NOS BRAÇOS DA MORTE
A chuva mansa e contínua que batia compassadamente na superfície lisa e escorregadia, da fria vidraça, estava a passos largos,estraçalhando o seu sistema nervoso. E este era o terceiro dia consecutivo de uma chuva quase ininterrupta .
A pancada de chuva que caiu sobre a cidade, começou na quarta feira , e desde então ,por curtos períodos, ela parava mais logo voltava, com aquele seu barulhozinho chiado e antipático que já começava a irritá-lo.
A sexta - feira, já estava se aproximando da boca da noite, e este era o dia da semana que ele costumava esticar sua noitada pelos bares, bailes e até no único cinema da cidade. Era assim que se divertia , um inveterado notívago de fim de semana, só voltava para casa quando em algum lugar, ouvia um melancólico cantar de algum galo. Mas, com aquela chuva enjoada e contínua,ficava difícil perambular sem destino, como era de seu agrado.
Buscou no bolso da camisa listada o maço de cigarro, verificou quantos restavam e do mesmo, quase vazio, puxou um. Com o olhar pregado na janela fechada pela vidraça ligeiramente nevoada , acendeu o cigarro pendente em sua boca, soltou no ar a fumaça presa no peito e lembrou-se do livro que Arnaldo, o colega de trabalho lhe emprestou no dia anterior. Folheou algumas páginas e interessou-se por um titulo,era “Berenice “ de Edgar Allan Poe .
Recostou –se na cabeceira da cama, descansou o cigarro no cinzeiro que ficava sobre o criado –mudo e mergulhou na leitura.
Vinte minutos depois jogou o livro sobre a cama e balançando a cabeça repetidas vezes,exclamou para si mesmo:
- A mulher estava viva...coitadinha da Berenice!...Eu hein ?!...
Acendeu um novo cigarro, pensativo observou a fumaça esgarçando-se no ar e novamente apanhou o livro que havia atirado a esmo sobre a cama, folheou-o preguiçosamente, mas desistiu quando chegou ao meio do mesmo, colocou-o sobre o criado – mudo e resoluto levantou-se. Caminhou até a janela, limpou a parte embaçada pelo vapor e esticou o olhar para fora, mordeu o lábio inferior e convicto murmurou :
- Sabe de uma coisa ?... Vou sair assim mesmo!...Aqui fechado nessa poronga é que eu não fico!
Em poucos minutos estava vestido e pronto para sair. Logo mais, munido de um guarda chuva, pulando poças d’água , estava a caminho de algum lugar .
Irritado como estava, não teve paciência para aguardar a chegada de uma condução , o ônibus que passava pela porta de sua casa o deixaria na Praça Ruy Barbosa,para onde queria ir, mas apesar da insistência da chuva caindo sobre todos e molhando tudo, caminhou. Nervoso, impaciente, irritado,concluiu que caminhar lhe faria bem,mesmo porque a praça para onde estava indo, ficava a três ou quatro quarteirões de onde estava.
A freqüência nos bares aonde gostava de ficar para a conversa descontraída á beira do balcão ,era quase nenhuma, um ou dois gatos pingados e nem mesmo era o pessoal costumeiro. Pensou no baile, havia um arrasta –pé para os lados do Barro- Preto , mas desmotivado com as dificuldades apresentadas por ele mesmo, optou pelo cinema, pelo menos ficaria livre dos incômodos respingos da chuva, que há muito tempo já lhe tinha ensopado as pernas da calça.
Na sala de projeção do cine Castro Alves,havia poucas pessoas. Quando entrou, a película já ia pela metade.
Depois de caminhar por entre cadeiras vazias,sentou –se perto de uma moça que na penumbra não conseguia saber se era feia ou bonita, e de momento em momento, desviava o olhar da tela e disfarçadamente a fitava
O filme não prendeu sua atenção , as pernas da calça molhadas como estavam começava incomodar e ele, novamente impacientado ,levantou –se. Resolveu que melhor era ir para casa terminar sua leitura iniciada no livro de Edgar Allan Poe.
Ao passar pela moça ainda sentada, sentiu sua mão tocar o tecido de sua calça molhada, olhou –a de frente e concordou para si mesmo que era razoavelmente bonita: tinha olhos grandes e amendoados, rosto pálido e lábios sem batom, que eram rubros o suficiente para dispensar o artifício do pequeno bastão vermelho. Os cabelos puxados para trás ,preso num elegante coque,eram ligeiramente alourados. Vestia uma vestido de cor escura,que evidenciava com maior ênfase a palidez de sua face. Antes que ele dissesse qualquer coisa,ela sorriu, sua voz soou quente e grave quando perguntou :
- Você já vai ? O filme ainda não terminou...
Uma sensação estranha tomou -o por inteiro, um arrepio percorreu seu corpo e o frio que já estava sentido em razão da roupa umedecida pelos respingos da chuva, intensificou-se sobremaneira, assim mesmo, forçando para não demonstrar que algo estava errado consigo, respondeu :
- Já vi esse filme...
A mão que segurava o tecido de sua calça molhada, subiu e acariciou levemente a sua coxa . Um novo arrepio e ele desconcertado sorriu, ela também, em seguida perguntou :
- Me leva com você ?
A voz grave e cavernosa o confundia, ora lhe parecia irresistivelmente sensual,ora,assustadora. Pensou na chuva lá fora, na solidão de seu quarto e no enorme tédio que a chuva constante lhe trazia e certo do que queria. Respondeu :
-Levo, claro que levo, aliás, será um prazer !
Ela levantou –se , antes de tomar –lhe á frente, roçou o corpo no dele, e empertigada caminhou.
Terminada a caminhada por entre as cadeiras vazias, ela, desenvolta, tomou –lhe o braço, e a passos curtos e bem pisados,deixaram a sala de projeção do cinema.
Quando atingiram a calçada da rua, Edmundo notou que repentinamente a chuva que até então caia quase sem parar , estancou. Fechou o guarda – chuva e indagou meio a esmo :
- Será que vai estiar de vez ?
- Vai ! - respondeu ela, com absoluta convicção .
Caminharam ladeira acima. Edmundo com o braço em volta do corpo da moça que se apresentou como Elenice. Perguntou para onde ela queria ir, a moça balançou os ombros e fitando –o com estranha intensidade, respondeu com sua voz extremamente grave e profunda :
- Direto para sua casa !
Ele sorriu satisfeito,havia compreendido. Intimamente felicitou-se por ter saído mesmo debaixo do aguaceiro que caia sem pressa e sem tempo para acabar. Regozijou –se, a noite de sexta- feira estava encantadoramente salva.
Chegaram e foram direto para o quarto.
Edmundo ofereceu –lhe uma bebida que ela, alegando ser totalmente abstemia , prontamente recusou . Depois caminhou devagar pelo quarto, aproximou-se do criado –mudo aonde estava o livro de Edgar Allan Poe , o apanhou e o abriu , dobrou uma das páginas em três partes, fechou-o e o guardou dentro da pequena gaveta , voltou-se para Edmundo que a observava e sussurrou :
- Eu estou pronta! – e com uma enorme e sensual naturalidade, passou a despir-se. A cada peça tirada do corpo, caminhava como se estivesse em uma passarela,após a ida e a volta,recomeçava o estranho e sensual Streep- tease . Tomado pelo desejo, o rapaz, vencido em sua paciência não esperou o final da performance inusitada, acercou –se e colou seu corpo no dela. Estava quase nua, somente a calcinha de Jersey vestia seu corpo gelado, estranhou, e relembrou que no caminho, enquanto andavam, havia sentido a frieza de suas mãos , mas atribuiu ao tempo úmido e ligeiramente frio. Os três dias de chuva constante, havia baixado a temperatura, costumeiramente alta. Deixou de lado as considerações e completamente tomado pelo desejo descontrolado e ofegante empurrou para baixo até vê –la arrastando- se pelo chão , a única peça que ainda restava no corpo de Elenice, que sôfrega lhe lambia repetidas vezes o pescoço e empurrava o próprio corpo ao encontro do dele. Edmundo acariciou o peito de auréola castanha e apesar da frieza do mesmo,o beijou com carinho, sua língua quente e áspera correu pelo bico duro e em seguida passou a sugá-lo sofregamente. Elenice , com avidez , puxava de encontro ao próprio corpo a cabeça de Edmundo , mas continuava gelada, e ao ritmo das caricias, emitia um som gutural,como se estivesse cantando e chorando ao mesmo tempo.
Desatracou –se dele e estirou-se ao longo da cama, seu corpo muito branco era estranhamente atraente. Posicionou –se para recebê-lo, o corpo ligeiramente arqueado , deixando as nádegas alguns centímetros fora do colchão e os braços estendidos para a frente, como que implorando o contato , demonstrava assim quanto ansiava pelo momento da esperada penetração.
Edmundo, rápido como um corisco riscando o céu, desvencilhou-se da cinta que prendia sua calça á cintura e sem desviar o olhar da impaciente mulher que o chamava para cima de si, livrou –se de toda a roupa que lhe envolvia o corpo.
Quando deitou-se sobre ela,notou que apesar da ansiedade e o tempo que já estavam dentro do quarto,fora da friagem da rua, ela continuava muito fria, a bem da verdade, gelada. Deixou de lado o detalhe, afinal ela estava de pernas abertas para ele.
Os braços de Elenice envolveram o corpo de Edmundo, e enquanto ele tentava encaminhar seu membro duro e esfomeado para a cavidade desejada, ela , ofegante e lamuriosa , riscava suas costas com suas unhas longas e sem pintura.
Enquanto entrava e saia de dentro das carnes da mulher,ela, agarrada nele,gemia e até urrava, tal qual um bicho ferido.
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No banheiro,enquanto deixava a água cair sobre o corpo, Edmundo concluiu que dos prazeres já sentidos, sem sombra de dúvidas, aquele foi o mais estranho. Uma sensação que ele não saberia explicar com palavras, mesmo o momento do orgasmo foi diferente de qualquer outro em sua vida. Na verdade foi como se tivesse passado para uma outra dimensão , uma esquisita sensação de desfalecimento ou coisa parecida.
Quando voltou do banheiro ela já estava completamente vestida e pronta para sair. Insistiu para ela pernoitar, a levaria para casa pela manhã do dia seguinte. Com os olhos fitos nele,ela reafirmou que era hora de ir embora.
Edmundo apanhou sua jaqueta no armário e a colocou sobre o ombro dela, a frieza constante de seu corpo, lhe dava entender que sentia frio. Elenice não fez qualquer comentário a respeito,mas como se fosse um robot, repetiu que estava na hora de ir.
A madrugada ia alta e em alguns lugares os galos já cantavam anunciando a chegada de um novo dia, quiçá sem chuva, até então ausente. Aos pulos iam evitando algumas poças de água que floreavam o caminho estendido á frente do casal. O tempo pelo visto se firmara,estava bom e a chuva havia desistido de continuar banhando e encharcando Jequié.
Em determinado ponto da caminhada Elenice apontou para frente, mostrando ao rapaz aonde morava, pediu que no dia que começava a nascer,mais tarde ,ele viesse buscar a jaqueta. Edmundo, gostou da idéia, achou que seria um ótimo pretexto para um novo encontro e concordou , agradecido beijou sua face gelada. Ela, parada defronte a casa aonde morava pediu que ele desse o primeiro passa para a caminhada de volta, e num sopro disse :
-Minha mãe vai te conduzir á jaqueta...
Não compreendeu o exato sentido das ultimas palavras, chegou a achar que ela havia se atrapalhado na formação da sentença,mas para não parecer idiota ou surdo, fingiu que havia entendido e acenando para ela que continuou parada diante da porta ,mas, satisfeito com o rumo dos acontecimentos, tomou o caminho que o levaria de volta para a sua casa.
Por volta das quinze horas do dia seguinte,que era um sábado acalouradíssimo, Edmundo que não conseguia tirar a estranha mulher de seu pensamento, resolveu voltar a casa da mesma, para isto usaria como pretexto a jaqueta,então aproveitaria para revê- lá.
Depois das palmas batida e do toc toc á porta, esta foi aberta. Ansioso ele viu que em vez da misteriosa mulher da noite passada, quem assomou á porta foi uma senhora de cabelos grisalhos e olhinhos curiosos. Passado o primeiro instante pigarreou e perguntou pela moça ? A senhora de cenho franzido e um ar de interrogação no rosto envelhecido, quis saber por que ele a estava procurando? Em poucas palavras contou-lhe que havia emprestado sua jaqueta para uma moça e esta lhe dissera que aquela era a sua casa . A senhora ainda de cenho franzido quedou pensativa, fitou –o demoradamente, como se duvidasse do que ele estava lhe dizendo, visivelmente intrigada perguntou:
- Moço, qual era o nome desta moça ?
-Elenice, este foi o nome que ela me deu...
A senhora,mortalmente pálida recuou, apoiou-se na porta e perguntou :
- Moço, o senhor está tentando brincar comigo ?
Sem compreender o que acontecia ele respondeu:
- Por que senhora ? A troco de que, eu brincaria com uma senhora que nem mesmo conheço?...A senhora pode me explicar o que está acontecendo ?... A senhora pode me dizer onde está a minha jaqueta ?
- Moço, isto é impossível, não pode ter acontecido...
- Senhora, é como eu estou lhe dizendo, eu emprestei para a moça que mora aqui uma jaqueta de....
A senhora ainda encostada á porta atalhou:
- Continuo lhe dizendo que não é verdade, que é impossível, minha filha Elenice morreu há três anos atrás , ontem completou três anos de seu falecimento...
Edmundo pensou na jaqueta,lembrou –se do preço pago por ela, e indignado botou em dúvida o que lhe dizia a senhora visivelmente abalada, e de uma forma ríspida contestou :
- Essa não dona,não me venha com historia para boi dormir, se a senhora tem uma filha com esse nome, é bom me entregar a jaqueta! Não venha com historia pra cima de mim,já vou lhe dizendo, eu não sou otário, vê lá se vou engolir uma besteira destas...Eu quero minha jaqueta dona!
Entre ser ou não ser, a senhora ofendida e em lagrimas , decidiu provar que a filha chamada Elenice estava morta e taxativa ordenou que ele a acompanhasse até o cemitério aonde ela estava enterrada.
Edmundo caminhou pela estrada na companhia da senhora que enquanto andava não deixou de chorar um só momento . Ao botar o pé no portão do cemitério sentiu nitidamente uma lufada de um vento frio bater em seu rosto, espantou-se mas logo reagiu dizendo para si mesmo : -“ ora, era só o que faltava, já me deixei contagiar pela historia contada pelas duas pilantras... com minha jaqueta não vão ficar, vou até o fim, mas não deixo...é muita safadeza..só porque deu pra mim se achou no direito de ficar com a minha jaqueta...é fácil, viu que é coisa de primeira, resolveu não devolver e inventou uma baboseira desta ...eu quero minha jaqueta!”
Em companhia da senhora andou pelos intrincados caminhos do cemitério , ao aproximar-se do túmulo , aonde a senhora imediatamente ajoelhou,constatou que dependurada sobre a cruz escura de madeira, estava a sua jaqueta. Em sua cabeça um turbilhão de idéias ,seu pensamento voltou á noite anterior e angustiado lembrou-se de como o corpo da mulher lhe pareceu gelado. Trêmulo e confuso puxou sua jaqueta que cobria parte da lápide , embaixo dela uma fotografia de Elenice, logo abaixo do retrato uma inscrição , que batendo os dentes um no outro ele leu : Elenice Freitas de Almeida. Nasceu em 02 – 07 - 1934 faleceu em 27- 11- 1956.
SHIRLEY DE QUEIROZ
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