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Tríptico
João Felinto Neto

Resumo:
Gostaria de ressaltar que escrevo pela segunda vez, um prefácio para Tríptico (O primeiro extraviou-se). A maior dificuldade para seguir a vida fazendo poesia é o menor apreço dado pelo leitor ante outros gêneros literários. Mas, pelo que eu conheço do poeta, a sua devoção a tão bela arte, o seu intenso desprendimento para escrever versos e sua disposição, completam uma trilogia que supera qualquer dificuldade. Tríptico poderia ressaltar nas diversas vertentes por onde o poeta segue numa escorredura de inquietação, de vislumbre e de solidão, o poeta, o poema e o leitor. Não sei depurar situações insones nem trabalhos específicos, apenas me situo entre o poeta e seus versos; sou um leitor que revitaliza a obra pelo empenho em extrair toda a essência curadora que a poesia exala. Dessa forma, eu me renovo nas páginas de Tríptico. Aparar arestas, lapidar o pensamento em busca de uma confluência entre verbo e harmonia, arranca do mais profundo âmago, a vitalidade racional confrontada à emotiva. Eu entendo o extraordinário esforço de criação do poeta em seu movimento pendular entre a loucura e a arte. Há versos que surpreendem com seu sentido nato para o óbvio, enquanto outros, para o absurdo. Em tríptico, o poeta norte-riograndense João Felinto Neto (Tratamento formal) estabelece, em minha visão, divisões precisas em sua poesia: o Alento, aonde galga a certeza da paz; o Extenso, onde conserva na síntese, o amontoado de sentidos e a Continuidade, a reticência aberta para ir além.

Tríptico

Numa capa se destacam,
três dobras desenhadas.
Uma simboliza o sorriso,
outra os degraus de uma escada,
e a do centro,
a recoberta,
a capa deste livro.

Não importa o motivo
que define estas páginas,
seja o pai, a mãe e o filho;
ontem, hoje e amanhã;
uva, pêra e maçã
em um cesto colorido.

Verso, estrofe e poema
é o tríptico do poeta.
Um desenho em linha reta
onde a mão serve de guia,
a caneta solta a letra
resultando em poesia.



Esta casa

Seja bem-vindo
ao meu recinto.
Sem cerimônias,
pode adentrar.
Lá fora, o mar
jorrando espumas,
também as dunas,
vento a soprar.

Se o meu piso
retém areia,
não se acanhe,
pode limpar.
E se quebrar
um objeto,
seja correto,
reponha-o já.

Se acaso usar
alguma coisa,
faça uma lista
para comprar.
Não vá pensar:
é uma egoísta.
Bem mais que peço,
posso lhe dar.

Dar-lhe-ei abrigo,
coisa de amigo.
Minha cozinha
para cear.
No meu alpendre,
deita comigo.
No meu banheiro...
Deixa pra lá.
















Biografia

Sou imortal
nas páginas mal relidas.
Mantive a vida
em letras acabadas.
Capas de luxo
no lixo jogadas.
Versos enxutos
em folhas já molhadas.
Chuva que cai,
palavras borradas.
Uma mão na luva
que cata a esperança
nas poucas letras
ainda não apagadas,
na tentativa
de mantê-la viva,
biografia
de um poeta que se cala.






Desafeto

No espaldar da cadeira,
encontro reminiscências
em versos quase eternos
quanto o terno
surrado que me veste.
Nas gotículas do soro,
sou a peste
ainda imune à ciência.
Se permaneço vivo
é por decência.
Quando partir
será por desafeto.












Existências fotografadas

Em preto e branco,
vejo o retrato de minha avó;
um colorido, de minha mãe
na mesma idade,
em épocas tão diferentes.
As mesmas rugas
congeladas pelo tempo,
se opõem à tempo
de percebê-las.
No traço da boca
quase sem lábios,
cópias do mesmo espaço
deixado entre eles.
Existências fotografadas
em negativos transparentes;
duas mentes,
sementes,
avó e mãe.






Contraceptivo

Eu não sei se é o desespero
que me leva à loucura
quando o sexo estupra
a minha alma,
ou a calma
que advém do meu tormento
pelo tempo
que passou em minha palma.
Movimento anormal
de penetração moral
em sua saia,
e no cheiro da indecência,
feromônio da ciência
em uma jaula.
Uma fera excitante
que no último instante, ofegante,
cospe a vida
no seu couro de borracha.
Não há luta, nem corrida;
há uma triste despedida
de um suposto vencedor
que foi fruto de um amor
e se enforcou
com a própria cauda.
Milenar

A flor que cheira
ao desabrochar um dia
na noite fria
de uma estação secular,
sente chorar
no orvalho que inicia
a poesia do jardim onde ela está.

O vento dá,
arrancando suas pétalas;
cores dispersas
na imensidão que há.
Resta uma pá
esquecida entre espinhos,
ovos e ninhos,
uma pegada a traçar.

Triste cantar de uma grande ventania.
Folhas sem guia,
arrancadas do lugar.
Vasos quebrados,
que estranhas sepulturas,
onde a cura
vem da raiz milenar.
Entre o céu e a gaiola

É impossível a uma ave,
acreditar
na mão que agora abre a porta
na intenção de a soltar,
a mesma mão que um dia outrora,
a pôs numa fria gaiola
depois de tirá-la do ar.

Bater as asas e voar,
já não consegue;
está completamente entregue.
Sua prisão tornou-se um lar.

Como é difícil acreditar
no amor fiel,
se sob o imenso azul do céu,
a traição teima em reinar.

A quem eu posso enganar,
sendo infiel,
se como a ave a voar no livre céu,
limito o meu horizonte
e a todo instante
quero voltar?
Caravelas

O dia nublado,
auréola dista.
Um sol retocado,
vermelho em pranto.
No cruel tratado
de Tordesilhas,
das Terras alheias,
tornei-me dono.
Após ter singrado
mares bravios,
em naus, caravelas,
um nome santo.
Denominado enfim,
Brasil.
Povo gentil
de cores e cantos.








Soneto da monogamia

Por mais que eu tente,
o tento é pouco.
Não há um outro
amor em minha mente.

Por ti somente,
meu amor, eu sofro.
Como sofre um louco
pelo amor ausente.

Por hoje e sempre,
um escravo solto
que sente a corrente.

Fixo e permanente,
meu olhar de lobo,
ante a chama ardente.







Sabor da vida

Uma boca amarga
que não prova
do sabor da vida
que tão bem servida
numa taça,
transparente passa
no efêmero agora
que o saudoso outrora
jamais eterniza.















A todos

Conheci o triste,
pelo seu lamento.
Conheci por dentro,
o que sempre ri.
Conheci a ti
no melhor momento.
Conheci a tempo,
a hora de partir.

Conheci do louco,
sua insanidade.
Conheci saudade,
mesmo antes de ir.
Conheci o fim
antes do começo.
Conheci o esqueço,
lembrando que enfim,

conheci a todos
sem conhecer a mim.




A rês

Uma rês que desgarrara,
estava perdida e cega
pela máscara que lhe impusera
o destemido vaqueiro.

O chocalho baderneiro
afugenta o carcará
que acreditara encontrar
seu alimento primeiro.

Longe, escuta o vaqueiro
tangendo o resto dos seus;
não sabia que era adeus,
a distância do curral.

Presa em um lamaçal,
apavorada e com fome.
Ecoa longe o seu nome
e perto um bater de asas.

O urubu vil aguarda,
e sob o sol, a espreita.
A rês cansada se deita
quando sua força se acaba.
Uma semana passada,
a procura terminou.
Aos urubus espantou
de uma débil carcaça.

Nessa hora acha graça
de tamanha estupidez.
Quando será sua vez,
pois também ele é mortal.

Acredita que afinal,
sua medíocre vida talvez
não passe de uma rês
presa em um lamaçal.












À morte

A morte
parece uma sentinela
com seus olhos na janela,
traspassando minha alma
na hora que a dor em mim começa,
lentamente, sem ter pressa,
com a sua espada em brasa.

A morte
vem me visitar em casa,
e continua sem pressa.
Seus olhos não me olham da janela,
estão dentro de minh’alma.

A morte,
sob o cobertor, me abraça
e sem pudor me aperta.
Parece ser uma graça,
mas não passa de desgraça
quando a morte me supera.

A morte,
em silêncio e descalça,
uma dama bela e falsa
que pela dor me desperta.
Tão consciente que é certa,
a morte exala
o perfume de minh’alma,
pelas rótulas da janela.






















Tateando

Está em mim
traçar meus passos
em um caminho.
Apiedar-se
por estar sozinho,
não é o meu caso.
Não estou certo
sobre meus fracassos.
Não é se acho,
é se ainda procuro.
Andar no escuro
ou tropeçar no claro
é a razão de tudo.











Amnésia temporária

A vida é uma guerra
numa porção de terra
demarcada.
Para muitos é muito.
Para poucos é nada.
A vida é ridiculamente
engraçada.
É sangue na roupa
que vive ensopada.
Na roupa engomada,
a vida é nula.
Para muitos é dura.
Para poucos é praia.
É água com açúcar,
é calma.
É sol e buzina
na rua apressada.
A vida
é amnésia temporária.
Cadê o bom-dia?
Boa-noite que nada.
A vida é fase terminal,
é fim de corrida,
é luta banal.
Entre rugas e cabelos grisalhos

Envelheço
nas mesmas mãos
que me acalentaram
e jogarão terra
sobre o meu caixão.
Nunca esqueço
quem guia meus passos
para longe do mais triste laço,
o da solidão.
Não pareço,
no espelho olhado,
com a imagem
que eu via antanho.
Como é duro
olhar para o passado
e ver-se um estranho.
Entre rugas
e cabelos grisalhos,
somos companheiros
na compreensão.
Envelhecemos descalços
para nunca esquecermos
de manter os pés
no chão.
Acidente

As luzes dos carros
distorcem minha vista
e na velocidade
a pista se acaba.
Eu vejo minha vida
repassada
como em uma fita.
Na brusca freada,
entre estrelas e o chão molhado,
vejo retratos
da família.
A escuridão me deixa apavorado,
enquanto a chuva fria
me esfria.
Eu sinto um suor quente
que me deixa ensopado.
Não penso em Deus, em anjos ou no diabo,
apenas em meu trágico
padecer.
E nessa hora
eu lembro de você.
Procuro me mexer
mas não consigo.
E no silêncio,
fico estarrecido.
Eu devo ter
voado pela porta.
Agora não importa,
percebo que o suor ás minhas costas,
é sangue.




















O pomar

Desejaria eu, voltar,
se assim pudesse um dia,
como uma folha que caia
num belo pomar.
Seria fruto do amor
que a ave picaria
ou simplesmente uma flor
que beijaria o colibri.
Nesse pomar, poderia ouvir
da água, a cantiga
que sobre as pedras escorria
a te procurar.
Em uma gota cristalina e fria,
eu estaria
como também na poesia
de um sabiá.
Há!
Se eu pudesse voltar
um dia.
Seria a terra removida
para se cultivar.
Seria o vento que movia
um galho a sustentar
o ninho onde haveria
uma ave prestes a voar.
Nesse pomar não caberia
tanta vontade de voltar.
























A mesma história

Sob um casebre taciturno,
uma criança chora;
a sua mãe não foi embora,
é tristemente fome.
Não interessa o seu nome,
pois o que importa
é a razão porque não come.
Talvez você não saiba agora
que a culpa é nossa
ou simplesmente se esconde.
Mas, pesa mais do que escombros
sobre nossos ombros,
essa repetitiva história.










Seriamos infelizes

Eu não iria perdoar
se você me traísse;
sei que seria triste
ter que continuar.

Nesse ato vulgar,
o amor não resiste
e a dor persiste
sempre a incomodar.

Não se pode sonhar,
nem pensar em futuro.
Abre-se uma fenda no muro
que tende a desabar.

Jamais iria aceitar
como um deslize;
seriamos dois infelizes,
ao me afastar.

Você poderia chorar
sobre a lápide fria
que eu não perdoaria
essa sua forma de amar.
Capim ceifado

Em um tronco brocado
sento e vejo a criança
ao olhar à distancia,
entre o capim ceifado.

Em seu mundo encantado,
uma doce esperança
que um dia alcança
um adulto cansado.

Há, que tempo malvado!
Que saudade do dia
que eu corria encantado.

Entre o capim ceifado,
era eu que sorria.
Hoje, sonho acordado.







Soneto natalino

Sob o teto, as árvores de plástico
iluminam com luas e estrelas,
os presentes no caule, arrumados
pela família inteira.

Um aperto de mão e um abraço
destinados a quem a gente ama
que feliz se encontra ao nosso lado
e animado nos chama.

Nessa noite de luz e encantamento,
brilha e eclode a cada momento,
um eterno e místico sinal.

Não importa em que língua e em que tempo,
grite forte, solte a voz ao vento:
- Tenha um feliz natal.






É noite de natal

Escuto o dobrar do sino
e vejo anjos, meninos,
brincando e também sorrindo;
entre eles, um velhinho
chamado papai Noel.

Vejo as estrelas no céu
indicarem um caminho
àquele que está sozinho
a procura de um sinal.

Hoje é noite de natal,
eu estou em pé na porta
a procura de resposta
para um mundo desigual.

Numa banca de jornal
no outro lado da rua,
um menino se insinua
com uma arma na mão,
alguém diz pega ladrão,
ele corre sob a lua
e some na escuridão.

No natal, também há fome,
é a exploração do homem
pelo seu próprio irmão.
Nem o temor à religião
faz mudar o coração
desse rude animal.

Como é noite de natal,
o bem sobressai ao mal,
o sentimento à razão.
É tempo de aprender.
É noite de união,
onde cada coração
tem vontade de dizer:
- Feliz natal.












Cabra

Sou o cabra
que observa a cabra
ruminante.
Estou em pé
no pé do monte,
sem saber ainda aonde
a cabra vai me levar.
A cabra não apercebe
que sou o cabra que a segue
para vê onde se serve,
pois tá dando pra roubar.
Descubro o lugar na cerca
onde ela teima em passar.
A cabra anda sozinha,
vai à casa de farinha
e bagunça o lugar.
De volta ao outro lado,
cansado de tapar buraco,
ponho na cabra a cangalha
(Uma armação de madeira,
uma espécie de coleira
de forma triangular)
que a impede de passar
pelo buraco na cerca.
Esqueci-me de botar
a tramela da porteira
e à noite, a cabra faceira
fugiu pra não mais voltar.
Agora, sou conhecido
como o cabra esquecido
que uma cabra pôde enganar.
Se acaso à cabra, encontrar,
o cabra aqui vai pagar
uma boa recompensa.
Não sou cabra de ciência,
perdi minha paciência,
essa cabra eu vou matar.













Fantasia ou loucura

A ilusão caminha solta pela rua,
onde as calçadas são de pedra de sabão.
Os transeuntes são apenas esculturas
que se derretem sob a chuva
numa eterna ilusão.

Rente aos telhados passa, a luminosa lua,
transformada numa bolha de sabão.
Há dentro dela, uma bela dama nua
que na sua face oculta,
amarga desilusão.

Observando esta cena, continua
extasiada com sua imaginação,
a inusitada e sombria figura.
Será fantasia ou loucura,
essa alucinação?







O atleta

Na mais estranha quietude,
o atleta se despede de sua juventude.
Uma nobre atitude
é o que a todos parece.
Mas o atleta, em silêncio,
faz uma prece:
O mundo que me ajude.
Tanta medalha no peito;
contra o tempo não tem jeito,
o atleta foi vencido.
Hoje, um velho envaidecido
que com a vida ainda compete.
O atleta ainda se veste
com a camisa da coragem
e na sua jovem imagem
se espelha
e mantém ainda acesa,
a chama da liberdade.
Nem tristeza e nem saudade,
mas sua vasta idade
é que o condena.
O atleta
finalmente sai de cena.
Ainda à espera

Eu adorei meu tempo
como adorei a ela,
tal qual adoro o vento
que invade a janela,
trazendo o sentimento
de um jovem ciumento
que achava a vida bela.

Meu corpo era um barco.
Meu coração, sua vela.
Meu tempo era parco;
achava eu, que não era.
Minha idade é o marco
onde aportei meu barco,
deixado à espera.








Entre poeta e animal

Eu vejo um corvo voar
por cima de um telhado.
Ele pousa do outro lado,
onde mora o Edgar.

Um pica-pau a viver
numa árvore que resiste
e dá de ombros ao Nietzsche
que continua a escrever.

Escuto uma cabra balir
e Saba com ela falar.
Curioso para olhar,
levanto e saio dali.

Vejo um gato brincar
no meio da rua, à toa.
Então percebo o Pessoa
na janela a observar.

Além da vida real,
há um mundo de poesia
que afinidade propicia,
entre poeta e animal.
Pó da imaginação

Procurei pelos campos,
campanários,
sob antigos telhados
de igrejas,
na mais profunda caverna
e muito além da terra,
meu planeta.

Procurei entre humildes e bastardos,
entre corpos cremados
de profetas,
desde o mais antigo sábio
à teoria mais moderna.

Procurei em recôndita aldeia,
nas profundezas do mar,
na melodia da areia
espalhada pelo ar.

Nas delicias do prazer,
na loucura dada ao vício,
na força que tem o querer,
no engodo do artifício.

Na mais completa biblioteca,
no conceito violado,
na pena de um velho poeta,
pelas lentes de um letrado.

Nos sonhos de liberdade
do preconceito da cor,
nas chamas da vaidade
das letras que falam de amor.

Procurei em cada beco,
cada gueto,
um a um.
Procurei entre os segredos
dentro de um copo de rum.

Nada encontrei nessa busca,
que durou por toda a vida.
Só uma luz nos ofusca,
a do sol que irradia.

Não encontrei céu ou inferno,
nem par de asas ou tridentes.
Encontrei homens como eu, que de perto
não são diferentes.


Encontrei sim, sofrimento
de um ser desesperado
que se agarra ao pensamento
de que há um outro lado.

Que quando enfim, der adeus
aos seus entes mais queridos,
será levado por Deus
a um eterno paraíso.

Só fé, pó da imaginação,
que o vento da realidade
sopra em busca da razão
e o que parece verdade
é apenas ilusão.












Onde a felicidade está?

Eu não consigo ser feliz
enquanto há fome e miséria
no país em que eu nasci
e amo tanto,
diz
o idealista franco.
Eu vejo uma criança em pranto;
a cruel fome e o desencanto
de uma mãe que já não canta,
pois há um nó em sua garganta,
não há almoço, nem há janta.
Lá pelas tantas,
eu vejo um velho infeliz
que amarga sua prece.
Porque o mundo me esquece?
Apago a chama que me aquece,
vejo o mendigo que se enrijece
diante da força do frio
que me provoca um arrepio
só em pensar.
Como alguém pode aceitar
tão desigual situação?
Sinto uma grande comoção
quando vejo um irmão
que vê outro padecer
enquanto assiste à TV,
e não se importa
quando um outro bate à porta:
-Perdoa-me, não posso agora.
Onde a felicidade está?
Pois ao se por em seu lugar,
sou infeliz,
por que assim você me quis.
Jamais quero ser feliz
vendo a desgraça de outrem
que comparada a uma raiz
se desenvolve muito bem
debaixo de nosso nariz.













Hoje é natal

Pelo mundo
se espalha um sentimento
que é antigo e permanece atual.
A humanidade até o coevo momento,
comemora o histórico nascimento
de um mito espiritual.

Piscam as luzes
tal qual olhos que paqueram.
Assim celebram
essa noite especial.
Feliz natal!
É o voto mais sincero
de um amigo pessoal.










Sonhos

Os meus sonhos
são apenas fragmentos de memória,
pequenos focos de luz
como cristais dispersados
num caleidoscópio de pensamentos,
distorções esdrúxulas da realidade.
Rumores, amores e momentos,
abertos numa gaveta destrancada.
Minhas pálpebras fechadas
num caixão de quase nada.
Um quase definido como os sonhos
que são versos que componho
numa noite agitada.
Movimento involuntário dos meus olhos,
que entre risos, ainda choro
por apenas acreditar sofrer.
Entre cartas mal escritas e seladas,
vem a calma ao chegar o amanhecer.
Vem enfim, o esquecimento
desse quase fingimento
que é sonhar.



Dois desconhecidos

Num vôo sem asas,
alcança o céu, em sua imaginação.
Calibre na mão errada.
Queima um coração
num fogo sem brasas.
Casa com janelas e portas entreabertas
onde a solidão reinava.
Uma companhia tão indesejada,
que em pouca conversa,
a noite acaba em desgraça.
Depois, um silêncio.
Pouco a pouco, o vento
enxuga uma mancha que há na sala.
Um desconhecido agoniza ao chão,
outro corre na escuridão.
Longe, um ladrar de cão.
Uma injustiça nunca reparada.







O pateta

De pé, o poeta observa
as pessoas que caminham nas calçadas,
em um vai-e-vem constante.
Imagina a todo instante,
o que para si reserva,
cada pessoa que passa.
Umas acreditam certas,
outras ao contrário, erradas.
O poeta observa sem pressa,
devagar o tempo passa.
Uma face parece bela,
outra feia e macabra.
Tenta ler os pensamentos
de cada um, no momento
que atravessam a calçada
onde tal qual uma estátua,
o poeta os observa.
Quem será esse pateta
com uma cara de babaca?
Sou uma lápide indecisa,
cuja frase em si escrita
não significa nada.


Soneto do aconselhamento

Converta-se ao cinismo do que seja,
louvado sob o dogma de uma fé.
Em ternos engomados, se deseja,
oculta a realidade de quem é.

Entregue-se ao pecado e padeça
nos braços de uma dama que o quer.
Esconda os seus atos e não esqueça,
a vida é breve, faça o que lhe aprouver.

Não diga a verdade e será considerado
um cidadão honrado e respeitado.
Suas vestes vão dizer quem você é.

É tristemente hipócrita a humanidade.
O preço que se paga é não ter a liberdade
e viver num faz de conta que não quer.







Sono sem sonhos

Por ser a morte
um sono sem sonhos
sem amanhã para recordar,
uma escuridão eterna em tamanho,
um inconsciente
sem memória pra lembrar,
é que eu a temo tanto
e também a canto
em dolorosos ais.
Não vislumbro sinais
que me levem a tal sorte.
Meu medo da morte
é ter a certeza
de não te ver, princesa,
nunca,
nunca mais.








Coveiro

Entre corpos velados,
de joelhos.
Entre lábios selados,
um desfecho,
como as covas que cavo.
A ferrugem do prego
que eu cravo.
Na madeira um estalo,
traz o medo.
Na demência, o segredo
de um fim trágico.
Na ausência, um lapso,
um desterro.











Alice

Uma personagem que existe
e habita o mundo real.
Minha amiga mais leal,
minha querida Alice.
Somos mais que mãe e filha,
mais que laço de família,
duas faces de um cristal.

Compartilhamos com o tempo,
alegria e sofrimento,
a certeza e o talvez.
Nenhuma lágrima desfez
nossa eterna companhia.
Soube qual o papel de filha,
quando mãe por minha vez.

Duas lições tive em casa:
da mãe e da professora.
Nada na vida é à toa,
o destino me ensinava.
Sigo, mãe, com a família;
pois ainda segue, a guia
que me levou a essa escolha.

É natal

Não é o meu nascimento,
nem jamais seria o seu.
Isso já faz muito tempo,
que acreditam, aconteceu.
Presépios tentam lembrar,
o que você esqueceu.
Não quero o mundo real,
esse que me dá adeus.
Quero gritar: É natal!
Nasceu o filho de Deus.














Predestinou-me, a solidão

Uma donzela fina
que em meus braços
beija.
Um pescador caleja
seu rude coração.
A solidão
que predestinou-me, um dia,
a dor ainda viria;
a dor da ingratidão.
No adeus de um amor
que não voltou jamais,
o vai-e-vem
de uma onda
que arrebentou o cais.
O naufragar
de um barco à deriva
por um vento frio
que me deixou um vazio
que nem a própria morte
o suportaria.




Paixão pelo luar

Quem sabe dou um beijo
na lua que me espia.
Amigo,
quando for dia,
o sol que irradia,
vai querer me queimar.
Como é difícil amar
quem brilha tão distante.
Eu sempre fui amante,
um poeta delirante,
diante
de um belo luar.












Bornal de caçador

Vejo pela janela, distante,
a liberdade de um condor
que voa com esplendor
sobre a planície verdejante.

E vejo antes,
meu bornal de caçador.

Minha tristeza e pudor
ante um espécime empalhado
que sob o velho telhado
desafia minha dor.

E vejo antes,
meu bornal de caçador.

Um ninho de beija-flor
no alpendre, me desarma,
dependurado com a arma,
hoje, sem nenhum valor.

E vejo antes,
meu bornal de caçador.

Escuto um estampido distante.
Sendo agora um defensor,
retiro do quarador,
ainda manchado de sangue,

o que era antes,
meu bornal de caçador.




















A greve

Descobrimos uma forma de lutar sem armas,
cruzamos os braços
no pátio da fábrica.
Reivindicamos apenas melhores salários,
não quebramos janelas,
nem queimamos carros,
cruzamos os braços.

De repente, fardas e homens armados.
Cidadãos feridos,
outros arrastados.
Como animais, foram enjaulados
pelo que fizeram,
cruzaram seus braços.

Para os libertar,
um advogado
que recebe altos honorários.
Os homens de fardas
foram condecorados
por terem espancado
os operários
de braços cruzados.
E se fosse você?

O vento me distrai,
levando areia sobre o asfalto quente,
enquanto estou à sombra do alpendre
e de repente,
uma telha cai.

Assusta-me, o fato conseqüente.
Mas não perturba à minha doce paz.
Enquanto uma réstia, ali se faz,
abre-se ainda mais,
o sol ardente.

Uma cadela velha, até demais,
com chagas pelo corpo tão doente,
procura abrigo embaixo do alpendre.
Agindo asperamente,
a fiz voltar atrás.

Talvez eu tenha agido cruelmente.
De fato, muita gente não o faz;
divide seu espaço com animais,
mas jamais,
com sua gente.

Eco

Eu escutei uma canção que vinha
de alguma ilha
no meio do mar.
Ela falava de uma noite fria,
de alguém sem companhia
e do mais lindo luar.
A mesma lua
que dali eu via.
A mesma noite,
tão fria, eu sentia.
A melodia,
o vento trazia;
assim,
eu me ouvia
no eco,
a cantar.








Dislate

Talvez minhas palavras sejam tolas,
minhas ações, inconseqüentes;
as minhas brincadeiras, ironia;
eu próprio seja falho e negligente.

O meu discurso seja sátira;
minha seriedade, uma piada.
O meu humor seja mau gosto;
o meu dislate, permanente.

Meu riso entre dentes, atimia;
a minha faina seja ociosa;
meu pranto, uma lição jocosa
e o jeito infantil, idiotia.

Talvez a minha vida seja um fracasso;
meus versos, um engodo imoral.
Em epítome, sou um gracejo nefasto.
Meu desejo, um esboço abnormal.





Letras tortas

São raros meus momentos de silêncio.
Quase sempre,
minha mente
está em polvorosa.
Palavras tão desencontradas
que intimidam
minha alma inquieta
e nunca ociosa.
Um legado aos pósteros,
os pensamentos toscos
que registro em papel sem pauta.
Dissonante flauta
em notas musicais,
que não são mais,
que minhas letras tortas.









Poema de dois versos

Quem espera o meu regresso,
cansa.






















O velho sofá

Ampliamos os nossos sentidos
no encosto do velho sofá.
Quantas vezes, os trêmulos joelhos,
sob o peso do abissal cansaço,
surpreendem o nosso abraço
num discreto segredo?

A penumbra suaviza o desejo.
Mesmo assim,
enlouqueço e esqueço
que estamos na sala de estar.
Um gemido que a garganta cala.
Uma mão atrevida que pára.
Vamos recomeçar.










Flores no deserto

São flores exuberantes
no deserto,
entre espinhos e areia,
meus versos,
ou talvez miragem seja,
entre patas
de uma cáfila
que passeia.
Uma nuvem de poeira
não encobre
o colorido das flores,
nem os odores
que exalam.
São escravos de um nobre,
que combóiam a caravana.
O enigma que acompanha
as pirâmides.
Os meus versos, tão distantes
dessa ponta de caneta,
semelhante flores, na estreita
ilusão
de que são versos.


Indolentes

Meus olhos pedem tanto
e não retribuem nada,
são vazios como a escada
que me leva até o sótão.
A eles não importam,
tristes lágrimas.
Diante de uma dor,
eles são impiedosos.
São pedras calcinadas
pelo tempo.
Esporos peçonhentos
que não choram.
Parecem duas mães
que se consolam
enquanto apunhalam
suas crias.
Em meio às conquistas,
se defloram.
Jamais imploram,
o perdão de suas vitimas.




Poemas de minha alma

Tenho um corpo oco
como um toco.
Sou apenas casca.
Sentimentos soltos
dentro de um coco
ainda cheio d’água.
Ajuntei apenas
um ou mais fonemas.
Transformei-os em versos
num simples reverso
de minha própria cara.
E cada poema
que julgam ser meu,
é de quem morreu
ou de minha alma.









Out door

A vida,
talvez seja a liberdade
da criança no balanço
no out door.
Tão só,
com um sorriso iluminado.
Enquanto pela janela do carro,
eu observo
no contraste da escuridão,
a eterna ilusão
de que estou
no out door iluminado.












Quando o meu neto for um velho

Quando o meu neto for um velho,
eu serei só lembrança
de um vulto triste e sombrio
que vivia à distância,
que era enigma e desafio
aos olhos de uma criança
de pé à sombra de uma imponente árvore.
Não serei jamais saudade,
por ter sido alheio
e não ter nenhum anseio
de beijá-lo e de sorrir.
O que seria ao partir?
Apenas desconforto.
Um homem que já estava morto
e teimava em não ir.

Quando o meu neto for um velho,
talvez nem mesmo queira,
ver a mais horrenda caveira
em moldura de um século,
apelar por um regresso
com insistência e dor.
Uma figura sem amor,
sem cor, sem esperança,
que foi na sua doce infância,
mistério e pavor.

Quando o meu neto for um velho,
serei ossos velados,
levados através do tempo
pelo esquecimento,
por que jamais seria amado.
Em velhos livros empoeirados,
encontrará escritos
que não revelarão quem fui,
e também qual a cruz
que os meus ombros carregaram.
Não descobrirá cansaço
para minha estranha ausência,
nem tampouco, inocência,
nos meus atos de culpado.









Aos pósteros

Para impedir que fossem as minhas palavras,
o suspirar de uma boca não ouvida,
borrei de tinta as paredes esquecidas
numa caverna há muito tempo desabada.

Pus hieróglifos em pedras arrumadas.
Risquei os templos com frases sem sentido.
Em pergaminhos antigos e papiros,
deixei escrito, idéias rejeitadas.

Em línguas mortas, ainda estudadas,
deixei nas páginas de um antigo livro,
versos perdidos em linhas rabiscadas.

Da antiga pena em tinta mergulhada,
sobreviveu minhas palavras sem estilo
à mais moderna e refinada esferográfica.







Enquanto eu nascia

Enquanto eu nascia
e minha mãe se contorcia
de dor,
a meninada pro quintal corria
pra não ver do sangue
nem a cor.
Não uso o nome,
uso o apelido.
Havia os filhos
de Nova de Perigo,
que em suas fezes
se encontravam vermes,
e enquanto eu nascia
pelas mãos de Dulce,
as verminoses provocavam o cuspe
de minha prima.
A vida ensina
de maneira estranha.
Enquanto uma cria
nascia na cama;
lá no quintal,
os vermes se mexiam,
ao perderem a vida
fora das entranhas.
É...

O que é
ser normal
para uma criança especial?
É ver alguém deficiente
por ficar triste ou doente.
É caminhar entre o bem e o mal
permanecendo inocente.
É ver a vida, como tal,
um passatempo diferente.
É nunca parecer igual,
diante de toda essa gente.
É ver de forma natural,
o estranho mundo à sua frente.
É acompanhar o racional
com passos de quem muito sente.
É ouvir o mais sábio casal
usar uma frase comovente:
“Nós somos pais deficientes
para cuidarmos de uma criança especial”.





Em demasia

Eu sou demasiado triste,
pelos versos que componho.
Eu sou demasiado louco,
pelo pouco
que proponho.
Não deveria o mundo ser assim,
em demasia.
Talvez não seja o mundo,
seja enfim,
minha poesia.
Demasiada em meu tédio,
sem remédio,
em grafia;
em longas noites mal dormidas;
nos insultos
que eu ouvia.
Não caberia em minha mão,
toda a visão
que em mim cabia.
Eu sou demasiado em tudo,
que ironia,
demasiado em meu luto
por ser fruto
de utopia.
Em demasia são os dias
que me escapam entre os dedos
como uma teia
que é lânguida e esguia.
O mais sublime pensamento
que perde tempo
em demasia.
Demasiado, meu tormento,
pelo tanto
que eu não via.
Demasiadamente eterno,
meu inferno em agonia.
Em demasia sou
quem sou,
um astronauta que acordou
num mundo estranho
em demasia.










Escapulário

Semelhante a um maltrapilho,
pela margem eu ladrilho
meu caminho.
Torturado pelo espinho
que me espeta.
Um anônimo profeta
sem destino.
Entre regras que ensino,
a mais púdica exceção.
Escapulário na mão
alivia ao colarinho,
o peso do sacramento.
O mais lascivo pensamento
traduzido em sermão
pela mão de um presbítero.
Dessa forma eu duvido
de que sou uma criação.
Transformado em ilusão
pela mão de um poeta
que tem a fé encoberta
pelo manto da razão.   



Agnóstico

Não me pergunte nada,
porque de nada sei.
Apenas acredito
que é incognoscível
a real lucidez
de um mundo inebriante.
Não quero ser pernóstico.
Por ser um agnóstico,
sou dúvida constante.
Sou uma pequena forma
que a multidão deforma
por me manter distante.
Mito sacrificado,
herança de um primata,
sou aquele que mata
o anjo e o macaco.
Não me convence histórias
e antigas teorias.
Nem mesmo a ciência
com sua sapiência,
também convenceria.
Talvez a metafísica
do cartesianismo
e o transcendente abismo
de nossa inconstância;
quem sabe a esperança,
a fé em sua pujança,
não sejam um estágio
pra desvendar o pelágio
de nossa ignorância.





















Poeta de bancada
               
Escuto o retinir
do martelo na bigorna,
o galope na água morna,
de um corcel à beira-mar.

Na poesia popular,
um cordel de sete versos,
um soneto em si disperso,
de um poeta a sonhar.

Que entre capas quer deixar
um pedaço de sua vida,
a poesia colorida
pelo gosto de rimar.

Nunca pare de pensar;
não importa a idade.
Um poeta de verdade
nunca deve se calar.





Anamnésia

Um pequeno verso
que se mumifica
em sua eterna subjetividade,
dentro de um sarcófago
de maturidade,
num poema velado
por um antigo vate
que em sua anamnésia
guarda a mais poética
saudade.















Visita ao velório

Eu te vi deitada,
você não sorria.
Só a morte via
que você chorava.
Ainda criança,
de nome Maria.
Como adormecida,
por ninguém, velada.
O que esperava?
Juro, não sabia.
Uma pele fria,
embora enrolada.
Rosa, não havia.
Mas por que cheirava?
Perfume da vida
que a morte exalava.








Antônimo de mim

Poemas que não me dizem nada,
quanto há tantos, nessa estrada,
que ainda desejam ouvi-los.
Declamações que me aborrecem,
porém o mundo não esquece,
embora eu tenha esquecido.
Antônimo de mim
são versos que enfim,
eu jamais citaria.
Mesmo na poesia,
a fé como utopia,
ao cético poeta
não pode enganar.
Assim, não espera,
para não se cansar.
Por convicção,
mantenho na mão,
não acreditar.






O ajoelhado

Não diviso seu rosto,
posto
estar ajoelhado.
Fito suas sandálias
e as bordas do seu vestido rasgado.
Suas mãos ainda pingam sangue.
Ela chama o meu nome,
sua voz é de calma.
Enxuga minhas lágrimas
com o hálito da alma.
Tão forte é o peso de sua decência,
que em minha incoerência
ainda sou perdoado.
Permaneço ajoelhado,
a noite inteira.
Vejo livre a cadeira
ao seu lado.
Não consigo sentar
por não ficar de pé.
Diante de tanta fé,
permaneço ajoelhado.



Os degraus

Não importa se você me segue,
se sobe ou se desce
os velhos degraus.
Ou se corre para o novo templo,
ou mesmo se tranca
em seu pensamento,
o bem e o mau.
Pouco importa se há vela acesa,
se há santo na mesa,
se há livro sagrado.
Sei que está ao meu lado.
De olhos fechados,
irei enxergar.
Não precisa gritar aos ouvidos
de um homem perdido
que não quer rezar.
Talvez jamais reconheça,
do mundo esqueça
e volte a chorar.
E você pelo mundo se perca,
um anjo sem alma
que não pode galgar,
de volta,
os degraus da escada.
A missão

Pregaram enormes cravos
em jovens crucificados,
e entre eles eu,
um brasileiro rude e aleijado.
Em cada golpe,
nossos nomes eram exclamados.
Uma região tão cheia de miséria,
tão seca e tão ardente.
Escorria em suas mãos,
um sangue quente
e secava de nossas bocas,
a saliva.
Enfim nossa missão fora cumprida.
A sua então,
está em não
acreditar.








Pescadores de almas

Usavam uma rede engraçada,
trançada de palavras
em forma de charada,
uma mantilha
e um estranho linguajar.
Um poeta
e um homem arrojado.
Não eram com a terra acostumados,
Porém, eram ases no mar.
Nunca fizeram milagres.
Viajavam pelos mares,
tentando ensinar
como andar sobre as águas salgadas.
Suas almas,
tentaram pescar.
Suas almas.








Restrição mental               

Teclas com letras desenhadas,
seguindo o comando de meus dedos.
Mistérios e histórias reveladas,
expondo os mais recônditos segredos.

Um transe no fastígio de minha fé,
enquanto meus dedos se movimentam.
Estranha hora para eu ficar de pé,
quando as pernas não mais, me sustentam.

Palavras de um sentido abnorme.
Enorme transgressão espiritual
nas bases de um denodo paranormal.

Psicografo usando outro nome,
em letras de uso universal,
essa minha restrição mental.






Pelintra

Quer enganar a quem,
querer voltar pra casa?
Quer convencer-se, bem,
que é vergonha na cara?
Deixo você fingir ser casta.
Deixo você achar que basta
querer voltar pra casa.
Quer disfarçar que é zen.
Quer vestir-se tão bem
e não tem nada.
Quer viver com pompa?
Agora pague a conta
ou saia.
Deixo você pensar que tem
alguma coisa que me agrada.
Quer me enganar e vem.
Sou predador, meu bem.
Você é minha caça.






Um passeio no parque em dois mil e quatro

Eu vi um corpo enforcado à distância;
era um parque infantil.
É a fachada
do trem fantasma.
Onde estão as crianças?
Hoje o terror é diversão.
Samba não é só música,
é brincadeira confusa,
sem graça.
E a criança, o que acha?
Olha o tamanho da barca!
Parece um grande navio.
Da proa vê-se a cidade
e rindo de felicidade,
uma criança diz:
- Bom é o desafio.
E na barriga, o frio,
numa montanha de ferro.
Sobe aos céus,
desce ao inferno.
Onde as crianças estão?
No parque de diversão.
Saudade de casa

Eu queria ir para casa
dar um beijo nela
e um cheiro na cabeça dele.
Meu pequeno, vez em quando, na janela,
esperando que eu chegue.
Estou chegando em casa,
filho,
tenha calma.
O mesmo pra você,
minha doce amada.
Esta fria moldura
enclausura
suas almas.
O vento
que à sala invade,
é saudade.
O tempo
se torna esguio
como a lembrança.
Um enorme vazio
atalha
e alcança
meu absorto coração.

O nome é um só

Posso cortar os pulsos
e no mesmo impulso
sugar o seu sangue
para não morrer.
Também inocular veneno
e aplicar a tempo,
um eficaz antídoto,
você.
Mas não posso manter em segredo
quem sempre amei.
Todos sabem de cor.
Pois o nome é um só,
o que eu sempre chamei.











Lendário

Sou um lobo expulso
da própria matilha.
Sou a mão que calça
a velha servilha.
Sou barca espanhola.
Sou uma pandemia.
A minha influenza
navega na quilha.
Sou o rude corsário
deixado na ilha.
Sou o terrífico esqueleto
na flâmula sombria.
Anoso e lendário,
sou um centenário,
cabal revelia.








Cochilo operário

O serrilhar constante
da cerâmica
alcança meus ouvidos.
Abro os olhos
um instante.
O barulho é reduzido.
O pó espalhado pela casa,
como ave, cria asa.
Nevoeiro colorido.
Eu retiro
o encosto da cabeça.
Antes que eu mesmo esqueça,
este não é meu abrigo.
Sou apenas um operário
que na hora do trabalho,
dá um pequeno cochilo.









Nostálgica viúva

Quem é aquele rapaz?
Nessa distância,
ele me lembra você.
Uma remota criança
que aos meus olhos
não vê
o pai que em passos de dança,
dizia: - Amo você.
Quanta saudade, meu velho,
que chega, o peito, doer.
Esse rapaz, mesmo sério,
lembra-me muito você.
- A sua bênção, minha mãe.
Escuto ele dizer.
- Seu pai, do céu, abençoa.
Ele sorri meio à toa;
só acredita se vê.
Parece mesmo você.






Ter ou não ter?

Mulher, aprenda
o que um homem pode ser.
Talvez,
ele jamais se arrependa,
nem mesmo entenda
que também a fez sofrer.
Não há remorso,
por não perceber a culpa.
Não há desculpa,
por não ter o que dizer.
Mulher, entenda,
não revide, não se ofenda.
O homem é prenda
que não vale a pena ter.
Riso e lágrimas,
cabe àquela que o tenha.
Escancarada,
fica a porta do querer.
Ter ou não ter?
É pergunta sem resposta.
O homem é encosta
que não dá para descer.


Verbo encantado

Há cercas, mato quebrado.
No galope selado, há um porquê.
Há nuvens, vento soprado.
Há chuva no telhado, a escorrer.
Há lua no céu marcado.
Há um atalho que me leva até você.
Na volta, um único pecado,
aquele de não me satisfazer.
Há flores, jardim plantado.
No fértil chão molhado, um querer.
Há dores, sertão velado.
Um homem condenado a correr.
Há muitas e muitas coisas
que eu jamais vou entender.
Há fome, vício e violência.
Ciência, Deus e o diabo.
Haver é verbo encantado.
O seu encanto é haver.






Apesar

Um riso triste e disfarçado
entre amigos
que nos levam à infância
numa folga breve
do trabalho.
Desmiolado e ferido
em um abrigo na lembrança.
Não somos mais
que uma criança
sem juízo.
Apesar do velho riso
e do cansaço,
resta-nos, a esperança.











Soneto do reconhecimento

Debruço-me sobre meus livros,
enquanto ponho tudo a perder.
Escuto sua voz, solta em gritos.
Reclamações de tanto a fazer.

Eu vejo em meio às páginas,
um mundo que ninguém consegue ver.
E sofro por entre lágrimas,
por tudo que nos possa acontecer.

Os meus anéis, circundam os dedos.
Punho fechado, não consigo esconder
a fúria por manter tantos segredos.

Dias a sós comigo mesmo,
eu vejo o que eu seria sem você,
apenas cicatrizes e muito medo.







A pintura

Mar revolto.
O céu exposto
como uma pintura.
A essa altura,
os meus olhos estão encantados.
Eu sentado
na areia fria.
Amanhecia
e eu ali calado.
Nos coqueirais,
o vento se insinua.
A fina chuva
simplesmente cai,
tal qual as lágrimas de uma virgem nua,
quando o amor se vai.
Acena o sol
com dedos em mistura;
tonalidades de uma bela cor.
O seu amor,
estupenda moldura.
Sua figura,
delicada flor.


Perda de tempo

Talvez eu seja uma perda de tempo.
Mas, amar é o que eu tento,
e tentar é um esforço
redobrado pouco a pouco,
no que falo,
no que penso.
Entre minhas ações tortas,
distrações atrás das portas
que se abrem em silêncio.
Em seus atos ciumentos,
sou a culpa.
Não se julga,
quando se é condenado.
Sou um fim quase acabado,
uma luta
num começo renovado.







Dúbio

Sofro
por não saber
porque eu choro.
E todo dia
eu me consolo               
em silêncio.
Sofrer por dentro,
não molha os olhos.
Mas fere a alma
e o pensamento.
Há muito tempo,
eu sofro e choro
de amor,
de ódio
ou fingimento.









Tenra beleza

Não há estrela no céu
que possa me iluminar
como a tenra beleza
que ofusca o meu olhar.
Não há
na vida um lugar
que cause maior tristeza
que aquele que distante está
da sua tenra beleza.
Por mais escuro que seja
a estrada da solidão,
a claridade que enseja
é fruto do coração.
E mesmo se digo não,
o sim é flor em colheita.
O cheiro de uma paixão,
exala quando se deita.







Idos anos

Bateram na porta.
Minha alma
que parecia morta,
acorda
em pranto.
Depois do espanto,
volto a dormir
com a mesma calma
dos meus idos anos.















Eles não                

Eles não têm culpa;
e se têm,
eles serão mortos;
e se não,
eles serão súditos;
e se súditos,
rei
nunca serão.
















Óculos

Quem sabe os óculos
fazem parte de meu rosto.
Uma completação
à visão que já me falta.
Óculos modernos,
atualizam minha cara,
seja plástica ou metálica
sua exótica armação.
Um par composto,
que nem sempre é bom gosto.
Pernas abertas,
pendurada no nariz,
a armação nada me diz,
nas orelhas, apoiada.
Quando eu quebrei a cara
ela escapou por um triz.








Fé do carvoeiro

Deixei de falar com Deus
por não ouvi-lo dizer:
- Estou te escutando, filho,
diga o que quer saber.
Sozinho eu tive que aprender
que o mundo sabe ensinar.
Chorei para poder crescer.
Sorrio para não mais chorar.

Deixei de implorar a Deus
por ele não atender,
não o que eu tinha a pedir,
mas para não ver sofrer.
Tanta inocência perdida;
tanto para se fazer;
quantas súplicas de perdão;
quanta oração dividida;
o agravo da omissão;
a revogação em vida.

Deixei de acreditar em Deus
por uma dedução lógica:
Não há como evitar o adeus.
Depois do adeus não há porta.
Sem entrada, sem saída,
resta a fé do carvoeiro
numa terra prometida
sob um denso nevoeiro.























Minha vergonha

Minha vergonha, talvez
não seja pela nudez
e sim,
pela insensatez
de atos indecentes.
Minha vergonha é ser gente
moderna.
Sinto saudade da antiga caverna
em que morava.
Minha vergonha é você na senzala;
é ver uma mãe que se cala
por ver seu filho com fome;
é falsificar o seu nome
para esnobar toda minha ganância;
é manter o povo na ignorância
para me eleger.
Minha vergonha é matar por prazer;
é promover a discórdia,
levando o mundo a crer
na mais incauta história.
Minha vergonha
sou eu;
é você;
é toda essa mixórdia.
Fiz essa poesia               

É manhã,
algumas pessoas nas calçadas.
Transeuntes que passam,
um bom-dia.
Uma pequena cidade retratada
em versos de minha autoria.

Um amigo que fala em vencer.
Outro ri
como símbolo de alegria.
Os telhados
parecem nos dizer:
-Olhem a minha harmonia.

Oficinas
com manchas nas paredes.
Nas lojinhas,
as bonecas de plástico.
O sisudo que vende suas redes
e o curto das saias com elástico.

Ante os olhos
que nos viram crescer,
no imenso sofrer dessa partida,
não pude na hora, me conter,
quando fomos
em busca de outra vida.

Vi o mundo.
Mas nada pude ver
que fizesse me esquecer
daquele dia.
Quando tive vontade de escrever,
eu fiz essa poesia.

















Na escada

E enquanto eu causo náuseas ao mundo,
sou imundo,
o quanto ele também é.
Na minha boca,
o cigarro faz fumaça.
Não tão alta
quanto a enorme chaminé.
Na minha mão,
empunho uma pequena arma
que não mata
tanto quanto o mundo quando quer.
A minha língua
pode até ser afiada.
Porém, mantém-se calada
ante a voz de um boato
do mundo inculto,
do mundo hipocritamente incauto.
A sujidade de meu corpo
não é nada,
comparada ao esgoto
que é o mundo.
Esse mundo me dá nojo,
e eu vomito na escada.



Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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