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Crônicas dispersas
João Felinto Neto

Resumo:
Estas crônicas estão dispersas por nunca terem sido publicados num jornal, por exemplo. Conseqüentemente, elas seriam catalogadas, selecionadas e datadas. No entanto, mesmo dispersas, foram reunidas no intuito de chamar a atenção do leitor para alguns assuntos passados, mas na maioria sempre atuais. O autor raramente despende o seu tempo em crônicas, pois dedica-se exclusivamente à poesia, sua devoção. As crônicas dispersas, ao contrário do que o autor pensa, dá-lhe a autonomia de escrevê-las. São expoentes de quem procura achar-se entre argumentos como qualidade e questionamento. Dispersar-se em assuntos diversos, enveredando-se em caminhos de cobrança e medo, fará do leitor um questionador e incessante lutador por direitos inquestionáveis, além de fazê-lo rir com caricaturas de personagens reais. O autor não precisa se cobrar tanto. Suas crônicas nos dão confiança para também criticarmos o que está errado e elogiarmos o que está certo. O verdadeiro talento não está na conquista de títulos de honra, mas no merecimento.

O ANCIÃO DA FÉ                                   

Vila dos prosélitos, um multifacetado lugarejo de diversas religiões, vivia em paz por haver tolerância e principalmente respeito entre seus moradores.
     Um dia, a paz do lugarejo foi afetada pela obsessão de um seguidor da Egocêntrica, uma religião de acirrados. A obsessão consistia em que todos seguissem os egocêntricos, assim eram conhecidos os seus seguidores.
     Esse seguidor chamava-se Egoísta, considerava-se um verdadeiro profeta dos tempos atuais, dizia-se salvo e condenava a todos os que não o tivessem como exemplo. Acreditava falar com os anjos e que isso fazia dele um homem puro. Ameaçava as crianças alheias na intenção de que assim aceitassem sua fé: - Se seu filho ficar à beira da morte, você acreditará em mim.
     Havia uma mulher, Dona Dúvida, humilde, de boa índole, que vivia bem com todos, talvez por ter passado por tudo nessa vida. Ela não seguia nenhuma religião, nem ocupava Deus com pedidos tolos. Porém, diante da ameaça de dispersão de seus vizinhos, arriscou pedir a Deus que fizesse alguma coisa, por exemplo, levar o Sr. Egoísta para o céu; diante disto, estaria tudo resolvido.
     Não querendo Deus o Sr. Egoísta ao seu lado, fato esse desconhecido pelo mesmo, resolve ter uma conversa com ele.
     Aparece Deus ao raiar do sol, como se fosse um humilde ancião, seguidor da Aceitação, e cumprimenta o Sr. Egoísta: - Que a Aceitação nos salve. Ele o tratou com extrema frieza, foi grosseiro, tentou desvencilhar aquele ancião de sua intensa fé. Diante disso, muda Deus, a sua forma por diversas vezes, passando por todos os tipos de membros de todas as religiões, com seus trajes e suas maneiras de cumprimentar, até tornar-se um Egocêntrico e fala ao Sr. Egoísta: - Sou teu Deus.
Surpreso, assustado e ao mesmo tempo maravilhado, o Sr. Egoísta se envaidece e fica cheio de si, por ter sido escolhido para falar com Deus, e pensa consigo mesmo: “Bem que eu dizia a todos, isso prova que eu estava com a verdade.”
     Lendo Deus o seu equivocado pensamento, fala-lhe novamente: - Egoísta, tu tens boas intenções, porém não queiras o meu lugar. Lúcifer, já foi um anjo meu. Lembre-se disso. Por que queres todos seguindo a ti, para chegar até mim? Sabes tu que não podes condená-los e muito menos salvar a si próprio. Não se antecipes a mim.
     O Sr. Egoísta ainda tenta justificar-se:    - Senhor, eu apenas queria ser exemplo para eles.
     Deus o interrompe com rispidez:            - Homem, os teus passos foram de perfídia e solidão, até o dia em que me encontraste em seu próprio coração. Não precisaste de nome para me definir, nem de representantes para me falar e muito menos de exemplo para me seguir.    
     Já desesperado, o Egoísta ajoelha-se e roga: - Senhor, não me abandones, eu não sabia o que fazia.
Deus estende a sua mão direita e aponta o indicador par o Sr. Egoísta, ao mesmo tempo em que fala: - Não temas, és a minha forma e semelhança, e como tal és passível de erro. És condenado, não pelos teus atos, mas pelo que és, um mortal.
Olhando as costas daquele ancião que partia, assim como chegara, trajado como um humilde seguidor da Aceitação, o Sr. Egoísta decide repensar a sua fé.





A AGÊNCIA

     Era cedo, quando adentra o recinto, o grupo de agentes da COVISA, a agência do Reino Neurótico, sigla de CONTROLE e VIGILÂNCIA às SOCIEDADES ATÔNITAS; vasculham todas as gavetas à procura de qualquer coisa que possa ser usado para usurpar dinheiro daquela S/A.
Essa agência tem por finalidade arrecadar tributos para a “Coroa”, que hipoteticamente seriam destinados à melhora de vida de seus súditos, e também a melhor qualidade e desempenho das sociedades atônitas. Porém, há agentes estúpidos dentro da mesma, e desviam-na de seus verdadeiros fins, objetivando beneficiarem-se de seus poderes para dificultar e até mesmo impossibilitar o trabalho das S/As, em conseqüência ganharem um extra, ou mostrar serviço, já que não trabalham.
     Tamanha estupidez não os deixa ver que sem as S/As, o Reino deixa de arrecadar e com isso a agência seria extinta e os seus agentes dispensados. Com tamanha incompetência e desonestidade, esses agentes jamais conseguiriam voltar a ativa.
O Doutor Labuta, dono de uma S/A, é um homem honrado que gosta de tudo organizado e é extremamente honesto, portanto deixa os agentes da COVISA malucos, principalmente o agente Ócio, o cabeça do grupo. Talvez por esse motivo sua S/A seja tão perseguida.
     Não tendo encontrado nada de irregular na S/A do Dr. Labuta, o agente Ócio cria uma nova norma, a qual é questionada por aquele, que tendo visitado a distante e desenvolvida Região do Supremo Poder, diz ter sido orientado para que não obedecesse a tais normas criadas pela COVISA do Reino Neurótico.
     Os agentes da COVISA, apesar de pertencerem a um reino insignificante, da incompetência da agência e da extrema estupidez dos mesmos, ainda discutiram com o Dr. Labuta, que o Supremo Poder estava atrasado em relação ao Reino Neurótico.
     Existem Sociedades Atônitas desonestas, os seus donos se dão muito bem com os agentes da COVISA (Controle e Vigilância das Sociedades Atônitas). Estes recebem propinas, provavelmente, posto não exigirem nada destas sociedades, e ainda fazerem vista grossa às irregularidades das mesmas. É interessante como um grupo de imbecis pode prejudicar o desenvolvimento de um reino, sem que a corte “competente” faça alguma coisa.
     Esperamos que um dia, o RN (Reino Neurótico), possa ter uma COVISA (Controle e Vigilância às Sociedades Atônitas) que faça prevalecer seu adequado fim e mostre sua capacidade de controle e vigilância sem agentes incompetentes e medíocres, que não sabem diferenciar o certo do errado, o óbvio do obscuro, e que não transgridam suas reais atividades, pois a conseqüência de seus atos são um atraso irrecuperável para todos.

                              
                                                  


RUMO AO ESPAÇO

     A Agência Espacial Quimera anuncia que seu foguete foi para o espaço às 14:00 horas do dia 07 de setembro de 2004.
     A conquista do espaço pelo foguete Utopia, é a prova de nossa capacidade tecnológica. O Funil não é mais um país no qual há entrada de muitos planos e apenas gotejam resultados concretos. Esse foi o primeiro passo para um futuro promissor. Comemoramos nossa independência com um triunfo.
     Os jovens funileiros terão orgulho de sua pátria, que entra para o restrito grupo das pioneiras, apesar do desemprego, da fome, da miséria, da corrupção e da violência. Mas, são apenas detalhes diante da tamanha grandeza que é a conquista do espaço.

Retificação da manchete Rumo ao espaço.

     Onde está escrito: que seu foguete foi para o espaço, leia-se, que seu projeto de foguete foi para o espaço; o foguete explodiu no chão. Quanto à data e a hora, estão corretas. Porém, a conquista do espaço foi para o espaço.
     Bravo povo funileiro, o autor da manchete pede desculpas pelo erro da notícia e a Agência Espacial Quimera, pelo fracasso da missão.





CORRENTES

Sempre ouviram dizer e leram nos livros de literatura que o amor não se acaba, se desgasta, mas se supera.
Lembraram-se dos primeiros beijos, das doces palavras e troca de carinhos. Um namoro que parecia ser eterno. Tantos anos prolongados pelas horas em que estavam juntos.
Enfim, casaram-se. Parecia que o mundo se moldaria a ambos. Uma viagem num barco sem remos, onde o amor levava-os a todos os lugares e às vezes, os deixava em silêncio, à deriva, sob um céu infestado de estrelas.
     O que realmente os levou ao desentendimento? Em que momento começou a desabar aquele castelo construído por pedras de devaneios? Quando no mais bonito jardim passou a brotar somente espinhos em vez de flores?     
     As suas palavras se tornaram ríspidas, quando não, raras. No que eles haviam mudado ou nunca se viram como realmente eram? Não conseguiam mais dialogar e esqueceram de dizer: Amo você.
     As paredes pareciam falar mais. Os móveis, mais sensíveis. A casa sentia a ausência deles. As suas alianças, como duas crianças, procuravam suas mãos. E o amor? Por que foi assim, cada qual para um lado; se ainda existia afeto entre eles? O que diriam seus lençóis quando não fossem mais dormir juntos?
     Nunca imaginaram que o amor poderia ser tão frágil; ou a fragilidade estava em suas decisões? Deviam ter revisto seus passos para não se machucarem tanto. Deviam ter lembrado de seus corpos que eram alvo e flecha. Como puderam abdicar de tamanho amor pelo orgulho?
     Ouviram os conselhos alheios e esqueceram de ouvir os próprios corações que num breve silêncio, lhes diriam o que deviam fazer.
     Danem-se os outros! Precisavam um do outro, do cheiro dos lábios, do toque da pele e da voz a dizer: Amo você. Abrir mão de alguém tão especial não parecia ser normal, principalmente, porque ambos diziam que se amavam.
     Não se conformavam em perder um ao outro. Não podia ser tão fácil acabar uma união. O que seriam de seus filhos que um dia viriam? Eram tão jovens, tão fortes e tinham tanto tempo, e estavam permitindo que o acaso tomasse a rédia para traçar um triste destino àquele amor.
     Iriam sepultar o mais triste olhar com a mais inesquecível dor. Um amor consolidado pelo tempo, seria disperso pelo silêncio e o orgulho de dois jovens amantes.
     Acordaram naquela manhã como se o mundo houvesse desabado sobre suas cabeças. Estavam separados. Para os amigos estavam livres. Que liberdade é esta, que os mantêm presos pelo coração? Que correntes tão potentes que não os deixam arrastar-se pela vida sem que se esqueçam um minuto sequer? Não podem usufruir uma liberdade que tende com o tempo, os ferir.
     Sabem que nunca será do mesmo jeito, se o afastamento for prolongado, pois alguns atos impensados poderão causar cicatrizes tão profundas que tornarão o amor numa paixão ilusória. E nessa hora romperão as correntes que lhes prendem ficando livres para sempre. Mas será que vale a pena?                





O GALO

     O galo canta ao azular do céu, de sobressalto eu me acordo. Quantos dias mais terei pela frente com esse madrugador barulhento?
     Ele continua lá fora com o seu cocoricó irritante que irá até o sol aquecer suas penas.
     Gosto de coisas antigas; sou saudosista. No entanto, em matéria de despertador, prefiro os modelos atuais. Os de corda ou pilha é só arremessá-los contra a parede e os a energia elétrica, desconectá-los da tomada. Contudo, o diabo do galo, só torcendo-lhe o pescoço; só há um pequeno problema, o galo é do vizinho. Resolvi escrever no jornal pedindo conselhos sobre o que devia fazer a respeito.
     Recebi diversas correspondências, algumas bem interessantes.
     Havia uma, em que o meu conselheiro mandava-me colocar uma venda nos olhos do galo, com isso ele não veria o sol e, portanto, adeus problema.
     Outra, me aconselhava extrair da pobre ave, todos os órgãos responsáveis pelo seu canto.
     Dê uma raposa de presente ao seu vizinho, dizia uma terceira.
     Ponha fone de ouvido e engula um comprimido controlado bastante forte, já que você é o incomodado; eis uma quarta.
     Acorde antes que o galo, e dessa forma ele jamais o acordará.
     Compre um galo mudo e faça a troca com o do vizinho, ele não perceberá a troca, pelo menos até de madrugada.
     Aproveite a oportunidade para ganhar dinheiro, grave o canto do galo e produza um CD com o título “Despertar do campo”, para as pessoas que adoram a vida rural. O seu vizinho, com certeza, compraria um.
     Tire todas as penas do galo, ele sentirá tanto frio de madrugada, que não terá coragem de cantar, além do mais, terá vergonha de ficar pelado na frente das galinhas.
     Faça um abrigo antinuclear e você não ouvirá o galo cantar; pode não ser uma boa idéia, mas rima.
     Implante um chip no cérebro do galo e programe-o para cantar ao por do sol.
     Convide o galo para um banho-de-cheiro, em vez da banheira, use uma panela de pressão.
     Pelo visto, é apelar para o bom senso do vizinho. E que ele me convide para um almoço de confraternização, onde o cardápio seja galo com tucupi.




O LEÃO E O VEADO

     Na distante África, na planície, vivia um leão de juba curta com estranho apetite, por mais que os outros leões de sua idade o instigassem, ele odiava carne de veado. Por sua causa, a caçada sempre era perdida, posto a caça fugir, por descaso do leão de juba curta.
     Tudo começara, quando ainda pequeno. Um pigmeu o alimentava escondido de seus pais, com galinhas e frangas. Acostumou-se o leãozinho com esse hábito alimentar. Conseqüentemente, ele passou, depois de crescido, a freqüentar os galinheiros das tribos que ali viviam.
     Com a ajuda dos nativos revoltados, um caçador branco capturou o leão de juba curta e levou-o para a cidade. Não sabendo o que fazer com o animal, resolve vendê-lo a um circo. Em pouco tempo, foi percebido o estranho comportamento do leão diante de um veado.
     Um conceituado domador achou que se colocasse um veado trabalhando junto com o leão, este, com certeza, acabaria se acostumando com aquele.
     O número chamava a atenção, diante do leão não querer comer o veado. O circo lotava todas as noites. O mais estranho é que o leão tornou-se amigo do veado, talvez em nome dessa amizade, nunca o comeu, apesar do veado sempre lhe dar oportunidade, além de que, o leão nunca esquecera as galinhas e as frangas.
     Com o passar de alguns anos, o circo adquire um novo leão, que ao contrário do leão de juba curta, além de uma enorme juba, adorava veado. Pelo hábito de nunca ser comido por seu companheiro de trabalho, o veado entra na jaula do novo leão do circo, e “tristemente” é comido por ele.
     As pessoas do circo contam que o leão de juba curta não sentiu a falta do veado, e o mais estranho, nunca mais quis amizade com nenhum outro veado, até o dia em que morreu de velho, lambuzando o seu prato predileto: galinhas e frangas.






TIRADAS DO VÍTOR

Em sua tenra idade, com seus dotes perceptivos acentuados pela lei da compensação, o Vítor sai com tiradas interessantes, como toda criança, só que de uma maneira especial, peculiar a ele.
Certo dia, ganha uma cadelinha de seus pais. Como faria daí em diante, cada vez que ganhasse uma cadelinha, põe o nome de Fofinha.
A pequena Fofinha começa a urinar e é levantada por Vítor, que a observa e fala:
- Mãe! Fofinha está furada.         
Na pacata e hospitaleira comunidade cearense de Peixe gordo, estavam sentados no batente da igreja ainda em construção, quando Vítor grita:
-     Um trator!
De repente, passa um caminhão na pista e sua mãe o corrige:
-     É um caminhão, filho.
Com uma boa saída, ele rebate:
- Eu já sabia.
Amanheceu, estavam na praia, Vítor foi direto para a rede da tia, assim que se acordou.
–     Titia, Titia!
–     Bom-dia, Vitor. O que você quer?
–     Eu vim só saber se a senhora estava dormindo.
Quando o sol aquece, descem para o mar. A mãe de Vítor fica numa pequena poça d’água na areia. O pai vai com ele para dentro do mar. Depois de algum tempo, olha para ele e diz, apontando para onde sua esposa está:
- Vítor, vamos para a piscina pequena onde mamãe está.
     Sem titubear, ele responde:
- Vamos ficar aqui na grande.
Sempre que podia, o pai de Vítor deitava com ele para fazê-lo dormir, porém, todas às vezes, dormia primeiro.
     Certa noite, Vítor chega à sala, de pijama, e sua mãe pergunta:
- Vítor, cadê o seu pai?
     - Eu o pus pra dormir.      
Deitado no sofá em frente à televisão, Vítor vai à geladeira, pega sua garrafinha com água e corre de volta para a TV. Depois de saciada sua sede, não querendo perder nada do que passava, grita pelo seu pai:
- Paiê!
     Quando chega à sala, o pai de Vítor pergunta:
- Diga filho, o que quer?
     Com o resto de água na garrafinha, ele estende a mão para seu pai e diz:
- Tome papai, sua água preferida.
Era dia de eleição, Vítor vê seus pais se preparando para sair, aproxima-se de seu pai e pergunta-lhe:
- Papai, nós vamos aonde?
- Nós vamos votar.
- Voltar pra onde?
Depois de tirar toda a roupa, Vítor junta um monte de brinquedos dentro de uma bacia e corre para o chuveiro; depara-se com sua mãe saindo do banho; sabendo certo o carão, tira a mãe de tempo:
- Mamãe, você está tão bonita.
Os pais de Vítor levaram-no a um médico, este disse àqueles que no caso de ADD não se deve bater na criança e nem deixá-la de castigo. Durante a consulta, o Vítor estava impaciente e inquieto; enfim, termina seu martírio.
Alguns dias depois, a mãe de Vítor o ameaça, pois ele esta impossível:
-     Cuidado que você apanha.
Vítor responde na mesma hora:
     - Olhe o que o médico disse.
Esse é o Vítor e essas algumas de suas tiradas diárias. Um garoto que tem sempre algo a dizer, embora quem não o conheça pense que não saber falar. Ele pensa tão rápido, que a boca não acompanha. Vitor é uma criança especial. Eu que o diga.





O HERÓI DE GRAVATA

     Poucos dias após o encerramento das eleições, seu nome se destacava entre os eleitos, seu pleito estava encerrado. O que faria agora, já era sabido, nada. Mas por que deveria seguir os passos de tantos outros? Sabia ser um homem bom, um cidadão respeitável. Seria diferente, deliberou consigo mesmo.
     A campanha havia transcorrido muito bem. Não tinha recursos, por isso aceitara a ajuda de alguns “amigos”, os quais o apoiavam pelo que representava, o povo. Não pensou no que resultaria aquilo, até àquele maldito dia.
     A pressão do partido em sentido a que ele seguisse as diretrizes do mesmo, independente de seu pensamento de direcionar-se ao seu povo, era tanta, que ele sucumbiu. Depois vieram os colaboradores de campanha. A dívida tornou-se uma frustração. Teria que abdicar de seus ideais, e seguir as más idéias dos outros.
     Tanto que poderia fazer pelo seu país, portanto, não com as mãos atadas. A sua voz perdera-se em seus discursos de campanha, ao vento, em vão. Não seria precipitado; porém, iria lutar contra todas aquelas forças contrárias e lutaria ao lado dos seus concidadãos.
     A escolha de seus asseclas foi um engano para o povo. Todos eles diziam lutar pela justiça, mas sucumbiram ao poder, e cada um deles se corrompia dia-a-dia sem ter a mínima consideração pelo seu cargo. Via em seus amigos, uma grande ameaça. Ao dirigirem-se ao povo, enganava-o com mentiras e tornavam turva sua administração.
     Será que valeria a pena lutar contra tanta gente poderosa em função do povo? Ser um herói morto, derrotado, mas eternamente amado, ou seria esquecido e injustamente, acusado de terrorista?
     O mesmo povo pelo qual morreria, provavelmente o condenasse, cuspisse em seu caixão, pois seria denegrida sua imagem pelos homens da cúpula. Seriam maquiadas suas ações com provas falsas e tudo que ele sabia seria enterrado pelo tempo e no cruel esquecimento do povo cairia.
     Poderia em vez disso, calar-se, fazer de conta que tudo corria divinamente bem, e que estava sendo feito o possível para melhorar a vida de todos, e em troca de seu silêncio e de sua cooperação, a sua vida e a de sua família, todo o poder que ele precisasse, todo o dinheiro que pudesse gastar e acima de tudo, a reverência do povo como se ele fosse um herói; um herói de gravata.
     Diante de ver-se na miséria e seus familiares mortos, abdica de seus ideais e diz a si mesmo: - E o povo, como ficaria nisso? O povo que vá à merda.





O PROFESSOR

Atravessou o pátio da escola sem que o percebessem, pensava na sua insignificância, desde criança sentia-se assim. Uma árvore torta está em seu caminho, não se surpreende, talvez olhasse um espelho, pois se sentia parado no tempo e tinha a vida tortuosa. O dissabor de mais um dia em um lugar no qual se dedicava a ensinar o que todos detestavam, mas a verdadeira essência da vida estava intrinsecamente ligada à matemática.
     O mesmo caminho, mas quantas trajetórias em tangentes poderia percorrer, quantos passos mereciam ser calculados. Os muros com seus azulejos antigos, com suas formas geométricas, uma infinidade de desenhos. Qual louco contaria os paralelepípedos na rua? Quantos homens de chapéus havia naquela hora circulando na cidade? E o moço que podava as árvores no passeio público, quantas vezes o mesmo movimento, afinal, teria ele contado todas as árvores que já podara na vida?
     Circunferência, assim era o mundo, projetado sobre rodas, sob telhas tortas. Medem-se o tempo e as palavras. As curvas sinuosas nas estradas, uma verdadeira acrobacia para os modelos atuais de carros importados. Logomarcas em um número infinito de formas, desde a mais simples loja até o maior conglomerado de empresas multinacionais.
     Quantos cabelos brancos já apontavam em sua cabeça, determinando o número de anos que passara? Uma remuneração que por mais que se calculasse, nunca daria um resultado positivo. Uma triste contabilidade em que os débitos superavam os créditos, e o vermelho era a cor suprema em sua vida.
     Não tivera tempo de se apaixonar, a não ser pela matemática. Não tinha um pé-de-meia, seu futuro que agora chegara, se tornara presente, era um verdadeiro lodaçal, no qual seus pés ficavam pesados a cada passo dado.
     Chega em casa, agacha-se para apanhar a chave que caíra de sua mão quando a tirava do bolso da velha calça surrada. Nesse momento, nota um pequeno objeto de forma esférica, apanha-o e observa atentamente as inscrições que há no mesmo. Minuciosamente, estuda uma forma possível de abri-lo; pouco maior que uma bola de ping-pong, parecia ser oco e guardar algum mistério. Quem o deixara cair? E por que ali, na porta de sua casa? Continua de cócoras, com o estranho objeto na sua mão direita, então se levanta, abre a porta e adentra no recinto.
     Sentado em uma cadeira de palha trançada, herança de seu pai (Um homem dedicado ao seu trabalho, móveis artesanais), movimentando o objeto entre suas mãos, não consegue abri-lo, mas com um pequeno clique aciona algum mecanismo que faz com que toda a sua sala se transforme em uma enorme tela tridimensional, onde ele pode ver, a alma da matemática nos ângulos das paredes, do prédio, da cidade; a localização no país, no planeta e no universo; vê a si mesmo como um amontoado de números, todas as células e moléculas, as medidas de seus movimentos, até mesmo sua alma como uma unidade de energia eletroquímica. Tenta falar, porém, sua voz não passa de números traduzindo a quantidade de letras e as formas das mesmas. Nesse instante percebe que a alma da matemática é Deus. Pois está em todos os lugares ao mesmo tempo. É o começo e o fim, o perfeito e o imperfeito e é uma língua universal, tudo passa por ela, até mesmo o tempo.
     Tudo se desfaz em um instante, e toda a transparência das paredes toma a forma física de antes, enquanto o objeto se transforma na lâmpada que ilumina sua mesa de estudos. Esfrega os olhos, olha as horas no pequeno relógio digital e reconhece que dormira enquanto estudava para a prova de matemática que haveria naquele dia. Todavia, aquele sonho o despertara para o que seria no futuro, um professor de matemática.





ESTRANHO MUNDO

Um planeta habitado por criaturas que esboçam um sorriso permanente, enquanto se alimentam de outras espécies. Carnívoros que cozinham o sangue de suas vítimas, cabeça, olhos, tripas, víceras e os comem com extremo prazer.
     Bípedes que procuram sombra para se abrigarem do sol que invade o planeta com sua radiação, em conseqüência da devastação do mesmo. Sede e fome assolam a vida, e o planeta se torna um caos e mesmo assim, continua vivo.
     Machos e fêmeas se reproduzem indiscriminadamente deixando a prole à mercê de predadores que escravizam e prostituem suas presas. A miséria se instala nos abrigos e entre eles. Há lideres poderosos que manipulam a maioria, criaturas astutas e extremamente perigosas.
     Criaturas supersticiosas, que adoram divindades e sacrificam-se por elas; que se ferem mutuamente. Em seus corpos flagelados a ânsia de limparem sua sede de sangue.
Estranho mundo, onde se pede silêncio quando se morre, principalmente quando se é assassinado; onde feras defendem monstros do castigo, mesmo quando estes cometem abomináveis atos, em troca de pedras preciosas.
     Usam armas para ferirem-se, comem ervas que lhes envenenam e se contaminam com doenças provenientes de seus próprios dejetos.
     Um mundo em guerra por domínio e poder. Um planeta com uma imensa variedade de espécimes, mas dominado por estranhas criaturas que sobrevivem como parasitas tentando destruir o seu próprio habitat. Criaturas antagônicas em matéria de comportamento, pois há docilidade de algumas fêmeas para com os seus filhotes, extrema atração entre machos e fêmeas e atos da maior grandeza entre alguns membros da espécie.
     O céu se cobre de nuvens numa torrencial chuva de granizo, algumas feras se abrigam do frio, enquanto outras morrem a céu aberto. Estranho mundo, onde não há nenhum remédio para curar a sua solidão.
     




SUFRÁGIO

     O dia amanhece, um belo domingo, poderia ficar em casa usufruindo mais um dia de folga. Tomo um banho, apronto-me e saio à rua, não tenho preocupações, caminho por várias horas, sento-me num banco de praça e começo a refletir: quantos já morreram para terem o direito de votar, quantas lutas por uma democracia plena e absoluta. E eu com o poder de decisão nas mãos, sem saber o que fazer.
     Os programas, as caras e bocas, as frases soltas sem nenhuma convicção, o mesmo cinismo, uma triste regra sem exceção, eis o quadro democrático em que se encontra o país.
     Dirijo-me a zona e secção correspondente, não por vontade própria, mas pela obrigatoriedade do voto, quer dizer, a ida às urnas.
     Meu pai é um exemplo, mesmo com idade avançada persiste em ir às urnas votar. Dos males o menor, deve pensar ele; votando assim, no menos inútil dos candidatos.
     Enfrento como em todas as eleições, um enorme fila; mesmo com o advento da urna eletrônica. Entrego o meu titulo, assino a folha e caminho para a cabina de votação.
     Tento ser consciente, sair de um emaranhado de pensamentos e arrebentar as algemas que me prendem à realidade, não haver um único candidato que condiz com os méritos de um bom político.
     Finalmente, exerço o meu papel de cidadão, teclo os números correspondentes e voto em... O voto ainda é secreto.





O ENCONTRO

     - Tens mais fé do que um anjo que passa sem te perceber. Disse-me o diabo.
Estupefato com o fato do encontro místico e aterrador, sentia o vento quente do ventilador ligado. Passava de meia-noite, todos dormiam, dessa forma não havia testemunhas.
Apesar de sua voz tão bem talhada, da imensa nitidez, eu, às vezes, até pensava que perdera a razão. Ninguém acordava. Não havia odor de enxofre, apenas uma leve fragrância de chuva fina em terra seca, o conhecido hálito de chuva.
Não houve fragor em sua aparição. Os seus olhos eram tão vazios quanto os de uma criança com fome. Perguntei o seu nome e ele me respondeu: - Lúcifer. O seu rosto era uma indefinição, assim como a vida. Parei de perscrutá-lo e o envolvi com perguntas.
     Parecia sentir dor, a cada resposta dada às minhas indagações. Passou as mãos em seus cabelos grisalhos, como um gesto involuntário e os tornou tão pretos quanto os seus sapatos lustrosos.           
     Ao perguntar qual o significado de minha existência, dá-me a visão do universo, e faz-me perceber que nada significo.
     - Há um criador para o que vejo?     
- Não há criação, pois não há princípio e nem fim. Deus é um círculo fechado, sem fenda, sem solda. Uma moeda da qual um dos lados sou eu.
     - Onde está o outro lado?
     - Está dentro de cada um, assim como de ti. E pondo a mão em minha cabeça, que ardeu como um ferro em brasa, concluiu: -Aqui dentro, junto a mim. Seus olhos se encheram de lágrimas e assim percebi que era meu rosto que eu fitava, estava de frente ao espelho, assim como vim ao mundo. Passava das três da manhã, chovia lá fora e eu ainda sentia o peso de sua mão em minha cabeça.





TENTÁCULOS

     Polvo torna-se presidente da república, agraciado pelo povo. A letra L é o que o individualiza. Essa alcunha foi dada a ele quando era apenas um sindicalista e em seu primeiro discurso usou a expressão: - Não tenho olhos por toda à parte, mas tenho braços.
     Foi conclamado pelos proletários. Tornou-se presidente do sindicato e depois fundou um partido canhoto chamado Proletários Tinhosos, o PT.
     Não importa quantos braços ele tenha, pois só tem uma cabeça que poderá ser decepada pelo cutelo das urnas.
     Seus tentáculos não condizem com sua boca. Parecem agir individualmente.
     O povo o temia pela caricatura de monstro marinho.
     A esperança vence o pavor e acaba morrendo nos corações de um povo decepcionado.
Nunca o seu apelido foi tão apropriado, pois o polvo não tem pernas, se locomove com seus tentáculos, que neste caso, estão ocupados apertando mãos vazias de propostas descentes. Dessa forma caminha com pernas alheias em direção ao abismo demagógico.
     Não vive no mar, mas vive no céu a voar em aviões por todo o mundo.
     A sua oração diz: - Perdoamos as suas dividas, assim como não nos perdoam as nossas.
     Sabe o que deve ser feito, mas deve está de mãos atadas, todas elas.
     O presidente Polvo diz querer acabar com a fome, no entanto o povo ainda não come, por sua fome de poder.






AOS USUÁRIOS

     A princípio havia somente táxi, um carro destinado a passageiros que quisessem se locomover mediante uma tarifa, ou seja, duas (bandeira 1 e bandeira 2). Havia também o monopólio de transporte coletivo, o ônibus, que funcionava precariamente, com esperas absurdas, de horas, por parte dos usuários; fora o tratamento dado a estes por motoristas e cobradores que havia na época, ignorância e estupidez.
     Hoje, já existe um concorrente para o táxi, ou melhor, uma concorrente, por sinal uma ótima opção, pelo preço e praticidade de locomoção de uma pessoa. E também outras empresas de ônibus as quais entraram na concorrência, melhorando o tempo de espera, a atenção aos usuários (com algumas exceções, como por exemplo, os deficientes, as crianças e os idosos, são invisíveis para alguns imbecis que são motoristas, e desconhecem ou fingem desconhecer o direito que a lei assegura àqueles) e finalmente a concorrência que é essencial para qualquer serviço.
     Uma triste decisão foi tomada por parte dos empresários, que acarretou no desemprego do cobrador, aumentando não o salário, mas a responsabilidade do motorista, o qual passou a ter duas funções. Melhor seria acabar com a profissão de fiscal, este não faz nada mais que perturbar motoristas e usuários, enchendo-os o saco. Não há melhor fiscal que os próprios usuários.
     Inúmeros problemas tendem a afastar os usuários dos coletivos, dentre eles a questão de carteiras de estudantes e idosos, a exigência para se ver um documento que está implícito no estudante, através de farda, livros, cadernos (raríssimos idiotas andariam assim para não pagar uma passagem inteira) é absurda; quanto ao idoso, por mais incapaz, desatento, imbecil, idiota e abestalhado que seja o motorista, está óbvio quem é idoso, pois não há atores disfarçados de velhos para não pagar uma passagem. Isso seria igualar direitos, pois para o motorista, a farda é a identificação de um militar, sem exigência de carteira.
     Na maioria das vezes, o protesto é o melhor dos argumentos. Se cada um dos usuários fizesse o sacrifício de andar a pé, fortalecendo seus músculos e mantendo a forma, por alguns dias, forçaria às empresas a tomarem atitudes que mudassem este quadro de descaso.
     Com o advento da moto-táxi, a coisa muda de figura; o preço é mais atrativo que o próprio táxi, e um pouco mais elevado que o ônibus, porém com mais comodidade. Em função disso, a procura por este tipo de condução tem crescido tanto nesta cidade.
     Existe uma grande polêmica quanto à moto-táxi, referente ao seu piloto, o moto-taxista, entre elas a questão do número de assaltos por parte de motoqueiros com capacetes ter aumentado, mas toda moto exige que seu piloto use capacete, não podemos identificar um assaltante de capacete como sendo um moto-taxista; neste caso o problema está em outro ponto polêmico, a obrigatoriedade do uso de capacete.
     Outro tópico importante é a questão do registro, que eu comparo a indústria de CDs, se o valor pago para uma moto-táxi ser registrada é absurdo, a conseqüência será o pirata, assim como o CD.
     Com ou sem registro, a moto-táxi é uma alternativa para os usuários de ônibus e táxis, além de diminuir drasticamente o número de cidadãos desempregados e conseqüentemente o número de famílias que passam por dificuldades.
     Pergunte aos usuários de moto-táxi e aos próprios moto-taxistas se deveria haver uma lei que proibisse a existência da mesma, todos serão unânimes em responder: - NÃO!
     Os que não precisam e nunca usaram uma moto-táxi para se locomover e vêem alguma maneira de se dar bem com o fim de tal transporte, argumentam que entre os moto-taxistas há marginais. - E entre nós não há? Pergunto eu.






O ENGANO

O GEG (Grupo de Extermínio Geral) da armada civil natalvicense era composto pelos 05 melhores homens da corporação. Pela sua capacidade de duplicação de imagem, VESGO era o apontador de suspeitos; CAOLHO tinha o efeito de ver monocromo; CEGO ADERALDO, a habilidade de pressentir o perigo; ATIRA NO PÉ, como o próprio nome diz, era o atirador de elite; finalmente era o comandante do grupo, NA DÚVIDA ATIRO, pela sua extrema destreza em tomar decisões.
     Era o dia 22 de maio de 2005, dezesseis horas da tarde, o JEGUE, quer dizer, GEG, encontrava-se na perseguição de uma quadrilha que havia assaltado e estava em fuga na BR- 333, em uma camioneta ranger, cor vermelha, placa cinza, em direção à Mossorocó . A viatura se deslocava em alta velocidade, não se sabe como os perseguidos desapareceram, aliás, ficaram para trás. Pois num golpe de sorte, muita sorte, o grupo, depois de posicionar-se na estrada estrategicamente, vê despontar do lado de onde vinham, uma camioneta similar àquela que perseguiam.
     Às quinze horas do mesmo dia, sai da cidade de Natalvice, uma camioneta, cor azul, placa branca, em direção a Mossorocó. Num total de 04 pessoas, as quais eram: o motorista, o prefeito da cidade de ENGROSSO, além de seu contador e seu assessor.
     Em determinado trecho da BR-333, os ocupantes da camioneta percebem os homens armados sem nenhum identificação oficial, e bruscamente tentam fugir pensando tratar-se de um assalto; pois nem mesmo o carro era oficial. Os disparos deixam todos perplexos.      
-     Abaixem-se! Grita o prefeito, desesperado.
-     Bem que eu desconfiei que se tratava de uma quadrilha que rouba carros.
O motorista é alvejado, a camioneta perde o controle e é atingida por uma saraivada de balas de todos os calibres.
     NA DÚVIDA ATIRO coordena as ações.
-     VESGO, identifique-os.
-     São os suspeitos.
-     CAOLHO, cor da placa.
-     A mesma cor.
-     ATIRA NO PÉ, acerte os pneus.
-     Sim, senhor.
-     O motorista não, idiota!
-     A camioneta está vindo em nossa direção! Grita o sensitivo, CEGO ADERALDO.
-     Atirem. Façam-na parar.
O barulho é ensurdecedor: RA TÁ TÁ TÁ; RA TÁ TÁ TÁ.
A camioneta estanca à margem da pista com o peso de tanto chumbo. E em meio a fumaça, os destemidos heróis festejam a façanha. Aproximam-se cautelosamente da camioneta que mais parecia uma peneira, com medo de uma represália ( Só se fosse de fantasmas). Só havia documentos espalhados, canetas, carimbos, um morto, dois gravemente feridos e um sobrevivente.
-     Algeme o meliante, VESGO.                           
-     Vocês são oficiais!
-     Espertinho, como soube.
-     O morto é o prefeito.
-     E você é o presidente?
Todos caem no riso.
-     Eu estou dizendo a verdade, sou o assessor, esse outro é o contador e esse aí é...
-     Não precisa dizer, é o pneu, quer dizer, o motorista.
-     As identidades podem nos identificar.
-     São roubadas.
-     Verifiquem com a central.
-     Quer ensinar o nosso trabalho, malandro.
Já no rádio, em meio ao chiado e aos câmbios, NA DÚVIDA ATIRO, escuta o colega da central confirmar que o assessor diz a verdade, e que podem ser liberados. A única coisa que ele consegue dizer é:
     - Hiii! Foi engano, pessoal.





VIDÊNCIA   

     Escutava-se à distância, uma cantilena. Entre copos de vinho, a taberna quebrava o silêncio da noite cavernosa. O sotaque afirmava ser gente da terra. Pus o meu boné e caminhei em direção ao vilarejo. A distância era pequena. O barulho aumentava a cada passo. Avistava as luzes que se intensificavam ante meus olhos, na escuridão. De repente, paro; percebo alguém mover-se nas sombras. Ouço suas passadas distanciarem-se na escuridão em direção à taverna. Acendo um cigarro, enquanto urino ao relento. Passados alguns minutos, escuto o barulho de um tiro. Gritos de mulheres. Caminho para a taverna em passos rápidos. Nas adjacências escuto alguém arfar, ao passar ao meu lado. Adentro a taverna, o sangue espalhava-se pelo chão em pegadas deixadas pelo alvoroço. Olho ao canto do pequeno salão, sob mesas e cadeiras reviradas, diviso um rapaz que ainda tentava falar, estira seu braço em minha direção. Aproximo-me ao seu rosto e colo meu ouvido à sua boca para escutá-lo. Ele balbucia duas palavras. Fecho seus olhos. Afasto-me e caminho ao balcão. O dono se encontra agachado, com as mãos nos ouvidos. Chamo-o pelo nome, ele continua sem ação, aumento o tom da voz, ele enfim, percebe minha presença. Levanta-se com temor nos olhos amendoados. Pergunto-lhe o que houve. Com uma enxurrada de palavras tenta me contar. Peço para ter mais calma, para poder compreendê-lo. Depois de alguns minutos caminho até a porta. A escuridão lá fora não permite perceber nem mesmo vultos. Olho para dentro do recinto. Começo a imaginar: Aproximo-me novamente do balcão e atiro no dono daquela espelunca. Fito os seus olhos arregalados pela incompreensão do ocorrido. Arrasto os dois corpos até em casa e os enterro sob minha cama. Desperto do torpe pensamento, chamo o dono para ajudar-me com a vítima. Levamos a mesma para a casa de seus pais. O choro espalhafatoso da mãe, a dor nas lágrimas do pai, leva-me a escutar novamente as duas palavras ditas ao meu ouvido, num sussurro de morte.
     Desde cedo se juntaram para a brincadeira que haveria à noite na taverna. Eram amigos quando ainda crianças e permaneceram assim. Porém, havia uma disputa entre dois deles, por uma bela garota. Discutiam, às vezes, por sua causa. Um deles morreria àquela noite, vítima do outro.
     Todos se divertiam, a taverna estava cheia, no canto direito do pequeno salão, quatro rapazes e duas garotas bebiam e cantavam. Uma delas é desejada por dois deles, mas apenas um, foi o seu eleito àquela fatídica noite. O outro que brincava e cantava alegremente, transforma-se em uma pessoa fria e distante, em pouco tempo diz que não está bem e retira-se. Nos que ficam à mesa, há uma tensão, mas é superada pela alegria da juventude.
     Através da escuridão, o rapaz de sapatos de couro e camisa quadriculada, caminha até a casa de seu pai, entra escondido, pelos fundos, retira uma de suas armas e volta à taverna. O ciúme e a dor da perda o levam a tão radical decisão. Às escondidas consegue chegar perto o bastante para alvejar de uma pequena janela que havia na taverna, o seu rival, que reconhece o amigo antes do ardor em seu peito e o gosto de sangue na boca.
      Volto para casa, o encontro sombrio e com medo. Pergunto o que houve. Ele continua distante. Recordo o rapaz sussurrando: - Seu filho. Passou a poucos passos, quando voltava com a arma em direção a taberna, sem me perceber. Se eu soubesse, poderia tê-lo detido. Não havia como voltar atrás e seguir em frente era muito difícil. Então desejei que tudo não passasse de um sonho ruim. De repente, desperto em meio a uma cantilena. Meu filho não está em casa. Sinto falta da arma. Escuto um estampido na escuridão...





CARTAS PÓSTUMAS

     Não redigi estas cartas pensando em dá a impressão de amizades ilustres, posto que nunca chegasse a ver pessoalmente nenhum dos poetas aos quais eu tento homenagear postumamente. Apenas tenho a mesma timidez, e imensa vontade de revivê-los, mesmo que seja através de uma correspondência ilusória.
     Não tive a oportunidade de me corresponder com nenhum grande poeta, apesar de que poeta não tem dimensão. Estou apenas aprendendo, imaginando como seria uma troca de conversas cotidianas entre mim e todos esses poetas. Esta crônica, mais que um sonho idealizado, é uma realização e a mais significativa lição.
     A minha maior dor, é que jamais receberei uma só linha em resposta, seja para me corrigir, criticar, ensinar, dar conselhos e até mesmo incentivar para que eu não pare de escrever e que tente ultrapassar todos esses obstáculos.
     Cada carta foi destinada a um poeta individualmente. Uma conversa trivial, sem intelectualismos, alguns elogios de minha parte como um fã incondicional, e até versos que poderiam ter sugestões dos póstumos, que só trariam méritos a esse humilde autor.

Carta a Carlos
Caro poeta

Antes de tudo, estou redigindo esta carta como um marco a inúmeras outras, que serão enviadas a outros poetas.
Entre tantos outros, o nosso maior desafio é sermos aceitos pelos leitores, em particular pelos nossos colegas de pena.            
Contudo não há uma pedra no meu caminho que me leve de volta à minha terra natal. Nunca existirá uma Itabira como você via à sua.
Não quero falar de política, de arte ou de tempos vindouros. Quero falar de saudades, de cotidiano; assim você se retratava.
Os dias passados em casa, menino que percebe o mundo num simples zunir de um besouro; eu me sinto assim, um poeta que ninguém sabe levar. Não gosto de janela quebrada, mas gosto de ver o pardal que pousa no parapeito.
     Talvez não tenhamos nada em comum, além da poesia. Um mestre humilde. Um humilde aprendiz que do seu jeito vive feliz; já você, meu eterno poeta, quem dera eu pudesse ressuscitar.
     Eu escrevo a um homem na cova, que jamais vai dizer sim ou não. Mas seria melhor a resposta numa carta à mão que o enorme silêncio.
Nas últimas linhas, mando-lhe um trecho de um poema fúnebre para ser lido em meu túmulo quando houver a oportunidade, gostaria da voz do poeta maduro, com os cabelos brancos.
As despedidas são taciturnas e chatas, não sei se pensava assim. Por tanto, sem delongas, aqui me despeço do poeta que um dia declamará em viva alma:

Eis um broto de nódoa escura.
Os seus versos não foram em vão.
Seu delírio e sua loucura
Não cortaram a raiz da razão.
Replantaram a semente em leitura
Entre capas de um livro de mão.
Ainda vejo a rosa escura
Desenhada sobre a sepultura     
Do anônimo poeta, João.

Carta a Pessoa
Pessoa define mais que a ti, grande poeta.

     Admirar-te é pouco, entre tantos outros que já não se percebem, em face ao túmulo coberto por flores.
     Foram goles infelizes, flagrante delito, lembras disto, quando tomavas um copo de vinho na taverna. Revelaste uma vez, em conversa.
     Não finjo, eu simplesmente sinto que admiro tua pessoa. A força da admiração é um não, contra a realidade. E eu continuarei a escrever para cada um de vocês. Fui poeta uma vez e nunca mais deixei de me encantar.
     Desejar paz e sossego é acertar primeiro a situação. O que mais desejo é apertar a tua mão. E neste aperto declamar um só soneto, o soneto da estação:

Primavera, inverno, outono e verão           Nenhuma delas é minha estação
A estação de que falo, fica em Lisboa
Onde eu o encontro, Pessoa

Passeio sozinho, vagando à toa
Cumprimento a todos, pessoa a pessoa
E tenho de meu mundo, uma boa visão
O que tenho do seu? Só indagação                                                    


Entre versos, aprendo uma lição
A que serve a qualquer pessoa
E digo baixinho, Pessoa

O meu nome é João
Não importa se ninguém o entoa
É bastante ser uma pessoa.

Carta a Bandeira

Entre mastros e bandeiras o teu nome floresceu.

     Não há tempo certo ou data marcada para falar com a memória, principalmente a de um poeta maior. Meu encontro é só, com minhas palavras. Hoje tardias, pois não se pode nascer em diversas datas.

Quem me dera hastear tu, Bandeira, Num retalho por versos cerzidos. Escutar com o mais humilde ouvido
O que tanto tinha para dizer.     
Quem me dera pudesse escrever
Uma única linha da tua talentosa poesia. Entre o ninho de versos que tu fazias, Eu seria o ramo a colher.
     Nem gaivota,
Nem águia ou condor,
Nem o pio vindo de uma gaiola.
Talvez sim, a pena que outrora Mergulhada na tinta
Que rabiscava no papel sem cor, Forçando o vento
Nas folhas de uma palmeira,
Gritar: - Sou bandeira,
Hasteada de qualquer maneira,
Sobre a cruz numa lápide fria
Que um dia
Um jovem poeta lembraria de honrar.     
     Sobre o leito,
Arrancaste do peito,
Como deleite ao mau que o prendia
Em correntes,
Versos que de tão descontentes,
Nos faziam felizes,
Não pela dor sem matizes,
Mas pela força da enorme poesia Retratada em plena agonia
De uma alma que pedia para correr livre Pelos campos alísios e verdejantes.

     Eu queria poder nesse instante, copiar sua enorme esperança em versos meus que por si só seriam o mais belo por do sol, o elo mais dourado da mesma corrente que também me tolheria da liberdade, porém eu seria uma flâmula ao lado da enorme Bandeira.
Carta a Mário

     Lentes que espelham sátiras, um grande aperto de mão.

Mário, não há de que, não quero comprometer nossa harmonia, em meio às tuas poesias encontrei o meu regresso, num verso fui a São Paulo, em outro voltei ao meu dia-a-dia.
     Mário, soluços de versos que exaltavam o choro do poeta que sorria. O que mais me impressiona é o seu rompante, versos feitos no instante em que chegam em borbotões.
     Mário de sons, de cinema, no grito de Macunaíma, da casa iluminada por lamparinas e lampiões.
     Em tuas lentes, tua mente atravessa as ruas, ao povo então procura, em estudos da cultura popular.
     Mário, eu também sei amar, como este coração que um dia parou de tocar, pois bater não serviria para te animar.

Carta a Vinícius

Poetinha, como teus amigos o chamavam, saudades de tuas canções.

     Vinícius, um suporte ao dedilhar das cordas dos violões, um herói sem ter vilões para vencer. Quanto tempo sem as letras mais marcantes que um poeta poderia deixar para a música.
     As ruas, os cafés, os goles, os dotes de um coração que não perdia tempo, mas se deixava ao vento, levá-lo a novos amores.
As flores aguadas por versos da mais tocante pureza entre gotas de certeza no âmago do duvidar.
Vinícius, seu verbo era amar, conjugado com um belo par de olhos, que cobiçam o suave tom de sua voz em verso musical.
Poetinha, não faz mal, o eterno é em tudo finito, além de mudo, depois que vestimos o luto de quem poderia mudar. O lar é apenas a casa onde o canário criou asa e voou pra não voltar.

     Estas cartas não terão destino certo, pois os mensageiros não têm como entrega-las. No entanto, todos os destinos possíveis valerão à pena, pelos muitos olhos que as lerão e pela enorme gama de sentimentos que transbordarão desses leitores.





NEM MESMO UMA CRÔNICA

     Um amigo me pediu que escrevesse, mesmo não acreditando, uma crônica na qual afirmasse a existência de Deus para ver como me sentiria melhor. Resolvi, não por satisfação própria, mas para atender um pedido de um crente a um ateu, para falar da existência de Deus. Pois bem, vamos lá.
     Deus existe com certeza, aquele que crê tem sua bênção... Espere um momento, está passando algo na TV. Aumento o volume da TV e a voz sensual com entonação de tristeza da bela repórter, soa no cômodo onde me encontro: - Acaba de acontecer uma tragédia; uma igreja evangélica na qual os adeptos oravam em adoração a Deus e tinham suas vidas voltadas para ele, desabou sobre eles, eram centenas de pessoas, entre elas, dezenas de crianças.
     Sim, onde estávamos. Ah! Aquele que crê, tem sua bênção. Pois, Deus em sua misericórdia... Paro um instante de escrever, pego um pequeno recorte de um folheto com alguns dizeres: “Abre teus olhos, pois que o senhor é misericordiosíssimo. Abraça a tua causa, para que não sofras os castigos e torturas do senhor misericordiosíssimo.
     Faça o bem para que não sejas esquartejado e teu sangue espargido na areia do deserto, por que é o senhor, misericordiosíssimo.
     Abandono o recorte e mudo a frase. Pois, Deus em sua altura nos destina os acontecimentos...
     Mais uma vez a TV me chama a tenção, aumento o volume e uma voz de tenor soa em meus ouvidos: - Um dos mais simples, honesto e fervoroso crente, conhecido pela sociedade por sua ardorosa adoração a Deus, perde em um acidente trágico, a sua filha de apenas cinco anos.
Pego um recorte de jornal que estampa na primeira página, os votos de parabéns: O senhor Joaquim comemora seus oitenta anos em companhia de sua esposa, filhos, netos e familiares, e continua a não acreditar em Deus. Todos são unânimes em dizer que ele é e sempre foi um homem realmente feliz. Tudo em sua vida deu certo.Parabéns.
Desligo a TV, pego um livro e começo a folhear. Que diabos, eu encontro um diálogo entre um crente e um ateu. Vou transcrevê-lo:       
-     Prove que Deus não existe, se não acredita? Diz o crente.
-     Não há prova que Deus não exista. Porém, não é para se provar o que não existe e sim provar o que existe. Se não há como provar a existência de Deus, isso é prova que ele não existe.Por exemplo: Se eu não posso provar que uma coisa existe, isso prova que ela não existe. Portanto, se eu não posso provar que uma coisa não existe, não quer dizer que ela exista. Responde o ateu.
Desisto. Não consigo, nem mesmo, criar uma crônica a favor de Deus. Meu amigo que me perdoe.















Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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