QUEM DIRIA !!!?
PELA PERIFERIA
Brandindo furiosamente, a panela opaca, e amassada, no ar, dona Severina, mulher de meia idade, de cara maltratada e roupa desbotada pela constância do uso , andou pra lá e pra cá na pequena cozinha de seu acanhado barraco. Uma ponta do cabelo,que escapara do birote mal feito,teimosamente insistia em cair sobre o rosto muito vermelho,que parecia prestes a explodir. Do outro lado, trepado sobre a velha e pardacenta mesa de cozinha,Zezinho, com lagrimas nos olhos e já marcado pelas pancadas recebidas, tentava a todo custo, escapar dos golpes desferidos, pela irada mãe.
Dos três filhos de dona Severina, ele, Zezinho, era o mais velho. Magro, de estatura mediana e rosto bonito. Crescido ao Deus dará, nas perigosas e pouco confiáveis ruas do Jardim Brasil. O pai ? Um dia, sem aparente motivo, sumiu no mundo e dona Severina, confusa por não conhecer o motivo de tal comportamento, se viu apurada com uma criança de dois anos de idade e outra a caminho.
Durante alguns dias se fechou em seu desconfortável barraco e chorou a falta do marido fujão, mas assim que avistou o fundo da lata de arroz, sentiu medo, dos próximos dias, e, apesar da volumosa barriga, partiu como uma leoa faminta, para a luta da sobrevivência .
A duras penas, arranjou um emprego em uma granja, e, enquanto ela degolava e depenava frangos, Zezinho, na inocência de seus dois anos de idade, perambulava de porta em porta, pela favela aonde morava, sendo as vezes escorraçado e até mesmo surrado pelos mais covardes e insensíveis . Comia somente quando a vizinha de dona Severina, que ficara encarregada de , de vez em quando lhe dar uma olhadinha, se lembrava. E como ela, também tinha suas próprias preocupações, o garotinho ficava esquecido , e a acertada “olhadinha”, só ocorria, quando o dia já ia longe, apressada e cheia de remorsos , ela corria ao barraco de dona Severina, e de lá apanhava a marmitinha contendo a comida que já ficava preparada, nesta hora botava boca no mundo, gritando pela criança que perambulava pelo acidentado terreno da favela, quando Zezinho aparecia, ela lhe entregava a refeição que por conta da pressa,era sempre mal esquentada , e ele a comia, sentado no chão frio, de barro batido de um barraco vazio de mãe,
Ás vezes não se limitava a ficar sentadinho e comer,queria conversa e companhia,então andava de porta em porta, carregando sua marmitinha e mostrando seu arroz frio e melado por um ovo mal frito. Várias foram as vezes que Bob, o cachorro de Cidona, associou-se com ele,comendo ambos no mesmo prato, ou desavergonhadamente roubou-lhe toda comida, abocanhando tudo com voraz apetite, deixando-o choroso e esfomeado, mostrando o pratinho vazio a cada um que por ele passasse, e se por acaso bob voltava, ele escondia atrás das costas o pratinho vazio e o choro se intensificava até a chegada da mãe.
Meses depois nascia o segundo irmão. Por algum tempo dona Severina se viu obrigada a ficar em casa, não teve outra alternativa senão deixar a granja e arranjar uma nova ocupação; passou a lavar roupa para fora, por maior que fosse as necessidades, não poderia deixar sozinho um recém – nascido, e na creche do bairro, aonde inúmeras vezes recorreu, ela teria que aguardar uma vaga, que nunca chegou . E então, Roberto Carlos, o segundo filho, também se adaptou a vida precária da favela aonde moravam. Na medida do possível , e a trancos e barrancos, cresceu. E quando Zezinho completava três anos de idade, ele Roberto Carlos , cumpria o seu primeiro ano de vida.
E foi nessa ocasião, que dona Severina conheceu Vavá, um marreteiro que depois do terceiro copo de cerveja, se tornava desenfreadamente violento .
E entre tapas e delegacias, com seis meses de união, um não podia sequer, ver a cara do outro, sem engalfinhar-se , ou se entregarem a uma desrespeitosa troca de ofensas.
E , depois de mais uma contenda entre os dois, o marreteiro Vavá , recolheu seus pertences, e sem sequer dizer até logo, foi embora , deixando dona Severina, no sexto mês de uma gravidez indesejada.
E assim novamente ela se viu em uma sinuca de bico,estava diante da situação de sempre, era urgente arranjar algum trabalho. E mais uma vez ela bateu de porta em porta, no final do dia havia retomado as antigas lavagens de roupa.
No dia que José Luís nasceu, ela esteve diante do velho tanque até as dezoito horas , ele nasceu as dezenove e trinta e cinco.
Aos sete anos de idade, Zezinho já estava transitando pelas feiras, abordava e insistentemente tentava vender saquinhos de limão. Pedia sobras e ate equilibrava pesadas sacolas sobre a cabeça, isto, por conta de ainda não possuir seu próprio carrinho, mas já sonhava e a noite depois da novela, que era somente quando dona Severina lhe dava alguma atenção, ele carregando na satisfação,dizia para ela, que logo teria o seu. Com um carrinho ficaria mais fácil carregar as compras das freguesas da feira. E segundo ele, seu sonho era um carrinho feito com rodinhas de rolimãs.
Enquanto isto, Roberto Carlos, apesar de sua pouca idade, já ajudava a mãe na entrega da roupa lavada, e até mesmo, na hora de estende – la , apanhando e lhe entregando, peça por peça nos baldes abarrotados de roupas torcidas.
José Luis o caçula , distraidamente, puxava por um fio de barbante encardido, um carrinho sem roda, sujo e na maioria das vezes pelado, perambulava pela favela e cantarolava trecho de musicas que ouvia no rádio
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Dona Severina nunca deixou um só dia, de enfrentar o encharcado tanque de lavar roupa, de onde, ela tirava o sustento dos três filhos, e o próprio. E assim , cresceram os três
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E, ali na acanhada cozinha, dona Severina ,munida de uma velha panela , espancava o filho, que depois de tentar fugir aos golpes desferidos pela irada mãe, tentou esquivar-se dos mesmos, subindo sobre a mesa. Em cima da mesma, aos gritos implorou que a mãe parasse, procurou escapar da dureza das surdas paneladas sobre seu pequeno corpo. Ela, vermelha e irada, gritava ao mesmo tempo que batia:
- Você está pensando que somos milionários, seu condenado? Desde quando eu te dei permissão pra jogar ? Não enxerga que a gente não tem nem pra comer?!...Como é que vai jogar dinheiro fora seu condenado ?
Ele, enquanto tentava lograr o ataque da mãe furiosa, com os braços esticados para a frente, tentando evitar os certeiros golpes, explicava aflito:
- Mãe, ô mãe!... Mas na loto todo mundo joga mãe...todo mundo joga!!!
-Todo mundo uma pinóia seu bastardo! Com o dinheiro que tu gastou nisso, dava pra comprar três quilos de feijão !!! - e juntando a ação ás palavras, Zezinho continuou apanhando
Neste mesmo dia, quando a noite chegou, Zezinho, todo marcado pela surra levada, com seu cartão numa mão e uma caneta na outra, sentado sobre a desarrumada cama, aonde seus dois irmãos brincavam de luta livre, ele, alheio aos tapas e ponta – pés desferidos e trocados por José Luis e Roberto Carlos, marcava o resultado que a velha televisão, comprada de terceira mão do homem lambanceiro que morava na esquina da Avenida Mendes da Rocha, dava .
Zezinho levantou-se , a surra lhe deixara capengando, e , pulando numa perna só, chegou até a porta da cozinha. Seu rosto marcado pelos golpes da panela, apesar da dor sentida, abriu -se num largo e dolorido sorriso, não queria ser escutado mais adiante, abaixou o tom de sua voz para dizer:
-Mãe!... Vem ver, o cara do jornal disse que só houve um ganhador.... E que o prêmio estava acumulado.... Olha aqui, olha,confira...eu já conferi...
Numa mão o cartão, na outra o papel aonde ele anotou o resultado:
Quina feita !
SHIRLEY DE QUEIROZ
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