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NO MEU BARQUINHO
MARCIANO VASQUES

Resumo:
O texto escrito numa linguagem poética aborda fragmentos da realidade do país a partir da contemplação do olhar do poeta, um observador inconformado,que navega num barco no qual luta pela preservação da alma, protegendo-a dos infortúnios causados por mundo brusco e insensato.

NO MEU BARQUINHO



     Navegando sob o céu azul lá vou mirando o Cruzeiro do Sul, cada vez mais feliz no meu país, gigante como ele só. Lindo que é, tropical; dos filhos deste solo ninguém é mais feliz que eu.
     Lá vou, no meu barco amarelo feito de papel, marchando cabeça de papel que sou, menino ainda a velejar em plenos sonhos de carretel e de carrossel.
     As águas erguem-se, limpas que são, em ondas mil, agitando o meu barquinho, que pensa em virar, mas insisto no seguro cais.
     Como é bom navegar! Vejo tudo acontecer; o meu barco tem uma janela e por ela fico a observar como é bom viver por aqui, num quarteto de cores, sob o anil. E sigo, numa terra varonil. Quem diria que assim seria o meu Brasil!
     Jovens espancando uma empregada pensando que fosse uma prostituta. Uma prostituta, por isso a agrediram. Eles sempre tiveram o conforto que um adolescente de classe média pode ter, por isso não são criminosos, nem merecem sofrer como se fossem pobres, como se habitassem na periferia ou em favelas. São apenas meninos da classe que tem dinheiro, que podem estudar nos melhores colégios e apenas se enganaram pensando que se tratava de uma prostituta, o que serviu para justificar os socos, os pontapés, os hematomas, a dor e a humilhação, mas tudo bem, também poderiam atear fogo na mulher, como se ela fosse um índio. Enganos são perdoados, erros são humanos, errar é humano, como bem disse o presidente da República, devemos sempre perdoar os erros de alguém, principalmente se ele for nosso companheiro, reforço. Os filhos apenas pensaram que estavam diante de uma prostituta. Por isso vi no meu país um levante de manifestações de entidades envolvidas com as minorias, protestos por por toda a nação, de ponta a ponta. Tanto entusiasmo nacional por justiça quase atrapalhou o azul da tela da TV e o gosto justo e merecido pelas novelas, merecido por que o cidadão vive num sufoco e só mesmo o conforto da TV à noite para dar benção nesse esgotamento. Se não fosse assim, tantas almas transbordariam de esgoto!
     Lá vou eu no meu barquinho de papel, sem contudo generalizar, pois geralmente o que é geral foi generalizado e isso, se me perdoem, pode fazer parte de um tratado genérico de generalização, o que pode significar o nascedouro de um opinião imposta, mesmo que sutilmente. O que pode ocorrer inocentemente, como costuma acontecer com opiniões generais que parecem órfãs. Talvez assim seja: o que é de natureza general acaba por ser generalizado, então não podemos cair nem permanecer em pé em erros tão simplistas e eloqüentes, visto que se nada pode ser generalizado, é possível que em algum lugar haja algum culpado, sim, deve ter algum culpado, e então nem todos seriam inocentes, além dos meninos que espancaram a mulher por engano, e dos nobres companheiros. Sobre esses ninguém em bom senso poderia alegar qualquer vestígio de culpa, pois estaríamos demonizando pessoas públicas que cometem apenas erros humanos e jovens que adquiriram cultura em bons colégios e que cursariam as melhores faculdades do meu país. Paz na terra aos amantes que sob o Cruzeiro do Sul velejam como a mim, sem insolência e sem precipitações, sem conclusões e sem bravatas.
     Todo companheiro é inocente para sempre. Isso me reconforta e transborda-me de alegria incontida o coração. Quase sempre acho que nesta vida só o atrevimento vale, moço, mas achar é meio doxa, coisa de opinião, como discutir futebol, religião ou politica. Engano, moço, não podemos colocar futebol no mesmo pedestal de religião ou política, que são duas coisas exemplares para uma discussão. Eis aí um caso de generalização, tão profundamente fincada que quase todo mundo vive a repetir isso: que futebol, política e religião..., ora, religião e política dariam discussões profundas, se interesse pudesse caber nos corações contemporâneos, mas parece que todo mundo está deixando a vida o levar, ou a vida ser levada, porém isso é ceticismo, e eu lá sou homem disso?
     O importante é jamais me olvidar de que vivo em um país lindo, e isso ninguém vai negar, rodeado de cerveja por todos os lados, com mulheres loiras e morenas, muito artista faturando, e muita gente graúda, proprietária de muitas vacas, e eu que de moralista nada tenho, reafirmo que seria hipocrisia questionar o direito de quem quer que seja ter um amante, e ter um filho com esse amante, o que de fato interessa (eis um verbo louco para ocupar definitivamente o posto de força de expressão), o que de fato ou sem fato interessa é você se valer do seu cargo e do seu poder para pagar compromissos com dinheiro alheio. Eu, como não tenho cargos nem poder e só pago coisas assim miúdas, tipo prestações das lojas e as financeiras, o que no caso é bem justo, pois fui eu que apareci por lá para pedir os empréstimos e não devo reclamar por estar sendo esfolado visto.Seria uma traição aos meus algozes que me socorreram e estarão sempre de braços abertos para me receber quando eu necessitar, eu, que nada sou, nem cético, quero apenas dizer que jamais tive uma boquinha assim de pagar um compromisso meu com dinheiro alheio, mas de qualquer forma essa gente inocente merece afagos, e sejamos justos: ninguém está autorizado a esculhambar com a República, isso é tarefa para os humoristas. Todavia, como o nosso povo acredita que os humoristas estejam aí apenas para nos distrair e nos fazer dar risadas ou gargalhadas ponho-me a pensar que esses profissionais não recebem valoração adequada.
     Sentir-me-ia mal se tivesse a chance de pagar compromissos com grana alheia. A culpa foi da educação caseira. Meu pai me treinou assim, fez um adestramento de tal forma que fui condenado a ser correto e andar em retidão.
     Os ricos estão unidos como nunca tiveram: é financeira unida com rede de supermercados, é banco com financeira..., eles realmente seguem o grande ensinamento popular que diz que a união faz a força, pena que a força popular não aplique atualmente esse próprio tesouro. Sinto uma admiração imensa por essa união dos ricos e dos poderosos, até invejo, seria tão produtivo se o povo imitasse isso, pois o que é bom deve ser imitado, e não apenas cacoetes e globalizações de novelas.
     No mais, a alma é corrupta, diríamos, e o povo assiste passivamente aos nosso homens públicos se desviarem da ética, por isso vamos deixar pra lá o artista que assina contrato milionário para divulgar bebida alcoólica, vamos deixar para lá os latifundiários que se tornam ministros, vamos deixar para lá os espancadores que tem pais generosos e fartos, e os companheiros que cometem erros humanos, ainda bem, pois se fossem erros bovinos não perdoaríamos jamais. Falar em erros bovinos me fez lembrar os acertos bovinos. Eu, simples cidadão que apenas paga o preço atual do leite e compreende que está satisfazendo a vaidade das vacas, que afinal enlouqueceram nas prateleiras do supermercados, compreendo finalmente que errei ao me alvoroçar em ser poeta e escritor, melhor teria sido se tivesse investido em gado,. Poderia ter comprado pelo menos uma vaca, mas nem isso fiz. Serei um eterno Sem-vaca.
      Vamos deixar tudo pra lá, é inverno e só quero que você me aqueça, pois tudo está indo de vento em popa, como diria o meu velho pai, vamos deixar pra lá, pois em Brasília tem muitas festas juninas, vamos fazer como eu, que não me incomodo com nada e sigo no meu barquinho amarelo feito de papel a navegar sob essa fartura azul, repleta de boas nuvens, com estrelas a nos guiar.
     

                                                                MARCIANO VASQUES


                                             


Biografia:
Marciano Vasques é escritor, natural de Santos, e autor de Literatura Infantil. Publicou diversos livros, entre os quais "Uma Dúzia e Meia de Bichinhos", "Griselma", "Arco-Íris no Brejo", "Espantalhos", "Rufina", "Uma Aventura na Casa Azul" e "As Duas Borboletas". É também autor teatral.
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