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BORDER
Cesar D

Acordou automaticamente as 6:00, era segunda, e desejou que este dia nunca existisse.Foi ao banheiro, rosto lavado, dentes escovados, o gosto do tsunami de cervejas sorvidas desesperadamente naquele domingo nublado, tarde da noite, tentativa constante e infrutífera de preenchimento, de permanência e colheita.Saiu a rua, a antiga e mesma rua que o viu nascer, nas manhãs da infância entre a escola que nunca se identificou, a adolescência vivida entre o quarto e a sala onde os pais eram um misto de autoridade e rivalidade, descompasso e deficiência, essa vida nordestina entre a saudade e o encontro de uma nova terra prometida, alguma coisa que brota entre a dureza e rastros de ternura, afeto, estivador levando a carga pesada pelo cais do porto, e agora adulto, a mesma rua, o mesmo desencontro.No trajeto os rostos amanhecidos, sonolentos e sem brilho das pessoas na lotação, distantes apesar de tão próximos, estranhos apesar de normais, davam a diária sensação de falta, de ausência, sufocante, algo que busca emergir e resgatar o fôlego, emitir o grito, e no entanto como todos os outros, com suas vontades, paixões, desejos, sonhos, ele também se cala, mas percebe que os dias se estendem demais quando esta calado, que isso ele mesmo provocou, anulado quando o som de alguma voz não reverbera, quando não se choca com timbres diferentes, e por isso fala, a contragosto, de amenidades, fofocas, maledicências, coisas que o trabalho em autarquia pública produz em demasia, trabalho pouco, sem qualidade e importância, só a de gerar salário, pois o importante é falar, estabelecer contato, mesmo que provoque escombros no fim do dia.

A tarde estende o Happy Hour,fazendo do bar tábua de salvação, onde entre uma risada fortuita lembrando acontecimentos da noite passada, a zoeira com o zé piolho mamado caído dormindo na calçada ou o prazer de tocar na juke box as músicas antigas que gosta, músicas que o fazem lembrar de coisas que nunca viveu e que nunca teve coragem para fazer, ele está de alguma forma presente, e relembra passagens, lembranças de momentos históricos, personagens de luta, transformações sociais, de homens e mulheres importantes, e sempre os compara com sua vida, de indivíduo periférico, trabalhador constante, algo que não entende mas precisa, algo que está além, que te dá algumas coisas, a cerveja, as viagens curtas, a comida, a roupa, os livros, a puta que no inferninho ao lado do bar ele vai pagar pra gozar e sonhar que é amado, alguma esperança no crepúsculo do dia..algo que desconfia, no fundo sabe, que não deixa nada no final.

Subindo as escadas pra sua casa, universo paralelo fragmentado e alimentado pelo descaso, pelo bolor e pela sujeira mantida, companheira que se acumula no chão, nos poucos móveis e nos livros, na roupa amassada e nos seus maneirismos, que só manifesta em casa, em sua solidão, negando algo que é autêntico e pessoal aos outros, espelhos como ele, cópias fiéis de homens corretos como ele, e que tem como ele suas vilanias, suas mentiras e safadezas..alguma coisa que é quase um remédio, quase um antídoto contra os dias iguais.Entra devagar na residência, quase um não chegar, um não estar, incomodado com o estado da casa, a decrepitude que salta aos olhos, essa falta de apreço, de cuidado que vai se tornando evidente, direta, clara, e que vai tomando conta de tudo, dele mesmo, e o desespera...em sua Creta, Teseu não encontra a saída do labirinto.

Alguns sons,Caetanos, Gilbertos, Nascimentos, amenizam, acalmam, tranquilizam, fazem sorrir, lembrar o tempo que obras foram feitas, como músicas foram compostas, como influenciaram outros artistas de variadas vertentes:poemas, contos, danças, esculturas..e livros, novas abordagens, songbooks, teorias musicais, e outras ciências, Filosofia, História, Ciências Sociais, e seus heróis, Bachelart, Battaile, Benjamim, Baudelaire, Wittgenstaim, Sartre, Arendt, Paglia, Heidegger, From, Popper..a fina flor da inteligentsia, o crepúsculo do homem, a elaboração estruturada do pensamento, vertida em conhecimento tátil, cômodo e acessível de um livro, e isto o satisfaz, o leva a outros universos, onde existe dor, verdade, razão, loucura, delírio, mas onde o possível, o impossível e o improvável também estão, onde esteriótipos, tão constantes no calvário semanal do trabalho se exterminavam, e onde tranquilamente ele podia ser e estar inteiro, integro, sem concessões, sentado enquanto o baile de máscaras entra noite adentro...

Mas impedir a manhã não é possível, ela virá, e tudo o que o sono apagou, escondeu, mentiu, nublou, tudo o que estranhamente impediu o sujo, o soturno de corromper a noite de leitura e música e poesia e sonho, tudo que a enchente enorme de gozo e prazer e ilusão transbordou tem hora, minutos, segundos para terminar...As 6:00 horas um homem comum, periférico, trabalhador e pobre, como a maioria dos homens, vai acordar, automaticamente, como faz de segunda a sexta, todos os dias, desejando que tudo não existisse. E no entanto, enquanto vai para seu trabalho e suas obrigações, isto que aligeira a vida mais do que dá sentido, algo que ele procura e teme, desconfia e busca, está lá, no labirinto, nas frestas e passagens, sempre dentro, quente e secreto...





Biografia:
De sampa, zona norte, mas a muito morando no centro...me formando em história num país sem memória..é isso, esse sou eu..
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