Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Rua sem saída
Flora Fernweh

Que falta me faz a rua do bairro de minha juventude, os canteiros sorrriam flores alegres ao meu coração esperançoso e as casas se alinhavam no sonho certo de um futuro. Naquele tempo o mundo funcionava, os pássaros cantavam e eu caminhava sempre em frente, havia pouco passado que eu pudesse contemplar. Passei horas sentado na calçada à espera de grandes novidades, sedento por aventuras, espiei as janelas mais secretas em busca de mistérios. A época era fecunda para os amores que iam e vinham, peregrinando meus sentidos e carregando um pouco de mim ventos afora. A rua não tinha fim, mas a vida tinha, e eu não gosto de lembrar disso, mas às vezes me pego pensando, apenas para não esquecer o que é viver. A rua era curta para um homem do mundo como eu, e muito estreita para quem tem sonhos que não cabem em si, eu queria descobrir a imensidão do viver, mas receava em conhecer o fim da rua, o beco que escancara o fim da linha, o ponto sem retorno na madrugada escura. Sempre quis transformar a ruela na avenida de meu ser, quis enxaguar a terra, transformá-la em uma ponte entre o que é o que virá, quis incorporá-la a mim, não era só uma rua na qual trafegam lembranças, era o livro aberto e ladrilhado em que cravei o que sou, ou que pelo menos acreditava ser naquele poente em que fiz meu pacto com ela. A rua só tem uma direção, nunca aprendeu a retornar, mas ao menos tentou perfumar a jornada com suas sutilezas singelas que conforta todo coração. A cada passo, algo é deixado para trás, a cada metro, uma memória se dissipa, a cada tropeço os joelhos se desgastam, aos poucos as pernas cansam e o corpo desgasta, desgosta e desaba. Posso olhar para trás, breves olhares a ruazinha permite e até incentiva, pois sabe que às vezes é preciso colher ensinamentos que estão guardados com o tempo que já se foi, para que continuemos a marcha com um olhar um pouco mais sábio do que com aquele que tínhamos quando iniciamos. Só conheceria plenamente o fim de minha rua, quando eu encarasse sem medo o destino inevitável, sempre aberto, minha rota de colisão alcançada pela tarefa que minhas pernas desempenharam toda a vida: a caminhada em direção ao fim. Eu já sabia que a rua não terminava em uma estrada movimentada, assim como os rios que deságuam no mar. Aquela vereda incompreendida é silenciosa, é fosca e brilhante ao mesmo tempo, é menos hermética do que a forma como nossos olhos se acostumaram a vislumbrá-la e imaginá-la. Antiguidades e civilizações inteiras passaram por suas ruazinhas brandas ao encontro da saída inexistente e do fim que está espreitando logo ali, povos se embrenharam por trilhas laterais na tentativa de fugir dela, mas todos os caminhos desembocam no inexplicável. O único incompreensível sobre o qual temos nossa maior certeza: a de um fim, já nos levou a fantasiar no chão, a parar o fluxo e criar entidades divinas, quero um dia voltar e perguntar à ruela, se ela ainda ri de nossas piadas instigantes ou se tanto como nós, ela tem muito a nos dizer. Como um marujo no mar de minhas vivências, sonho em encontrar um porto em seu final, que me conduza em um pequeno e solitário bote de reflexão, rumo a eternidade paradisíaca que se esconde para além do fim do mundo. É fácil ler endereços e nomes de ruas, mas esta guardava sons melódicos ao invés de letras, e seres de todos os tipos ao invés de números, nomeá-la é uma tarefa que cabe somente a quem marca seus rastros nela. Eu batizei-a de rua da vida, e ela é rara e insubstituível.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
Número de vezes que este texto foi lido: 59441


Outros títulos do mesmo autor

Crônicas O valor que se dá ao encontro Flora Fernweh
Crônicas Curitiba - Relato de Viagem Flora Fernweh
Poesias Louvor à Língua Flora Fernweh
Crônicas Opinião - Redação ENEM 2024 Flora Fernweh
Poesias 20/10 - Dia do Poeta Flora Fernweh
Poesias Primeva Primavera Flora Fernweh
Poesias No Princípio era o Verbo Flora Fernweh
Resenhas Resenha do livro Latim em Pó Flora Fernweh
Crônicas Despertada no REM Flora Fernweh
Resenhas Resenha do livro - O Leitor como Metáfora Flora Fernweh

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 11 até 20 de um total de 420.


escrita@komedi.com.br © 2025
 
  Textos mais lidos
Anistia para a imprensa - Domingos Bezerra Lima Filho 60644 Visitas
TE VEJO CONTO GAY IND 18 ANOS - paulo ricardo azmbuja fogaça 60595 Visitas
Mulheres - Ana Maria de Souza Mello 60534 Visitas
"Fluxus" em espanhol - CRISTIANE GRANDO 60414 Visitas
O Senhor dos Sonhos - Sérgio Vale 60410 Visitas
frase 499 - Anderson C. D. de Oliveira 60407 Visitas
Roupa de Passar - José Ernesto Kappel 60355 Visitas
Arnaldo - J. Miguel 60346 Visitas
Um conto instrumental - valmir viana 60342 Visitas
É TEMPO DE NATAL! - Saulo Piva Romero 60336 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última