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Joguinho Difícil
Henrique Moura

Joguinho difícil.

Gostaria de iniciar este texto me desculpando formalmente de todos os envolvidos. Peço desculpas porque tudo que está descrito nesta narrativa é a mais pura expressão da verdade. Nenhum dos fatos foi aumentado ou exagerado na intenção de prender a atenção do leitor. Todos os envolvidos existem, estão vivos (ou quase) e espero que não se reconheçam nesta história. Evidentemente trocarei os nomes para dificultar qualquer processo que possa surgir contra a minha pessoa.

A primeira pessoa a surgir na história é uma pessoa maravilhosa. Grande amigo. Gente de primeira qualidade, grande coração. Culto, grande valorizador das artes de nossa cidade, de nosso estado e de nosso país. Verdadeiro baluarte da cultura local. Figurinha tarimbada da noite recifense. Pelo menos nos dois ou três locais que ele freqüenta. Se existe pessoa fiel no quesito “só vou se for para aquele local” esta pessoa é Dagoberto. Já presenciei discussões absurdas deste sujeito por que ao chegar num destes locais de sua preferência um cliente extremamente inconveniente teve a ousadia de sentar na mesa onde Dagoberto sempre sentava. Que afronta!

Pois bem. Dagoberto, que sempre foi famoso por nunca convidar ninguém para absolutamente nada, resolveu convidar a mim e a outro amigo para assistir a um jogo de futebol em sua residência. Nossa! Como me senti orgulhoso daquele convite. Eu seria um dos únicos da cidade a entrar no lar daquela figura. Isso deveria ser encarado como uma grande consideração por parte de Dagoberto. Fato inédito.

Como todo fato inédito, logo surgiram as primeiras dificuldades. Uma verdadeira lista de exigências chegou ao meu e-mail. Tive a impressão de estar negociando com os seqüestradores de um avião lotado de passageiros inocentes. A mensagem dizia mais ou menos o seguinte:

“ Caros amigos,
reforço o convite que fiz para assistirem ao jogo deste final de semana em minha casa. Porém, gostaria de esclarecer alguns pontos importantes. Sei que torcemos para times diferentes, mas gostaria que não houvesse discussões em minha casa. Para tanto, solicito o seguinte:
1 – não vamos falar sobre a situação dos times durante o jogo;
2 – não é permitido o uso de palavrões ou palavras de baixo calão;
3 – não é permitido fazer comentários a respeito da mãe do juiz ou de seus auxiliares;
4 – não é permitido levar amigos de última hora, não será liberada a entrada na portaria do prédio para ninguém que não estiver na lista. (só tinha dois nomes, cacete!);
5 – por favor, não levem bebidas alcoólicas;
6 – não levem mulheres, sejam elas oficiais ou não;
7 – não gritem;
8 – desliguem os celulares;
9 – não levem bandeiras, apitos, cornetas ou camisas padronizadas;
10 – meus pais estarão em casa, e é sempre bom lembrar que eles não gostam de bagunça.

Agradeço a colaboração de vocês e já estou ansioso para tão festivo evento.
Abraços,
Dagoberto.”

MAS QUE MERDA É ESSA?!!! Pensei comigo mesmo. Por um momento pensei seriamente em desistir de tudo aquilo. Mas recebi um telefonema de Antônio (a outra vítima do convite) se esforçando para me convencer de que Dagoberto era assim mesmo , um pouco complicado mas era gente fina. E conversa vai, conversa vem, deu-se a desgraça: ele me convenceu de comparecer ao tal jogo.

Domingão de sol. Dia perfeito para comparecer àquele bom e velho pagodão! Que nada. Dia de jogo na casa de Dagoberto.
Aos poucos as regras impostas por ele foram sendo quebradas. A primeira delas foi das bebidas alcoólicas.
Domingão... jogo de futebol... sem cerveja... TÔ FORA! A minha gelada vai comigo.

Ao chegar no prédio a primeira surpresa. A tal lista de convidados existia mesmo. Estava na mão do porteiro, que fez questão de conferir a lista um por um. Antônio e eu.
Ao chegarmos na porta do apartamento fomos recebidos carinhosamente pela mãe de Dagoberto. Uma senhora muito simpática e risonha, com certa desenvoltura apesar da idade avançada. É verdade que não olhou com muita simpatia para a sacola que carregava na mão com algumas cervejinhas, mas se esforçou para disfarçar. Simpática a velhinha. Na entrada da sala ela nos fez ver e ouvir a história de cada foto do pequeno Betinho (Dagoberto) em cima do velho piano. Que coisa deprimente. Dagoberto conseguiu ser uma criança ainda mais feia do que o era quando adulto. Era incrível. Quase impossível de acreditar. Foi muito difícil conter uma gargalhada quando a pobre senhora beijando e babando em cima de uma das fotos falava de seu “bebê mais lindo do mundo, meu Betinho”. Tem mãe que é cega.
Mas engraçada mesmo foi a cara de Dagoberto despontando pelo corredor e encontrando a mãe contando todas as suas peripécias infantis. O pobre entrou em pânico.
-     Ta bom, mamãe. O pessoal não tá interessado nessas estórias não. – disse ele quase que nos empurrando para a outra parte da sala.

Chegando na sala de tv mais uma surpresa. O nosso anfitrião foi logo se apressando em explicar:
-     Calma pessoal, é só o meu pai.
Uma poltrona enorme estava engolindo um senhor de idade extremamente avançada e corpo franzino. Tive vontade de jogar uma corda e gritar – PEGA VOVÔ!!!. Mas não adiantaria, o velho era surdo como uma porta.
Tudo bem, vamos ao jogo!
Mas que droga! Nem o jogo tava dando certo. Uma verdadeira pelada de várzea. O sacana do Dagoberto deixou as cervejas fora da geladeira alegando pouco espaço para seus refrigerantes (vingança por não termos obedecido suas exigências de terrorista).
Durante o jogo o telefone começou a tocar: TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!
Dá pra acreditar?!!! O telefone do cara ainda era de disco e de trimm!
TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM! TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!
Pelo amor de Deus! Ninguém atende essa droga! Fui me levantando e Antônio imediatamente segurou meu braço impedindo. Me puxou pra perto e cochichou:
-     O pai de Dagoberto não deixa ninguém atender o telefone. Ele ainda se considera o homem da casa e quer controlar tudo.
-     E por quê ele não atende? – retruquei.
-     Ele não deve ter ouvido ainda. – respondeu Antônio.
TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM! TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!
Finalmente o velhinho se mexeu. Quer dizer, virou suavemente a cabeça em direção ao telefone. TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM! TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!
Neste instante começou um esforço incrível daquele valente senhor para se livrar da poltrona-monstro que o estava engolindo. Força daqui... força de lá... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM! E ele conseguiu se levantar!!! Nossa Senhora! A esta altura eu já tinha esquecido o jogo e torcia fervorosamente pelo velhinho. Ele vai atender... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM! Ele vai conseguir...
Desistiram da ligação. Frustração. Decepção. Tanto esforço em vão. Após tanta luta, o pobre velhinho retoma o caminho de sua poltrona em passos lentos e cansados. É uma pena. Realmente torci por ele.
Ao chegar novamente em frente àquele monstro ele se virou deixando seu traseiro pronto para ser engolido sem piedade pela poltrona funda e escura. Mas quando ele já esta quase completamente sentado...
TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM! TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM! Era o desgraçado do telefone de novo. Uma nova batalha se inicia...
TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!...
Corre tio... Corre tio... eu pensava comigo mesmo. Dessa vez ele consegue. TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!... TRIIIMMM!
Ele conseguiu!!!
Pegou o fone. E antes que pudesse dizer alguma coisa ouviu-se o grito fatal:
-     GOOOOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLLLLLLLL!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Era o demente do Antônio que, esquecendo das regras do terrorista, soltou o grito mais alto que já se ouviu dentro daquele apartamento.
O pobre pai de Dagoberto quase bota o coração pela boca de tanto susto. O velhinho começou a passar mal. Falta ar, coração acelera. Têm início uma nova corrida, mais barulhenta, mais confusa. Dagoberto e a mãe procuram remédio, procuram nebulizador. O velhinho procura ar. Antônio continua seu grito de gol. E eu, completamente sem ação, observava aquela cena dantesca, sem saber a quem socorrer primeiro:
...o velhinho morrendo...
... a mãe completamente despirocada...
...o filho atrapalhado sem achar nada...
... e o débil-mental sem perceber nada e gritando como louco...
Fiz a única coisa que restava. Saí de fininho pra nunca mais aceitar um convite nem pra jogo de biriba.

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