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Cancioneiro da Vila de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba
Emil de Castro

AS FUNDAÇÕES

Que traços são estes no chão?
Gentes com certeza serão:
Seus pés, suas mãos, o rosto de Vitória
A rainha, do Martim ou de Sá Salvador?
Andam pegadas nas pedras do chão manchado
Ainda do sangue do nosso irmão tupiniquim,
Ou serão pedaços da carne arrancada
A ferro e fogo do nosso avô tamoio?

É uma data de terra verde-azul de esperança.
Que mar doce e marinho lambe meus pés
Onde uma deusa deita seu corpo recende amor.
Este verde desenhado no fundo do tempo
Vai se misturando nas folhas soltas
Das pizarras memórias d´antão.
É uma data não de terra mas de paixão,
De olor de índia no cio
Tão frágil na entrega
Do seu corpo
De sua filha
De sua irmã, safada Bonifácia.

-     Seu Verneque, Seu Verneque
Que quer de mim?
-     Quero seu corpo marrom.
     Quero o cheiro de carne,
Tão bom.
-     Ai capitão-mor,
Ai meu capitão!








2

Setenta cabanas são
De barro e de sapé cobertas.
Ao redor de um pau a redondeza da Terra.

Setenta dores de parto
Curumim rola no chão.
Menino safado comendo terra.

Setenta mulheres paridas
Cheiro de terra encharcada
Um pingo de vida na rede.

Setenta gemidos de amor
Rolando pelo caminho
Pisando pedras, amansando espinhos.

3


Verneque, capitão-mor, mandou
A índia Bonifácia chamar.
-     O capitão que deseja?
-     Não a ti, velha safada!
-     Por que não, senhor?
-     A prata do teu cabelo
Já não me atrai paixão.
-     Tenho o corpo experiente,
A carne madura e mais pura
Que o vento da Ingaíba.
-     Bonifácia, quero vulcão,
Fogo que me acenda
O resto da vida.
Um corpo que esconda o sol,
Que acenda as luas dos meus olhos.

Bonifácia era ladina.
O que ela queria – tinha.
Mas se fez de surda e calada.
-     Tu calas e sei o que queres.
São os cruzados do rei.
-     Os cruzados, nem eu sei,
Mas mulher que queres
Esta não sei se terei.
-     Sei que é mentira tua.
Já vi na aldeia brilhar
Dois belos olhos de lua.

A velha Bonifácia
Que na arte de aliciar
Mestra ela era,
Teve medo de chorar.

-     Luas não há mais
No oco de minha aldeia.
Já partiu a que existia
Para onde foi nem sei.
-     Mentirosa é tua fala
Que esconde a paisagem
Da filha que tens guardada.

-     Como a mata esconde seus segredos
Virgem minha filha também.
Viçosa que nem as folhas tenras
Sua pele é tecida de seda.
-     Honra maior jamais conseguirás.
Tua lua terá um céu para ela
Sozinha minha casa governará.
-     Se assim desejas, assim é lei.
Na noite de lua-cheia
Minha lua nova no céu brilhará.















BERNARDO DE OLIVEIRA – 1° capitão-mor


O capitão-mor Bernardo de Oliveira
nasceu na Vila
e sangue
das três raças tinha.

E veio o marquês de Lavradio
e bateu o martelo:
-     Estás nomeado capitão-mor
da aldeia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba!

Chegou o capitão-mor e viu a tristeza
de sua terra abandonada. A igreja em ruínas.
-     Índio não foi feito pra trabalhar!
Bernardo de Oliveira mandou chamá-los.
e a vara desceu cortante nas carnes índias.
-     Índio não nasceu pra trabalhar pra branco!
Índio é ave que voa sobre o mar,
É vento que sopra à noroeste.

Manoel José o velho preso ficou,
e degradado foi
para o Rio de Janeiro por suas intrigas
e agitações.
Mas o sargento-mor João de Abreu Pereira teve pena dele
e em pessoa pediu sua liberdade ao vice-rei.
-     Perdoado? Decerto serás, mas sobre condição.
-     Aceito meu rei, que a liberdade compensa!
E o agitador pra Ilha de Jaguanum foi levado
onde deveria morar para sempre.
Mas não dura tudo para sempre. Faleceu o capitão-mor
Bernardo de Oliveira. O vice-rei mudou.
-     Olha lá o Manoel José o velho
de futrica com a Bonifácia!






JOSÉ DE SOUSA VERNEK – 2° capitão-mor


Capitão morto, capitão posto.
José de Sousa Verneck de logo assumiu
tão espinhoso cargo.
-     Ordem é a condição! – falou Verneck
Os passos seguindo de seu antecessor.
Pura fantasia.
-     Índio não nasceu pra escravo!
-     Índio não nasceu pra escravo!
-     Índio não nasceu pra escravo!

A turba ignara vociferava:
-     Queremos Alexandre Galvão,
de Manuel José o velho seu irmão!

-     Alexandre Galvão!
-     Alexandre Galvão!
-     Alexandre Galvão!

Eles queriam de volta suas terras.
Verneck é fraco de decisão.
De cabelos brancos tornou-se poltrão,
e à bebida entregou-se o capitão.
Mais intrigas. Mais confusão.
Pedido daqui. Pedido dali.
Mas continuou o capitão.
Formou-se o tumulto. Quebra-quebra.
-     Vamos quebrar, a cabeça de Verneck
Queremos cortar!

Lá foram para a praia Mansa executar.
Na sua fazenda chegaram.
Mas lá estava o capitão-mor
Por sua família cercado:
Nos braços de sua mulher
As criancinhas ao seu lado.
“A cabeça coberta de cãs
e os olhos ondeados de lágrimas”.

Era um espetáculo tocante.
Verneck a seus pés prostrado
e sua vida implorava
por amor daqueles inocentinhos
que chorando o abraçavam.
O amor é maior que o mundo.

E os tupiniquins descendentes
retiraram-se em silêncio
e à aldeia logo voltaram.
Inconformados e vociferando
casa por casa iam quebrando.
Motivos aos mil teriam.

Mas o medo era mais forte.
como seus irmãos pensaram
de Itaguaí a certa morte
de tanta violência cometida
por esses mesmos que aqui
em grupo se articularam.


Um juiz conservador que então havia
amigo dos mais calmos e diligentes
que da revolta parte não tomaram
de todo o movimento colocou a par
D. Fernando José de Portugal, o vice-rei
que a patente do mor cassara
José de Souza Verneck.


Elogios tantos na carta colocara
que o vice-rei lhe dera ouvidos.
A patente devolvendo ao velho capitão:
“Queira V. Exa. anuir à minha culpa,
sopite as vozes da bondade, seja pública;
e de boca em boca ande minha culpa e meu castigo,
mas ande a par a certeza de que os índios
gozam a proteção que por mais de três
séculos marca a origem”.


E José de Souza Verneck continuou
Capitão-mor de sua Vila formosa
De N. S. da Guia de Mangaratiba
Terra da banana da begônia tuberosa.

Como não há bem que sempre dure
Tudo de novo começou mudado o conservador
Pelo José Pereira Barroso desembargador.










PEDRO DA MOTA – 3° capitão-mor

Demitido o velho José Verneck
O vice-rei Conde dos Arcos
A Pedro da Mota nomeou
Para a tranquilidade da terra
Pois, com certeza, ele era
O Numa Pompílio da Aldeia
De Mangaratiba, de todos o mais digno.

Os cabeças, baldados seus esforços, viram
Mas se acomodar não se acomodaram
E não só recusaram a prestar-lhe obediência
Como novos tumultos provocaram.
Mas Pedro da Mota não esmoreceu seu ânimo;
Sérias medidas cheias de tanta energia
Como prudência tomou com mão forte:
Prendeu a todos esses turbulentos
E para o Rio de Janeiro ele enviou
Onde nos serviços públicos foram entretidos.
Como sua ausência a tempestade serenou
E despontaram dias risonhos pra aldeia
Envolta há tanto tempo em desassossego.
E assim tão calma ela se elevou.





A FREGUESIA


Ontem era a Aldeia
De índios tupiniquins
Tupiniquins tupiniquins
De Porto Seguro.

Hoje já não é mais.
Acabou-se a farra
Dessa turma zonzeira.

Agora tem casa de barro
Agora tem casa de adobe
Agora tem casa de alvenaria.

Benedito Antônio da Costa Manoel dos Santos Barros
Manoel Álvares Teixeira Rubião José Gonçalves da Silva
João José Nogueira Maria Heliodora Luiz da Silva Teixeira
E o capitão-mor Luís Werneck e toda sua turma.

Amanhã haverá reunião geral
Para discutir o destino da
     Velha aldeia que agora é freguesia.




PIZARRO, O VISITADOR

Eles foram chegando.
Vieram de longe,
Muito além da corda do horizonte,
Na verdade do fundo do infinito.

Eles foram chegando,
Traziam nos olhos a esperança
E no peito batendo sem trégua
O pássaro da aventura engaiolado.

Eles foram chegando.
Primeiro o das pizarras memórias
com seu diário de folhas largas
aberto ao tempo, às ressacas e às calmarias.
Quer tudo ver com olhos atentos
a qualquer tempo, medida e fé.

José de Sousa Pizarro e Araújo
Com tão longo nome e ritmo constante
Para escrever a exata memória
Da aldeia do Saco e arredores
De Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba.
- Monsenhor Pizarro chegou!
O grito se espalhou pela aldeia
Derramando suas graças pela mata.

Tudo ele via e tudo conferia
No seu diário composto dia-a-dia
E a história se esparramou
Nas páginas de suas memórias
Lidas e relidas futuro adentro.

II

De manhã
Café com inhame
Mandioca banana pacova
Seu desjejum diário
A ração medida para um claro dia
O Monsenhor compunha a lenda
Da santa Senhora pescada nas águas.
Nas igrejas sua escrita registrava
Tudo o que ali se escondia
Das coisas santas e até de loucas orgias
Pois de ferro ninguém se dizia.

III

Eis a aldeia.
Havia uma agitação de vida circulando
Pelos caminhos veredas abertas,
Morro abaixo
Morro acima
O mar beijando a praia
Lambendo o pé da igreja.

Monsenhor Pizarro corria os olhos
Pela terra – mulher virgem –
Diligente visitador é seu ofício
Para dar o “pasto espiritual” a todo índio
Nessa aldeia de Martim de Sá.

IV

E o tempo bateu asas.
A vida latejou no pulso da história
Rompendo o espelho do futuro.

     23.05.2005




PELOURINHO

                      1831


à direita da igreja
mandaram fazer o pelourinho.

olha o pelourinho!
olha o pelourinho!

traga o negro
à força!

lá vem o negro
que roubou a trança
da filha do coronel
da guarda nacional da Vila de N. S. da Guia de Mangaratiba!

traga o negro
á força!

olha o pelourinho!
olha o pelourinho!

quem mandou sonhar.
sonho nunca encheu barriga
de personagem da história.



A ESTRADA IMPERIAL S.J.M.

É onde a viagem grande começa.
Há o marco de légua que separa o tempo
da passagem da carruagem única e real
e o bebedouro dos cavalos sedentos.
O começo da partida e o final
da chegada ao incerto destino,
outro mundo a se deslembrar de vidas.

Eis a estrada com sua história impossível
de um barão que de amor morreu
por uma escrava que rainha foi
depois de morta.

Como de Castro a Inês
que rainha foi depois de morta.
Mas esta,
escrava e negra,
fez arder de amor
um certo barão
de café.

Aqui jaz: a pedra revela
o amor cativo e o brasão
num coração gravados;
o nome e a cor de uma paixão
tão grande e louca
que ainda sua alma vela
acesa nas noites de quem passa
como de quem passava outrora
na estrada sem fim –
diz a história.





   


CANÇÃO PARA REZAR SOZINHO



Senhora da Guia
me dá sua luz.

Senhora da Guia
me dá sua mão.

Senhora da Guia
me ensina o caminho.

Senhora da Guia
me guia na escuridão.

Estou
sozinho.

No mundo
sozinho

Estou
no mundo.

Sozinho.




Biografia:
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