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Solo de clarineta
Valter Ferraz



Na varanda do prédio o pai olha distraído o horizonte. Lá ao longe a cidade distante se espalha envolta num manto de poluição, comum nesta época de outono.

Rafael puxa uma banqueta, senta. À sua frente numa cadeira de palha daquelas bem velhas o estojo do instrumento descansa. Abre-o e com delicadeza apanha-o peça a peça. Limpa o bocal, passa o pano aveludado pelo corpete, lustra cada uma das boquetas de saída do ar. Por último a palheta. Limpa-a delicadamente. Assopra com vigor, espalha a possível poeira depositada alí.


Monta com cuidado o instrumento e leva-o à boca. Testa. Uma, duas notas. Uma sequência curta. Está bom. Já pode tocá-lo.


Olha o pai que absorto nos pensamentos nem repara o seu olhar. Por onde andará o pensamento do velho Romildo?

Depois que ficou desempregado, as doenças corriqueiras aparecendo o velho nunca mais foi o mesmo. Ele que nunca vira o pai um dia sequer na cama, nem gripe o afastava dos andaimes, agora era costumeiro vê-lo levantar-se com dificuldade da cama pela manhã. Faltava-lhe vontade.


A morte da mãe, o casamento da irmã mais velha e a adolescência de Rúbia, a caçula serviam de motivos para acabrunhar o pai. Não sentía vontade nenhuma de lutar. E os desencontros habituais entre pai cinquentão e filho com dezenove, desempregado e cujo único foco de interesse era o soprar indefinidamente aquele instrumento musical que ele confundía com uma clarineta e o filho insistia em corrigir: não pai, é uma flauta transversa. Tudo junto era motivo mais que suficiente para o não prosseguir.


Assuntos não tinham muitos. O silêncio quase absoluto era quem reinava na casa. Um ou outro barulho provindo da vizinhança, às vezes despertava-os do silêncio total. Tinha também as buzinas dos carros que passavam alucinados na avenida lá embaixo.


Agora o filho estava tocando aquelas músicas chatas. Um assoprar infinito, algumas passagens eram até bonitas. Mas no conjunto não gostava. O som que saía daquele instrumento misto de madeira e metal que brilhava ía direto ao fundo do coração, dava uma tristeza danada.

Tinha saudades da mulher que depois de trinta anos de dureza se fora. Morreu numa tarde de sexta-feira, fazia muito frio e eles estavam só os dois em casa. Não teve nem tempo de socorrê-la. Morreu do mesmo jeito que passara pela vida. Silenciosa, calma, quase um leve respirar. Quando olhou para a cama, nenhum movimento. Izaura se fora silenciosamente.


Faz tanto tempo já, por quê essa tristeza hoje? Fica olhando perdido o horizonte da cidade lá embaixo, tão distante. Êle tão só. O coração apertado.

Alí ao lado Rafael sopra aquela droga de clarineta. Por quê não pára?


O filho toca absorto, tira notas tristes. A música longa, sinuosa como cobra no mato vai levando mais tristeza e dor. O velho Romildo está longe agora. A cabeça dói um pouco. Não faz mal, daqui há pouco passa. Já está acostumado.


Enquanto toca a música lamentosa, a frase ouvida não sabe onde, martela em sua cabeça: "I left my heart in San Francisco". Não sabe onde escutou. Mas está alí ecoando em sua cabeça, como que soprado por alguém. Tanto martela, indo e voltando que por duas vezes errou a sequência de notas. Retomou a melodia correta. Ainda bem que ninguém por perto conhece a música. Pega a partitura amarelada pelo tempo e que repousava dentro do estojo e confere. Agora acerta, as notas saem leves, são essas mesmas.


Num solo mais demorado Rafael não percebe que duas grossas lágrimas escorrem pelo rosto cheio de rugas do pai. Um soluço engolido vai alojar-se no peito cansado.

Romildo dá dois passos em direção à porta. O filho nem nota, está compenetrado tentando acertar a música. Olha com ternura o filho. Único filho homem. Tão amado, desejado mesmo no início do casamento. Hoje quase dois estranhos.


Passa bem devagar em direção ao quarto. Rafael nem nota a passagem do pai.

Não se dá conta que essa é a última vez que estarão juntos.

Capricha mais uma vez no andamento, a flauta tranversa canta sibilante, triste nos seus agudos.

Encerra o estudo. Desmonta peça a peça o instrumento. Amanhã tem audição no teatro. Precisa avisar o pai. Alugou um terno pro velho Romildo.
Vai ao quarto guardar o instrumento pronto para a audição. Passa pelo quarto do pai. Ele está na cama. Cabeça virada para o lado, pernas pendentes fora da cama.
Um meio sorriso parado na canto da boca.Os olhos abertos. Fixos no nada.
Não se lembra de mais nada, só do grito da irmã caçula. O pai está morto, Rafael.
No dia seguinte o terno alugado serviu para o enterro. Rafael não tocou na audição programada.
Um lamento triste saiu da flauta transversa durante o velório. A mesma que o pai teimosamente chamava de clarineta.


Biografia:
BIOGRAFIA Valter Ferraz, 51 anos é morador hoje, de uma cidade no litoral sul paulista. Nasceu na cidade de Araçatuba/SP. Foi para a capital aos quatro anos de idade, considera-se pois mais paulistano que paulista. Morou no bairro do Capão Redondo, por mais de quinze anos. Ainda tem forte ligação com o bairro situado no extremo da zona sul da capital. Não é adepto de nenhum tipo de apologia, não se sente excluído, acha inclusive essa palavra tão em moda, exclusão pouco apropriada e indevidamente colada aos moradores da periferia. Seriam excluídos verdadeiramente do quê, ele pergunta. De seu tempo de morador do bairro leva boas e más recordações, cada uma a seu tempo. Não pretende exortar ninguém a empunhar nenhuma bandeira. Lança um olhar cuidadoso em direção à realidade de quem ainda mora ali. Capão, Outras histórias é sua estréia como escritor. Trabalha ainda em mais dois projetos. O Muro, pequena obra de ficção, sobre as difíceis relações entre as pessoas, suas angústias seus medos; Histórias no metrô, livro de contos com histórias tendo como pano de fundo a linha Norte-Sul do metrô paulistano. Tem um blog na internet onde escreve diariamente. Endereço na internet: http://perplexoinside.blogspot.com Livros que marcaram sua vida: Monteiro Lobato, coleção completa lida aos sete anos de idade. Foi alfabetizado em casa aos seis anos, “lia” as manchetes do jornal O Estado de S.Paulo; Jorge Amado, Capitães de Areia. Ao ler este livro,aos treze anos, decidiu: vou ser escritor; Érico Veríssimo, na mesma época só reafirmou a promessa. Na fase adulta, Henry Miller ocupou sua mente. Aos dezesseis anos foi para o Seminário de Pirapora do Jesus, permaneceu lá dois anos e meio. Descobriu que não tinha a vocação desejada. Sua estada por lá rendeu um mergulho profundo nas águas da filosofia, teologia e história da igreja. Descobriu Agostinho, Tomás de Aquino e San Juan de La Cruz. Escondido dos olhos perspicazes do reitor e do padre mestre, leu Nietzche, Sartre e Simone de Beauvoir. Crê em Deus e na humanidade, apesar de tudo.
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Publicações de número 1 até 4 de um total de 4.


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