A MORTE DO RIO DAS CONTAS
PELA BAHIA
Meados de junho, um calor sufocante e insuportável, judiava sem dó nem piedade, dos Jequieenses . As pessoas, atemorizadas com a força do sol que o dia inteiro rachava mamonas, só saiam para a rua, á noite, quando a temperatura inclemente, baixava um pouco. Indubitavelmente o Rio das Contas , onde antes pequenas embarcações, por ele navegavam, fazendo o transporte do hortifrutigranjeiros, por conta da grande e impiedosa seca, agonizava. Agora, com seu leito noventa por cento seco, apenas um fio d’água descendo preguiçosamente, leito abaixo, estava transformado em poleiro de vagabundos urubus , que gingando pra lá e pra cá , e bicando uns aos outros,andavam em busca de prováveis carniças, restos dos animais mortos pela fome inclemente
Elisa, a viúva de Eleotero, depois de mais alguns boatos sobre crianças,encontradas sem uma gota de sangue no corpo, mandou novamente refazer o túmulo de seu inconformado, rebelde, e morto marido.
Á noite, nas ruas, as pessoas que tinham por costume botar seus banquinhos para fora e que nas calçadas , proseavam até a chegada da imperiosa hora do sono , agora, só abordavam um assunto: a seca, e, em pouco tempo, á boca pequena, correu um boato que o finado Eleotero, era o grande culpado pela situação. Falavam a respeito e em seguida temerosos , se benziam, ou mesmo batiam na própria boca , se auto- castigando por mencionarem o maldito nome.
************
Nesta noite, Enedina se mostrou ansiosa e inquieta, já a tarde fizera comentários a respeito da chuva que estava para chegar . Madalena, sua patroa, debochada riu de suas previsões e contestou com a firmeza dos céticos:
-Vai chover coisa nenhuma, quem te disse que em Jequié, nuvem negra é sinal de chuva ? Pra teu governo, lá para os lado do Mandacaru, faz mais de uma semana que estão escuras, negras, carregadas!
Enedina, rosto gasto pelo tempo, olhar voltado para o céu, cenho franzido, e a boca apertada, na expectativa, olhou pela janela, mordeu o lábio inferior,como era de costume e, com a certeza dos que de fato sabem, respondeu á patroa incrédula :
- São nuvens pesadas, da pra ver.. To sentindo que é chuva,sim... E espia que pra bem da verdade, é chuva da grossa ...chuva braba , que vem por aí. E espia direitinho o que to dizendo: não passa de hoje ! Vai ser um aguaceiro medonho!!!Aguaceiro dos grandes... – benzeu-se e continuou: - com a graça de Deus, o Rio das Contas, vai nascer de novo! Do jeito que tá é uma judiação, o pobre, ta mais morto do que vivo.
Madalena, diante de uma grande mesa, no centro de uma sala espaçosa e de pouca mobília , desmontava e limpava algumas armas. Empenhada no que fazia, sequer fitava a velha e arengueira empregada, que encostada na janela estreita e comprida, olhava para o céu com a insistência dos aflitos... e a certeza dos sábios. Sem se dar conta, torcia sistematicamente a ponta do aventalzinho de mescla azul . Completamente alheia, mas concentrada no que fazia, Madalena que experimentava o cão de um revolver, quase com descaso, resmungou automaticamente :
-Deus te ouça...
E a noite, quando o primeiro relâmpago cortou o céu, Enedina, correu para a sala aonde Madalena, sozinha, e absorta, jogava paciência. E, com o olhar brilhante de felicidade, atropelando as próprias palavras , exclamou ;
-Eu não disse que não passava de hoje ? Ó paí, ó , tá relampeando !
De fato, as nuvens eram pesadas e ameaçadoras, deixava assustado e de coração fechado, quem para elas olhasse. Por outro lado, era a tão pedida e desejada chuva que ia chegar , que molharia o chão recoberto com palmos de poeira e gretado pela seca mais rigorosa que qualquer outra. E a maioria, apreensiva e com o coração aos pulos, se preparava para condignamente, recebe –la
Após o sexto minuto do primeiro sinal da chuva, na rua já não se via, viva alma . Cachorros, escondidos, uivavam dolorosamente e ganiam sem parar Até mesmo os gatos, ouriçados e de olhos arregalados, recolhidos,em algum canto,observavam á sua volta , atentos aguardavam a chuva, que a qualquer momento poderia começar. O céu escuro, e ameaçador, era continuadamente cortado pelo brilho dourado dos relâmpagos assustadores.
Enfurecido barulhento e determinado, o vento, em sua sanha irascível, arrastava papeis, folhas e galhos, formando redemoinhos assustadores. Furioso e incontralado, chicoteava as árvores que tendo suas copas duramente fustigadas, gemiam sem parar e apavorava as crianças, já guardadas dentro de suas casas. Algumas agarradas as saias de suas mães, choravam assustadas . Os trovões , com uma força jamais vista, ou conhecida, pareciam Deus, os acusando pôr alguma falta muito, muito,muito grave.
O ponteiro do relógio cuco, ao lado da janela comprida e estreita na sala de jantar da casa de Madalena, cravou meia noite, e neste exato instante, os primeiros pingos da chuva molharam a terra seca e sedenta de Jequié. E neste instante, um som abafado, estranho e grandioso, foi ouvido por todos. Enedina, que ao lado da patroa aguardava os acontecimentos, arregalou os olhos temerosa e indagou:
-Ouviu isso ?
Madalena botou de lado o baralho com que brincava e assentiu:
-Sim....ouvi sim, deve ter sido um trovão que não deu certo...
O olhar de Enedina, marejado pelo medo, cravou na figura da patroa, balançou a cabeça desacorçoada e amedrontada pediu:
- Dona Madalena, pelo amor de Deus , por favor eu lhe peço, não brinque com essas coisas! Eu ouvi direitinho, foi a terra ! Eu tenho certeza, isso não veio do céu, veio daqui de baixo, ó!... Veio da terra, que por certo, está agradecendo a chuva que vai cair....ou....- calou-se por um instante, correu o olhar amedrontado pela espaçosa sala, engoliu seco e tentou continuar, mas estava travada :
- ou...
-Ou.,... – repetiu Madalena com o olhar cravado nela, aguardando que prosseguisse. A velha empregada engoliu seco de novo , fechou os olhos e de uma só vez , quase gritando, despejou :
- Ou ta expulsando dela, alguma coisa que não quer... –Parou , tomou fôlego e alguns segundos depois continuou : - quem sabe algum morto indesejado?....Quem é que sabe?...
Madalena riu, balançou a cabeça contestando. Trocou uma carta do baralho por outra e bem humorada retrucou sem olhar para Enedina :
-Viu ? E é por estas e outras, que eu amo este sertão de Jequié... Não é por nada não, mas esta é uma cidade encantada, aqui da de tudo!...E é pôr isso que... - fitou Enedina zombeteiramente e desafinada cantarolou :
-Daqui não saio, daqui ninguém me tira !
E durante uma semana inteira , o céu continuou mandando água, ora mais fraca, ora mais forte, sem parar. E tudo virou um lameiro só, eram poucas as ruas pavimentadas, e os que antes sofriam pela seca , agora, reclamavam do excesso de água. Houve até quem dissesse cheio de medo , que a culpa do aguaceiro que vinha do céu e que ensopava Jequié inteira, era a música “ Tomara que chova “ que era o sucesso da época.
E Jequié, que angustiado quase viu morrer o seu encantado Rio das Contas, agora para alegria dos filhos da terra, o tinha de volta.
Mas, no fim de seis dias, algumas pessoas curiosas e apreensivas,corriam para a ponte,outras para os barrancos, a intenção era ver de perto o dantesco espetáculo das águas. Ele, que há alguns dias atrás era apenas e tão somente um triste e agonizante fio de água, tomava agora um novo aspecto : Estrondoso, furioso e impiedoso, vinha de margem a margem e vinha carregando consigo, tudo o que encontrava pela frente.Sua água, antes límpida e transparente, era agora barrenta e espumante. Barulhento, intempestuoso e agressivo, ele roncava e as vezes, nitidamente gemia.
Na força de sua fenomenal correnteza, arrastava grandes arvores , animais mortos, móveis e até casas que vinham inteiras boiando espetacularmente nas águas bravas e barrentas.
Júlia, com o seu melhor vestido, penteada e ligeiramente assustada, não arredava os pés dos fundos de sua casa, de onde, torcendo as mãos nervosamente, presenciava tudo. Em seu íntimo uma pergunta não abandonava sua cabecinha confusa :
-Estaria o Rio das Contas, voltando a ser o de sempre ?
SHIRLEY DE QUEIROZ
|