?
- Você vai ter que assinar um papel. Lembre-se de que seu nome é
Richard Widdicomb.
Sair do hospital foi tão tranqüilo quanto ele previu. Levava a
bolsa pendurada no ombro, enquanto Kelly também carregava uma bolsa
pequena com as coisas dela. Entraram no carro e Jeffrey começou a
guiá-la no itinerário para o escritório de Randolph assim que sairam da
área de estacionamento. Já estavam na metade do caminho quando,
repentinamente, voltou-se para ela com uma expressão que a deixou
alarmada.
- O que foi?
- Você disse que aqueles homens voltaram ao apartamento de Trent
depois de me largarem no carro deles?
- Não sei se foram ao apartamento de Trent, mas voltaram ao
prédio.


- Oh, meu Deus! - virou-se para a frente de novo. - Eles
entraram tão facilmente no apartamento enquanto eu estava lá porque
tinham as chaves. É evidente que procuravam por alguma coisa específica.
- Voltou a fitar Kelly. - Temos que ir primeiro à Garden Street - disse.
- De novo ao apartamento de Trent? - Kelly não podia acreditar.
- Não há outro jeito. É preciso ver se a Marcaína e a toxina
ainda estão lá. Caso contrário, retornamos à estaca zero. - Jeffrey,
pelo amor de Deus! - exclamou ela. Não se conformava com a idéia de voltar ao apartamento de Trent uma terceira vez.
Em cada uma das ocasiões anteriores tinham encontrado um perigo novo.
Mas estava conhecendo Jeffrey cada vez mais. Sabia que não era capaz de
convencê-lo a desistir de uma terceira visita ilegal. Sem renovar seu
protesto, simplesmente dirigiu-se para Garden Street.
- É o único jeito - disse Jeffrey, querendo convencer tanto a si
próprio quanto a Kelly.
Ela estacionou um pouco antes do edifício. Os dois ficaram
sentados por um momento, imersos em pensamentos.
- A janela ainda está aberta? - perguntou Jeffrey, examinando a
área para ver se alguém observava o prédio ou, de algum modo, parecesse
não pertencer àquele quadro. Sua preocupação agora era a polícia.
- A janela continua aberta - confirmou Kelly.
Jeffrey ia dizer que voltaria num minuto, mas ela o interrompeu.
- Desta vez não vou ficar aqui embaixo - afirmou, num tom de voz
que não admitia contestação.
Sem uma palavra, Jeffrey balançou a cabeça, concordando.
Passaram pelas duas portas. O edifício estava estranhamente
quieto até o terceiro andar onde, através de uma porta fechada, ouviram
a violência ruidosa dos desenhos animados das manhãs de sábado.
No quinto andar, Jeffrey deu um sinal para que Kelly fizesse o
mínimo barulho possível. A porta do apartamento estava entreaberta. Ele
se pôs de lado, atento. Os ruídos longínquos da cidade entravam pela
janela escancarada.
Jeffrey empurrou a porta. A cena que surgiu diante dos seus
olhos não foi nada encorajadora. O apartamento estava nas piores
condições possíveis. Fora arrasado. Mil objetos estavam espalhados no
centro da sala, inclusive as gavetas da cômoda.
- Droga! - exclamou. Entrando, correu até a cozinha. Kelly ficou
na porta, avaliando os escombros.
Jeffrey voltou num segundo. Não foi preciso perguntar; sua
expressão refletia o que encontrara.
- Sumiu tudo - disse, quase chorando. - Até mesmo o fundo falso
desapareceu.
- O que vamos fazer? - perguntou Kelly, pondo carinhosamente a
mão no seu braço.


Jeffrey passou os dedos pelos cabelos, contendo as lágrimas.
- Não sei - disse. - Harding morto e o apartamento vazio... Não conseguiu continuar.
- Não podemos desistir agora - disse Kelly. - O que me diz de
Henry Noble, o paciente de Chris? Você falou que a toxina podia estar na
vesícula dele.
- Sim, mas o caso dele já tem dois anos...
- Ouça. Da última vez em que conversamos sobre isso, você me
convenceu. Parecia cheio de esperanças. O que houve com a sua decisão de
que era preciso trabalhar com o que dispúnhamos?
- Você tem razão - concordou ele, tentando recuperar o controle.
- Há uma chance. Vamos procurar Warren Seibert. Acho que está na hora de
contarmos a ele toda a verdade.
Kelly tomou o rumo do necrotério municipal.
- Acha que o Dr. Seibert estará trabalhando numa manhã de
sábado? - perguntou Kelly, quando saltaram do carro.
- Ele disse que, quando tinham muito a fazer, vinham trabalhar
também nos fins de semana - respondeu Jeffrey, segurando a porta para
ela passar.
Kelly reparou nos motivos egípcios do saguão de entrada.
- Isto me faz lembrar de um filme de terror - comentou.
A porta da sala principal estava trancada. Jeffrey conduziu-a
pela escada até o segundo andar.
- Que cheiro estranho - queixou-se ela, após vencer os primeiros
degraus.
- Isto não é nada - assegurou Jeffrey. - Espere até chegarmos
lá.
No segundo andar, ainda não tinham visto ninguém. A porta para o
salão onde se realizavam as autópsias estava aberta, não havia uma só
pessoa no seu interior - viva ou morta. Virando o corredor, passaram
pela biblioteca empoeirada e foram até a sala do Dr. Seibert. Ele estava
lá, debruçado sobre uma pilha de relatórios de autópsias, com uma caneca
de café ao lado.
Jeffrey bateu palmas diante da porta aberta. Seibert
sobressaltou-se, mas, quando viu quem era, sorriu.
- Dr. Webber, o senhor me assustou.
Jeffrey desculpou-se.
- Devíamos ter telefonado.
- Não faz mal - disse Seibert. - Mas ainda não tive notícias da
Califórnia. E duvido que venha a recebê-las antes de segunda-feira.
- Não é exatamente por isso que viemos procurá-lo - disse
Jeffrey, e em seguida apresentou Kelly. Seibert levantou-se para apertar
a mão dela.
- Por que não vamos para a biblioteca? - sugeriu ele. - Não


cabem três cadeiras nesta sala.
Depois que se acomodaram, Seibert os encorajou:
- Bem, o que posso fazer por vocês?
Jeffrey respirou fundo.
- Primeiro - disse -, meu nome é Jeffrey Rhodes.
Depois contou toda aquela história incrível, ajudado por Kelly
em algumas passagens. Levou quase meia hora para terminar.
- Agora você pode ver nosso apuro. Não temos provas, e sou um
foragido. Não dispomos de muito tempo. Nossa última esperança parece ser
Henry Noble. Temos que encontrar a toxina para podermos comprovar a sua
existência em qualquer daqueles casos.
- Puxa vida! - exclamou Seibert, pronunciando suas primeiras
palavras desde que Jeffrey iniciara o relato. - Desde o começo achei que
este caso era interessante. Vejo agora que é muito mais interessante do
que poderia imaginar. Bem, vamos desenterrar o velho Henry e ver o que
somos capazes de fazer.
- Qual é o tempo que vai levar tudo isso? - indagou Jeffrey.
- Temos que obter autorização tanto para exumar quanto para
enterrar o corpo de novo. Na minha função, não terei problema em
conseguir ambas no Departamento de Saúde. Num gesto de cortesia, devemos
notificar o parente mais próximo. Imagino que possamos resolver tudo em
uma ou duas semanas.
- É tempo demais. Temos que agir imediatamente.
- Suponho que possamos conseguir uma ordem do tribunal. Mas
mesmo assim vai demorar três ou quatro dias.
- Continua sendo tempo demais - disse Jeffrey, com um suspiro.
- Mas é o mais curto que posso imaginar - afirmou Seibert.
- Vamos ver onde ele foi enterrado - sugeriu Jeffrey, mudando de
assunto. - Você disse que tem este tipo de informação aqui.
- Temos o relatório da autópsia dele e devemos ter sua certidão
de óbito. - Jeffrey levantou-se. - Deixe-me apanhar isso lá dentro.
Quando Seibert saiu da sala da biblioteca, Kelly olhou para
Jeffrey.
- Posso garantir que você está planejando alguma coisa - disse.
- Não é complicado. Acho que devemos pura e simplesmente ir ao
cemitério e desenterrar o cara. Nas atuais circunstâncias, não estou com
muita paciência para essa confusão burocrática.
Seibert voltou com uma cópia da certidão de óbito de Henry
Noble. Colocou-a diante de Jeffrey e continuou de pé, atrás e à direita
dele.
- Aqui está o destino do corpo - disse, apontando para o centro
da certidão. - Sorte que não foi cremado.
- Nem cheguei a pensar nesta possibilidade - admitiu Jeffrey.
- Edgartown, Massachusetts - disse Seibert, lendo. - Não estou


aqui há tempo suficiente para conhecer o estado. Onde ficar Edgartown?
- Marthas's Vineyard - disse Jeffrey. - Na ponta da ilha.
- Aqui está o cemitério - disse Seibert. - Boscowaney Funeral
Home, Vineyard Haven. O nome do concessionário é Chester Roscowaney. É
importante saber o nome dele porque terá que ser envolvido.
- Qual a razão? - indagou Jeffrey. Queria conservar tudo o mais
simples possível. Se fosse preciso, achava que seria capaz de ir até lá
no meio da noite com uma pá e um pé-de-cabra.
- É ele quem tem que se assegurar de que se trata do caixão
certo e do corpo certo - explicou Seibert. - É fácil imaginar que, como
em tudo mais, às vezes ocorrem confusões, especialmente quando se trata
de funerais em que a urna é fechada.
- Quantas coisas a gente não sabe! - admirou-se Kelly.
- Como são essas autorizações para realizar uma exumação? perguntou Jeffrey.
- Não são complicadas. Por sorte tenho uma na mesa para um caso
em que a família estava preocupada com o destino dos órgãos de um filho
pequeno. Quer ver?
Jeffrey fez que sim. Enquanto Seibert foi pegar o papel, Kelly
cochichou no ouvido de Jeffrey:
- Acho que vou tomar um pouco de ar fresco, está bem? Seibert
voltou e colocou o papel na frente de Jeffrey. Era preenchido à máquina,
apenas um documento legal.
- Não parece ter nada diferente - comentou.
- Do que está falando?
- E se eu entrasse aqui com um destes formulários, pedisse a
você para exumar um corpo e verificar algo em que estou interessado? perguntou Jeffrey. - O que me diria?
- Todos nós fazemos trabalhos particulares de vez em quando respondeu Seibert. - Talvez eu dissesse que ia custar algum dinheiro.
- Quanto? - perguntou Jeffrey.
Seibert deu de ombros.
- Não há uma tabela oficial. Se fosse coisa simples, talvez uns
duzentos dólares. Jeffrey apanhou um maço de dinheiro na bolsa a
tiracolo. Contou vinte notas de cem e colocou na mesa, na frente de Seibert. Em
seguida disse:
- Se eu puder usar uma máquina de escrever, daqui a pouco terei
uma dessas permissões.
- Não pode fazer isso. É ilegal.
- Pode ser, mas eu me arrisco, não você. Aposto como vocês nunca
verificam se essas permissões foram falsificadas ou não. No que se
refere a este caso, vai ser um documento legitimo. Sou eu quem está
contrariando a lei, e não você.


Seibert mordeu os lábios por um momento.
- Aí está uma situação única - disse, e pegou o dinheiro. - Não
é pelo dinheiro que vou colaborar - prosseguiu. - E sim porque acredito
na história que me contou. E se você me disse a verdade, então
certamente é do interesse público apurar tudo. - Jogou o dinheiro no
colo de Jeffrey. - Vamos - completou. - Vou abrir o escritório lá
embaixo e você poderá datilografar uma permissão. E já que está com a
mão na massa, bata também uma permissão para o corpo ser enterrado outra
vez. É melhor eu ligar para o Sr. Boscowaney, para que tome suas
providências e trate de saber se o coveiro não foi pescar em alto-mar.
- Quanto tempo tudo vai levar? - perguntou Kelly.
- Algum tempo - respondeu Seibert. Deu uma olhada no relógio. Com sorte, chegaremos lá pelo meio da tarde. Se pudermos arranjar um
operador da máquina de escavar, pode ser que terminemos à noite. Mas,
nesse caso, bem tarde.
- Então devemos passar a noite lá - disse Kelly. - Há um
hotelzinho em Edgartown, o Charlotte Inn. Devo fazer as reservas?
Jeffrey afirmou que era uma boa idéia.
Seibert levou Kelly à sala de um colega para usar o telefone. Em
seguida desceu com Jeffrey, onde o deixou junto a uma máquina de
escrever.
Ela ligou para o Charlotte Inn e conseguiu reservar dois
quartos. Achou que era um inicio auspicioso para a pesquisa. Detestava
admitir, mas a única coisa que a preocupava naquela aventura era Dalila.
E se ela parisse os gatinhos? Da última vez, sofrera um choque de cálcio
e precisara ser levada correndo para o veterinário.
Apanhando o telefone de novo, ligou para Kay Buchanan, a vizinha
do lado. Kay tinha três gatos. Muitas vezes, as duas tinham sido babás
de gato uma para a outra.
- Kay, você vai passar o fim de semana fora? - perguntou Kelly.
- Não. Harold tem que trabalhar. Estaremos em casa. Quer que eu
dê comida aos seus monstros?
- Receio que seja mais do que isso. Vou ter que me ausentar e
está quase na hora de Dalila parir. Deve acontecer um dia destes.
- Ela quase morreu da última vez - lembrou Kay, preocupada.
- Sei disso. Ia mandar esterilizá-la, mas ela foi mais rápida.
Não me ausentaria agora, mas é que não tenho escolha.
- Posso entrar em contato com você se alguma coisa sair errada?
- Claro - respondeu Kelly. - Estarei no Charlotte Inn, em
Martha's Vineyard. - Kelly deu o número do telefone.
- Vai ficar me devendo esta - disse Kay. - Tem comida de gato
que chegue na sua casa?
- De sobra. Você vai ter que deixar Sansão entrar. Ele está
fora.


- Sei disso. Acabou de ter uma briga com o meu birmanês.
Divirta-se. Tomarei conta do forte.
- Fico sinceramente agradecida - disse Kelly, que desligou,
satisfeita por ter uma amiga tão boa.
- Alô - atendeu Frank ao telefone. Mas não conseguia ouvir uma palavra.
Os garotos estavam com a TV ligada nos desenhos animados de sábado, com
o volume no máximo, e aquilo o estava deixando neurastênico. - Espere um
pouco - pediu, deixando o aparelho em cima da mesa. Foi até a porta da
sala. - Ei, Donna, mande essas crianças fazerem silêncio se não querem
que eu atire a televisão pela janela.
Frank fechou a porta corrediça. O volume ficou reduzido à
metade. Voltou para o aparelho. Vestia um robe de veludo azul e chinelos
de feltro.
- Quem é? - disse, pegando o aparelho.
- É Matt. Tenho a informação que você queria. Foi preciso um
pouco mais de tempo do que eu pensava. Esqueci que hoje era sábado.
Frank pegou um lápis na gaveta.
- Tudo bem - disse -, pode falar.
- O número da placa que você me deu está registrado em nome de
Kelly C. Everson - informou Matt. - O endereço é 418, Willard Street, em
Brookline. É longe para você?
- É logo ali na esquina - disse Frank. - Foi uma grande ajuda.
- O avião ainda está no aeroporto - avisou Matt. - Quero aquele
doutor.
- Deixa comigo - garantiu Frank.
- Demora um bocado de tempo para me enfurecer - Devlin disse a
Mosconi. - Mas vou lhe avisar uma coisa: agora estou furioso. Há algo
neste caso do Dr. Jeffrey Rhodes que você não me contou. Algo que eu
devia saber.
- Eu contei tudo - disse Michael. - Falei a você sobre este caso
mais do que sobre qualquer outro em que esteve envolvido. Por que iria
esconder alguma coisa? Diga-me, por quê? Quem tem tudo a perder sou eu.
- Então como é que Frank Feranno e um dos capangas dele
apareceram na Hatch Shell? - perguntou Devlin, gemendo ao mudar de
posição na cama do hospital. Usou o trapézio pendurado sobre a cama para
se erguer um pouco. - Que eu saiba, Frank nunca foi caçador de
recompensas.
- E como posso saber? Ouça: não vim aqui para escutar desaforos.
Vim para ver se a coisa era tão séria como estava nos jornais.
- Papo furado. Você veio ver se eu ainda estava em condições de
trazer o doutor, conforme prometi.
- Como vai essa coisa? - perguntou Mosconi, examinando a ferida
pouco acima da orelha de Devlin. Tinham raspado quase todo o cabelo
daquele lado a fim de suturar o rasgão. A ferida era feia.


- Está bem melhor do que você vai ficar se estiver mentindo para
mim.
- Você realmente levou três balas? - quis saber Mosconi, com os
olhos na complicada bandagem que cobria o ombro esquerdo de Devlin.
- A que raspou minha cabeça passou direto - disse o caçador. Graças a Deus. De outro modo, seria a última cena do filme da minha
vida. Mas é a que me deve ter feito desmaiar. Levei uma no peito, mas o
colete Kevlar impediu a bala de entrar. Esta só deixou um ponto dolorido
na caixa torácica. A que pegou no ombro atravessou de lado a lado,
saindo nas costas. Frank estava com um maldito fuzil de assalto. Ainda
bem que não usava balas dundum.
- É um tanto irônico que eu o mande atrás de assassinos
perigosos e você volte sem um arranhão, e quando o mando atrás de um
médico condenado por um problema qualquer na administração de uma
anestesia, você quase perca a vida.
- Pois é esse o motivo pelo qual acho que há algo estranho neste
caso. Algo que envolvia aquele garoto liquidado por Tony Marcello. Assim
que vi Frank, pensei que você tivesse falado com ele.
- Nunca - disse Mosconi. - Aquele sujeito é um criminoso.
Devlin dirigiu a Mosconi um olhar do tipo "quem você pensa que
está enganando?".
- Bem, desta vez passa. Mas se Frank está envolvido, algo muito
importante está acontecendo. Frank Feranno nunca está por perto a menos
que haja dinheiro grande ou gente muito importante. Geralmente ambos.
Com um barulho que surpreendeu Mosconi, a grade lateral da cama
foi ao chão. Devlin a soltara. Com uma careta, usou o braço bom para se
sentar. Depois jogou as pernas para um dos lados da cama. Tinha um tubo
preso nas costas da mão esquerda; agarrou o tubo e puxou. A agulha saiu
com esparadrapo e tudo, e começou a pingar no chão.
Mosconi ficou impressionado.
- Que diabo está fazendo? - perguntou, recuando.
- Que diabo parece que estou fazendo? - retrucou Devlin,
pondo-se de pé. - Tire minha roupa do armário.
- Você não pode sair.
- Pois fique só me observando. Para que ficar aqui? Já tomei
minha vacina antitetânica. E, como lhe disse, estou furioso. Além do
mais, prometi o doutor a você em vinte e quatro horas. Ainda me resta
algum tempo.
Meia hora depois, Devlin dava alta a si mesmo, contrariando
ordens médicas.
- A responsabilidade é toda sua - advertiu uma enfermeira cheia
de cerimônias.
- Só quero que me dê o antibiótico e as pílulas analgésicas - e
guarde o sermão.


Michael deu uma carona a Devlin até Beacon Hill, onde ele pegou
seu carro. Ainda estava no mesmo ponto em que era proibido estacionar,
bem ao pé da colina.
- Mantenha aquecida a mão que usa para preencher cheques aconselhou Devlin a Mosconi quando saltou do carro dele. - Vai ter
notícias minhas.
- Ainda acha que não devo chamar outra pessoa?
- Seria perda de tempo. Além disso, só serviria para deixar
Frank Feranno e eu furiosos com você.
Devlin entrou no carro. Seu primeiro destino era o quartel
central da polícia. Queria sua arma e sabia que estava lá. Depois disso,
ligou para o tipo que contratara para vigiar Carol Rhodes quando pensava
que ela o levaria a Jeffrey. Dessa vez pediu-lhe que fosse a Brookline
vigiar a casa de Kelly Everson.
- Quero saber tudo o que acontecer por lá, entende? - avisou o
homem.
- Só vou poder chegar lá bem mais tarde - respondeu ele.
- Procure chegar o mais cedo possível - aconselhou Devlin.
Resolvida esta parte, rumou para o North End. Estacionou em fila
dupla na Hanover Street e dirigiu-se ao Via Veneto Café.
Assim que entrou, ouviu um ruído de passos nos fundos, logo
depois de um mural reproduzindo parte do Fórum Romano. Uma cadeira caíra
no chão. Devlin ouviu as fileiras de contas que formavam uma cortina
baterem umas nas outras.
Sem perda de tempo, voltou correndo para a calçada. Avançou,
desviando-se dos transeuntes, até a Bennet Street e enveredou pela
esquerda. Entrando numa viela estreita, esbarrou num homem baixo,
careca, de feições redondas.
O homem tentou esquivar-se e fugir, mas Devlin agarrou-o antes
que tivesse dado dois passos. Sempre se debatendo, o outro procurou
escorregar de dentro do paletó, que pretendia largar nas mãos de Devlin,
mas este prensou-o contra a parede.
- Não está muito feliz por me ver, hem, Dominic? - perguntou
Devlin. Dominic fazia parte da rede de informantes de Devlin, que agora
estava particularmente interessado em falar com ele por causa do seu
antigo relacionamento com Frank Feranno.
- Não tive nada a ver com o fato de Frank ter atirado em você escusou-se ele, visivelmente apavorado. Dominic também conhecia Devlin
há muito tempo.
- Se eu achasse que tinha, não me limitaria apenas a falar com
você - garantiu Devlin com um sorriso que o outro compreendeu
imediatamente. - Acontece que estou interessado em saber o que Frank
está querendo. Achei que me revelaria isso.
- Não posso dizer nada sobre o Frank, Devlin. Dê-me uma chance.


Você sabe o que me aconteceria.
- Aconteceria se eu contasse a alguém que o informante foi você.
Algum dia eu já contei, inclusive à polícia?
Dominic não respondeu.
- Além do mais, neste momento Frank é uma preocupação para o
futuro. Neste minuto, Dominic, a sua preocupação sou eu. E devo lhe
dizer uma coisa, cara: não sou do tipo que costuma blefar.
Enfiou a mão na jaqueta e puxou a pistola. Estava certo que
conseguiria assustar O outro.
- Não sei muita coisa - foi adiantando Dominic, nervoso.
- Qual é a transa? Drogas, alguma coisa assim?
- Não sei. Não creio que sejam drogas. Eles ficaram de matar o
garoto e despachar o médico para St. Louis.
- Você não está querendo me enganar, está, Dominic? - perguntou
Devlin ameaçadoramente. Aquilo estava muito longe do que imaginara.
- Estou sendo honesto - disse Dominic. - Por que iria mentir?
- Frank mandou o doutor para St. Louis?
- Não, eles não conseguiram. Frank contratou Nicky depois de
Tony ser baleado. E a namorada do doutor atropelou ele com o carro.
Quebrou o braço de Nicky.
Devlin ficou impressionado. Pelo menos não era o único
profissional a ter problemas com o doutor.
- Quer dizer então que o Frank ainda está envolvido? - perguntou
Devlin.
- Está, pelo que sei - respondeu Dominic. - Acho que agora
contratou Vinnie D'Agostino. Deve ter dinheiro grosso no meio.
- Quero informações sobre esse cara de St. Louis - disse Devlin.
- E quero saber o que Frank e Vinnie pretendem. Use os telefones de
sempre. Se não me ligar, saiba que ficarei magoado. E você sabe como
fico quando me sinto magoado. Não preciso pintar o quadro.
Devlin largou Dominic. Deu meia-volta e deixou a viela sem olhar
para trás. Era melhor que o cara arranjasse as informações. Não estava
disposto para grandes investigações e decidira descobrir o que Frank
Feranno tencionava fazer.
A euforia de Frank foi esvaziando quando viu a casa de Kelly. Parecia
deserta, todas as cortinas estavam cerradas. Suspirou. Os 75 mil
pareciam mais distantes do que imaginara.
Durante cerca de meia hora limitou-se a ficar sentado,
observando. Ninguém entrou, ninguém saiu. Não havia sinal de vida, a não
ser
por um gato siamês deitado sossegadamente no meio do gramado, com ar de
dono da casa.
Finalmente saiu do carro. Primeiro foi até o lado da casa para
ver se havia janelas na garagem. Havia, e com as mãos em concha, ele deu


uma espiada. Nenhum Honda Accord vermelho como o que perseguira na noite
anterior em Beacon HilI. Voltando à frente da casa, decidiu tocar a
campainha para ver o que acontecia. Pôs a mão na pistola, para se
garantir, depois apertou o botão.
Como não aconteceu nada, encostou o ouvido na porta e
convenceu-se de que a campainha estava funcionando. Pondo de novo as
mãos em concha ao redor dos olhos, deu uma espiada pela abertura ao lado
da porta. Não pôde ver muita coisa, por causa da cortina de renda do
outro lado.
Droga, pensou, virando-se para a rua. O gato siamês ainda estava
deitado no meio da grama.
Frank dirigiu-se para onde o animal estava e lhe fez uma
festinha. Sansão olhou desconfiado, mas não fugiu.
- Você gosta, hem, gatinho? - murmurou. Exatamente nessa hora
uma mulher saiu da casa ao lado e caminhou na sua direção.
- Fez um amigo, Sansão? - perguntou ela.
- O gatinho é seu, madame? - perguntou Frank, no seu tom de voz
mais gracioso.
- Dificilmente poderia ser. É inimigo mortal do meu birmanês.
Mas, como vizinhos, temos que aprender a conviver.
- Gato grande e bonito - disse ele, levantando-se. Ia perguntar
à mulher por Kelly Everson quando ela se adiantou na direção da porta da
casa de Kelly.
- Venha, Sansão - ela chamou o siamês. - Vamos ver como Dalila
está passando.
- A senhora vai à casa de Kelly? - perguntou Frank.
- Vou, sim - ela respondeu.
- Maravilhoso - disse Frank, aproximando-se. - Sou Frank Carter,
primo de Kelly. Passei aqui para ver se ela estava em casa.
- Sou Kay Buchanan - disse a mulher, estendendo a mão. - Sou
vizinha de Kelly e, de vez em quando, ama-seca de gato. Kelly foi passar
o fim de semana fora.
- Droga! - exclamou Frank, estalando os dedos. - Minha mãe me
deu o endereço e me mandou passar aqui para dizer alô. Não sou de
Boston. Vim a negócios, por pouco tempo. Quando Kelly vai voltar?
- Ela não disse - respondeu Kay. - Que pena.
- Bem, foi um prazer conhecê-lo - disse Kay. - Tenho de ver os
gatos. A gata é a grande preocupação. Se achou o Sansão grande, devia
ver Dalila, que está para ter gatinhos qualquer dia desses. Talvez seja
uma boa idéia passar aqui de novo na segunda-feira, se ainda estiver na
cidade. Imagino que Kelly terá voltado. É melhor que tenha, não vou
bancar a enfermeira para toda uma ninhada!
- Talvez eu consiga dar um telefonema - disse Frank. Gostava da
idéia da viagem ser romântica. Significava que provavelmente o doutor


estava com ela. - Tem alguma idéia de onde ela se hospedou?
- Falou-me no Charlotte Inn - disse Kay. - Ande, Sansão, vamos.
Frank premiou Kay com um dos seus sorrisos mais sinceros quando
ela foi até a varandinha da frente e pegou a chave na luminária. Depois
voltou para o carro.
Ligou o motor e deu uma volta completa. Uma coisa que decidira a
respeito dos 75 mil era que não ia contar nada a Donna. Esconderia em
algum lugar. Talvez fizesse uma viagem até as Caimãs.
A idéia de um passeio até a ilha de Martha's Vineyard também era
atraente e lhe trouxe uma idéia luminosa. Já que devia pôr o doutor no
avião de Matt, por que não ir de avião para lá? Eis o que se chama usar
a cachola, disse a si mesmo.
Ao voltar para a cidade, começou a pensar em quem deveria levar,
no caso de não achar Vinnie D'Agostino. Sem a menor dúvida, ia sentir
falta de Tony. Uma pena, aquela desgraça. Também pensou em Devlin e
perguntou-se se devia ir visitá-lo no hospital para dizer-lhe que não
havia ressentimento. Achou melhor não ir. Não tinha tempo.
Descendo a Hanover Street, Frank parou em fila tripla na frente
do Via Veneto Café e pendurou-se na buzina. Pouco tempo passou até
alguém sair correndo do café e tirar o carro, abrindo uma vaga para ele.
O trânsito, que tinha quase parado, voltou a fluir, embora vagaroso.
Diversos carros buzinaram, reclamando pelo atraso que ele provocara.
- Ora, vá se danar! - gritou Frank pela janela. Era
impressionante como certas pessoas não tinham a menor consideração,
pensou.
Entrou no café e apertou a mão do proprietário, que veio
apressado de trás da registradora para cumprimentá-lo. Depois sentou-se
numa mesinha da frente com uma plaqueta de reservada em cima. Pediu um
café expresso e acendeu um cigarro.
Quando seus olhos se adaptaram à obscuridade do ambiente,
virou-se e examinou o salão. Não viu Vinnie, mas viu Dominic. Chamou o
dono do café. Disse-lhe para mandar Dominic se aproximar.
Nervoso, Dominic veio, parando junto à mesa.
- O que há com você? - perguntou Frank, olhando para o outro.
- Nada. Talvez tenha tomado café demais.
- Sabe onde está Vinnie?
- Em casa - respondeu Dominic. - Esteve aqui até meia hora
atrás.
- Vá dizer a ele que venha. Diga que é importante.
Dominic assentiu e foi saindo pela porta da frente.
- Que tal me trazer um sanduíche? - disse Frank ao proprietário.
Enquanto comia, tentou lembrar-se de onde ficava o CharLotte Inn em
Edgartown. Estivera lá uma ou duas vezes. Pelo que se lembrava, não era
uma cidade grande. Na verdade, de grande só tinha uma coisa: o


cemitério.
Vinnie veio acompanhando Dominic. Vinnie, um tipo jovem e
musculoso, pensava que todas as mulheres estavam atrás dele. Frank
sempre tivera certo medo de usá-lo, por achar que era um pouco
imprudente; parecia estar sempre querendo provar do que era capaz. Mas
com a morte de Tony e Nicky fora do serviço ativo, o jeito era apelar
para o fundo do barril. Sabia que não podia usar Dominic, um asno,
sempre nervoso demais. Era um perigo sair com ele, especialmente se
alguma coisa desse errado. Frank descobrira isto do modo mais penoso.
- Sente-se, Vinnie - disse afinal. - Que tal uma viagem grátis
ao Charlotte Inn, em Edgartown?
Vinnie pegou uma cadeira e sentou-se ao contrário, pressionando
o encosto para aumentar o volume dos músculos. Frank pensou, ao ver
aquilo, que ele ainda tinha muito a aprender.
- Dominic - prosseguiu Frank -, por que não vai dar um pulinho
no banheiro?
Dominic esgueirou-se pela porta de trás e correu até a loja de
doces na Saiem Street, que tinha um telefone público no fundo. Pegou os
números de Devlin e discou o primeiro de dois. Quando o outro atendeu,
protegeu a boca com as mãos antes de falar. Não queria que ninguém
ouvisse.
***
Capítulo 17.
SÁBADO, 20 DE MAIO DE 1989, 19:52.
- Foi bom não termos tentado vir de avião - disse Kelly a Jeffrey quando
o barulho de um jato se fez ouvir a distância. - Não teríamos chegado
aqui. Parece que só agora a neblina está se levantando.
- Pelo menos parou de chover - observou Jeffrey, vendo a
escavadeira mecânica afundar na terra macia.
Atravessaram para a ilha numa balsa que saía de Woods Hole.
Ainda bem que dispuseram da viatura de Seibert, que tinha letreiro na
porta e placa oficial. Jamais conseguiriam entrar na balsa se Seibert
não tivesse insistido, alegando que estavam em viagem de serviço. Se
estivessem com o Honda de Kelly, não teriam conseguido embarcar. Mesmo
assim, não faltaram reclamações. O furgão de Seibert foi o último
veículo a subir na balsa.
A viagem correu sem problemas. Por causa da neblina e da garoa,
eles resolveram ficar na parte inferior da balsa. Arranjaram um canto na
seção de não-fumantes e Jeffrey e Kelly passaram a maior parte do tempo
estudando o caderninho de endereços de Trent, sem, contudo, encontrar
qualquer pista.
O único nome que chamou a atenção de Jeffrey foi Matt, que
estava na letra D. Jeffrey perguntou-se se seria o mesmo Matt que


deixara uma mensagem na secretária eletrônica de Trent quando ele
estivera lá pela primeira vez. O código de área era 314.
- Onde fica a área 314? - perguntou Jeffrey a Kelly.
Kelly não sabia. Repetiu a pergunta a Seibert, que estava lendo
uma das dez revistas de medicina que levara para passar o tempo.
- Missouri - disse ele. - Tenho uma tia em St. Louis.
Assim que chegaram a Vineyard Haven, a maior cidade da ilha,
foram imediatamente para o Boscowaney Funeral Home. Graças ao telefonema
de Seibert, Chester Boscowaney estava à espera deles.
Chester tinha quase sessenta anos e era um homem gordo, com as
faces tão vermelhas que pareciam maquiadas. Vestia um terno escuro e
colete, com relógio de bolso preso a uma corrente. Seus modos eram
untuosos, quase servis. Agarrou as diversas notas de cem que, a conselho
de Seibert, Jeffrey lhe ofereceu, com a avidez de um cão faminto pegando
um osso.
- Providencie tudo - disse ele, sussurrando como se algum
funeral estivesse sendo realizado. - Nós nos encontraremos no local.
Kelly, Jeffrey e Warren Seibert foram a Edgartown e se
registraram no Charlotte Inn. Keliy e Jeffrey identificaram-se como Sr.
e Sra. Everson.
O último obstáculo era o operador da escavadeira mecânica,
Harvey Tabor, que fora a Chappaquiddick cavar uma fossa séptica para uma
casa de praia e só ia voltar a Edgartown depois das quatro horas. E
mesmo assim, não tinha condições de ir logo ao cemitério. Explicou que
sua mulher preparara um jantar especial para comemorar o aniversário da
filha, e assim só poderia juntar-se a eles após o jantar.
O processo teve andamento pouco depois das sete horas. A
primeira coisa que Jeffrey lembrou a Seibert foi que ninguém pedira para
ver as permissões. Boscowaney sequer tocara nisso. Seibert respondera
dizendo que, ainda assim, era bom tê-las à mão.
- Nada acaba antes do fim - pontificou.
O coveiro, um homem chamado Martin Cabot, possuía feições
ásperas, de traços marcados, e, fino de corpo, mais parecia um
experiente marinheiro. Olhou por mais de um minuto para a cara de
Seibert antes de dizer:
- O doutor é meio moço para esse tipo de trabalho.
Seibert riu e disse que era moço porque dera um golpe e
abreviara o curso na faculdade de medicina. Depois, a sério, explicou
não ser o encarregado dos inquéritos destinados a esclarecer qualquer
morte suspeita. Era apenas responsável pela perícia médica. Pelo jeito
dele, Jeffrey achou que Seibert não gostava de abordar aquele assunto.
Era óbvio que coveiro e o operador da escavadeira não se davam
muito bem. Martin vivia dizendo a Harvey onde ele devia estar e o que
devia estar fazendo. Harvey retrucava afirmando que operava aquela


máquina há bastante tempo e não precisava de conselhos.
O buraco começou a ser aberto pouco depois das sete horas, atrás
de lápide de granito de Henry Noble. Era um lugar agradável, debaixo de
uma árvore copada.
- Isto é encorajador - notou Seibert. - Com esta sombra, deve
ter ocorrido menos deterioração e putrefação.
O estômago de Kelly deu voltas.
Ouviu-se um barulho estridente.
- Calma! - gritou Martin. - Assim você vai quebrar a laje. - Uma
linha de concreto aparecera no meio da terra.
- Cale a boca, Martin - disse Harvey, arriando a escavadeira
delicadamente dentro do buraco. Desta vez bateu na laje devagar. Quando
a puxou na sua direção e para cima, grande parte do granito que tapava o
buraco ficou visível.
- Não quebre as alças - exclamou Martin.
Kelly, Jeffrey e Seibert estavam de um lado da sepultura,
Chester e Martin do outro. O sol ainda brilhava, embora já baixo no céu,
obscurecido por grandes nuvens de chuva. Farrapos de neblina circulavam
pelo terreno do cemitério, impelidos pela brisa do mar. Martin passara
um fio em torno de um dos galhos da árvore. Jeffrey lembrou-se da corda
de uma forca, embora a única coisa pendurada no fio fosse uma lâmpada
cuja luz incidia diretamente sobre o buraco que a maquina escavava.
Kelly estremeceu, mais pelo que estava vendo do que pelo frio;
contudo, a temperatura descia cada vez mais. O confortável quarto do
Charlotte Inn, com seu papel de parede vitoriano, parecia longe demais.
Ela agarrou a mão de Jeffrey.
Foram precisos mais quinze minutos para retirar o resto da terra
que cobria a laje. Quando acharam adequado, Harvey e Martin desceram e,
de pé sobre ela, limparam o restante com pás manuais.
Harvey voltou à máquina e posicionou sua pá diretamente sobre a
laje. Em seguida ele e Martin voltaram para dentro do buraco a fim de
prenderem com cabos de aço as alças da laje nos dentes da escavadeira.
- Tudo bem, Martin, cai fora do buraco - disse Harvey,
satisfeito em ter uma ordem para dar. Depois, voltando-se para Jeffrey,
Kelly e Seibert: - Vocês aí, queiram retirar-se. Vou girar a laje para o
seu lado.
Os três obedeceram, e, assim que saíram, Harvey deu início à
operação.
O motor da escavadeira grunhiu e gemeu até que, com um estalido,
a laje se soltou. Jeffrey viu que tinha sido lacrada com um material
parecido com alcatrão. Harvey virou a máquina para o lado e pousou a
laje no solo.
Todos se agruparam na beira do buraco. Dentro estava um ataúde
de prata.


- Não é uma beleza? - exclamou Chester Boscowaney. - Um dos
melhores com que trabalhamos. Não há nada que supere um esquife
Millbronne.
- Não há água no buraco - comentou Seibert. - Outro bom sinal.
Jeffrey relanceou os olhos pelo cemitério; era uma visão
soturna. A noite caía depressa. As lápides projetavam estreitas sombras
de cor púrpura por toda parte.
- Bem, o que o senhor quer que a gente faça agora doutor? perguntou Martin, dirigindo-se a Seibert. - Devemos suspender o esquife
ou prefere pular aqui dentro para abrir onde está?
Jeffrey viu que Seibert ficou na dúvida.
- Jamais gostei de descer - disse. - Mas levantar o caixão vai
me obrigar a um gasto maior de tempo. E, na minha opinião, quanto mais
cedo acabarmos com isto, melhor. Estou a fim de um bom jantar.
O estômago de Kelly deu outra volta.
- Posso ajudar? - ofereceu-se Jeffrey.
Seibert olhou para ele.
- Já fez isso alguma vez? Pode ser bem desagradável, e também
não posso garantir como será o cheiro, especialmente se houver água
dentro.
- Tudo bem - assegurou Jeffrey, a despeito de seus temores.
- Este é um esquife Millbronne - repetiu Chester Boscowaney, com
orgulho. - Tem uma junta de borracha em toda a volta. Não haverá água.
- Já ouvi esse papo antes - resmungou Seibert. - Tudo bem, ao
trabalho.
Jeffrey e Seibert pisaram na extremidade lateral do buraco, que
era também de concreto, e se abaixaram nas extremidades do esquife;
Seibert no pé, Jeffrey na cabeça.
- Dê-me essa manivela aí - disse Seibert.
Chester passou-lhe a manivela.
Seibert correu a mão por baixo do esquife até encontrar o lugar
certo. Inseriu a manivela e tentou girar. Teve que pôr o seu peso em
cima para conseguir. Finalmente girou, com um guincho tristonho. Kelly
estremeceu.
A vedação do esquife foi rompida com um silvo.
- Ouviu esse ar? - perguntou Chester Boscowaney. - Não vai ter
água lá dentro, pode escrever o que digo.
- Ponha os dedos na beirada - disse Seibert, dirigindo-se a
Jeffrey - e puxe.
Com um rangido, a tampa do caixão se abriu. Todo mundo olhou. O
rosto e as mãos de Henry Noble estavam cobertos por uma teia fina de
penugem branca. Por baixo da penugem, a pele era cinza-escura. Estava de
terno azul, camisa branca e gravata estampada. Os sapatos brilhavam,
parecendo novos. Podia-se ver que a seda branca do interior do esquife


estava mofada.
Jeffrey procurou respirar pela boca, mas, para sua surpresa, não
estava tão ruim quanto imaginara. Era mais um cheiro de mofo, como de
uma adega que não fosse aberta há muito tempo.
- Parece perfeito - assegurou Seibert. - Meus parabéns ao
diretor do funeral. Nenhum pingo d'água.
- Muito obrigado - agradeceu Chester Boscowaney. - E posso lhe
garantir que este é mesmo o corpo de Henry Noble.
- O que é essa penugem branca? - perguntou Jeffrey.
- Um fungo qualquer - respondeu Seibert, pedindo a Kelly que lhe
passasse a maleta com instrumentos, o que ela fez.
Seibert deslocou-se ao longo do esquife. Mal havia espaço para
seus pés, mas ele deu um jeito. Colocando a maleta sobre as canelas de
Henry Noble, abriu-a e apanhou um par de espessas luvas de borracha.
Depois de calçá-las, começou a desabotoar a camisa do cadáver.
- Devo fazer alguma coisa? - perguntou Jeffrey.
- Por enquanto, não.
Seibert expôs a incisão suturada feita por ocasião da autópsia.
Apanhando na valise uma tesoura, cortou os pontos e abriu os lados da
ferida. O tecido estava seco.
Jeffrey empertigou-se. O cheiro agora estava bem pior, mas
Seibert parecia indiferente.
Aberta a incisão, Seibert meteu a mão na cavidade do corpo e
retirou um saco plástico bem grosso. Seu conteúdo, escuro, era uma boa
quantidade de fluido. Segurando o saco na luz, Seibert o girou devagar,
examinando o que continha.
- Achei! Aqui está o fígado. - Ele apontou, para Jeffrey ver ao
que estava se referindo. Jeffrey não tinha certeza se queria olhar,
mas, para agradar Seibert, deu uma espiada. - Meu palpite é que a
vesícula ainda está presa nele.
Seibert colocou o saco sobre o torso de Henry Noble e desfez o
amarrado. Um cheiro muito desagradável espalhou-se. Ele enfiou a mão e
retirou o fígado. Girando-o, mostrou a Jeffrey a vesícula.
- Perfeita - disse. - Inclusive ainda está molhada. Poderia ter
secado. - Apalpou o pequeno órgão. - Ainda tem fluido dentro, também.
Pondo o fígado e a vesícula em cima do saco plástico, Seibert
apanhou uma seringa e diversos frascos para amostras dentro da valise.
Depois perfurou a vesícula e sugou toda a bile que pôde. Terminou
transferindo-a para os frascos, com a própria seringa.
Todos estavam tão atentos ao trabalho de Seibert que ninguém
percebeu o que se passava. Ninguém notou um carro de aluguel, um
Chevrolet Celebrity, entrar no cemitério com as luzes apagadas. Ninguém
ouviu suas portas serem abertas nem o barulho dos dois homens se
aproximando.


Para Frank aquela tarde fora bem difícil. Mais uma vez o que ele achara
que ia ser um passeio acabara numa tremenda dor de cabeça. Estava louco
para andar num avião a jato particular, coisa que nunca fizera antes.
Entretanto, depois de entrar e afivelar o cinto, sofreu uma crise de
claustrofobia. Nunca tinha reparado como aqueles aviões eram pequenos.
Para piorar, não puderam levantar vôo imediatamente, primeiro por causa
do volume do tráfego no Aeroporto Logan, e depois porque o tempo mudou.
No princípio, uma neblina baixou sobre o Cabo e as ilhas. Depois
foi um temporal vindo do oeste, que fez cair uma chuva de granizos do
tamanho de bolas de gude. Frank teve que saltar do avião para esperar no
terminal que a tempestade passasse. Quando deram permissão para levantar
vôo, estando a visibilidade sobre Vineyard adequada, eram praticamente
seis horas.
Para piorar ainda mais, o vôo foi um pesadelo. A turbulência fez
o avião jogar de um lado para outro como uma rolha na correnteza de um
riacho. Frank ficou enjoado e teve que vomitar num saco de papel. Vinnie
reclamou o tempo todo da falta de conforto e não parou de mastigar
amendoins e batatas fritas.
Quando chegaram a Martha's Vineyard, Frank sentia-se fraco.
Mandou Vinnie alugar o carro e ficou no toalete masculino. Só melhorou
depois de mastigar uns biscoitos e tomar uma Coca.
Foram diretamente para o Charlotte Inn. Na recepção, perguntaram
por Kelly Everson. Frank usou a mesma história de ser parente dela, só
que agora enfeitou, dizendo que queria fazer uma surpresa à prima. Ele e
Vinnie trocaram piscadelas de olho ante aquela astúcia. Claro que
pensavam em fazer uma surpresa. Ambos estavam armados com pistolas
discretamente escondidas em coldres de ombro, e Frank trazia outra dose
de tranqüilizante no bolso.
Mas foi ele quem acabou sendo surpreendido. A mulher da recepção
disse que os Eversons deviam estar no cemitério de Edgartown. O Sr.
Everson passara algum tempo ao telefone próximo da recepção para
conseguir um encontro com Harvey Tabor, o operador da escavadeira.
De volta ao carro, Frank disse a Vinnie:
- Cemitério? Não estou gostando disso.
Deram primeiro uma volta em torno do cemitério. Era bem grande,
mas não foi difícil localizar o grupo no centro. Uma luz pendurada na
árvore iluminava quatro pessoas de pé, diante de uma escavadeira.
- O que vamos fazer? - perguntou Vinnie, que estava dirigindo.
- Que diabo você imagina que eles estão fazendo? - indagou
Frank, sem dar uma resposta.
- Parece que estão desenterrando alguém - respondeu Vinnie, com
uma risada macabra. - Como num filme de horror.
- Não estou gostando disso. Primeiro é o Devlin que aparece na
Esplanada, agora é o doutor que está num cemitério, à noite,


desenterrando gente. Alguma coisa está errada. Além disso, sinto
arrepios.
Frank mandou Vinnie dar uma segunda volta em torno do cemitério,
enquanto pensava no que fazer. Foi uma boa decisão. Passando pelo lado
contrário, puderam ver que havia mais duas pessoas, dentro da cova
aberta. Finalmente Frank se resolveu:
- Vamos acabar logo com isto. Apague os faróis e vá só até a
metade do caminho. O resto a gente anda a pé.
Devlin não teve muito mais sorte que Frank. O avião comercial que tomara
tinha ficado a maior parte do tempo parado na pista, em Boston. E depois
que levantou vôo, o avião fez uma parada em Hyannis, de quarenta
minutos. Ele só chegou a Vineyard depois das sete horas. E ainda teve
que esperar por sua arma, que o segurança não o deixara levar no
interior do aparelho. Quando chegou ao Charlotte Inn eram quase nove
horas.
- Com licença - disse à mulher da recepção. Ela estava lendo à
luz de uma antiga luminária de bronze.
Devlin sabia que estava com a aparência pior do que nunca com
aquela incisão grande, suturada. Tinham cortado tanto cabelo que não
conseguira mais prender o rabo-de-cavalo. Tentara trazer cabelo do outro
lado para cobrir a parte raspada e o lugar da sutura. Precisava admitir
que o resultado fora, na melhor das hipóteses, assustador.
A mulher ergueu os olhos e deu uma segunda espiada em Devlin,
como se não tivesse acreditado no que vira na primeira. Aliás, não
deviam ser muitos os hóspedes que exibiam um brinco na forma de uma
cruz-de-malta.
- Eu gostaria de umas informações sobre alguns hóspedes seus começou ele. - Lastimavelmente, podem estar usando outros nomes. Bem, um
deles é uma jovem chamada Kelly Everson. - Devlin descreveu-a. - O outro
é um homem com cerca de quarenta anos de idade, Jeffrey Rhodes. É
médico.
- Sinto muito, mas não damos informações sobre nossos hóspedes respondeu a mulher, lacônica. Levantara-se da cadeira e dera um passo
para trás, como se tivesse medo de que Devlin a agarrasse e arrancasse a
informação à força.
- É uma pena - lamentou Devlin. - Mas talvez a senhora possa me
falar sobre um homem grande, meio gordo, de cabelo escuro e olhos
fundos, que esteve aqui fazendo perguntas sobre esse mesmo casal. O nome
dele é Frank Feranno, mas quando está trabalhando costuma dar qualquer
sobrenome.
- Talvez o senhor devesse falar com o gerente.
- Não precisa. A senhora mesmo resolve. Esse cavalheiro esteve
aqui? Ele é mais ou menos desta altura - e Devlin estendeu a mão para
mostrar cerca de um metro e oitenta.


A mulher estava claramente perturbada e cedeu, na esperança de
que depois Devlin se fosse.
- Um senhor chamado Frank Everson, primo da Sra. Everson, esteve
aqui - disse. - Mas nenhum Frank Feranno. Pelo menos enquanto estive na
recepção.
- E o que a senhora disse a esse falso primo - perguntou Devlin
-, não é mesmo que dar informações sobre seus hóspedes?
- Ora, eu só disse a ele que os Eversons quase certamente
estariam no cemitério.
Devlin piscou. Examinou por um momento o rosto da mulher, para
ver se mentia, mas ela sustentou seu olhar. Cemitério? Devlin concluiu
que ela não estava mentindo. Que coisa mais esquisita seria essa, num
caso já tão estranho?
- Qual é o caminho mais rápido para o cemitério? - indagou
Devlin. Não sabia o que estava acontecendo, mas tinha a impressão de que
não dispunha de muito tempo. - Basta seguir a rua e dobrar a primeira à
direita. Não pode errar. Devlin agradeceu e correu para o carro tão
rapidamente quanto o braço envolto em ataduras permitiu.
Jeffrey observou Seibert equilibrar o fígado de Noble na mão esquerda.
Segurando com o braço esticado, para que o líquido do embalsamento não
caísse na sua roupa, ele abriu o saco plástico onde se encontravam os
outros órgãos internos de Henry Noble. Estremeceu quando Seibert deixou
o fígado cair dentro do saco sem a menor cerimônia e o amarrou em cima
para que nenhum líquido se perdesse.
Seibert estava prestes a recolocar o saco de onde o tirara,
quando uma voz se fez ouvir: - Que negócio é este que está acontecendo
aqui?
Juntamente com os demais, Jeffrey olhou na direção de onde viera
a voz. Um homem entrou no círculo de luz. Estava de calça escura, camisa
branca, suéter e uma jaqueta igualmente escura. Empunhava uma pistola.
- Meu Deus! - exclamou Frank, enojado. Estava imóvel ante a
visão medonha da cova aberta. A náusea que sentira no avião retornou,
agora mais intensa.
Jeffrey reconheceu imediatamente o homem da Esplanada e da porta
da igreja do Advento. Como conseguira segui-los? E afinal, o que
desejava?
Jeffrey quisera ter uma arma, qualquer coisa para se defender.
Da última vez aquela gente fizera tudo para drogá-lo.
Frank teve uma ânsia de vômito ao ver o corpo de Henry Noble e
sentir aquele cheiro horrível. Tapou a boca com a mão livre e virou-se
para Kelly, Chester e Martin. Brandindo a pistola, mandou que Jeffrey e
Seibert saíssem do túmulo.
Seibert subiu com alguma dificuldade, perguntando-se se aquele
intruso não seria parente de Henry Noble.


- Sou o médico-legista - disse, esperando dar a impressão de
estar em missão oficial e com isso assumir o controle da situação. Já
tivera problemas antes com membros da família furiosos em casos
idênticos. Ninguém gostava de autópsias, sobretudo parentes. Deu um
passo adiante, metendo-se entre Frank e os outros.
Jeffrey notara a reação de Frank ao ver o corpo de Henry Noble,
percebera que ele tinha desviado os olhos. Pegou o saco plástico
contendo os órgãos de Noble. Devia pesar quase vinte quilos. Quando saiu
de dentro da cova, manteve o saco ao lado do corpo, um pouco atrás.
- Não estou interessado em você - disse Frank a Seibert,
empurrando-o rudemente para o lado. - Venha até aqui, Dr. Rhodes.
Frank passou a arma para a mão esquerda e enfiou a direita no
bolso. Ao tirá-la, estava com a seringa.
- Vire-se! - ordenou. - Vinnie, você vai proteger...
Jeffrey balançou o saco de plástico com as duas mãos,
levantando-o para em seguida arriar no alto da cabeça de Frank com toda
a força que conseguiu reunir. O saco explodiu com o impacto, derrubando
Frank, que ficou de quatro. A seringa voou e foi cair num monte de
terra; a arma deslizou para dentro do túmulo, indo parar no esquife.
A princípio Frank ficou meio tonto, sem saber exatamente o que o
atingira. Depois olhou com horror para aquela coisa que o tinha
besuntado e se derramara no chão à sua volta. Reconhecendo um cérebro e
uma alça intestinal escura, vomitou desesperadamente. Entre um acesso e
outro de vômito, tentou limpar o sangue coagulado que lhe caíra nos
ombros e na cabeça.
Jeffrey ainda segurava o saco plástico vazio quando Vinnie pulou
para dentro do círculo de luz. Tenso e nervoso, segurava a arma com as
duas mãos.
- Ninguém se mexa! - gritou. - Quem se mexer, morre! - E girava
a arma em movimentos abruptos.
Jeffrey não tinha visto o cúmplice de Frank. Se tivesse,
provavelmente não se arriscaria.
Mantendo a pistola apontada contra o grupo, Vinnie aproximou-se
de Frank, que conseguira finalmente levantar-se, meio trêmulo. Tinha
ambos os braços estendidos e tentava sacudir o líquido pegajoso que lhe
cobria as mãos.
- Você está bem, Frank? - perguntou.
- Onde diabos está minha arma? - foi tudo que Frank pôde dizer
como resposta.
- Caiu dentro do túmulo.
- Vá pegar! - ordenou Frank. Abriu o zíper da jaqueta e com todo
o cuidado a despiu, deixando-a cair no chão.
Vinnie aproximou-se da sepultura e examinou nervosamente o
buraco, tentando descobrir a pistola de Frank. Estava bem visível, entre


os joelhos do morto. Henry Noble parecia olhar para ele.
- Nunca estive dentro de um túmulo antes - gemeu Vinnie.
- Vá buscar a arma! - intimou Frank. Depois dirigiu um olhar
furioso a Jeffrey: - Seu calhorda! Pensa que vou deixá-lo escapar impune
com esse truque?
- Ninguém se mexa! - berrou Vinnie, pondo um pé na beira do
túmulo. Desviando os olhos por um momento, pulou para dentro. Na mesma
hora olhou de novo para eles. Sua cabeça permanecera acima do nível do
solo. Tinha a arma apontada diretamente para Chester Boscowaney, que,
com as pernas bambas, estava entre Kelly e Martin. Harvey encontrava-se
à esquerda de Martin. Jeffrey estava mais perto de Frank, e Seibert
entre Frank e os outros.
Quando Vinnie se abaixou para pegar a pistola, Jeffrey admitiu
duas opções: uma, que poderia fugir na escuridão com rapidez bastante
para se evadir, e outra, que, como afinal era a ele que procuravam,
ambos iriam persegui-lo, deixando os outros em paz. Acertou a primeira.
Ao deixar o círculo de luz, ficou imediatamente envolto pela
escuridão. Foram precisos alguns minutos para seus olhos se adaptarem.
Quando isso aconteceu, percebeu que não estava tão escuro quanto
imaginara. As luzes da cidade em torno do cemitério refletiam-se na
grama molhada. As silhuetas das lápides serviam de apavorante lembrete
de que aquele era o lar dos mortos.
Corria pelas veredas do cemitério quando ouviu Frank gritando:
- Jogue a pistola para mim, seu idiota!
Um carro escuro, estacionado, surgiu de repente diante de
Jeffrey. Parou o tempo necessário para ver se as chaves estavam na
ignição, mas não teve sucesso. Olhando para o ponto de luz sobre o
túmulo de Henry Noble, conseguiu distinguir o vulto corpulento de Frank
correndo na direção dele. Vinnie ficara atrás, tomando conta dos outros.
Jeffrey passou voando pelo carro e sumiu dentro da noite.
Lembrou-se que a barriga de Frank era enganadora, que ele era
surpreendentemente ligeiro. Não acreditava ser capaz de vencê-lo na
corrida. Tinha que pensar em algo. Um plano. Conseguiria chegar à
cidade? Numa noite de sábado, Edgartown devia ter algum movimento, mesmo
que não estivessem na estação de turismo.
Jeffrey ouviu o estampido mortal de um tiro às suas costas.
Frank atirara nele. A bala zuniu junto da sua cabeça. Resolveu mudar de
direção, desviando para a esquerda e deixando o caminho do cemitério.
Mantendo-se agachado, começou a ziguezaguear por entre as
lápides. Não queria ser um alvo fácil. Tinha a perturbadora sensação de
que Frank não estava mais tão preocupado em pegá-lo vivo. Agora
que saíra da aléia, a superfície do piso já era regular. Pedras e
lápides estendidas atrasavam seu progresso. Tropeçou e perdeu o
equilíbrio. Só conseguiu ficar em pé porque se agarrou num obelisco de


granito. O obelisco oscilou, ameaçando cair. Então Frank disparou o
segundo tiro.
A bala pegou na superfície lateral do obelisco, logo abaixo do
braço de Jeffrey, que recuou um passo. Olhando na direção do relâmpago
na boca da arma, viu que Frank vinha no seu encalço e ganhara terreno!
Jeffrey continuou a correr, percebendo que seu pânico aumentava.
Estava ofegante e sentia uma pontada do lado. Perdera-se entre as
sepulturas. Não sabia mais que direção tomar. Não tinha certeza se ainda
estava a caminho da cidade.
Com o canto do olho, viu a silhueta de um grupo de construções
que lhe pareceram mausoléus. Virando na direção deles, cruzou com
dificuldade outras das inúmeras trilhas de cascalho do cemitério. Ao
atingir a fileira dos mausoléus, mergulhou entre os dois primeiros.
Esgueirando-se, avançou até o final da fileira e passou para a aléia.
Parando numa esquina, procurou Frank.
O homem estava a menos de quinze metros de distância. Cortara
caminho ao chegar no primeiro mausoléu. Após hesitar um pouco, começou a
caminhar na direção de Jeffrey. Este ia se virar para correr, quando
Frank subitamente desapareceu do seu campo de visão.
Jeffrey tentou pensar no que devia fazer. Um passo em falso e
estaria à mercê de Frank. Recordando a expressão do bandido depois que o
atingira com o saco de órgãos em decomposição, não tinha a menor dúvida
de que o outro não ia ter muita consideração com ele.
Na frente do lugar em que se encontrava havia um mausoléu de
mármore que parecia mais velho que os outros. Mesmo no escuro, Jeffrey
podia dizer que sua porta de ferro estava ligeiramente aberta.
Depois de inspecionar a aléia para ver se havia algum sinal de
Frank, disparou pela porta do mausoléu. Empurrou-a o suficiente para
esgueirar-se para dentro do granito frio. Tentou fechá-la, mas a porta
estava presa ao chão. Parou imediatamente. Não podia se arriscar fazendo
mais barulho. A porta continuou aberta uns cinco centímetros. um pouco
menos do que quando Jeffrey a descobrira.
Examinando o interior da estreita cela, viu que a única luz
vinha de uma janelinha oval, atrás, no alto da parede.
Tateando na direção da escassa luminosidade que passava pela
janelinha, ele foi se deslocando com o pé direito na frente e arrastando
o esquerdo para completar o passo. Sentiu depressões quadradas na parede
e percebeu que se destinavam a ataúdes.
Ao atingir a parede de trás, acocorou-se no chão. Quando seus
olhos se adaptaram, conseguiu distinguir a linha fina vertical que
definia a abertura da porta.
Esperou. Silêncio total. Após o que lhe pareceu serem cinco
minutos, começou a pensar em quanto tempo mais teria que aguardar antes
de arriscar uma saída.


Súbito, com um rangido torturante de metal raspando, a velha
porta do mausoléu foi escancarada, batendo na parede de pedra. Jeffrey
pôs-se de pé num salto.
A chama de um isqueiro iluminou o rosto redondo de Frank. Ele
esticou o braço e Jeffrey pôde ver que entreccrrava os olhos e depois
sorria.
- Ora, ora - disse. - Não é conveniente? Você já está dentro de
uma cripta.
A camisa de Frank estava molhada e o cabelo cmaranhado e sem
brilho devido ao líquido de embalsamento. Seu sorriso sardônico
transformou-se numa careta de escárnio. Entrou tranqüilamente no
mausoléu, arma numa das mãos, isqueiro na outra.
Quando estava a uns dois metros de distância, Frank se deteve e
apontou a pistola para o rosto de Jeffrey. Á luz da pequena chama, as
feições dele pareciam grotescas. As órbitas fundas pareciam estar
vazias, os dentes eram amarelos.
- Eu devia despachar você vivo para St. Louis - rosnou Frank -,
mas depois de me agredir com aquele saco fedorento de coisas podres,
mudei de idéia. Vai para St. Louis, sim, mas dentro de um paletó de
madeira, meu amigo.
Pela segunda vez na sua vida e nas últimas 48 horas, Jeffrey
viu-se forçado a contemplar, impotente, a boca do cano de uma pistola,
que se adiantou ligeiramente quando a pressão do dedo foi aplicada ao
gatilho.
- Frank! - exclamou uma voz áspera. O nome ecoou na pequena
câmara.
Frank girou a cabeça, conservando a pistola apontada. A explosão
de um tiro balançou a minúscula câmara. E houve outra detonação,
reverbcrando dentro do mausoléu. Jeffrey atirou-se no chão. O isqueiro
de Frank apagou. Caiu uma escuridão total e um silêncio que parecia
guardar a lembrança dos tiros disparados.
Jeffrey ficou totalmente imóvel, as mãos acima da cabeça e o
rosto comprimido no frio piso de pedra. Ouviu então o ruido de um
isqueiro sendo acionado.
Levantou a cabeça devagar, apavorado com o que poderia ver.
Frank estava bem na sua frente, estatelado no chão, o rosto para baixo.
A pistola também estava no chão, ao lado dele, mas fora do seu alcance.
E além de Frank havia um par de pernas. Elevando mais a cabeça, encarou
Devlin O'Shea.
- Que surpresa - disse Devlin. - Se não é mesmo o meu doutor
favorito. - Ele segurava o isqueiro aceso com uma das mãos e tinha uma
pistola na outra. Exatamente com Frank um minuto atrás.
Jeffrey endireitou o corpo com alguma dificuldade. Devlin
aproximou-se de Frank e fê-lo rolar, expondo o rosto. Abaixando-se,


procurou sentir-lhe a carótica.
- Droga! - exclamou. - Pontaria boa demais. Na verdade, eu não
queria matá-lo. Ou talvez apenas pense que não queria. - Aproximou-se de
Jeffrey. - Nada de flechas envenenadas agora - advertiu.
Jeffrey recuou e encostou-se na parede. Para ele, Devlin parecia
pior que Frank.
- Gosta do meu novo corte de cabelo? - perguntou Devlin ao
observar a reação de Jeffrey. - O culpado é esse cara arriado no chão. Fez um gesto na direção de Frank. - Ouça, doutor - disse. - Tenho duas
noticias para você, uma boa e outra má. Qual vai querer ouvir primeiro?
jeffrey deu de ombros. Para ele, estava tudo acabado. Só
lamentava Devlin ter aparecido logo agora, quando estava tão perto de
conseguir aquela prova tão importante.
- Vamos - advertiu Devlin. - Não temos a noite toda. Ainda há um
jovem arruaceiro por aí com uma arma apontada para seus amigos. E então,
quer ouvir primeiro a notícia boa ou a ma?
- A má - respondeu Jeffrey, perguntando-se se Devlin não iria
dar-lhe um tiro à queima-roupa. A boa noticia, que não viveria para
ouvir, seria a de que ia ter uma morte rápida.
- Ora essa, eu teria apostado uma grana preta que você ia querer
ouvir primeiro a noticia boa. Considerando os sustos que tem passado,
acho que está precisando de uma. Mas vamos lá. A má notícia é que vou
levá-lo para a cadeia. Estou precisando da recompensa que o Mosconi
ficou de me pagar. Mas deixe eu lhe dar a boa notícia. Consegui uma
informação que provavelmente vai inocentar você.
- Hem?! Do que é que está falando? - balbuciou Jeffrey,
atordoado.
- Não creio que seja hora ou lugar para um papo amistoso continuou Devlin. - Não devo esquecer do idiota do Vinnie D'Agostino,
que continua aqui perto com uma arma na mão. Agora vou fazer um trato
com você. Quero que coopere comigo. Isto significa nada de fugir, nada
de me espetar com agulhas ou me bater com valises. Vou cuidar de Vinnie
para que ninguém fique machucado se você for bonzinho e mudar de atitude
em relação a mim. Depois que eu pegar a arma dele, vou algemá-lo na alça
de uma laje e chamar a polícia de Edgartown. Vai ser mais animado que os
casos de afogamentos de turistas na praia de Chappaquiddick. Em seguida,
todos nós vamos sair para jantar. O que me diz?
Jeffrey mal pôde responder, tão estarrecido e confuso estava.
- Vamos, doutor! Não dispomos da noite toda. Temos um trato ou
não?
- Sim - Jeffrey respondeu finalmente -, estamos combinados.
O Charlotte Inn tinha um restaurante encantador dando para um minúsculo
pátio com um chafariz. As mesas eram cobertas com toalhas brancas e as
cadeiras, confortáveis. Uma equipe de garçons e garçonetes atenciosas


atendia às necessidades dos comensais.
Se, algum tempo atrás, alguém descrevesse a cena que Jeffrey
vivia agora, ele teria dito que era impossível. Quatro pessoas estavam
sentadas à mesa, Kelly à sua direita. Era evidente que se sentia
ansiosa, mas sem dúvida radiante. Seibert à esquerda de Jeffrey, também
não parecia particularmente calmo, preocupado que estava com os
documentos forjados e com a possibilidade do episódio do cemitério ser
investigado. Diante dele estava Devlin, o único na mesa que parecia
absolutamente relaxado. Em vez de vinho, Devlin bebia cerveja, e já
estava na quarta garrafa.
- Doutor! - exclamou ele. - Vejo que você é um homem paciente.
Ainda não me perguntou qual é a informação que mencionei no mausoléu.
- Questão de medo - respondeu Jeffrey, sincero. - Medo de
quebrar o encantamento em que estou desde que saimos de lá.
Tudo acontecera como Devlin previu. Jeffrey pusera-se a gritar,
como se ele e Frank estivessem lutando perto do carro. Quando Vinnie se
aproximou para ajudar seu chefe, Devlin apareceu e o desarmou num abrir
e fechar de olhos. Em seguida o algemou.
A única mudança do plano original foi que Devlin não acorrentou
Vinnie à laje do túmulo. Preferiu uma das alças do caixão.
- Você e Henry podem fazer companhia um ao outro - disse ao
garoto assustado.
Todos os outros foram depois para o Charlotte Inn, onde,
cumprindo sua parte no acordo, Devlin telefonou para a policia de
Edgartown. Embora fossem convidados, Chester, Martin e Harvey
polidamcntc recusaram, preferindo jantar e relaxar das fortes emoções no
cemitério em suas respectivas casas.
- Pois vou contar de qualquer modo, quer você pergunte ou não disse Devlin. - Mas deixe que exponha antes uma espécie de introdução ao
que vou dizer, com alguns comentários. Primeiro, gostaria de me
desculpar por ter atirado em você naquele hotel pulgueiro. Eu estava
furioso e, além disso, pensava que fosse um bandido de verdade. Um tipo
de criminoso que odeio. Mas com o passar do tempo fui aos poucos
descobrindo mais coisas sobre o seu caso. Mosconi não se mostrou muito
solicito, de forma que não foi fácil. Dc qualquer modo, vi logo que
havia qualquer coisa no ar quando você parou de agir como o fugitivo
padrão. Quando Frank entrou em cena, vi que algo estranho estava
acontecendo, sobretudo quando tomei conhecimento de que ele ia ganhar
setenta e cinco mil para despachar você para St. Louis. Isso para mim
não fez o menor sentido até eu saber que a pessoa que contratara Frank
estava interessada em interrogá-lo a respeito de algo que você
descobrira.
"Nessa altura dos acontecimentos, decidi descobrir quem era esse
mão-aberta de fora da cidade. Com a quantidade de grana em jogo, achei


que teria de haver uma ligação com drogas. Mas logo constatei que não. E
por fim cheguei à descoberta mais interessante. O que pensaria você se
eu lhe dissesse que o cara que contratou Frank Feranno é um sujeito
chamado Matt Davidson? Matt Davidson, de St. Louis?
Jeffrey apoiou a mão com o talher em cima da mesa e olhou para
Kelly.
- O Matt no caderninho de endereços de Harding! - exclamou ela.
- Mais que isso - disse Jeffrey, metendo a mão debaixo da mesa
para pegar sua bolsa. Tirou uns papéis e mostrou as duas cópias que
obtivera no tribunal. Colocou em cima da mesa a fim de que todos
pudessem ver.
Apontou o nome de Matthew Davidson, que aparecia como advogado
da querelante no caso do Suffolk General Hospital.
- Matthew Davidson também foi o advogado da querelante no meu
caso - explicou Jeffrey.
Kelly pegou a outra folha, que continha as informações sobre o
caso do Commonwcalth.
- O advogado do querelante neste caso, Sheldon Faber, foi o
mesmo no processo do meu marido - disse ela. - E agora que penso nisso,
me lembro que era de St. Louis.
- Vou verificar uma coisa - decidiu Jeffrey, levantando-se. Para
Devlin, acrescentou: - Pode ficar calmo, eu volto já.
Devlin, que ia começar a segui-lo, mudou de idéia. Jeffrey
deixou o grupo e foi falar no telefone público. Chamando Informações de
St. Louis, pediu os telefones dos escritórios de ambos os advogados. Os
números eram os mesmos!
Voltou para a mesa.
- Davidson e Faber são sócios. Trent Harding trabalhava para
eles. Kelly, você estava certa. Havia uma conspiração. Toda essa
patifaria era dirigida pelos advogados dos querelantes, e eles criando
os processos em que iam atuar!
- Mais ou menos o que pensei - disse Devlin, com uma risada. Já ouvi falar de caçadores de ambulância, mas esses caras de St. Louis
estão criando seus próprios acidentes. Certamente tudo isso terá efeito
positivo na sua apelação.
- E põe um fardo nas minhas costas - reclamou Seibert. - Eu e o
meu cromatógrafo. Esses advogados devem ter recrutado Trent Harding para
contaminar ampolas de Marcaína e colocá-las no suprimento das salas de
cirurgia. Só me resta torcer para que o exame de Henry Noble dê certo
desta vez. Tenho que isolar a toxina.
- Será que esses advogados agem também em outras cidades? perguntou Kelly. - Qual será a amplitude da sua operação?
- Só adivinhando - respondeu Jcffrey -, mas penso que tudo
depende de quantos psicopatas como Trent Harding foram capazes de


encontrar. - E ele abanou a cabeça.
- Nunca apreciei advogados - afirmou Devlin.
- Kelly - disse Jeffrey, subitamente tomado de emoção. - Sabe o
que isto significa?
Ela sorriu.
- Nada de América do Sul.
Jcffrey abraçou-a. Não podia acreditar. Estava conseguindo sua
vida de volta, afinal de contas. E bem a tempo de compartilhá-la com a
mulher que amava.
- Ei! - exclamou Devlin para um dos garçons. - Traga-me outra
cerveja, e que tal uma garrafa de champanhe para os dois namorados?
***
EPÍLOGO
SEGUNDA-FEIRA, 29 DE MAIO DE 1989, 11:30.
Randolph ajustou os óculos para ler. Pigarreou. Jeffrey estava sentado
diante de uma mesa simples, de carvalho, bem na sua frente, tamborilando
no tampo cheio de marcas. A valise de couro de Randolph pousava sobre a
mesa, à direita de Jeffrey. Aberta. Jeffrey viu que continha um par de
tênis de jogar squash, assim como um maço de documentos e formulários
legais.
Jeffrey vestia uma camisa de zuarte azul-clara e calça de
algodão azul-escura. Conforme prometera, Devlin o levara para Boston,
entregando-o às autoridades.
Ele odiava estar na prisão, mas agora tentava tirar algum
proveito. Erguia seu ânimo lembrando-se repetidamente de que aquela
situação era provisória. Tinha tempo inclusive para jogar basquete,
coisa que não fazia desde os tempos da faculdade.
Entrara em contato com Randolph ainda do Chatlotte Inn, após o
jantar comemorativo de Devlin. Randolph começara a endireitar as coisas,
ou pelo menos assim dizia. Contudo, mais de uma semana tinha decorrido e
Jeffrey começava a perder a paciência.
- Sei que você pensa que tudo podia ser feito da noite para o
dia - disse Randolph -, mas acontece que as rodas da justiça levam tempo
para girar.
- Vá logo ao ponto - exigiu Jeffrey.
- O ponto é que apresentei três petições - explicou Randolph. A primeira e mais importante é aquela em que solicito um novo julgamento criminal. Foi encaminhada à juíza Janice Maloney e requer a ela
que desconsidere o veredicto anterior devido a erros ocorridos no
julgamento...
- Quem se importa com erros cometidos durante o julgamento? exclamou Jeffrey, exasperado. - Não é mais importante o fato de que tudo
foi causado por dois advogados pilantras para encher seus cofres?


Randolph tirou os óculos.
- Jeffrey, quer deixar que eu termine? Sei que está impaciente,
e com razão.
- Termine - disse Jeffrey, reunindo toda a calma que conseguiu.
Randolph recolocou os óculos e consultou de novo suas anotações.
Pigarrcou mais uma vez.
- Como eu ia dizendo - continuou -, entrei com uma petição
requerendo um novo julgamento, com base em erros cometidos durante o
anterior e em provas recém-descobertas.
- Meu Deus! Por que não diz isso em língua de gente? Por que
fica perdendo tempo com coisas sem a menor objetividade?
- Jeffrey, por favor. Há procedimentos a serem seguidos nesta
situação. Não se pode exigir um novo julgamento por qualquer tipo de
prova descoberta depois da sentença promulgada. Devo deixar claro que a
prova não é algo que eu pudesse ter conseguido antes com um pouco mais
de diligência. Não se concedem novos julgamentos com base na imperícia
de advogados. Posso continuar?
Jeffrey fez que sim.
- A segunda petição destina-se a alterar a apelação no caso do
julgamento por imperícia. Chama-se Petição de Reparação Eqüitativa
Extraordinária, baseada em provas recém-descobertas.
Jeffrey rolou os olhos para cima.
- A terceira é para conseguir uma nova audiência para
estabelecer a fiança. Eu esclareci à juíza Maloney que não houve
intenção dolosa da sua parte, e que você não desrespeitou o determinado
quando ela arbitrou a fiança, mas dedicou-se a uma investigação digna de
louvores que, finalmente, teve sucesso, levando à descoberta de novas
provas.
- Acho que isso poderia ser explicado de maneira um pouquinho
mais simples. E ela, o que disse?
- Que ia estudar a minha petição.
- Maravilhoso - disse Jeffrey, sarcástico. - Enquanto apodreço
na prisão, ela estuda a papelada. Realmente maravilhoso. Se os advogados se tornassem médicos, os pacientes morreriam esperando que a
burocracia encontrasse soluções.
- Você precisa ter paciência - aconselhou Randolph, que já se
acostumara ao sarcasmo de Jeffrey. - Imagino que amanhã terei notícias
sobre a audiência. Você deve sair da prisão em um ou dois dias. As
outras questões tomarão um pouco mais de tempo. Os advogados, como os
médicos, não podem dar garantia do que vai acontecer, mas acredito que
você será totalmente isentado de culpa.
- Muito obrigado. E o que me diz de Davidson e os outros?
- Receio que essa seja outra história - disse Randolph com um
suspiro. - Certamente iremos cooperar com o promotor de St. Louis; ele


me assegurou que haverá uma investigação. Mas acho que ele considera as
chances de uma condenação muito pequenas. Além de opiniões, não há
qualquer prova de associação entre Davidson e Trent Harding. A única
evidência é o nome dele no caderninho de Trent, o que não demonstra nada
sobre a natureza da associação deles. Também não há uma prova ligando
diretamente Trent Harding à batracotoxina que o Dr. Warrcn Seibert
encontrou em todos os casos, após tê-la isolado na vesícula de Hcnry
Noble. Com Frank Feranno morto, e sendo qualquer suposta associação
entre ele e Davidson também baseada em boatos, até agora o caso contra
Davidson e Faber revela-se muito fraco.
- Não posso acreditar - disse Jeffrey. - Então, para Davidson e
seus colegas, será simplesmente a volta ao trabalho de sempre, embora
talvez não em Boston.
- Bem, quanto a isso eu não sei. Como mencionei antes, vai haver
uma investigação. Mas se não aparecer uma prova mais convincente,
suponho que Davidson poderá tentar de novo. A firma dele, afinal, é
altamente considerada na área dos processos por imperícia. Que, por
sinal, é uma área muito lucrativa. Mas na próxima tentativa pode ser que
ele cometa um erro. Quem sabe?
- E o divórcio? Você deve ter boas notícias.
- Receio que também aí possamos ter problemas - explicou
Randolph, guardando seus papéis na valise.
- Por quê? Carol e eu não discordamos sobre isso. É um divórcio
amigável.
- Pode ter sido. Mas isso foi antes de sua mulher contratar
Hyram Clark como advogado.
- Que diferença faz? - Como procedimento normal, Hyram Clark
ataca logo a jugular. Vai considerar suas obturações a ouro como parte dos bens. Você
terá que se preparar e contratar os serviços de alguém igualmente
agressivo.
Jcffrey gemeu.
- Talvez nós dois devêssemos ter nos casado, Randolph. Pelo
jeito, vamos continuar vivendo juntos por muito tempo.
Randolph riu, com seu jeito contido de intelectual de Boston.
- Vamos falar de coisas mais amenas - disse. - Quais são os seus
planos? - Depois se levantou.
Jeffrey sorriu.
- Assim que eu sair daqui, Kelly e eu vamos tirar férias. Algum
lugar ensolarado. Provavelmente o Caribe - Jeffrey também se levantou.
- E a medicina?
- Já conversei com o chefe do Departamento de Anestesia do
Memorial - respondeu Jeffrey. - A medicina vai funcionar mais depressa
que as rodas da justiça. Brevemente serei reintegrado.


- E você pretende voltar a trabalhar lá?
- Acho que não. Kelly e eu estamos praticamente decididos a nos
mudar para outro estado.
- É mesmo? Parece que surgiu aí um relacionamento sério.
- Claro que sim - garantiu Jeffrey. - Tão sério quanto possível.
- Muito bem. Então talvez seja melhor eu começar a preparar um
acordo pré-conjugal preliminar.
Jeffrey lançou um olhar cético a Randolph, mas viu os cantos da
sua boca se moverem num sorriso.
- É uma piada, Jeffrey. O que foi que aconteceu ao seu senso de
humor?
O
AUTOR E SUA OBRA:
Robin Cook pode ser considerado um homem bem-sucedido em tudo
que empreende. Além de sua excelente reputação como médico-cirurgião,
especialista em oftamologia e professor desse ramo da medicina na
célebre Massachusetts Eye and Ear Inflrmary, é hoje um autor conhecido
em todo o mundo por seus livros, onde investiga as deformações que podem
levar a medicina aos domínios do horror e da loucura.
Esse clima de pesadelo está presente em obras como "Medo
mortal", "Cérebro" e "Coma". Esta última aborda a questão dos
transplantes e explora a hipótese de que os doadores de órgãos podem às
vezes não estar mortos. A repercussão causada foi tão grande que o
número de órgãos doados para transplantes sofreu uma queda considerável
nos Estados Unidos. A polêmica chegou à Inglaterra, onde a BBC enfocou
os problemas relacionados com o conceito de morte clínica.
"Coma"permaneceu seis meses na lista de best sellers do jornal
"The New York Times" e atingiu uma vendagem de mais de quatro milhões de
exemplares somente nos Estados Unidos. A relevância do problema, com
toda a sua carga dramática, não passou despercebida aos produtores de
Hollywood: a história foi adaptada para o cinema, com Geneviève Bujold e
Michael Douglas nos papéis principais.
Em 1979, Robin Cook abriu um novo caminho em sua ficção com
"Esfinge". Apaixonado por egiptologia, o escritor arma uma trama de
mistério e suspense, cujo enredo mistura elementos como a existência de
um tesouro milenar e a maldição dos faraós. Mais uma vez, o romance
transformou-se em filme, sob a direção de Franklin I Schaffner. E
também, mais uma vez, Hollywood investia num negócio seguro: o livro
vendeu mais de seiscentos mil exemplares na edição encadernada e Cook
recebeu uma quantia respeitável pelos direitos de publicação em edição
de bolso.
"Febre" (1982) assinalou seu retorno ao mundo da medicina e seus
perigos, enfocando o conflito de um médico honesto e brilhante, que se
dedica a pesquisas para a cura do câncer, às voltas com a
comercialização da medicina, os desastres gerados pela poluição e um


comovente drama familiar.
Fim do livro


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