I – RECÉM-CHEGADO
(música tema: “minha historia, Chico Buarque:
http://cifrantiga3.blogspot.com/2006/04/minha-histria.html)
Hey, você. É, você mesmo que está me olhando aí. Bom, não vou continuar te chamando, você não pode me ver mesmo. Estou num lugar escuro, nojento e frio. Muito frio mesmo. Desde que eu saí da barriga da minha mãe, estou aqui nesse lugar nojento. Parece que faz muito tempo. Mas eu acho que são só algumas horas. Não sei direito. Não tenho noção de tempo ainda.
A coisa que me deixa mais incomodado é o frio. Está um frio horrível aqui. E também pra piorar a minha situação, estou com fome. Você acredita que eu não comi nada ainda desde que saí da barriga dela? Pra você ver como são as coisas, cara. Eu estava lá quietinho na barriga dela. Na boa. Não me faltava nada. Era muito confortável. E nem precisava fazer nenhum movimento, nada. Tudo ali só pra mim. E ainda tinha aquele canal de comunicação com ela. Era muito bom saber que a gente estava ligado. Uma sensação muito boa.
Mas nessas poucas horas que estou nesse lugar frio e nojento aprendi que devo aceitar as coisas como elas são. Talvez daqui a algum tempo eu possa mudar. Por enquanto, não tenho como. Acabei de chegar, entende?
A droga de tudo isso é que nem me perguntaram se eu queria ter vindo pra cá. Foi igual lá na barriga da minha mãe. Quando vi, estava lá.
Fui crescendo, crescendo, de repente o lugar começou a ficar muito apertado. Mas ainda era muito melhor do que esse buraco frio e nojento. E escuro.
Sabe, tenho muito medo do escuro. Nem sei direito o que quer dizer essa palavra. Escuro. Mas deve ser coisa ruim.
Pois então. Estou com muito frio, com fome e com muito medo do escuro. Dessas três coisas, não sei te dizer o que é a pior. Também tem mais um complicador. Aqui tem ratos e baratas. Não sei o que são isso. Mas tem muitas dessas coisas. E não parecem ser nada boas.
Escutei uma voz ali fora que falava: não passa perto desse bueiro, aí só tem sujeira. E muito rato e barata.
Daí conclui que aqui só tem coisas ruins. Quer dizer, tem eu também. Mas acho que eu não sou uma coisa ruim. Isso eu vou ter que aprender depois. Mas eu sou muito esperto. Nessas poucas horas que estou aqui, aprendi um bocado de coisa. Isso que eu não posso nem andar, correr, nada. Sou muito pequeno ainda.
Pera aí, estou escutando uns barulhos diferentes. Não sei direito o que é. Pode ser alguém passando, e aí quem sabe eu tenho sorte e me tiram dessa porra de lugar?
É... Acabou. Não tem mais aqueles barulhos. Acho que ainda vou ter que ficar por aqui.
Eu já estou enjoado disso aqui. O pior são aquelas coisas que a todo o momento vêm me cheirar. Me deu o maior nojo agora pouco. Uma coisa escura, áspera e fria, nojenta mesmo, veio até aqui, subiu em cima de mim, cheirou, cheirou e foi embora. Não sei o que era, mas deve ser aquilo que eles chamam de rato. É, tem jeito de rato mesmo. Palavra nojenta essa. Ra-to.
Sabe, eu cheguei há algumas horas apenas, mas para mim parece uma eternidade. Você deve estar se perguntando, como é que eu sei esse monte de palavras? É que eu sou muito esperto, como já falei. E um punhado de palavras eu aprendi ainda na barriga dela.
Ela falava, eu escutava. Aquelas palavras que ela falava a toda hora aprendi facinho. Por exemplo: porra. Essa eu aprendi logo. Minha mãe falava a todo o momento. Tudo para ela era uma porra. Porra de vida, porra do caralho, gravidez da porra. Eu não sei o que é isso, mas a minha mãe falava muito enquanto eu estava lá.
Aprendi outras coisas também. Aprendi que as pessoas ficam tristes e alegres. Com o passar do tempo fui descobrindo quando ela estava triste ou alegre. E quando ela estava triste eu também ficava. Tinha vontade de falar pra ela que não ficasse, que tudo ia melhorar quando eu saísse de lá. Mas ela ainda não podia me ouvir. Então eu ficava bem quietinho, quase nem me mexia, por que assim ela pensava que eu estava bem e não ficava triste.
Tinha uns dias em que ela estava alegre. E isso era muito bom. Ela cantava bem baixinho com a cabeça perto da barriga. E eu ouvia tudinho. Era bom demais, cara.
Agora estou aqui. Lugar nojento. Frio. Um frio da porra. Vou falar assim, por que aí eu lembro da minha mãe e não fico triste.
Agora tive uma idéia. Não te falei que sou muito esperto? Sou tão pequeno, mas já tenho idéias. Você nem queira saber como vai ser quando eu crescer. Eu e minhas idéias. Posso te contar?
Então, acabo de pensar. É, eu penso muito, a todo momento. Quando as coisas não estavam boas pro lado dela, ela chorava. No começo bem baixinho, acho que chama soluço isso, quando a gente chora baixinho e dói muito. Depois, ela chorava alto, muito alto. Tão alto que me incomodava e aí eu me mexia, me torcia todo e até chutava a barriga dela.
Quando as coisas não se resolviam, aí ela apelava. Ela gritava bem alto, xingava, falava um monte de palavrões. E sabe que funcionava? Logo tudo voltava ao normal. Então, essa foi a idéia que eu tive agorinha. Sabe do que mais? Vou chorar, gritar e se não resolver, aí eu vou soltar um monte de palavrão. Acho que desse jeito, alguém vai me ouvir e me tirar dessa porra de lugar nojento.
II- ALÍVIO
Ufa! E não é que deu resultado? Veja você que coisa interessante. Como uma idéia é uma coisa fundamental na vida de uma pessoa. Aquela bendita idéia de fazer igualzinho a minha mamãe fazia foi a salvação da lavoura. Legal essa expressão: salvação da lavoura. Ouvi um monte de vezes enquanto eu estava lá naquele lugar aconchegante e quentinho.
Aqui onde eu estou agora também é aconchegante. Não faz frio e nem calor. Muito confortável. E um montão de gente veio me ver. Estou abafando. Virei a sensação do lugar. Não sei bem como se chama aqui onde eu estou. Mas é bom demais. Tem uma luz fraquinha que não me fere olhos. Também não é escuro. E só isto já faz uma puta diferença.
Sei que não deveria falar desse jeito. Daqui a algum tempo vão me ensinar que não se deve falar assim. Mas é que eu ouvi muito. E aprendo fácil todas as coisas. Talvez se eu for morar num lugar bem bacana, onde as pessoas falem direito, sem usar palavrões, que não gritem, eu acabe aprendendo e mude meu vocabulário. Por enquanto, vou usando as ferramentas que Deus me deu.
Falar nisso, Deus deve ser uma coisa boa. Tipo aquelas pessoas que tiram as outras das roubadas. Sabe por que eu estou falando isso? Porque a minha mamãe, virava e mexia falava dele. Era um tal de meu Deus do céu, de Deus me livre e o que ela mais falava: Deus me ajude!
Daí que eu associei essa palavra com coisas boas. Deve ser mesmo. Aqui nesse lugar onde estou agora, já ouvi uma pá de vezes. Esse cara, Deus deve ser uma pessoa muito importante. Por que todo mundo chama por ele. Às vezes penso que ele deve andar de saco cheio. Porque suponho que seja muita gente chamando por ele a todo o momento.
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Biografia: BIOGRAFIA
Valter Ferraz, 51 anos é morador hoje, de uma cidade no litoral sul paulista. Nasceu na cidade de Araçatuba/SP.
Foi para a capital aos quatro anos de idade, considera-se pois mais paulistano que paulista.
Morou no bairro do Capão Redondo, por mais de quinze anos. Ainda tem forte ligação com o bairro situado no extremo da zona sul da capital.
Não é adepto de nenhum tipo de apologia, não se sente excluído, acha inclusive essa palavra tão em moda, exclusão pouco apropriada e indevidamente colada aos moradores da periferia.
Seriam excluídos verdadeiramente do quê, ele pergunta.
De seu tempo de morador do bairro leva boas e más recordações, cada uma a seu tempo.
Não pretende exortar ninguém a empunhar nenhuma bandeira.
Lança um olhar cuidadoso em direção à realidade de quem ainda mora ali.
Capão, Outras histórias é sua estréia como escritor.
Trabalha ainda em mais dois projetos.
O Muro, pequena obra de ficção, sobre as difíceis relações entre as pessoas, suas angústias seus medos;
Histórias no metrô, livro de contos com histórias tendo como pano de fundo a linha Norte-Sul do metrô paulistano.
Tem um blog na internet onde escreve diariamente.
Endereço na internet: http://perplexoinside.blogspot.com
Livros que marcaram sua vida:
Monteiro Lobato, coleção completa lida aos sete anos de idade. Foi alfabetizado em casa aos seis anos, “lia” as manchetes do jornal O Estado de S.Paulo;
Jorge Amado, Capitães de Areia. Ao ler este livro,aos treze anos, decidiu: vou ser escritor;
Érico Veríssimo, na mesma época só reafirmou a promessa.
Na fase adulta, Henry Miller ocupou sua mente.
Aos dezesseis anos foi para o Seminário de Pirapora do Jesus, permaneceu lá dois anos e meio. Descobriu que não tinha a vocação desejada. Sua estada por lá rendeu um mergulho profundo nas águas da filosofia, teologia e história da igreja. Descobriu Agostinho, Tomás de Aquino e San Juan de La Cruz.
Escondido dos olhos perspicazes do reitor e do padre mestre, leu Nietzche,
Sartre e Simone de Beauvoir.
Crê em Deus e na humanidade, apesar de tudo.
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