De acordo com Joaquín Herrera Flores, os direitos humanos traduzem processos que consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Três aspectos dessa definição merecem destaque:
1- direitos como processos culturais, políticos, sociais, econômicos, normativos. Em uma perspectiva dinâmica e emancipatória, não linear.
Para Hannah Arendt, a cidadania não é um dado, mas um costume. Norberto Bobbio, por sua vez, afirma que direitos humanos nascem quando devem nascer, sendo que não surgem todos de uma vez, são reivindicações morais. Portanto é fundamental ter a visão multifacetada e complexa sobre os direitos, cuja alma se encontra na afirmação da dignidade humana e na prevenção às suas violações.
Tanto a jurisprudência da Corte Interamericana quanto a da Corte Europeia compartilham desse dinamismo na interpretação, construindo uma hermenêutica que salvaguarde a dignidade e ressignificando o texto normativo à luz de novos fatos e valores.
Dworkin nos lembra que a ética dos direitos humanos consiste em ver no outro um igual em consideração e respeito, o que tange à alteridade e à empatia. A Declaração de 1948 foi visionada a seu tempo, mas os direitos humanos carregam muitas histórias e nuances que variam. Para tanto, é importante manter uma dimensão aberta, crítica e construtiva, entendendo que se trata do resultado das demandas de um determinado tempo.
Para Kant, o ser humano é um ser inventivo, único e carrega uma dignidade que lhe é intrínseca. Há de comum nas intolerâncias correlatas o fato de negar ao outro a condição plena de sujeito, enxergando o outro como inferior em direitos e em dignidade.
Retomando Hannah Arendt, seu pensamento remonta que os campos de concentração não eram campos de condenados, mas sim de pessoas destituídas de qualquer humanidade. As leis adotadas pelo nazismo elegem expressamente o racismo como política institucional com base na superioridade da raça ariana e na hierarquização entre humanos. Eram considerados seres humanos os pertencentes à raça pura, em face do holocausto e da arquitetura da destruição, que tinha como respaldo a justificativa da legalidade.
A obra Eichmann em Jerusalém relata a banalidade do mal, na qual Arendt acompanha o julgamento de um sujeito que na visão da autora, era a figura de um homem brutal que contribuiu com o confinamento de mulheres e crianças. Quando o encontra, todavia, se depara com um burocrata frio e calculista que alegava o cumprimento a ordens superiores, destituído de razão humana e da capacidade de discernir entre o certo e o errado, sem a menor perspectiva crítica sobre suas ações.
O radical comum entre a coisificação dos afrodescendentes, as denúncias da transfobia, e a violência contra mulheres, idosos e crianças é tomar a diferença para aniquilar direitos criando doutrinas e culturas de superioridade. No entanto, a diferença deve ser viabilizada para prover tratamento diferenciado para a proteção de grupos em situação de vulnerabilidade.
É fundamental o enfoque interseccional na cobrança do Estado sobre um direito reforçado de proteção. De acordo com Ferrajoli, o direito há de romper com a indiferença.
2- A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, uma concepção contemporânea
Para Herrera Flores, não basta um texto se não houver a síntese por intermédio do contexto. A Declaração é fruto de seu percurso histórico. A Segunda Guerra representou uma ruptura com os direitos humanos, e o pós-guerra uma esperança de reconstruí-los. A criação da ONU em 1945 se deu com o objetivo de manter a paz e a segurança internacional e promover direitos humanos. No mesmo ano, foram adotados documentos preventivos contra o crime de genocídio. A declaração universal é uma reação aos horrores e à barbárie que acometeu a humanidade. Com ela há a internacionalização dos direitos humanos como tema de legítimo interesse, o que toca na soberania estatal e demanda resultados.
Para Jean Bodin, soberano é aquele que tem o poder incontrastável, e não se curva perante o outro. A ideia rígida de soberania nacional foi fundamental para o surgimento dos Estados-nação, e esse conceito deve ser revisitado, tendo em vista o novo cenário de adoção da Carta da ONU em 1945, da Convenção para prevenção e repressão para os crimes de genocídio em 1948, mesmo ano em que surge a Declaração Universal.
Sobre o processo de formação da Declaração, o professor Celso Lafer afirma que a declaração logrou surpreendente consenso sobre a relevância dos direitos humanos, dada a diversidade dos regimes políticos e sistemas filosóficos e religiosos dos países, sendo assinada em 10 de dezembro de 1948 pela Resolução 217 A III da Assembleia Geral da ONU e não surge como imposição, traz produto da cooperação entre nações. Sua fortaleza advém precisamente da pluralidade de pensamentos. Entre figuras notáveis que participaram da redação da DUDH estão: Eleanor Roosevelt (EUA), René Cassin, Charles Malik e Hernán Santa Cruz
O Preâmbulo atenta para os fundamentos: dignidade humana, liberdade, justiça, paz. Para compreender os direitos humanos lançados pela DUDH na ótica contemporânea, é imprescindível indagarmo-nos:
Quem é titular de tais direitos?
R: Todos têm direitos, basta a condição de humanidade para ter direitos
Quais são os direitos garantidos?
Direitos civis e políticos (arts. 3 a 21- vida, liberdade, segurança, dignidade, a não ser submetido à escravidão, servidão, tortura, reconhecido como pessoa perante a lei, igualdade, proteção judicial, acesso à justiça, presunção de inocência, locomoção, asilo em caso de perseguição, nacionalidade, propriedade, pensamento, consciência, expressão, reunião, associação e participação política);
Direitos econômicos culturais e sociais (segurança social, trabalho, repouso, lazer, saúde, bem-estar, alimentação, vestuário, habitação, educação voltada ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, participação na vida cultural, ordem social internacional com a realização plena de direitos fundamentais).
Anteriormente à Declaração de 1948 é válida uma análise histórica de declarações antagônicas entre si:
Liberais (francesa e americana): postulavam como princípios liberais de cidadania a liberdade, a segurança, a propriedade e a resistência à agressão.
Declaração do povo trabalhador explorado na URSS: baseada no combate à exploração econômica e na abolição da propriedade privada, em contraposição ao liberalismo.
A Declaração Universal propôs-se a somar os dois valores extremos em contraposição, aliando os legados liberais e sociais, ilustrados respectivamente pelos direitos à liberdade e à igualdade. Para concluir, a declaração compôs uma proposta holística e integral de direitos universais interdependentes, indivisíveis e inter-relacionados. Não há hierarquia, mas sim paridade em grau de relevância, liberdade e igualdade, que são indissociáveis.
A Declaração foi reiterada na Convenção de Viena de 1993 pela voz de 171 Estados. Foi aprovada por 48 estados e 8 se abstiveram, mas nenhum se opôs. A Comunidade internacional deve tratá-los de forma justa e equitativa, em um sistema jurídico multinível, caracterizado pela introdução de novos pactos e convenções para a proteção dos mais fragilizados em uma arquitetura protetiva internacional dos direitos nos âmbitos global, regional e local. Regem-se pelo princípio da dignidade em uma perspectiva humanizada do direito internacional, sem hierarquia entre as esferas.
3- Sete desafios contemporâneos:
Universalismo x Relativismo cultural: os universalistas pregam pela dignidade universal sem exceções, visualizando nela o vetor central, fundamento dos direitos humanos. Já os relativistas condenam o eurocentrismo sobre o qual recai o universalismo, uma vez que veem na cultura o fundamento da dignidade humana, com noções que variam conforme cada sociedade. Entendem que cada cultura possui seu próprio discurso sobre direitos humanos, considerando os valores locais na contramão de uma moral universal. Nesse entremeio, há correntes intermediárias: Herrera Flores defende o universalismo de confluência, formado por tensões, entrecruzamentos e diálogos, na observância de um universalismo como ponto de chegada, não de partida, e que deve ser construído. Há também o universalismo pluralista, que compreende que o objetivo de um diálogo intercultural é alcançar um catálogo de valores concordantes, contrário ao etnocentrismo e fundamentado no diálogo intercultural, com o afastamento de interpretações autoritárias sobre leis locais
Laicidade do Estado x Fundamentalismos religiosos: os fundamentalistas acreditam que possuem a verdade, sendo necessário converter os demais, baseiam-se em uma noção de verdade total, não abrem-se a diálogos, buscam impor seu pensamento e têm a religião como objeto. Nisso se verifica a importância do Estado laico, posto que separa o domínio sagrado do privado, e a liberdade religiosa é direito previsto na declaração. Percebe-se uma dificuldade quando há mistura entre religião e Estado, visto que o governo deixa de se guiar pela razão pública e secular, passando a adotar uma postura teocrática. Nesse ínterim, ressalto a apreciação de Habermas quando reflete sobre a importância do Século das Luzes separação entre o dogma e o Estado.
Direito ao desenvolvimento x assimetrias globais: a desigualdade é agravada na América Latina, em um mundo de muitas iniquidades estruturais, em que ficam relegados ao segundo plano o desenvolvimento orientado pela justiça social, a proteção das necessidades básicas, que é o componente democrático da participação e da cooperação internacional, e a pessoa humana como ponto central do desenvolvimento, devendo ser pessoa ativa em sua busca e beneficiária dessa conquista, o que dialoga com algumas metas a serem alcançadas pelas Nações Unidas. A opinião consultiva da corte interamericana 23/2017 esclarece deveres estatais em matéria ambiental, que não foi regulado em 1948, mas sim posteriormente na década de 70, com a Convenção de Estocolmo de 1976, por exemplo. Mas é somente na década de 1990 que passou-se a conciliar o desenvolvimento econômico com a sustentabilidade, de forma a angariar outros temas de proteção relacionados, como a mudança climática pela via da leitura do o direito ao ambiente à luz dos direitos humanos, com deveres estatais de prevenção, em respeito ao princípio da precaução que tem o dever de prevenir, e em deferência às obrigações procedimentais e ao direito dos povos.
Proteção dos direitos econômicos frente aos dilemas da globalização: é essencial que haja o desmantelamento de desigualdades por meio de políticas públicas em uma ação governamental que promova igualdade social que compense os desequilíbrios criados pelos mercados. Outrossim, é necessária a democratização transparente das instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial, e Empresas Transnacionais. Deve-se acatar a responsabilidade de evitar abusos de atores não-estatais, mitigando impactos negativos da atividade empresarial e fornecendo mecanismos às vítimas em casos de violação. Na contemporaneidade pode-se falar sobretudo da na adequação dos meios digitais, posto que interferem na realidade em que são empregados. É fundamental que direitos humanos aterrissem nas plataformas digitais, e a ONU prevê que deve haver o mesmo tratamento às condutas realizadas fora do mundo eletrônico. Na legislação brasileira, destaca-se o Marco civil da Internet em 2014, e a introdução recente da LGPD, contando com uma Emenda Constitucional que que agregou proteção de dados. Há ainda o Projeto de Lei 759/23 no campo das inteligências artificiais, cuja importância incide no princípio da proporcionalidade.
Respeito à diversidade x Intolerância: os direitos humanos traduzem um idioma da alteridade. Nascem intolerâncias mediante hierarquias, originando fenômenos como a feminização e a etnização da pobreza, em razão de uma visão material da justiça. É forçoso adotar de medidas que enfrentam injustiças por meio da transformação das estruturas sociais, com o enfrentamento da injustiça cultural e dos padrões discriminatórios, por meio de políticas de reconhecimento que avancem na valorização da diversidade e da quebra de estereótipos, bem como se mostra cada vez mais necessária e indiscutível a busca de representatividade com uma maior democratização aos cargos de poder.
Combate ao terrorismo e preservação dos direitos fundamentais: o combate ao terrorismo foi resposta ao receio de que o terror comprometesse o aparato civilizatório dos direitos sobre o clamor de segurança máxima, o que culminou em uma agenda restritiva diante do 11 de setembro. A ONU REafirma importância da proteção dos direitos na ordem do estado democrático de direito contra o terrorismo. Cabe nessa situação, uma análise sobre a Convenção contra a tortura, que possui uma cláusula inderrogável que relembra que nada a justifica, nem guerras nem instabilidades políticas.
Direito à força x Força do direito: esse desafio se insere na consolidação do estado de direito em vários planos. Para N. Bobbio, a garantia dos direitos no plano internacional só seria implementada quando uma jurisdição internacional se pusesse concretamente, em paridade com o direito interno. A seriedade e a competência das Cortes Internacionais fortalecem a noção de obrigatoriedade das decisões proferidas no âmbito do rule of law. Institucionaliza-se enfim a cultura do argumento como medida de respeito ao ser humano, anexa à judicialização dos direitos fundamentais, o que lhes confere maior reconhecimento e proeminência na ordem global.
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