A velha tinha saudade de quando era velha... agora julgava-se 'muito velha'. Passava os dias ali, sentada na cadeira junto à janela de sua pequena casa. Era uma observadora silenciosa da vida que brotava, incessante e indomável, através dos ruidosos risos das crianças que brincavam alheias pela rua. Ela ali, sentada, só olhava para fora... a seu lado o baú imaginário em que guardara suas infinitas lembranças, e que agora acomodava, zelosa, os instantes estéreis e sem cor de seu dia a dia. Acondicionava os segundos com carinho neste baú invisível e inseparável, pois haveria de ser ele o companheiro em sua última e definitiva viagem. Ou não. Ficara íntima da morte, até conversava com ela; certa vez se flagrou servindo chá para dois, quando se deu conta, riu. Foi a última vez que riu. Não encontrava mais motivo para risos, já não conversava com ninguém, dizer o que? Apenas olhava pela janela. As pessoas passavam indiferentes pela rua, nem notavam seu semblante cansado, seu olhar perdido nas banalidades lá de fora. Era só um rosto velho na velha janela da velha casinha, nada mais. Um belo dia, foi comprar frutas em uma feira ali perto, não muitas, pois não podia carregar peso. Quando voltou para casa, parou seus passos arrastados bem em frente à sua moradia. Olhou para a janela vazia, aberta, e imaginou-se ali, sentada. Visualizou seu rosto triste naquela janela e concluiu que aquilo mais parecia um quadro, sim, um quadro melancólico que tinha como adequada moldura o velho marco e a descascada guarnição da janela; a escuridão dentro da casa - quase não acendia as luzes, pois recolhia-se cedo - emprestava as tintas lúgubres com que era pintado o fundo daquela tela na parede caiada. Sorriu. Entrou, humilde, em sua residência, largou as frutas na cozinha e foi ao quarto. Revirou em uma gaveta até achar um velho batom, em seguida postou-se em frente ao espelho e com sua mão trêmula, pintou, ou melhor, borrou os lábios de vermelho. Retirou os grampos e penteou os cabelos brancos e finos. Terminada a tarefa, dirigiu-se à sua cadeira na janela, sentou-se e abriu um imenso sorriso de acrílico. Agora, a velha inclinava a cabeça numa reverência respeitosa aos transeuntes da rua e presenteava-os com seu melhor sorriso. Era correspondida. Ficou feliz... se era para protagonizar uma obra de arte, mesmo que num quadro que tenha como moldura o marco e a acabada guarnição de sua janela, que estivesse alegre. Quem sabe assim contrariasse, zombeteira, o artista... este artista que com a destreza dos mestres, tão bem soube usar o martelo e o cinzel para esculpir-lhes os sulcos no rosto; este artista que tão bem soube misturar tintas até encontrar o tom de cinza com que lhe pintou o olhar e a alma. Quem sabe seu sorriso representasse um pequeno deboche, uma pilhéria, uma provocação, qualquer coisa... a este impertinente, hábil e irreversível artista chamado Tempo...
|