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O fiim de uma tradição.
Henrique Moura

Em tempos de Lei Seca resolvi fazer um apanhado das irresponsabilidades etílicas que já cometi em minha vida. Já dirigi nas condições mais adversas que se possa imaginar. É impressionante como fomos irresponsáveis durante tanto tempo. E até que eu não era dos piores. Hoje vejo que não se deve dirigir mesmo que só se tenha consumido uma única gota de álcool. Fazendo esta retrospectiva me recordei desta história.

O fim de uma tradição. Na verdade não chegou a ser um fim de uma tradição, mas uma bela pausa forçada.

Não precisava nem marcar ou combinar nada. Chegando o feriado da Semana Santa, todos os amigos já tinham como certo o encontro na cidade de Gravatá, interior de Pernambuco, com clima agradável e várias festas durante o período. A tradição teve início ainda no ginásio (isso nem existe mais!) e perdura até hoje. Mas houve um período em que o assunto foi esquecido por todos. Afinal, a casa que servia de sede para este encontro etílico-cultural ficou temporariamente indisponível.

Este encontro já estava ultrapassando as fronteiras estaduais. Amigos que já haviam saído de sua terra natal em busca de trabalho, amores, estudos e outros motivos diversos, durante o período de Semana Santa sempre apareciam. O bom filho a casa torna. Neste caso, o bom filho o copo entorna. Os porres eram famosos nestas reuniões. Todos, sem exceção tinham alguma história para contar.

No feriado em questão já estávamos todos preparados para a viagem quando chegou a confirmação de que nosso grande amigo Flávio nos prestigiaria com a sua presença. Flávio sempre foi o sujeito mais responsável de toda a turma, mesmo sendo um dos mais jovens. Já não o víamos há cerca de dois anos. Foi uma alegria geral.

Início da viagem, início da farra. Um percurso que levava, nesta época anterior a duplicação da estrada, cerca de uma hora e meia, levou quase quatro. Porém conseguimos fazer a contagem de todos os bares, bodegas, barracas, botecos e afins que encontramos pelo caminho. Um trabalho de fazer inveja ao IBGE.

Chegando em casa, a farra continua. Bota cerveja pra gelar, vai buscar cerveja gelada na barraca da frente pra gente não ficar esperando sem fazer nada.

A casa:
O imóvel em questão pertence ao pai de um dos integrantes do grupo, que não por coincidência estava hospedado no sítio em frente, que pertencia ao seu irmão, Pompeu. Pompeu foi coordenador e professor do colégio que tínhamos estudado. Gente de primeira qualidade.

A casa já demonstrava várias cicatrizes de encontros anteriores. Algumas bem famosas, como uma mancha na parede que nenhum pintor conseguiu remover. Nosso amigo Cristiano, após tomar dois litros de run e “se sentir um pouco indisposto”, resolveu se alimentar com o intuito de evitar a tão famosa ressaca. Entornou um litro de leite de uma só vez. A “batida” de run e leite não fez muito bem ao rapaz que terminou por expressar toda sua criatividade em uma pintura moderna, utilizando a parede como tela. A tinta utilizada era uma mistura, como vocês já devem imaginar, de duas partes de run para uma de leite e leves toques de restos de churrasco mal digerido. Não se pode negar que a gama de cores e nuances ficou muito interessante. Digna de uma Bienal.

O churrasco:
Esse nunca faltou. Quando o fogo começou a dar sinal de vida na churrasqueira começou, também, a dar sinal de vida na cabeça dos presentes. O pobre do Flávio não aparecia há dois anos, e pelo seu estado também não bebia durante esse período. Ele parecia estar usando colírio de groselha. Seus olhos estavam mais vermelhos que as brasas da churrasqueira. O relógio não marca nem doze horas ainda.

Meio dia:
Cachaça rolando, dominó (todo papudinho adora), pagode, gente dançando, uma alegria total. Às três da tarde o dominó é encerrado. As bolinhas pretas começaram a correr umas atrás das outras. Encerrado o dominó por conta do teor alcoólico dos atletas, o que mais se podia jogar? Futebol.

Aí é uma beleza!!! Todos bêbados jogando bola! Cai um daqui, outro dali, o juiz não marca falta, pois nenhum dos dois estava com a bola. Porrada no juiz... Ninguém se entende no placar. E tome cerveja...Flávio ta lá, firme e forte, ou quase.

Sete da noite:
Hora de começar a se arrumar para marcar presença nos shows da cidade. Vai começar a farra!!! (de novo?). Só existe um banheiro na casa. A fila tinha umas 18 pessoas, mais de dois terços embriagados. Confusão geral!!!

Antes que o décimo da fila adentrasse ao banheiro, a grande notícia: A ÁGUA ACABOU!!! Mas bebinho é uma espécie de grande poder de adaptação. Não se importaram em sair sem banho, afinal não sentiam mas nada, inclusive cheiro.

- Show de quem?!!! – Algum interessado perguntou. Porém, ficou sem resposta. Ninguém sabia mesmo. Não faz diferença. O importante era a farra.

Chegando em frente ao local da festa, adivinha??? Mais cerveja...

Até que nosso amigo Flávio deu sinal de vida. Ou melhor, deu sinal que sua vida estava se encaminhando ao fim. Em atitude de grande desprendimento ele resolveu nos mostrar o seu lado interior. Nos deu uma demonstração de suas entranhas. Vomitou durante um bom tempo no meio da rua.

Estava criado o impasse. Quem levaria o amigo para casa?
Como diria Jack, o estripador, vamos por partes...
Quem é o dono da casa? Alexandre.
Quem tem condição dirigir? Sobrou pra mim.
Quem ajuda a carregar o bêbinho de cento e poucos quilos? Cristiano.

Resolvido o impasse, fomos eu, de motorista, Flávio ao meu lado e os outros dois no banco de trás do carro com mais uma carga de cervejas, só pra não perder o ritmo.

Durante o percurso de cerca de 15 Km pude ver todas as cores do arco-íris passando pelo rosto de meu amigo. Não demorou muito e o balanço do carro fez o efeito esperado. Flávio virou a marmita mais uma vez. Daquele jeito seria fácil nos seguir pela estrada. O rastro era facilmente encontrado. A lateral do carro ficou ornamentada com uma nova pintura. Ficou interessante. Dava a impressão de velocidade, de fazer inveja a qualquer adepto do “Tunning”. Faixas laterais de várias cores e texturas, todas criadas ao sabor do vento. Preocupado com a sujeira que estava fazendo, Flávio não pensou duas vezes. Tirou a camisa e começou a limpar o carro. Do lado de fora. Contando com os quilinhos a mais de nosso amigo, isso não foi uma atitude muito prudente. Deu trabalho, mas conseguimos convencê-lo a voltar pro lado de dentro do carro.

O cara suava mais que tampa de chaleira, e olha que Gravatá é uma cidade conhecida pelo frio. Notando que estava suando muito com seu mal estar, Flávio limpou o rosto com a camisa. Aquela que ele usou pra limpar o vômito do carro.
     
Vocês lembram de uma propaganda do chocolate chokito:
“LEITE CONDENSADO, CARAMELIZADO COM FLOCOS CROCANTES!”
Impossível criar descrição melhor. O rosto do rapaz parecia um chokito.

Chegando em casa convencemos logo o amigo a tomar um banho antes de se deitar. O restante do grupo se dirigiu ao terraço da casa para aproveitar o tempo e o clima pra fazer o que fizemos durante todo o dia. Continuar os “trabalhos etílicos”.

Após algum tempo lembrei que tínhamos tido um problema com a água, ou melhor, com a falta dela. E qual não foi minha surpresa ao chamar por Flávio várias vezes na porta do banheiro e receber a resposta de que ele estaria tomando banho. Como? Sem água? Forcei a porta que se abriu facilmente e encontrei nosso querido amigo a esfregar o sabonete pelo corpo e olhar com ar de insatisfação para o chuveiro... ao me ver ele reclamou:
- Cacete, Henrique! Esse sabonete que tu me deu é uma merda! Não faz espuma de jeito nenhum!
Ao que respondi com bastante paciência: - Fica frio, veste alguma coisa que vou te levar pra tomar banho na casa de Pompeu.

Mas que idéia de jerico essa minha...
Enquanto o rapaz tentava vestir alguma coisa voltei para o terraço para ficar com os outros dois amigos tomando mais umas. Mas Flávio demorava muito e comecei a ficar impaciente. Fui chamá-lo. Não deu tempo. Assim que me levantei vi um vulto caminhando entre os dois sítios. O bebinho resolveu ir pra casa de Pompeu sosinho, não esperou ninguém. E o melhor, estava trajando apenas uma cueca camuflada ridícula, uma toalha no ombro e um sabonete na mão.
Antes mesmo que eu pudesse avisar aos outros, saí correndo em direção ao papudinho camuflado. Ainda deu pra ouvir um dos outros dois dizer: DANOU-SE TUDO!!! PEGA ELE!!!

Tarde demais. Quando alcancei o meliante ele já estava na entrada da casa, onde um grupo formado por três casais – inclusive os donos da casa em que estávamos hospedados - olhava embasbacado para ele, ouvindo a sua explicação do motivo de uma visita tão erótica àquela hora.

Não preciso dizer que fomos expulsos na mesma hora. E fomos obrigados a arranjar outro lugar para nossos encontros anuais. Mas nunca foi a mesma coisa. Aquele lugar já tinha uma tradição, uma certa nostalgia. Tudo interrompido por conta de uma cueca camuflada. Fazer o quê?

Em tempos de lei seca, conseguimos diminuir a quantidade de acidentes na estrada, mas não temos mais histórias deste tipo. Tudo bem, segurança em primeiro lugar. VIVA A LEI SECA!!!


Obs: Gostaria de deixar muito claro que sou extremamente a favor da lei seca. Considero de total irresponsabilidade beber e dirigir, colocando em risco a sua própria vida e de outros.


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