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BATICO
Orlando Batista dos Santos

O mascate fez de tudo para não ser visto ao passar em frente ao escritório da fazenda com sua caminhonete abarrotada de tecidos e outros artigos domésticos para serem vendidos aos colonos. A entrada sorrateira devia-se ao fato de o mesmo não querer correr o risco de deixar um “agrado” no escritório da fazenda na hora de tirar a licença para fazer negócios. Julgando ter passado despercebido, foi fazer seu comércio, e de fato acabou auferindo bons lucros, com a venda de lençóis, fronhas, travesseiros e cobertores; com a venda de saias plissadas para as moças, vestidos rodados para as senhoras, calças rancheiras para os homens, e tecidos: de brim, de seda, de linho e de cambraia, e ainda pentes, espelhos, laquês, ruges e batons. De tudo o mascate vendeu na Colônia da Olaria.
Feliz por ter realizado boas vendas o mascate bateu em retirada, mas avistou, do alto do espigão, um trator atravessado na estrada e atinou que sua pessoa podia estar sendo objeto de uma armação. E estava; inconformado com a manobra do intrometido, o fiscal da fazenda providenciou o bloqueio da estrada, na esperança de ir à forra. Falaria ao mascate, poucas e boas, cobras e lagartos. Depois do “sabão” ainda cobraria uma multa, pesada multa, pela falta de licença para vender na fazenda.
Para escapar do cerco o mascate voltou em marcha-ré, pegou um desvio para sair em outra estrada, mas enroscou-se numa velha e pequena ponte, perto de onde Rosalvo e seus filhos capinavam. De lá os roceiros podiam ouvir: vuuuu...vu-vu-vu; vuuuuuuuuuu! Os lavradores não pensaram duas vezes para irem em socorro do pobre motorista.
- Buda qui bariu! - dizia o mascate arrancando os próprios cabelos.
- Arre égua, seu Turco! Desse jeito cê nunca vai saí daí - falou Rosalvo admirado, por ver a caminhonete do mascate entalada.
- Badrício dira gaminhon gom seu gente.
- Tira nada; carro muito assentado. Trator da fazenda puxa.
- Drador buxa non, drador buxa non! Drador machuga gaminhon... badrício dira gaminhon... bor favor!
- Tá bom, seu Turco; mais qui vai demorá, isso vai...
- Non bode demora. Brecisa fechar gaixa do loja. Non gonfia embregado.
- Intão vamo tê qui arriá a ponte. Acho mió si aquetá.

Desmontar a ponte era mesmo a melhor alternativa. Mesmo porque, era de construção antiga e improvisada, constituindo-se basicamente de dois troncos de aroeira, um em cada margem do pequeno riacho, duas vigotas transversais, e tábuas fechando o vão, tocando a superfície da água. Conquanto fosse um trabalho demorado, era a única forma de garantir a integridade da máquina em sua retirada.
E assim foi feito. Rosalvo e seus filhos começaram a arriar a ponte solapando os esteios e despregando as tábuas com pé-de-cabra. Aflito, de vez em quando o mascate solicitava pressa, porque tinha hora certa para fechar o caixa de sua loja na cidade.
- Assim num dá; num sei si trabaio, o si ti iscuto! - Falou o pobre roceiro um tanto contrariado.
- Non bode demora. Brecisa fechar gaixa do loja. Non gonfia embregado!
- Arreda, seu Turco; favô sentá nu sombrá; só vortá quando eu chamá!
Quando o mascate afastou-se, Zé carro perguntou ao pai:
- Pai: quanto u sinhô vai cobrá pelo siviço?
- Nada, mo fiu, nada. Dinhero num é tudo. Quem acode us disvalido fica di bem cum Deus.
Rosalvo estava mesmo imbuído em ser apenas solidário. Sabia muito bem o valor da ajuda mútua e aprendera desde cedo que em certos momentos Deus se faz presente através do socorro feito por pessoas desinteressadas. Quando um companheiro caía de cama, todos vizinhos se prontificavam em acudir-lhe, capinando sua roça, fazendo sua colheita...pelo menos era assim ali na fazenda, sendo “todos por um e Deus por todos”.
- I si u home oferecê um agrado? - insistiu o moleque.
- Aí é diferente. Vai da consciença dele.
Mal Rosalvo acabara de falar e o mascate chegou:
- Agora sai; dois buxa, dois emburra e gaminhon sai.
Dito e feito: duas pessoas puxando e duas empurrando, não foi preciso fazer muito esforço para a caminhonete sair do leito do córrego intacta. Os olhos do mascate faiscavam de contentamento. Dizendo “badrício amigo, badrício amigo”, retirou uma camisa xadrez que sobrara de suas mercadorias e apontou para Rosalvo:
- Gombra, badrício, gombra?
- Batiço num qué compa nada  respondeu surpreso o lavrador.
- Gombra, badrício...
- Vá simbora, seu Turco!
- Durco non; libanês do Armênia!
- Vá simbora, batiço, o eu boto essa pexte de vólita na água!
O mascate entrou na caminhonete, bateu a porta enfezado, botou a cabeça pela janela e repetiu:
- Libanês do Ar-mênia; do Ar-mê-ni-a! - E acelerou. O roceiro permaneceu ali quieto, parado, e, enquanto observava a poeira que ainda cobria a estrada, pensava: “batiço inda vólita, ah se vólita...”
Contemplando uns poucos rabiscos que fizera na areia, Zé Carro ainda perguntou:
- Pai: qui qui qué dizê “batico”?
Fitando o moleque, o lavrador a custo respondeu:
- Nada, mo fiu, nada...

( Este conto faz parte do livro "Heróis Caipiras", deste autor)




Biografia:
Estudioso do Folclore e da Cultura Popular de raízes caipiras. Autor do livro Heróis Caipiras. http://www.clubedeautores.com.br/book/119026--HEROIS_CAIPIRAS Presidente da Associação de Produtores da Agricultura Urbana de Campinas e Região. Blog: http://aproagriup.blogspot.com.br
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