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ELEOTERO, O MORTO INCONFORMADO
PELA BAHIA...
shirley de queiroz

Resumo:
A lenda de um aguadeiro mal sucedido que fica rico da noite para o dia, a seca inclemente que abate jequié, e as crianças desaparecidas que...

ELEOTERO, O MORTO INCONFORMADO


PELA BAHIA

Juarez Calado, parou e olhou   o morro que ia subir, assim que   para isto ,tivesse fôlego. Horrorizado olhou a sua volta e abismado, de queixo caído , constatou o estrago que a seca inclemente, vinha fazendo na vegetação, antes   verde e promissora, agora, o que   seus olhos enxergavam , eram os galhos secos e retorcidos    que de relance,   lhes pareciam estranhos espectros,   clamando por socorro.
Angustiou-se e sentiu o peito apertado, lembrou-se que no cemitério , aonde   trabalhava, era o coveiro , a situação estava   de igual para pior... As plantinhas, cultivadas por ele     e pelos familiares , dos que ali descansavam,   haviam morrido todas. Apenas os galhos secos e dissimulados das teimosas sempre- vivas, aparentemente resistindo, mas na base, já tão mortas quanto as margaridas, angélicas , cravos e outras   ali plantadas.                  
Era um cenário   seco e deprimente, aonde as covas, tumbas e túmulos , recebiam da mãe natureza o mesmo inclemente castigo.
A seca devastadora, ia a seu modo, devorando tudo , destruindo o verde, e carregando a vida. Silenciosa e traiçoeira, ia acabando com tudo, sem poupar nada, atingindo até mesmo a beleza construída sobre os túmulos, pelas mãos magras e habilidosas do   paciente e dedicado Juarez Calado....
Entretanto, apesar da seca ser um problema extremamente sério   e estar também lhe tirando o sono, no   momento, o que mais lhe afligia, era o túmulo negro, frisado nas   bordas de dourado, do finado Eleotero, que pela terceira vez , estava rachando. E para quem duvidasse   e quisesse ver, lá   estava a grande e enigmática fenda,desafiando os céticos
A menos de um mês, ele, o túmulo, havia sido refeito, por haver sem explicação nenhuma, rachado ao meio, deixando   Juarez Calado, homem de muita coragem, que sem medo de   coisa nenhuma ,   era o constante companheiro vivo dos mortos, e toda    a população de Jequié inquieta e assustada.
Contudo, o mais grave de tudo, era os   boatos sobre as crianças, mas aí, também sobrava para Juarez Calado,   que por viver só e introvertido que era, ganhou, por conta de algum gaiato, o triste apelido de   “ papa –anjos “, e, por infeliz coincidência , cada vez   que uma criança   desaparecia, ele havia estado no lugar, ou de certa forma tivera algum contato com ela, e isto, acabou lhe valendo, alguns momentos de medo e muita apreensão, nas mãos dos pseudos-justiceiros.
Por outro lado havia um grupo que afirmava convicto, que a verdadeira causa do desaparecimento das crianças, era a viúva de Eleotero
Mas, seria possível acreditar no real envolvimento, da viúva de Eleotero, com as tais crianças desaparecidas ? Na verdade, ele, Juarez Calado , até não acreditava naquelas estórias ,   o caso do túmulo não podia negar, era, quisesse ou não, fato real, e sobretudo presenciado por ele. Estava lá   para quem    quisesse ver, uma fenda enorme, como se alguém quisesse por ali passar.
Juarez   Calado, secou o suor da testa   porejada e depois guardou no bolso traseiro   de sua calça caqui   , o lenço encardido e embolado . Cruzou os braços na frente do peito magro e correu seu olhar inconformado   pelas paragens secas. De onde estava avistou o Rio das Contas , que no momento era uma minguada faixa de água, e para completar, nem uma piaba para provar que estava vivo, agonizava. Apenas areia grandes bancos de areia, sobre ela, um bando de urubus agourentos   e vagabundos, buscavam as carcaças    mal cheirosas, dos animais que por absoluta falta de água ia entregando os pontos. Deitavam-se, sobre o solo escaldante, penosamente agonizavam por um certo tempo   e depois , sem outra opção, morriam, servindo assim de banquete para as aves oportunistas
Deveras entristecido, Juarez Calado, voltou seu olhar para a ladeira que ainda ia subir. Tinha pela frente um morro inteiro, e ele, a uma caminhada de pequena monta,                     vergonhosamente, por conta do sol escaldante que lhe esturricava a cabeça, já estava fraquejando. Agastado, esmorecido, novamente lembrou-   se do túmulo e por associação com o Rio das Contas, lembrou –se da estória do finado Eleotero, que era, há tempos atrás, um aguadeiro,e entre todos que ali atuavam ele era o pior de todos, um mal sucedido aguadeiro
Em Jequié, naquela época, poucas eram as casas que tinham o privilégio da água encanada, e assim é, que na cidade, existia o ofício de aguadeiro . Mesmo fora da seca, eles passavam conduzindo seus jegues, que palmilhavam as ruas , carregados com   corotes   pesados,   que vazando, iam   fazendo um rastro na terra     empoeirada, das ruas da ensolarada Jequié . E a cada porta que passavam gritavam , tentando vender o seu produto:
Aguadeiro!!! Olha o aguadeiro!!!
Entre todos eles estava   Eleotero, que era homem de pouca sorte, ou quem sabe, não sabia colocar o seu produto. Em toda porta que batia   alguém já tinha   batido antes. Enquanto os outros faziam várias viagens ao rio em busca do líquido precioso, ele, chicoteando seu   jegue e blasfemando feito um desvairado, andava a cidade quase toda para vender uma única carga.
Ia de mal a pior, e um dia depois de uma consulta a pai Condé, o feiticeiro local, que na época já tinha seu ranchinho construído   no alto do morro , e também já dava suas consultas em troca de uma bugiganga qualquer , ele saiu com um ar determinado de quem ia mudar de vida, evidente que   da boca de pai Condé, havia saído alguma previsão muito boa
Nesta mesma semana, quando a meia noite de Sexta feira despontou, lá estava Eleotero aguardando sua chegada. Segundo os que contam, com a convicção de quem viu,ele segurava um papel   e uma faca. Com ela, dizem, cortou-se e no papel assinou seu pacto com o chefe das profundezas
E então, como em um passe de mágica, a partir daí, a vida de Eleotero mudou. Literalmente, enriqueceu da noite para o dia.
Jamais alguém descobriu de onde veio tanto dinheiro.
A verdade é que saíram   do velho Barro Preto, aonde sempre moraram, para a área   nobre da cidade.
Eleotero e esposa, instalados na nova   e belíssima casa, começaram a desfrutar das vantagens de serem ricos. E as festas, era uma após outra.
E enquanto puderam ostentaram uma vida soberba,digna de inveja,até que, sete anos depois do maravilhoso começo, ele, sem maiores motivos, morreu. Morreu no meio de um   grande   baile dado em dos salões de sua esplêndida casa .
E, como todo defunto, não lhe   restou outra alternativa, senão ser enterrado, e o túmulo que recebeu   seu corpo, era   dos mais   bonitos, ofuscando acintosamente todos os demais que no cemitério já estava. Contudo,     vinte e um dia depois de   enterrados aconteceu:
Era meia noite em ponto, quando   Juarez Calado, acordou sobressaltado, com o barulho ouvido, um chiado grosseiro e estrondoso, como se alguma coisa de grande porte estivesse sendo rasgada. Juarez Calado, a principio   sem medo, mas curioso, levantou-se e tentou ver o que se passava. A escuridão absoluta, dominava e escondia tudo. A trêmula e azulada chama de seu candeeiro não   foi suficiente e sem contar que o vento teimoso a apagou todas as vezes que ele tentou sair, contrafeito notou que na caixa de fósforo ,restavam poucos palitos e desistiu da investigação, assim sendo não foi possível saber o que passava lá fora. Resmungando palavras sem   sentido, voltou para baixo de sua rala coberta, o que quer que fosse esperaria pelo dia   seguinte.
E seis horas da manhã, quando pulou fora da cama,antes mesmo do tradicional cafezinho puro que costumava tomar, caminhou pelo cemitério em busca do motivo do estranho barulho da noite passada . Demorou pouco para encontrá-lo .E estupefato deparou   com o túmulo de Eleotero, rachado ao meio , uma rachadura tão   grande quanto o palmo feito pela mão de um homem de bom tamanho.
Ao levar a notícia para Elisa, a viúva de Eleotero, percebeu que ela estava diferente da mulher tranqüila   que costumava ser. Tinha os   olhos   pesados, cercados por profundas e marcadas olheiras , uma certa aflição estava estampada em seu rosto e também marcava seus gestos trêmulos .
Em menos de três dias o túmulo de Eleotero estava refeito. Mas, como da primeira vez, vinte e um dia depois o fenômeno se repetiu; o mesmo barulho aterrador, no mesmo horário; E no dia seguinte,   a constatação   da mesma rachadura. Desta feita a viúva   não   teve tanta pressa em   recompor o túmulo enigmaticamente partido, esperou algum tempo e foi aí que principiou   o boato:diziam   pelos bares, vendinhas, casas, feiras e até    bordeis , que Eleotero, arrependido de seu pacto com o senhor das trevas, estava querendo livrar-se do mesmo, e para tanto, em sonhos que varavam noites a dentro , exigia de sua assustada viúva, o sangue de uma criança bonita e fisicamente perfeita.
E foi assim que em Jequié, nasceu a lenda das crianças desaparecidas. De tempo em tempo, contava-se que em determinado lugar, uma criança bonita era encontrada morta e sem uma única gota   de sangue no corpo; enfiada em sua boca, uma cédula , que era o   pagamento pelo sangue   retirado.
Mas, nunca em todo seu tempo   de policial, o delegado Arnô, recebeu qualquer queixa nesse sentido. Contudo, Jequié inteira jurava ser verdadeiros os casos contados.
Ainda havia uma turma que defendia a memória de Eleotero, ou senão, tinham medo dele , estes, a cada pseudo desaparecimento de alguma criança, preferia   acusar o pobre Juarez   Calado , que não era rico, nem tinha pacto com o diabo, e aí, formava o grande reboliço, até alguma coisa acontecer para livrar o   pobre das mãos    dos que dele , suspeitavam,
Na maior parte das vezes a criança em questão, era, depois de algumas horas, encontrada sã e salva .


///////////////////////

Juarez Calado novamente enxugou a testa   porejada com o lenço encardido e outra vez o embolou e o guardou   no bolso traseiro da calça. Respirou fundo, tomou coragem e reiniciou   a sua subida ao morro. Precisava aconselhar-se   com pai Condé, e ele era indubitavelmente a pessoa mais indicada, o túmulo de Eleotero, tantas   vezes refeito, tinha rachado   de novo.

SHIRLEY DE QUEIROZ


Biografia:
Shirley de Queiroz, nasceu na ensolarada Jequié-Bahia no dia 05-10-1943.É autora de Unidos na Solidão, Sala de Aula, Confissões de uma Pomba-Gira, Adelaide Carraro no Mundo Cão de Silvio Santos, e autora de muitos contos,que escreveu para revistas de circulação nacional. Tem um novo livro para ser lançado,que ja está sob avaliação de algumas editoras, chamado : - Minha Incrivel Passagem pela Cadeia.
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