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Resumo - Introdução ao estudo da propriedade
Isadora Welzel

O direito das coisas se situa no livro III da parte especial do Código Civil, e diz respeito ao estudo da relação entre um indivíduo e o seu patrimônio/propriedade (bens móveis e imóveis). O direito das coisas trata de direitos reais, e aqui se destaca uma primeira diferenciação entre o direito das coisas e os direitos obrigacionais, visto que esses últimos se referem a direitos pessoais. Como se vê, há alguns pontos de intersecção que inclusive servem de comparação/distinção entre os direitos reais, no qual o estudo do direito das coisas se insere e os direitos pessoais, referentes às obrigações sujeito - sujeito.

O direito das coisas não afeta somente o indivíduo em sua relação com a coisa, mas sim tem efeito erga omnes, ou seja, gera efeitos oponíveis contra todos em razão da publicidade dada pelo registro do bem. Neste sentido, diz-se que o direito das coisas é um ramo forte do direito privado, tendo como finalidade a maximização da segurança jurídica ao indivíduo e ao seu patrimônio.

O livro III do Código Civil se inicia no art. 1.196, com o tema da posse, e se encerra no art. 1.510-E. Sobre a posse, importante mencionar que ela se diferencia de propriedade, vez que a posse em si é um fato, tornando-se uma propriedade após o registro do bem. É interessante notar como as construções jurídicas sobre o assunto refletem a história da propriedade brasileira, devendo o direito das coisas ser estudado sob uma perspectiva coletiva.

A propriedade é um direito real, mas os direitos reais também se classificam em: direitos reais em coisa alheia (uso, habitação, usufruto, superfície) e direitos reais em garantia (hipoteca, penhor, anticrese, alienação fiduciária), além de outros que serão aprofundados adiante.

1. Titularidade dos sujeitos de direitos em relação aos seus objetos de direitos (bens):
• Direito pessoal (obrigacional): refere-se à relação sujeito-sujeito, tratam-se de relações com amplas liberdades de pactuar e dizem respeito apenas aos sujeitos envolvidos (eficácia inter partes) ex: inquilino-locador, embora seja possível que gerem efeitos erga omnes por meio de sua publicização.
• Títulos de crédito: ex - cheque, nota promissória (transmissibilidade)
• Direitos da personalidade: dimensão existencial, não apenas patrimonial
• Direitos reais: expressam uma titularidade que foca no exercício de dominação de um sujeito de direitos sobre uma coisa, que é o objeto dos direitos reais. Fica a cargo dos direitos reais especificar e limitar essa relação. Ex: propriedade, superfície, usufruto. Há um rol taxativo de direitos reais, e seu exercício gera efeitos erga omnes. Diz respeito a um universo maior de titularidade, com princípios e características próprias
• Posse: para a ampla maioria da doutrina, a posse não é um direito real, não está prevista no rol do art. 1.225 do Código Civil, que delimita os direitos reais. A posse é um fato da vida vivida/um acontecimento que se dá por uma ocupação justa ou clandestina, e disputas no âmbito da posse se resolvem de maneira distinta de um direito real. No caso de perda da posse, a ação cabível é a de reintegração de posse, já no caso de iminência de sua perda, tem-se o interdito proibitório. Por sua vez, no caso de proprietário não possuidor, ajuíza-se a ação reivindicatória, com o devido registro. A ação reivindicatória se diferencia da reintegração de posse, porque nesta, a pessoa tem a posse, mas é dela privado, já na reivindicatória, a pessoa tem o título de propriedade mas não a posse, que está sendo exercida por outra pessoa. Válido destacar ainda que o imóvel de posse tem valor inferior quando comparado com o imóvel registrado, visto que esse último pode servir de garantia.

A classificação acima tem uma utilidade prática, e toca os temas do direito de acesso à propriedade e da economia compartilhada/multipropriedade, sendo que esse último consiste em uma propriedade sobre a fração de tempo (time-sharing) - este fenômeno se iniciou no âmbito do direito do consumidor, e quando registrado, o time-sharing recebe o status de multipropriedade, que em determinadas situações, pode ser uma solução mais benéfica. A propriedade sobre o imóvel, salienta-se, dá-se somente após o registro do bem em cartório de registro de imóveis.

2. Direitos das coisas X direitos reais
Prevalece o entendimento doutrinário de que os direitos das coisas distinguem-se dos direitos reais, conforme defendido por Aronne, por exemplo. O direito das coisas é entendido como mais abrangente, e esquematicamente, pode-se dizer que os direitos reais não incluem a posse, enquanto o direito das coisas se refere aos direitos reais + posse. Para Serpa Lopes e Venosa, que seguem um entendimento minoritário, direitos reais e direitos das coisas são sinônimos.

Quanto ao tratamento legislativo dado ao tema, percebe-se que o direito das coisas sempre sofreu muitas novidades legislativas, mas foi afetado de maneira significativa por uma alteração topográfica, migrando do livro II do CC para o livro III e sendo relegado a um segundo plano, sofrendo uma desvalorização em razão das alterações fáticas e de uma concepção diversa das novas gerações sobre a propriedade.

3. Propriedade X domínio (distinção doutrinária)
Nem o Código Civil nem o Código de Processo Civil se ocuparam de distinguir propriedade de domínio. Darcy Bessane pertence a uma parcela doutrinária que entende enquadrarem-se como propriedade tanto os bens corpóreos quanto os incorpóreos, enquanto que o domínio engloba apenas os bens corpóreos.

Todavia, prevalece a ideia de que propriedade e domínio são conceitos distintos, e que o domínio é uma faceta interna a propriedade, sendo esta exercida externamente perante todos, de forma que o domínio tenta explicar o que é exercer a propriedade (Aronne), definindo os poderes e deveres ao exercício da coisa, e se expressa nas seguintes formas:
• jus utendi (usar)
• jus fruendi (fruir)
• jus disponendi (dispor)
Há ainda um quarto poder-dever do domínio que é a possibilidade de reaver o bem - relaciona-se ao direito de sequela (alcançar, perseguir a coisa).

4. Coisas X bens
Os bens são uma expressão mais ampla, abrangem valores, podem ser materiais ou imateriais, e se localizam na parte geral do Código (bens jurídicos). Por seu turno, as coisas dizem respeito à realidade corpórea, àquilo que pode ser objeto de assenhoreamento.
A súmula n. 288 do STJ assim preleciona: “é inadmissível o interdito proibitório para a proteção do direito autoral”.
Nessa seara, persiste o questionamento acerca da posse sobre bens incorpóreos.

5. Patrimônio
O patrimônio não foi uma matéria abordada no Código Civil de 2002, mas se trata de uma universalidade de direitos com suas respectivas obrigações, e um meio de responsabilidade obrigacional, vez que o patrimônio de um sujeito por vezes responde por seus atos.

6. Direito obrigacional e distinções
O direito obrigacional orienta-se pelo relativismo e possui 3 elementos: sujeitos, prestação (entregar, pagar, fazer, restituir) e vínculo jurídico. Diferentemente dos direitos reais, que possuem apenas 2 elementos: o sujeito e a coisa, e tem por principal característica o absolutismo.

Cumpre ressaltar que esse aspecto absoluto não tem significado de um direito ilimitado, mas sim no sentido de gerar efeitos, por meio da publicidade, perante terceiros (contra todos/erga omnes), o que para a teoria personalista, corresponde à ideia de um sujeito passivo universal.

A transferência da propriedade de um bem imóvel ocorre pelo registro do imóvel, enquanto que a transferência da propriedade de bens móveis se dá pela tradição. E além do absolutismo, os direitos reais tem como características também a elasticidade e a taxatividade.
Esquematicamente:
Direitos reais                      Direitos obrigacionais
absolutos - erga omnes       relativos - inter partes                     
imediatidade                      mediatidade
jus in re (sobre a coisa)      jus ao rem (direito à coisa)
objeto: coisa                      objeto: prestação
permanentes                      transitórios
taxativos                             exemplificativos

7. Características dos direitos reais
7.1 Absolutismo: relaciona-se à eficácia erga omnes mediante a publicidade que se dá pelo registro, não significa que se tratam de direitos ilimitados.

7.2 Permanência: mesmo diante da inércia do proprietário, salvo exceções como a usucapião.

7.3 Elasticidade: decorre de um desmembramento do domínio, possibilitando uma dissociação dos poderes-deveres do proprietário pleno - usar, fruir, dispor, revaer (carga dominial). A elasticidade possibilita desmembrar essa carga dominial. Ex: proprietário de um imóvel permite que outra pessoa use o bem até a morte (relação entre usufrutuário e nu-proprietário, sendo que esse último continua com a prerrogativa de dispor, por exemplo). Se o nu-proprietário possui uma dívida, levando o imóvel a leilão, o arrematante está sujeito a respeitar o usufruto, se registrado, vez que há publicidade perante terceiros. Em resumo, a elasticidade possibilita a redução da carga dominial, deixando de ser proprietário pleno e passando a gozar de uma propriedade limitada, considerando que o usufruto, por exemplo, é um direito real exercido em coisa alheia.

7.4 Preferência: há uma preferência das garantias reais em detrimento das garantias pessoais. Cumpre lembrar que entre as garantias reais, estão o penhor, a anticrese e a hipoteca, sendo essa última um gravame exercido por um banco, por exemplo, em coisa alheia. Um eventual imóvel hipotecado terá preferência para saldar uma dívida, visto que as garantias reais são mais fortes que as pessoais. No entanto, a hipoteca enquanto instituto é bastante fraca no Brasil, isto porque ela cedeu espaço para outras preferências legais, inclusive decorrentes da lei. Ganhou espaço no cenário das garantias a alienação fiduciária enquanto solução de segurança jurídica para os bancos, que são proprietários do bem, exercendo direito sobre coisa alheia, diferentemente da hipoteca, em que a propriedade permanece com o devedor.

7.5 Sequela: é a possibilidade de o titular do direito real alcançar a coisa com quem quer que ela esteja, gravando o imóvel e permanecendo com ele. Ex: venda de imóvel hipotecado - o banco tem o condão de alcançar o imóvel vendido para saldar uma dívida. Tal característica não existe no âmbito dos direitos obrigacionais, que costumam se resolver por meio de perdas e danos.

7.6: Taxatividade: o rol de direitos reais é taxativo e está previsto no art. 1.225 do Código Civil e em leis especiais - ex: L. 9514/97 (alienação fiduciária). Essa previsão legal confere segurança jurídica, embora o tema da taxatividade seja bastante polêmico e trate de matéria de ordem pública, vez que a previsão legal regula o registro. Voltando no tempo, a taxatividade encontra suas razões no feudalismo e na necessidade pós-Revolução Francesa de liberação da terra, até então limitada, para tornar mais convenientes as relações econômicas. O rol taxativo de direitos reais, no entanto, não se confunde com a tipicidade dos institutos, visto que eles são abrangidos por uma tipicidade elástica, permitindo uma interpretação mais maleável dos direitos reais ante as novidades - ex: até 2017 não existia a multipropriedade no Brasil, mas mesmo não estando no rol do art. 1.225, o STJ entendeu que se trata de um direito real extraído do instituto da propriedade, não inventado de todo.

8. Obrigações propter rem
São obrigações que se vinculam à coisa, não à pessoa, e sua previsão se encontra no art. 1345 do CC. Ex: taxa condominial - a dívida passa do proprietário ao adquirente do imóvel, de modo a alcançar sujeitos não vinculados originalmente. Pode-se dizer que são obrigações que fogem à regra do art. 502, podendo o comprador responder pelo débito do adquirente. As obrigações propter rem, portanto, emanam da própria titularidade e possuem natureza ambulatorial, acompanhando o bem, Já a taxa de luz, por exemplo, é uma obrigação pessoal, distinguindo-se da taxa de condomínio, que é sui generis/híbrida. Isto porque o inadimplemento da taxa condominial afeta os demais condôminos, que possivelmente terão suas taxas encarecidas. Todavia, no caso de venda de um imóvel alugado com uma cláusula específica no contrato entre o locador e o locatário, o terceiro adquirente deverá respeitar o que foi anteriormente entabulado, se revestido da devida publicidade.

9. Pontos de contato entre os direitos reais e obrigacionais
9.1 De um direito obrigacional dado por um negócio jurídico, pode nascer um direito real - ex: contrato de promessa de compra e venda (entabulado entre duas pessoas - obrigação pessoal/obrigacional, mas que com o tempo pode gerar efeitos reais).
9.2 Os direitos reais podem amplificar os direitos pessoais, diminuindo as incertezas - ex: a hipoteca enquanto direito real amplia a eficácia de um contrato de financiamento
9.3 Dentro de um direito real (estabelecido rigidamente), há direitos e deveres estipulados livremente, o que confere fluidez aos direitos reais.
9.4 O direito obrigacional pode gerar eficácia perante terceiros se levado a registro, tal como os direitos reais, podendo igualmente os direitos pessoais gerarem eficácia erga omnes e serem oponíveis contra todos.

10. História da propriedade imóvel no Brasil
Voltar o olhar para a história da propriedade no Brasil nos auxilia a compreender as razões de alguns desafios e manifestações dos direitos reais na atualidade, além de possibilitar uma aproximação com o direito urbanístico. No período do “descobrimento”, as terras pertenciam aos povos originários (indígenas) que aqui habitavam, de forma que os primeiros portugueses que chegaram ao Brasil apresentaram um desinteresse inicial sobre o local, o que mudou com as expedições francesas, que passaram a representar um risco.

Martim Afonso de Souza, capitão-mor da expedição colonizadora e enviado por Portugal, estabeleceu-se no Brasil em 1531 e dividiu o território em capitanias hereditárias, evidenciando uma ocupação com soberania/jurisdição, sendo que São Vicente (SP) e Pernambuco foram os maiores expoentes do período. Ainda antes das capitanias, tinham-se as feitorias, cuja natureza jurídica até hoje se questiona.

As sesmarias, também chamadas de “dadas” foram uma primeira forma de organização da terra no novo território, não havia uma lei específica que as regulamentasse, e sua origem remontava os costumes, sendo trazidas da tradição portuguesas das sesmarias medievais e ajustadas no Brasil. A Lei 1375, editada por D. Fernando I representou uma ode à agricultura, buscando-se a solução para o enfrentamento de um período de crise agrária e guerras prolongadas, de modo que essa lei instituiu o cultivo como um dever jurídico e marcador da propriedade, além de representar uma séria intervenção do domínio público sobre o privado.

Em síntese, as sesmarias foram incentivos reais para a ocupação portuguesa do espaço, baseada na doação de terras. Em Portugal, o sistema de sesmarias se iniciou como uma prática de concessão de terras não utilizadas para evitar a guerra, servindo de barreira contra os mouros. Desde lá, o cultivo era visto como um dever jurídico, de modo que apenas se considerava proprietário aquele que destinava a terra à plantação (função social).

No entanto, os objetivos das sesmarias em Portugal se diferenciam desse instituto no Brasil. Enquanto lá a terra tinha a finalidade de aplacar a fome e servir de proteção contra os muçulmanos, sendo uma aquisição derivada (alguém perdeu e outro ganhou) e cuja fiscalização era facilitada devido ao tamanho menor do território, aqui, em razão da colonização de povoamento, se tratava de uma aquisição originária, restando mantido o cultivo como um dever, embora a fiscalização fosse inexistente, haja vista a extensão significativa das terras.

O que consolidou o cultivo como um dever jurídico no Brasil foram as Cartas de Sesmarias, que continham uma cláusula resolutiva específica (até determinado momento produz efeitos), ficando o usufruto condicionado ao cultivo sob pena de resolução, que consistia na devolução da terra para a coroa ante a inércia do sujeito - terras devolutas.

Em 1548 houve uma tentativa de organizar a estrutura fundiária no Brasil, que era bastante caótica, por meio do Livro de terras - tombo das sesmarias (Tomé de Sousa). Até então, imperava a dificuldade em saber onde começava e terminava a terra, em razão da demarcação precária, erros de medição, disputas extremas e sobras de terra. Nesse contexto, D. João VI determinou que só existiriam novas sesmarias por ordem judicial, enquanto tentativa de organização. Na prática, entretanto, esse pronunciamento não teve eficácia.

Em 1822, o caso do sesmeiro Manoel José dos Reis foi levado à Mesa do desembargo do paço, visto que Manoel dos Reis estava sendo desocupado de sua terra em razão de outra pessoa que lhe apresentou um título da Coroa (sobreposição de terras). A situação teve por desfecho a possibilidade de permanência do sesmeiro Manoel José dos Reis em sua terra, de modo que o regime de sesmarias foi suspenso, embora não extinto, até a nova constituinte de Portugal. Necessário atentar que neste mesmo ano, o Brasil tornou-se independente, de forma que a solução para o problema não caberia mais a Portugal, mas sim a nós mesmos.

De 1822 a 1850, portanto, houve o chamado período das posses, em que a regulamentação era praticamente inexistente, entre a suspensão das sesmarias até o advento da nova lei - Lei de Terras 601 de 1850, que buscou novamente organizar a estrutura fundiária brasileira. A partir da nova legislação, não se transfeririam mais as terras devolutas, a não ser pela venda. Pode-se dizer que a Lei de Terras, inspirada no Liberalismo, traçou a demarcação entre terras públicas e privadas, diferenciando-as, e propôs uma maior valorização do solo e do imóvel. Tal lei foi criada pela elite agrária da época, pelos grandes proprietários de terra, o que é elemento justificador da atual estrutura fundiária, que se caracteriza na concentração de terras na mão de poucos devido à uma decisão política.

Com a lei de terras, as sesmarias foram extintas, irrompendo uma concepção moderna de propriedade no Brasil, não mais se falando em dever de cultivo (cláusula resolutiva), e passando a propriedade a gozar de alto valor. A terra deixou de ser confiscável pela Coroa, dizendo-nos tanto sobre a história do imóvel no Brasil em perspectiva rural. Em 1850, havia 5 situações jurídicas:
• Bens públicos (afetados ao direito público)
• Sesmeiros regulares (cumpriam o dever de cultivo)
• Sesmeiros irregulares (sem cultivo ou sem demarcação)
• Posseiros (ocupantes efetivos mas que não tinham título)
• Terras devolutas (devolvidas como sanção)

Ainda hoje, a terra cumpre uma função social, que decorre do interesse público, de modo que aquelas que não se destinam à sua finalidade estão sujeitas à tributação. Pode-se dizer que a lei de terras foi a primeira regularização fundiária no Brasil e que a estrutura latifundiária teve sua origem nessa lei de 1850, que prestigiou o interesse econômico. Ainda, a declaração sobre a terra (seu início e seus limites) ocorria nas paróquias, onde se declarava perante um vigário.

Posteriormente, sobreveio a lei hipotecária (L. 1.237/1864), que buscou conferir segurança jurídica às hipotecas e fez surgir o sistema registral, proporcionando maior estabilidade às hipotecas enquanto preocupação econômica daqueles que emprestavam e necessitavam de uma garantia. À época, os escravos serviam de garantia. A partir dessa lei, foi adotado o sistema de transcrição, que significa “copiar na íntegra” e que perdurou até 1976, sendo o embrião do registro de imóvel.

A transcrição ocorria perante uma autoridade para que fosse conferida publicidade, e era de fólio pessoal, ou seja, o registro não se concentrava no bem, mas sim na pessoa, de modo que era possível em um mesmo documento anotar várias fichas de propriedade. Tratava-se de um sistema precário, cansativo e ineficiente, visto que cada acontecimento se situava em um livro diferente, embora tenha aberto espaço para a certidão negativa de ônus reais.

O sistema baseado no título perdurou até 1916, e neste sistema, a propriedade era transferida a partir do documento/contrato, sem necessidade de registro. Com o código civil de 1916 (Clóvis Beviláqua), a transmissão deixou de ser pela via consensual (contratos de gaveta), visto que se tratava de um negócio que gerava efeitos apenas inter-partes. A crítica lançou sobre a possibilidade de se conceber duas propriedades: uma entre os dois pactuantes e outra com efeito erga omnes. Desde 1916, portanto, o sistema de transmissão da propriedade é por título e modo - só se transfere a propriedade com uma escritura pública levada ao registro do imóvel. Se antes, a transmissão se dava apenas pelo título, a partir de agora seria necessário também o modo, que é pelo registro.

O registro é o que constitui a propriedade, portanto, ele detém uma natureza constitutiva, exceto em caso de usucapião. Logo, o registro cria a presunção de ser dono, que era bastante escassa antes de 1916, o que inverteu a carga probatória, cabendo o ônus ao denunciante/desconstituidor. A confiança no registro aumentou ao longo do tempo, sendo que prevalece o que nele estiver contido.

Imagine-se a seguinte situação: um vendedor de má-fé coage uma pessoa a comprar um bem - tal negócio pode ser anulado por um vício de consentimento. No entanto, o que acontece se o comprador vender o bem a um terceiro de boa-fé? Em casos como esse, A L. 13.097/2015 resguarda o terceiro de boa-fé, conferindo ainda mais segurança jurídica àquilo que consta no registro.

O CC/1916 preocupou-se com a segurança do comprador à vista, mas não pensou nas compras a prazo, em que o comprador apenas passa a ser proprietário após efetivamente pagar a última parcela. Antes disso, ele é somente um promitente comprador. O art. 1.088 do CC/1916 permitia ao vendedor se arrepender/se retratar da transação, o que não era incomum acontecer, haja vista que em períodos de inflação, o valor dos bens pode variar drasticamente em um curto período de tempo. Para um terreno vendido por um valor, por exemplo, mas que sofreu uma valorização, bastava que o vendedor desistisse do negócio e reembolsasse ao promitente comprador as parcelas pagas.

Tal situação se estendeu até o Decreto-Lei 98/1937, que regulamentou os loteamentos rurais e urbanos e o contrato de promessa de compra e venda, que levado a registro passou a ser irretratável e revestido de maior segurança jurídica. Outro caso a se pensar: na hipótese em que o promitente comprador pagou todas as parcelas, mas o vendedor desapareceu, o remédio jurídico cabível é a adjudicação compulsória, que vem sendo recentemente extrajudicializada.

Posteriormente tem-se a L. 4.591/64, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias, bem como a L. 6.015/73, que é a lei de registro público e que instituiu a matrícula, inaugurando o fólio real, pautado no imóvel e se mostrando mais eficiente.

11. Propriedade
A propriedade implica um sentimento de assenhoreamento, mas questiona-se se ela é algo inato/natural ou artificial, tendo em vista que o sentido de propriedade não se manteve inerte ao longo do tempo, mas foi construído, passando, conforme a passagens dos séculos a se aproximar de uma relação econômica e ser vista como uma mercadoria.

Outra provocação é acerca do objeto da propriedade e se nela estariam abrangidos somente bens corpóreos. Caio Mário afirmou que propriedade “mais se sente do que se define”. Um conceito básico, no entanto, que pode definir propriedade é o fato de ser um conjunto de poderes e deveres atribuídos a uma pessoa em relação a uma coisa, embora o Código Civil de 2002 não a tenha definido. Atualmente a propriedade é uma prestação positiva, servindo como um escudo contra o Estado e sua prerrogativa de tributação, diferentemente de outros tempos de maior abstenção estatal.

O art. 1.228 do CC/2002 afirma o seguinte: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Tal dispositivo faz referência ao domínio, que se distingue da propriedade por ter uma dimensão interna, enquanto que a propriedade consiste em um direito real pleno, é uma titularidade e é exercida perante todos.

A propriedade guarda uma relação intrínseca com a Constituição Federal, que em seu art. 5°, XXII garante o direito à propriedade enquanto um direito positivo, e no inciso XXIII, trata da função social da propriedade, o que implica direitos e deveres. Tais dispositivos encontram-se no rol de direitos individuais e petrificados.

Voltando ao CC/2002, o art. 1.228, § 1°, traduz o seguinte: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Tal redação evidencia a noção de propriedade enquanto um fazer, inclusive sob pena de desapropriação - intervenção do público sobre o privado.

Em um contexto de necessidade de regulamentação epidemiológica contra a dengue, sobreveio a L. 13.301/2016, que afirmou não ser ilícito que o fiscal adentre na propriedade de alguém para preservar a saúde das pessoas e da comunidade. Outra intersecção do tema propriedade é em relação ao direito urbanístico - Estatuto da cidade, plano diretor.

A CF/88 permite em situações específicas a expropriação, que compreende a tomada da propriedade sem pagar por ela. Tal fenômeno se diferencia da desapropriação porque nessa última, o Estado toma a propriedade para si mediante um pagamento ao proprietário. Ex: art. 243 da CF: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º”. Há exceções, porém, para a expropriação: caso verificada alguma das situações previstas no dispositivo constitucional transcrito sem que o proprietário tenha culpa, definiu-se pelo RE 635.336 que não haverá expropriação (A expropriação prevista no art. 243 da Constituição Federal pode ser afastada, desde que o proprietário comprove que não incorreu em culpa, ainda que in vigilando ou in eligendo), e caso ocorra em um bem público, há que se destacar que a União não tem a prerrogativa de expropriar terras pertencentes aos estados (ACO 967, improcedente) - Demanda da União objetivando a expropriação de propriedade rural onde localizada cultura ilegal de planta psicotrópica - “Não se justifica, para fins da expropriação, com caráter de confisco, de que trata o art. 243 da Constituição Federal, a invocação da primazia da União sobre os Estados”; “Em se tratando de bem já público, sua expropriação para mera alteração de titularidade nada contribui para o alcance da finalidade do instituto”.

Há ainda a distinção entre o direito de propriedade, que envolve o estudo da propriedade enquanto instituto jurídico, e o direito à propriedade, que está mais relacionado ao acesso à propriedade enquanto política, em um viés social vinculado à moradia. O art. 1.228 elenca os elementos constitutivos da propriedade: usar, gozar, dispor e reaver.

Características da propriedade:
• Complexa - possui o maior número de atributos dos direitos reais
• Absoluta - não no sentido de ser ilimitada, mas sim de gerar efeitos perante terceiros (oponível erga omnes)
• Perpétua - o não uso da propriedade não a faz caducar
• Exclusiva - em regra (exceções: condomínio, multipropriedade)
• Elasticidade - separação dos elementos constitutivos do domínio (usar, gozar, dispor e reaver)

Quanto à extensão da propriedade, o tema é instruído pelo art. 1.229 do CC, que a delimita a partir do critério da utilidade, quando trata da altura e da profundidade úteis ao seu exercício. Leia-se: “A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las”.

Quanto à profundidade, tem-se o caso dos tirantes (Resp 1.256.825, provido), no qual se entendeu que a fixação de tirante em subsolo em uma profundidade tal, não prejudicaria o exercício pleno da propriedade - “A titularidade do proprietário sobre o imóvel não é plena, estando satisfeita e completa apenas em relação ao espaço físico sobre o qual emprega efetivo exercício sobre a coisa”. E “Não tem o proprietário do imóvel o legítimo interesse em impedir a utilização do subsolo onde estão localizados os tirantes que se pretende remover, pois sobre referido espaço não exerce ou demonstra quaisquer utilidades.”

Em complemento, o art. 1.230 dispõe o seguinte: “A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais”.

Na Roma antiga, o limite da propriedade se reduzia à seguinte passagem: “Qui est soli, dominus est usque ad coelum et usque ad iferus”, que, traduzindo: “Quem é detentor do solo é detentor do céu ao inferno”. Hoje, entretanto, usa-se o critério da utilidade como parâmetro para a limitação da propriedade.

Os atos emulativos estão descritos no art. 1.228, § 2° e estão relacionados à responsabilidade civil (ilicitudes, abuso de direitos e desrespeito aos limites da propriedade). Tratam-se de atos que remetem ao art. 187 do CC, e que têm por características serem atos despidos de utilidade e munidos de intenção de prejudicar. Há dois casos bastante emblemáticos que ilustram esse instituto: Clement-Bayard (1915), em que para prejudicar um vizinho balonista, determinado sujeito insere estacas de madeira para prejudicá-lo, e o caso da Corte de Colmar (1855), em que foi erguida uma chaminé de 4m de altura sem utilidade apenas para prejudicar o vizinho, o que foi entendido como um ilícito/abuso de direito.

Classificação da propriedade:
• Propriedade plena - reúne todos os elementos constitutivos do domínio
• Propriedade limitada - há um óbice ao pleno exercício (ex: usufruto)
• Propriedade perpétua - em regra não caduca
• Propriedade resolúvel - pode se extinguir (ex: compra e venda com cláusula de retrovenda, e propriedade fiduciária)
• Propriedade urbana ou rural, cujo critério distintivo é o da destinação econômica, não considera apenas a localização geográfica e o Plano Diretor (Resp 1112646) - pode, por exemplo, incidir ITR, que é um tributo incidente sobre propriedade rural, em um imóvel urbano voltado à produção agrícola/cultivo

Disciplina: Direito Civil - Coisas


Biografia:
Além de grande admiradora da escrita e da literatura, sou estudante de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e meu propósito no Recanto das Letras é traduzir conteúdos do mundo jurídico para a comunidade leitora, de modo a propagar conhecimentos sobre o Direito e propor reflexões. 
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