O meu nome é Antônia Augusta dos Anjos, sou repórter, tenho 28 anos e moro com minha família em um apartamento de três quartos no centro de São Paulo. Décio Neto, meu irmão, trabalha comigo no mesmo jornal e, desde o nascer do Sol até a hora em que vou dormir, sou obrigada a tolerar esse bajulador, dissimulado e oportunista.
Mamãe, funcionária pública, vive sempre ocupada com reuniões de motivação e crescimento, no entanto, ela não cresce, nem se motiva e ainda fica estressada. Todavia, ela tem razão, pois meu pai não colabora. Seu Antônio “fica na dele”, sai para trabalhar, se é que podemos chamar de trabalho, depois volta e, com a “árdua” missão de celebrar o ócio, senta na frente da TV e esvazia a garrafa de uísque.
Vovó Almira também mora conosco e, de vez em quando, faz asneira. Um dia desses, ela cozinhou as bolas de tênis do meu irmão como se fossem batatas. Minha mãe surtou quando viu aquilo. Foi então que Dona Clarice resolveu procurar um psicanalista, já que ela não podia colocar todo mundo em uma espaçonave e despachar para a Lua.
E foi assim, em um momento crítico, quando a batalha do Armagedom estava prestes a deflagrar no seio da família dos Anjos, que conheci Margot de Lizz: uma criatura loiríssima – obviamente “de farmácia” – com sobrancelhas desenhadas, boca carnuda e curvas de tirar o fôlego.
Mamãe não compreendia a nossa amizade. Certa vez ela comentou:
– Filha, vocês duas são tão diferentes! Essa garota não tem nada de espiritual, ela é totalmente oca!
– Dona Clarice, você não vive dizendo que a aparência é apenas a ponta do iceberg?
Esta conversa com minha mãe me deixou irritada, pois, o que é espiritualidade afinal? Tudo bem que Margot vivesse em um estado perene de futilidade e ausência de reflexão, mas ela não era oca. Eu diria que ela era, por dentro, o mesmo que por fora, sem tirar nem por, como um jeans justo ao corpo.
Era o jeito que eu pensava, até o dia em que essa calça justa se partiu, deixando à mostra o oco de minha confidente.
A verdade veio à tona a partir do momento em que encontrei Margot caída no chão de seu apartamento quase sem vida. Ela havia levado um tiro no lado esquerdo do peito e sua blusa de renda branca estava toda manchada de sangue. Sobre a mesa, havia uma taça com vinho tinto ao meio, a outra se espatifara ao chão. O cheiro forte de metal e tanino invadiu minhas narinas, fazendo-me enjoar. Liguei para a emergência e eles a levaram para o pronto socorro.
– Crime passional – a perícia concluiu.
Como eu tinha a cópia das chaves do apartamento de Lizz, resolvi dar uma passada por lá no dia seguinte ao seu internamento. Mesmo ciente do risco que eu corria, vasculhei armários, gavetas, à procura de alguma pista para o caso. Uma caixa sobre a estante me chamou a atenção, estava cheia de contas vencidas e avisos de protestos em nome de Udalcir Pedro Mendonça. Seria ele o criminoso? Indaguei.
Com o intuito de averiguar, despejei o conteúdo sobre o tapete da sala e, enquanto mexia nos papéis, a minha mente rebobinava lembranças.
– Ah! Como eu pude me esquecer de tantas coisas, que só agora, com a iminência da perda, me aguçam os sentidos? – disse para mim mesma.
Prestes a guardar a papelada de volta na caixa, uma cópia de identidade saltou-me aos olhos, não a tinha visto antes, era de Udalcir; mas a foto, de uma criatura loira, de lábios carnudos e sobrancelhas desenhadas.
A descoberta do gênero masculino de Margot me enfureceu, eu saí de lá bufando! No trânsito, enquanto aguardava o semáforo, eu esmurrava o volante, pisava fundo no acelerador e apertava a buzina. De repente, vi-me cercada de “mil olhos” de reprovação, um motociclista fez um sinal obsceno, devolvi-lhe o desaforo com o mesmo gesto e sai cantando os pneus.
Ao chegar à casa e deparar-me com o meu pai sentado em sua “cadeira cativa” com o copo de uísque na mão, explodi e minha voz ecoou acima dos decibéis permitidos por lei:
– Seu Antônio, desça agora e só volte com a carteira assinada!
Ele me olhou com cara de “cão atropelado” e saiu resmungando “sei lá o quê”.
Tranquei-me no quarto e desabei em prantos. Apesar da raiva que eu sentia, o desejo de que Margot sarasse era bem maior. Mas não foi assim que aconteceu.
A notícia de que ela não havia resistido soou como um gongo dentro da minha cabeça e, naquele instante, eu senti meu traje roto se partir, deixando à mostra os preconceitos que me cegavam, o oco de mim.
Dias depois, enquanto jantávamos, papai anunciou eufórico:
– Já tenho um emprego!
Em seguida, abaixou a voz e completou com desânimo
– Empacotador de supermercado.
– Mas ajuda no condomínio. – retruquei.
– Antônia, cala a boca! – Neto gritou – Você não manda nada aqui. Vá se afundar no pote de sorvete, sua gorda, baleia!
A repentina fúria de Décio me deixou sem reação, e vovó, tomando as minhas dores, despejou o resto da sopa sobre a cabeça dele. Depois da façanha, ela me encarou de um jeito insano e disse:
– O milho tem que estourar para virar pipoca.
Se aquilo foi um ápice de loucura, eu não sei, mas o fato é que Dona Almira estava certa. Sentindo um piruá no fundo da panela, só me restou ir para o quarto chorar. Horas depois, Décio batia à minha porta, queria meu perdão, eu o perdoei.
Desde então, tenho me empenhado em acolher a minha parentela do jeito que ela é, bem como, as pessoas que estão ao meu redor, pois não quero que, tardiamente, a minha memória fique a rebobinar os momentos especiais, que eu não degustei, por estar afundada no pote de sorvete.
Hoje, com uma nova compreensão, percebo que tenho em mim um pouco de cada um: da minha família, do homem da rua, da criança pobre, do empresário, do artista, do Universo, afinal, eu sou Antônia Augusta dos Anjos, a parte imersa do iceberg, o lado avesso de Margot.
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