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SOMOS TOLOS E PRETENSIOSOS
Moacyr Medeiros Alves

Estou escrevendo no 30ª dia de janeiro de 2.009, na cabine nº 8.141 do 8º deque do transatlântico Grand Mistral -- navio de bandeira italiana --, na volta do cruzeiro marítimo que partiu de Santos, cidade portuária do estado de São Paulo, no Brasil, e aportou em Punta Del Leste, no Uruguai, e, em seguida, em Buenos Aires, na Argentina. Em Punta Del Leste eu já havia estado uma vez, numa curta parada; Buenos Aires já conhecia de duas viagens anteriores.       
     O que me levou a escrever em circunstância tão incomum -- pois o navio oferece atrações para preencher as 24 horas do dia de quem viaja, não deixando tempo para divagações, -- não foi a satisfação de relatar os prazeres que a primeira viagem marítima proporciona. Contrariamente, foi a necessidade de exteriorizar outra vez o desapontamento de coisa que há muito me entristece e que, a cada nova constatação, exacerba-se, recrudescendo minha insatisfação.
     Venho há tempos deplorando o comportamento do povo de meu país. O brasileiro foi bem definido pelo jornalista Clóvis Rossi em sua coluna de 12/10/1997 do jornal Folha de São Paulo, quando afirmou: “... não somos, os brasileiros, uma gente apenas curiosa. Somos, em quantidades industriais, uma gente muito hipócrita”.
     Uma gente muito hipócrita e pretensiosa que se imagina o “povo escolhido” sem se dar conta de suas fraquezas e defeitos que são, em quantidades industriais, exagerados, acrescento eu.
     Somos uma gente que possui a mais estrábica noção do certo e do errado. Aqui tudo se resolve com o “$jeitinho brasileiro$”. Daí nossa enganosa consciência do que seja respeito e disciplina. Daí a hipocrisia generalizada com que tratamos todos os assuntos: quaisquer que sejam, por mais sérios que se possam afigurar. Daí a proliferação entre nós de igrejas que, a exemplo da católica, transformam-se em verdadeiros impérios econômicos e que, ao contrário de nos tornar um povo mais pacífico, colabora para fazer do brasileiro um dos mais violentos do planeta.    
     Achamo-nos muito espertos quando, na realidade, somos, em quantidades industriais, uns trouxas, babacas e inconseqüentes, de burrice transcendental; um povo fácil de confundir as coisas e ser levado ao fanatismo.
     Todo esse depreciativo comentário que faço sobre meus patrícios, que, certamente, desagradará a muita gente, não me veio à luz agora, em decorrência daquilo que vou narrar. É constatação antiga que tenho externado em conversas com amigos e até com estranhos, e abordado em meus livros.
     Os fatos que avivaram minha indignação foram dois: ocorreram nos dias 28 e 29 de janeiro.
     O primeiro, quando de minha ida ao “El Viejo Almacén”, a mais antiga casa de espetáculos de Buenos Aires, onde o “Tango” é a principal e, praticamente, a única atração.
     O segundo, na noite seguinte, no Café Borsalino, (6º deque do Grand Mistral), de uma conversa mantida com o artista encarregado da música ambiente local, o violonista Carlos Moreno.     
     Carlinhos Moreno, como é também chamado, é um músico experiente que demonstra bastante familiaridade com seu instrumento, o violão. É contratado para se exibir acompanhando cantores ou apresentando-se individualmente em cruzeiros marítimos promovidos pela empresa de turismo CVC, responsável pela viagem que eu fazia.
      Nas apresentações individuais executa ao violão páginas de nosso cancioneiro popular; quase que exclusivamente músicas da chamada “bossa nova”.
      Numa noite anterior, quando ele se apresentava sozinho, pedi à garçonete que me serviu uma bebida que solicitasse a ele a execução de “Sons de Carrilhões”, obra-prima de autoria do violonista e compositor brasileiro João Pernambuco (02/11/1883–16/10/1947), peça que, por sua refinada beleza, deveria constar, obrigatoriamente, do repertório de todos violonistas, brasileiros, e mesmo dos estrangeiros. Mas o Carlinhos Moreno não me atendeu; disse já ter ouvido a música, mas que não aprendeu a tocá-la.
      Posteriormente, na noite seguinte à de minha ida ao “El Viejo Almacén”, em conversa direta com Carlinhos, comentei que nós brasileiros consentimos que desmantelassem a nossa verdadeira música; que jogassem na lata de lixo do esquecimento nossas tradições musicais; que um bando de espertalhões, para faturar os dólares americanos, deformaram nossa música visando agradar aos ouvidos de Tio Sam. Tudo feito com a irrestrita participação de nossa desprezível mídia e -- o mais lamentável, -- com o integral beneplácito do cidadão brasileiro que não moveu uma palha para impedir esse nefando crime de lesa-pátria.
      Disse-lhe também que ele e todos os demais músicos da atualidade que não se dispõem a ouvir e aprender as maravilhosas composições de um passado exuberante que seria motivo de orgulho a qualquer outra nação, tinham grande responsabilidade nessa perversa anomalia que povo nenhum, certamente, permitiria que se cometesse contra suas tradições, pois tradição é sinônimo de memória, e povo sem memória é povo destituído de personalidade.
     Acrescentei que Carlos Gardel, maior astro da música Argentina, morreu dezessete anos antes do passamento de Francisco Alves, seu equivalente brasileiro. Só que, na Argentina, ainda hoje, qualquer criança de mais de cinco anos de idade sabe quem foi ele, e cultua a memória de Gardel, ao passo que no Brasil poucos de nós, com menos de 60 anos de idade, sabem quem foi Francisco Alves, o cantor que durante mais de três décadas mandou nas paradas de sucesso e era carinhosamente chamado de “Chico Viola”. Francisco Alves foi cantor de grandes recursos vocais, que cantava qualquer gênero musical. Atuando no rádio, foi durante três décadas nossa maior expressão musical. Foi, por isso, cognominado, unanimemente por seus fãs, que eram, praticamente, todos os brasileiros daquele tempo, de “O Rei da Voz. Para mim, o eterno e único “Rei da Voz””.
De Vicente Celestino, Orlando Silva, acrescentei, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Paraguassu, Augusto Calheiros, João Petra de Barros, Aracy de Almeida, Linda Batista, Dircinha Batista, Nora Ney, Dalva de Oliveira e de mais algumas centenas de talentosos artistas brasileiros que enriqueceram a mais fecunda fase de nosso cancioneiro popular, a saudosa “Época de Ouro”, desses então, somente os museus se ocupam ou se lembram. E só de alguns deles!
      A resposta que obtive do Carlinhos, entristeceu-me mais ainda. Ainda mais quando proferida por um músico brasileiro que vive profissionalmente da música.
      Quando me referi à “bossa nova” ele repondeu: “Mas ficou uma beleza!”.
      Eu indaguei: “Então o que tínhamos antes não era uma beleza? Não servia? Não tinha arte? Era música feita por botucodos, para agradar os ouvidos dos botucodos?
      Ele, sem graça, obtemperou: “Não, não quis dizer isso”.
       Quando mencionei o fato de a mídia não dar espaço às músicas da chamada “velha guarda”, e nem os músicos brasileiros procurarem aprendê-las e executá-las para não deixá-las cair no esquecimento, ele alegou que como profissional, que vivia da música, precisava respeitar as tendências. Sua resposta deixou-me indignado mas rendeu a elaboração de uma frase (sou admirador de frases sintéticas, que definam com clareza um pensamento): “A inteligência e a honestidade não podem nem devem curvar-se às tendências”.
       Em resumo: a vergonhosa realidade é que nós brasileiros consentimos que nossa música deteriorasse. Que fosse corrompida pelas mãos de um grupo de finórios cheios de manhas e astúcias que, para se locupletarem, lograram embutir na cabeça desse desavisado povo que se julga esperto, que respeitar tradições e apreciar coisas inteligentes, quando antigas, são próprios de retrógrados, de quem vive fora de época. De quem a culpa? Desses desprezíveis vivaldinos ou dos incautos que se deixaram levar e até contribuíram para esse infamante embuste?
      Há algum tempo perguntei a um conhecido não tão novo, pois seguramente já tinha seus dez lustros de existência, se ele conhecia o cantor Francisco Alves, o “Rei da Voz”. Ele me respondeu que não, que não era do seu tempo. Irritado, perguntei-lhe se Bethoven, que ele conhecia, era do seu tempo. Ele, desconcertado, riu, e não tendo argumentos para justificar tamanha incoerência, condiziu a prosa para o terreno da gozação. É assim que somos! ESPERRRTOS!!!
      Outro fato que me deixou aparvalhado e emputecido e que, quero crer, que não seja verdadeiro: o número de livrarias existentes na Calle Florida, no centro de Buenos Aires, diz ser maior do que as existentes em toda a cidade de São Paulo, capital do estado mais rico de nosso país. Será verdade? Se for, é um fato deveras lastimável.
      Que o brasileiro lê pouco e que as livrarias da Calle Florida são maravilhosas, ninguém pode negar! São bem providas de sua principal mercadoria que são os livros. E além dos milhares de títulos à disposição dos leitores, têm também em suas prateleiras e gôndolas CDs e DVDs, com interpretações e biografias de seus maiores astros “y cantantes”, notadamente dos que enalteceram sua música nacional, o tango. Gente que já não está entre nós há quantas décadas, mas que continuam vivas na memória do povo.
      Encontramos nas livrarias da Calle Florida, remasterizados, acredito que todos os filmes estrelados por seu artista maior, o inesquecível Gardel. E, atentem, Gardel morreu dezessete anos antes do nosso Chico Viola!
      O tango tradicional – não o adulterado por Astor Piazola, que também produziu uma música de qualidade, mas que não é o verdadeiro tango -- leva anualmente milhões de dólares aos cofres argentinos; é muito grande o número de turistas que vão a Buenos Aires atraídos pelas casas de tango: “El Viejo Almacén”, “Casa Senhor Tango”, e outras tantas que ainda preciso conhecer.
      Isso é esperteza e inteligência, caros patrícios! Faturar em cima das tradições e das coisas inteligentes que o passado produziu e nos legou e tiveram o reconhecimento público. Isso se traduz em lucro e não exige novos investimentos; já foi feito e agradou; não custa nada aos dias atuais, demonstrando o respeito de um povo às suas tradições!

   



             
              
                            




Biografia:
- Moacyr Medeiros Alves, o Moa, como gosta de ser chamado, nasceu em Agudos (SP) em 08/03/1936, já órfão de pai -- seu pai faleceu 6 meses antes de seu nascimento. Sua mãe, viúva com 5 filhos, mudou-se em princípios de 1.940 para a capital do estado, indo morar em habitações coletivas, os chamados cortiços, no bairro do "Bixiga", onde ele passou a infância. Em dezembro de 1.950 o Moa, que já trabalhava desde os 9 anos de idade, ingressou como "office-boy" na organização Philips, empresa holandesa do ramo eletrônico. Trabalhando de dia e estudando de noite, conseguiu, com sacrifício, concluir o curso técnico de contabilidade. Em 1.959, aprovado em concurso público, entrou para o quadro de escriturários do Banco do Brasil onde trabalhou até 1.982, aposentando-se como gerente-adjunto da agência de Itararé (SP). Grande apreciador do cancioneiro popular brasileiro, do período que abrange a denominada "Época de Ouro" de nossa música, tem em sua discoteca, entre LPs e CDs, obras de quase todos os cantores e instrumentistas do tempo em que -- como dizia o radialista Rubens de Moraes Saremento -- "as fábricas de pandeiro davam lucro". Além de escrever "abobrinhas", como ele próprio define seus escritos, o Moa tem ainda como "hobby" a leitura e a fotografia.
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