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O GUARDAMENTO
Moacyr Medeiros Alves

O       G U A R D A M E N T O
                                   

   A vizinhança estava em peso no guardamento.

   Tobias morreu subitamente naquela manhã de quinta-feira, vítima dos irreversíveis estragos causados por fulminante síncope cardíaca, e sua mulher, presa de forte abalo emocional, teve de receber urgente atendimento médico, pois o inesperado acontecimento quase a leva com o marido.

   O falecido era muito estimado e sua morte repentina, até certo ponto prematura, chocou sobremaneira aquelas pessoas amigas que compareceram ao guardamento; todas com o propósito de levar aos familiares enlutados os sentimentos de pesar pelo infausto acontecimento e, em particular, à dona Helena – este o nome da viúva --, devotada companheira de mais de vinte anos de exemplar união conjugal.

   Todavia ela não estava presente para receber a carinhosa demonstração de pesar de que seria alvo, porquanto, como já foi dito, achava-se hospitalizada, submetida a rigoroso acompanhamento médico e sob o efeito de sedativos, nem sabendo se a deixariam comparecer ao velório. O enterro estava marcado para a manhã seguinte, e mais importava zelar por sua saúde, já que ao desencarnado só restava ser conduzido, sem pompas - pois que nem em vida ele as admitia, - mas com dignidade, à derradeira e definitiva morada.

   Por volta das dez e meia da noite dona Helena, desperta da ação dos sedativos, roga ao Dr.Mamede, médico que a assistia, que lhe permita passar os últimos momentos ao lado do marido que nunca mais veria. E havia tanto sentimento, tanta emoção, tanta súplica no lastimoso pedido, que o abnegado facultativo, apesar dos cuidados que o estado da paciente ainda reclamava, houve por bem atendê-la. Não sem antes examinar novamente a pressão arterial e os batimentos cardíacos da debilitada senhora.

   Autorizada pelo zeloso profissional, dona Helena foi conduzida à capela do “Cemitério Suaves Veredas Celestes”, onde jazia o cadáver. Lá chegando, muito abatida e inconformada com a peça que o destino lhe pregara, acercou-se do caixão e acariciando a mão direita do defunto, principiou, em pungente monólogo, lacrimosa lamentação:

   “Pobre do meu Tobias... era tão novo; não tinha ainda nem cinqüenta e cinco anos... Tão trabalhador, tão honesto, tão companheiro! O que vai ser de mim sem ele?... Ele era tão bom, tão gentil, tão responsável; incapaz de magoar sequer uma criança. Era tão leal, tão amigo!... tão querido... Ainda ontem estava forte e bem disposto, irradiando saúde e vontade de viver... Ele fazia de tudo pra me agradar; ainda ontem ele foi encomendar um bolo na confeitaria da dona Giselda, um bolo de amêndoas, que é o que eu mais gosto... um bolo pra comemorar meu aniversário que é hoje. Ele nunca esquecia! Agora o pobrezinho se foi; nos deixou! O que vai ser de mim sozinha neste mundo? Que belo presente de aniversário eu ganhei!...”, e os soluços prorromperam, embargando-lhe a voz.   

O comovente desabafo da inconsolável viúva consternou deveras os que, não se importando com o adiantado das horas, permaneciam no velório; eram todos parentes ou amigos mais chegados à família; pessoas de bons sentimentos que, num gesto de solidariedade e espírito fraterno se dispuseram a sacrificar uma noite de sono para velar o corpo sem vida do pranteado Tobias.

    Naquele ambiente contrito, em que todos, de alguma forma, eram íntimos do extinto ou de sua família, apenas um dos circunstantes não se enquadrava em dita condição; era ele o seu Manuel Quitandeiro. Mas apesar disso ele, inexplicavelmente, lá estava já há horas. Pode-se mesmo afir-mar que o dito cujo lá permanecia de enxerido, de abelhudo, de oferecido.

   Por que razão lá se encontrava, se lá não tinha amigos? Conhecia apenas de vista alguns moradores das redondezas; aqueles que, corajosamente se aventuravam a comprar às vezes em sua quitanda (o “morruga” tinha fama de careiro). Mas ele lá estava, e dali não arredou o pé desde que chegara, às 20 horas.

   Qual seria a razão dessa injustificável intromissão em assuntos que não lhe diziam respeito?

   Desejo de parecer simpático àquela gente que relutava em comprar em sua quitanda, que resistia em se tornar freguesia cativa de seu comércio? Não... Não acreditamos. O gesto podia ser mal interpretado; compreendido como oportunismo, e produzir efeito contrário ao esperado, igual a um tiro que sai pela culatra. E seu Manuel, embora não fosse nenhuma sumidade, não era tapado a ponto de seu “desconfiômetro” deixar de apontar os perigos de semelhante procedimento.

   Se apesar disso ele lá estava, certamente devia haver um motivo coerente para explicar o enigmático fato.

   Como disse o sambista: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Isso explica porque – e não raras vezes, -- as coisas mais estapafúrdias encontram para si justificativas plausíveis e convincentes. E o fato de o comerciante lusitano do ramo de frutas e hortaliças -- de cuja quitanda dona Helena, dada a proximidade de sua casa, se valia nas emergências em busca de algum produto que lhe faltasse à cozinha, -- lá estar, era uma delas: tinha conotações idílicas; coisas do coração.

   É que o gajo, há tempos e secretamente, nutria irrefreável gamação pela bonita e prendada freguesa e ao sabê-la viúva, ele que também o era, pressurosamente fechou seu pequeno estabelecimento e correu a cuidar da aparência – fazer a barba, tomar banho, vestir o fato da missa, sem esquecer de aspergir a água de cheiro de boa qualidade que a finada Maria (de saudosa memória) lhe presenteara no último Natal de sua vida e que ele, por economia, só usava em ocasiões especiais --, para, em seguida, dirigir-se ao velório, onde esperava fazer-se notado pela dama de seus sonhos -- agora tão livre e desimpedida quanto ele.

   Ao chegar à capela do cemitério, seu Joaquim – acima chamamo-lo de Manuel, e aqui, Joaquim; é que ele atendia por ambos os nomes; seu nome completo era Manuel Joaquim Travassos --, que não conhecia a parentela do falecido, distribuiu condolências a mancheias. Com a aparência mais grave do mundo, embora curtisse estranho regozijo pelo passamento do homem que dormia com a mulher dos seus sonhos, o português cumprimentava a todos: “Meus pêsames” pra cá; “sinceras condolências” pra lá; “meus mais profundos sentimentos” pra acolá. Era tamanha a sua euforia ao pensar na possibilidade de conquistar o coração de dona Helena, que teve de se policiar para não repetir a gafe cometida ao cumprimentar uma velhinha que lhe pareceu da família enlutada quando, ao invés de lhe dar pêsames, deu-lhe “os meus mais sinceros parabéns”.

   Grande foi sua decepção quando, ao chegar, deu conta da ausência de Dona Helena no recinto do velório. Isso por volta das 20 h. Porém, dando pêsames daqui, cumprimentando dali, indagando de acolá, ouviu de uma prima da viúva: “A pobre Helena quase não suporta o duro golpe e, por pouco, não embarca com o marido; está hospitalizada e eu acho que o médico não vai permitir que venha ao velório. Amanhã cedo, para o enterro, é provável que ela venha”.

   O apaixonado quitandeiro trasmontano sentiu-se deveras desapontado com a ausência de sua almejada, chegando a cogitar de ir embora para retornar na manhã seguinte, na hora do sepultamento. Isso foi às 21,55 h. Entretanto, pensando melhor, ponderou que a viúva poderia a qualquer momento ser trazida para se despedir do marido e, ao vê-lo ali, àquelas horas mortas, teria dele a melhor das impressões. Ademais, como havia naquele horário pouca gente, talvez restasse a oportunidade de ele se mostrar útil e conquistar a simpatia de Dona Helena, fato que seria um belo princípio para a almejada corte.

   Não é que o danado do português acertou em cheio em suas conjeturas! Dona Helena foi levada à Capela exatamente 50 minutos após suas pertinentes considerações.

   Daí pra frente o leitor já tomou conhecimento da emocionante reação da mulher ao ver-se diante do corpo inanimado do querido companheiro que passara desta para a melhor.

   Agora vejamos a reação do seu Manuel face à comovente cena protagonizada pela viúva ao dar vazão à sua inconsolável tristeza. Para isso precisamos voltar o filme e rever as últimas frases proferidas por ela.

   “... um bolo pra comemorar o meu aniversário, que é hoje. Ele nunca esquecia! Agora o pobrezinho se foi; nos deixou! O que vai ser de mim sozinha neste mundo? Que belo presente de ani-versário eu ganhei!...”

   O laborioso e apaixonado quitandeiro lusitano que deixara suas alfaces, abóbrinhas e berinjelas para requestar a mulher amada, também se emocionou com a comovente demonstração de tristeza que presenciou. Entretanto, sua ótica de varão apaixonado fê-lo imaginar que o destino o estivesse favorecendo: “eis ali a oportunidade de se mostrar gentil!”

   Assim pensando, ele, que ocupava uma das cadeiras encostadas à parede ao lado da urna funerária, tão logo dona Helena concluiu o amargo solilóquio, sem pestanejar, com desusado ímpeto, levantou-se de um salto e tropeçando num dos pés da mesa que sustinha o caixão que balançou mas, por sorte, não foi ao chão, disse com muita ênfase, não escondendo a admiração que a aniversariante lhe despertava:

   -- Que coisa mais bonita!... Pois, pois! “Intão” comemoras hoje o natalício, dona Helena? Que coisa mais linda! Meus parabéns e que esta data se multiplique por mil” e não contendo a empolgação, completou: “Dá cá um forte abraço, viuvinha “inxuta”!”    























Biografia:
- Moacyr Medeiros Alves, o Moa, como gosta de ser chamado, nasceu em Agudos (SP) em 08/03/1936, já órfão de pai -- seu pai faleceu 6 meses antes de seu nascimento. Sua mãe, viúva com 5 filhos, mudou-se em princípios de 1.940 para a capital do estado, indo morar em habitações coletivas, os chamados cortiços, no bairro do "Bixiga", onde ele passou a infância. Em dezembro de 1.950 o Moa, que já trabalhava desde os 9 anos de idade, ingressou como "office-boy" na organização Philips, empresa holandesa do ramo eletrônico. Trabalhando de dia e estudando de noite, conseguiu, com sacrifício, concluir o curso técnico de contabilidade. Em 1.959, aprovado em concurso público, entrou para o quadro de escriturários do Banco do Brasil onde trabalhou até 1.982, aposentando-se como gerente-adjunto da agência de Itararé (SP). Grande apreciador do cancioneiro popular brasileiro, do período que abrange a denominada "Época de Ouro" de nossa música, tem em sua discoteca, entre LPs e CDs, obras de quase todos os cantores e instrumentistas do tempo em que -- como dizia o radialista Rubens de Moraes Saremento -- "as fábricas de pandeiro davam lucro". Além de escrever "abobrinhas", como ele próprio define seus escritos, o Moa tem ainda como "hobby" a leitura e a fotografia.
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