Era na hora das refeições que a tensão se abatia sobre aquela família. Na comprida mesa, todos se reuniam para comer sob o olhar severo do patriarca. Um homem duro, que não gostava de conversas durante as refeições, e era obedecido. Todos comiam em silêncio, cabeça baixa, e só mesmo o ruído dos talheres nos pratos era percebido. Na cabeceira da mesa o pai, ao lado a mãe, do outro lado a filha mais velha e depois as duas meninas menores. Desde pequenas eram alertadas para os momentos 'cruciais' do dia. - Na mesa, educação e silêncio - que nunca esquecessem disto. Havia ainda um problema maior: a toalha de mesa. Não era raro ver o patriarca com o olhar congelado na direção de algum garfo, durante o temeroso trajeto do prato para a boca. Não admitia nenhuma mácula na toalha de mesa, um farelo de pão, nada. Então chegou um dia em que a preocupação atingiu seu ponto máximo: o novo namorado da filha mais velha iria, finalmente, almoçar com a família naquela mesa tão cheia de recomendações. A coisa piorava por conta de ser domingo, dia de usar a toalha de linho branca com belos brocados dourados. A moça fez todas as recomendações ao rapaz, pois todo o cuidado era pouco. Chegada a hora, todos sentaram sob o olhar autoritário do pai, a tensão era imensa, e o silêncio de sempre permeava os gestos calculados com que os guardanapos eram colocados nos colos. Tão logo começaram a comer, silentes, o rapaz percebeu no olhar do homem na cabeceira um aviso mudo, que tivesse muito cuidado então. Procurou no sorriso de sua amada à sua frente o alívio para aquela situação constrangedora, mas, aos poucos viu o semblante alegre da namorada ir minguando; ao olhar para as outras pessoas na mesa percebeu que sua mão era alvo de olhares apavorados; caprichosamente, um pingo de molho começava a formar-se embaixo de seu garfo, refém do abraço inexorável da Lei da Gravidade. Ficou imóvel, se tentasse deslocar o talher até o solo seguro do prato, o pingo poderia cair, qualquer gesto poderia fazer o pingo cair, sua respiração poderia fazer o pingo cair... O patriarca tinha os olhos fixos naquela catástrofe iminente, e os demais deslocavam seus olhos com vagar do pai para o pingo... do pingo para o pai... mas o desastre era irreversível, já não havia volta... E o pingo pingou. Tal qual um tiro assassino que deixasse sua marca de sangue em uma camisa muito branca. Agora todos olhavam para o pingo na toalha. Um pequeno ponto vermelho redondo e ruidoso, como que a desafiar a autoridade imaculada daquela brancura inelutável e infinita. Lentamente, todos foram virando seus rostos a um só tempo, como se aquilo fosse ensaiado, em direção ao pai. O homem estava vermelho e sua veia jugular palpitava uma tempestade com conseqüências incalculáveis. O rapaz tremia. O silêncio que revestia aqueles segundos dava um ar de eternidade ao tempo. Tudo agora estava suspenso, inclusive as respirações. Foi quando o patriarca tirou os olhos do pingo e os perdeu no nada. Ficou parado, extático. Sua boca foi abrindo lentamente e para surpresa de todos um sorriso se achegou manso ao semblante sempre fechado daquele homem, em seguida riu, e logo depois explodiu em uma imensa gargalhada! Gargalhava, gargalhava, e todos, aliviados começaram a rir também, no começo risos meio tímidos, mas depois gargalhavam a valer também. O homem só dava rápidas paradas em seu riso frenético para olhar e apontar para o pingo ali na toalha, e logo seguia com as ruidosas gargalhadas. Dizem as boas línguas que nesse dia dava para escutar as risadas lá do outro lado da rua. Dizem mais, dizem também que depois daquele pingo aquela família nunca mais foi a mesma.
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