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Gravetos
João Felinto Neto

Resumo:
A poesia em Gravetos, irradia chamas de intelecto e fumaça de simplicidade. O poeta monta seu feixe e arregaça as mangas para carregá-lo através de versos que são os próprios gravetos. As achas são tiradas do delírio com o uso de uma simples caneta (O machado do poeta). Faz-se necessário ao leitor, arregaçar as mangas também, e ajudar ao poeta na decifração simbólica e contextual, fragmentada em versos que como gravetos, incendeiam, porém, em seu imaginário. A absorção da leitura como um fluido inflamável, realça os poemas tal qual uma fogueira em chamas. O poeta fala em versos toscos, não no sentido de medíocres, mas de simplicidade e sem arroubos de esnobismo. O poeta consegue singularizar o intelectual à rudeza de uma fogueira para iluminar a noite, e clareia a visão do leitor em um entendimento essencialmente emotivo com intensas fagulhas de razão. João Felinto Neto deixa-nos pensativos com sua poesia mesclada de amor e ódio, de paz e guerra, e principalmente de fogo e água que jorra da tempestade de ilusões que silencia o crepitar dos versos em nossas almas.

GRAVETOS

De cabeça baixa,
a fraca luz me ilumina.
Os meus próprios versos
são gravetos que atiçam o fogo
que clareia a minha alma.
Nada se compara
aos ruídos noturnos,
nem mesmo o inconfundível crepitar
dos meus versos
em brasa.
Fecho-os num livro
e percebo as chamas
que queimam suas capas.
Gravetos,
não é cavacos soltos,
é um feixe inteiro
de poemas toscos.





FONTE DE VIDA

Eu descobri que ontem
num jardim distante,
ouvia a tua voz
chamar-me pelo nome
e respondi num grito
de alegria e espanto.

Saber que a amo tanto
é a força que conduz
meus passos para a luz
do mundo.

O teu querer profundo
me fez sentir-se um rei.
Nos braços me amparei
enquanto caminhava.
Regavas o meu pranto
com tuas tenras lágrimas,
pois eu também chorei.

Eu nunca me acordei
do mais incrível sonho.
A noite eu acompanho
teus passos pela casa.
E quando estou sozinho,
minha alma cria asa
e voa para o ninho.

O sol vem de mansinho
quebrando a barra.
A tua mão me agarra
para que eu possa ficar.
Nós temos que ocupar,
enquanto a vida passa,
cada um o seu lugar.

Mas tenho que voltar
pra velha estrada.
Sem ter hora marcada,
tento encontrar
o colo que me acalma,
a mão que me embala
e o mais doce olhar.





O POEMA DE HOJE

O poema de hoje
não será sobre mim,
não será sobre o mar,
nem tampouco será
de começo e de fim.

Não seria de ontem,
nem será de amanhã;
pois de hoje ele é.

Não será sobre fé,
nem contudo será
sobre o amor,
sobre flor
e jardim.

Não seria enfim
sobre coisas alheias,
nem bonitas,
nem feias.
Não seria tão bom,
nem seria ruim.

Chega então ao seu fim
sem falar sobre nada.
Nada sou.
Sendo assim,
o poema de hoje
só falou sobre mim.





TEMOR

Sob o vigor do telhado,
há uma ceia servida,
sem pudor,
com amor,
numa ilusão esquecida.
Depois de um tempo afastado,
eu volto à casa querida.
Meu coração a temer,
tem um desejo, calado:
que sobre a minha mesa
ainda esteja
o cálice do querer;
não tenha sido meu sonho
despido;
nem meu amor,
sepultado.





NUNCA IREI EMBORA

A madrugada fala comigo
sobre os auspícios da cidade,
e da sacada onde moro
avisto ao longe minha idade
nos novos prédios que surgiram
e nos antigos que ficaram,
na solidão em que me encontro,
no despertar do sol
lá fora.
Nunca irei embora,
plantei minha vida no concreto
e agüei com gasolina.
Meu esqueleto é de ferro
com os pés firmados numa esquina.
Eu moro aqui,
entre estações da vida toda,
entre calçadas ocupadas
onde não se caminha à toa.
Talvez eu seja um espectro
do emaranhado de pessoas.
Não sei se vivo,
se deliro,
ou se sou patético.





PEÇA DE TORTURA

O amor
poderia ser eterno,
não fossem os venenos
destilados pelo tempo,
exaurirem suas forças.
Na promessa do amanhã,
está despido da honra do compromisso.
O amor é cego,
por ser submisso;
é um feitiço
que desarma o feiticeiro;
pela mão do curandeiro
é um mal que não se cura.
O amor é sepultura
e se torna obsoleto
quando peça de tortura.





CRÂNIO EXPOSTO

Um crânio exposto na mão.
A dúvida,
minha questão.
Quem serei eu,
um personagem de Deus
ou um ato da evolução?

Sobre meus ombros,
o peso de uma consciência.
Se não sou realidade,
paciência,
devo ser uma ilusão.

Onde está o meu começo?
Não mereço perguntar.
O crânio exposto na mão
tem vontade de chorar.

Sobre meu crânio,
uma pá de pensamentos.
Soterra,o tempo,
a fé que move o coração.

Vence a razão,
ganha o bom senso.
Mas o cérebro cinzento
fica em silêncio,
ante o crânio exposto na mão.





NÃO FAZ MUITO TEMPO

Não faz muito tempo,
que eu chamava a chuva que caia
para aumentar a sua intensidade.
Tenra idade,
em que o mundo me obedecia.

Na calçada da antiga igreja,
eu falava com as andorinhas.
Com a árvore da casa da esquina,
tanto conversava
que a noite vinha
e eu nem notava.

Pouco tempo,
eu chamava o vento
com um assovio.
Quando vi o mar,
achei encontrar um enorme rio.

Até uma pedra
que eu encontrasse pelo meu caminho,
eu falava rindo:
- Quanto tempo, eu te procurava.

Quantas vezes eu perdi a calma
e gritei com os meus bonecos.
Os meus carros,
eu os desmontava
e não montava certo.

O deserto,
a areia do rio.
O oásis,
a margem arborizada.

Mergulhava para ver um peixe,
perguntava como a água estava.
Nas borbulhas ele respondia:
-A água está fria.
Mas o frio passa.

Eu ouvia o vento que cantava.
Eu contava no céu, as estrelas.
O meu mundo,
girava em minha volta.
Meio torta,
era a minha letra,
e só eu a compreendia.
Hoje não entendo,
não faz muito tempo
em que o mundo me obedecia.





LEVADO AO FRACASSO

Teria que vencer o tempo,
ultrapassar o vento,
atravessar o mar a nado.

Teria que pular mais alto
que o céu
e como um corcel
atravessar desertos.

Teria que pisar na lua
e misturar da rua,
o asfalto.

Teria que gritar mais alto
que um trovão.
Beber o magma de um vulcão
e não se queimar.

Teria que pedir perdão
ao meu maior inimigo.
E tudo isso
na certa eu faria,
e mesmo assim o amor me venceria.





O MATERIALISTA

O mundo
não precisa de alma;
só precisa de calma
e respeito mútuo .
O espírito
sobrepõe-se à carne
que é a única parte
que sente a vida.
O homem,
com sua consciência volátil,
não precisa de templo,
somente de tempo,
de paz
e bom senso.





CORDA BAMBA

Eu me mantenho são
por ter a ilusão
de que sou normal.
Ainda leio jornal,
procurando o meu nome
inexpressivo.
Não sou indivisível ,
sou ambas as partes
de um ser natural.
Uma mente insana
numa corda bamba,
entre o bem e o mal.





SONETO DA INIQÜIDADE

Eu não dividi águas;
nem multipliquei comida.
Não sigo mandamentos
de uma lei prescrita.

Se eu usei provérbios
para falar da vida,
não vejo condenados,
vejo apenas vítimas.

Em meu barco à deriva,
há homens imortais
da terra prometida.

Dos homens imortais,
havia apenas ossos,
quando aportei no cais.





APNÉIA

Já passava da meia-noite,
sua voz então chamou.
O seu grito,
na madrugada bradou.

Era um sonho esquisito,
do qual não conseguia acordar.
Saí para o meio da rua
e sob uma pesada chuva,
ouvia você chorar.

Tentava então lhe encontrar
por entre becos,
sozinho.
O medo guia meus passos,
meus passos perdem o caminho.

Continua a sua voz
num desespero completo;
o vento bate uma porta,
acho que eu estou mais perto.

Uma casa às escuras,
eu adentro.
Abro os olhos,
ainda tento me acordar.
Continua a me chamar,
o seu lamento.

De repente,
uma janela escancarada
pela fúria de um vento libertário.
Uma boca que se torna iluminada
por um estrondoso raio.

O meu sono é que tirava
o seu rosto da janela.
Eu corria para ela,
pois sabia que esperava.

Quando enfim pude sair
da terrível apnéia,
descobri que suas lágrimas
era a chuva que caía
e seus gritos
só tentavam me acordar.
Eu que tanto procurava lhe salvar
é que estava sendo salvo.





MOÇA

Chores moça!
Não importa que reparem.
Se eles falam é por inveja.
Moça triste na janela
é a história que contaram.

Vês aquele telhado,
é da casa de farinha.
Não encontra-se sozinha,
há um casal de namorados.

Penteie o teu cabelo.
Olhe o rosto no espelho.
Não esqueças o batom,
sabe que ainda tem o dom
de encantar.

Chega para lá.
Eu preciso descansar.
Deixa eu dormir um pouco.
Não assim,
eu fico louco,
chega um pouco mais pra cá.

Se vais viajar,
eu te dou uma carona.
- Saio já,
logo estou pronta;
tu disseste pra esperar.

Antes,
foste uma garotinha.
Hoje,
és amante minha,
e se engana com a fúria
de um homem apaixonado.

Eu já dei o meu recado.
Antes que tu esqueças,
posso perder a cabeça
e te olhar atravessado.

Rasgaste o calendário;
esqueceste que dia é hoje,
eis que é o nosso aniversário.





A CIDADE DESABAFA

Sob minhas calçadas,
nas profundezas do solo,
está o negro óleo.
Em meu litoral,
o branco sal.
Não sou capital,
sou do interior.
Já mudei de cor
por diversas vezes,
em meus casarões.
Enfrentei cangaço
vindo dos sertões.
Ouço tantas vozes
entre minhas praças;
choro incontido,
gritos e gemidos,
boas gargalhadas.
Árvores enfileiradas
separam avenidas.
Roupas coloridas.
Clima tropical.
Há o bem e o mal
dividindo as ruas.

Poucas criaturas
querem me deter.
Mas meu crescimento,
mesmo sendo lento,
vai sobreviver.





O CANTO DO SABIÁ

O que eu vejo mesmo
é o grosso termo;
a dura expressão;
o escuro da água do barreiro;
o derradeiro;
a vida do sertão.

Vejo a cacimba;
o fundo da caneca;
à noite, a lua em festa;
o pio do caçote
na boca da serpente;
a boa aguardente;
o fogo da fogueira
que queima
o tempo.

O desatento
que olha para a cabocla
com vestido de noiva;
os passos da quadrilha;
a trilha do preá;
ao dia acordar,
o menino que caça.

o negrume da fumaça;
coivara que assusta,
à noite, se escuta
o crepitar.

Vejo a velha carroça;
o boi chamado Bossa,
tão calmo, magro
e atrasado como sempre;

o tirador de dente,
que vem ao meio-dia,
da velha bicicleta
se apear;

o algodão
pesado em sacos de arrouba;
a minha fé que é pouca;
o sonho do chover;

o chocalho da vaca
que balança a cabeça;
o feijão posto à mesa;
à noite, o jantar;

espinho de juá
que perfura as alpercatas;
o estrago do camaleão
nas folhas do Jucá.

Eu posso apostar
no jogo da argola,
no pátio da escola.
É sorte ou azar.

A vida é que me dá
sorriso e simpatia,
os dias de trabalho,
a cabaça no mato
e a hora de voltar,

o urubu que voa
da carniça, espantado,
no tiro da baladeira.
Velame é só poeira.
O marmeleiro cheira,
seu fruto na doceira
que a gente quer provar.

O vento a soprar
o suor do nosso rosto.
Lá no chiqueiro, o porco.
Na cabeça, o chapéu.
O velho olha pro céu
e diz alguma coisa.
O moço diz amém.
Eu digo algo também ,
está difícil de lembrar.

Quando eu me acordar
quero milho de pipoca
para voltar para a roça
e o arado manobrar.

A cerca se alinhava
em torno do pomar.
Vejo um grande quintal.
Há patos e marrecos,
guiné, pombo e galinha;
a vovó na cozinha
tentando se lembrar.

O gado no curral
fica muito agitado.
Caiu um temporal,
foi chuva para valer.
Disseram na TV,
choveu no Ceará.

Alguém veio avisar
que a sorte era chegada,
a chuva abençoada
já veio para ficar.

Os meses vão passando,
o verde toma conta,
a lua fica tonta,
à noite, ao clarear.

Aos poucos, de mansinho,
o chão fica sozinho.
A seca vem reinar.
Cantando, o Sabiá
lamenta o que vê.
Seu canto quer dizer:
a chuva vai voltar.





PANORAMA

Sou formação.
Sou deslumbrado perante a natureza.
Sou Pero Vaz de Caminha
e sou Gandavo.
Sou Gabriel, Anchieta.
Sou Manuel e Cardim.

Eu sou Barroco.
Sou como é.
O que é.
Sou simetrias.
Bento Teixeira,
Gregório e Rocha Pita.
Eu sou Botelho e padre Antônio.

Sou Arcadismo.
Sou Classicismo.
Sou elogio ao campo.
Cláudio, Tomás e Santa Rita Durão.
Eu sou da Gama,
Alvarenga e Peixoto.

Sou romantismo.
Sou patriótico.
Sou misticismo religioso.
Eu sou platonicamente amoroso.
Sou Manoel de Macedo e de Almeida.
Sou Alencar, Taunay e Guimarães.
Sou Franklin Távora,
Gonçalves Dias, Azevedo e Cassimiro.
Eu sou Varela e Castro Alves.

Sou Parnasianismo.
Sou Realismo
e também Naturalismo.
Busco o equilíbrio formal
e me oponho ao romântico.
Eu sou Machado de Assis,
Raul Pompéia, Julio Ribeiro, Aluisio.
Eu sou Olavo Bilac, Vicente e Júlia.

Sou Simbolismo.
Sou musical, sinestésico e oculto.
Sou Cruz e Souza
e Alphonsus de Guimaraens.

Sou pré-Modernismo.
Sou crítico despreocupado com a linguagem.
Eu sou Euclides da Cunha.
Sou o Lobato.
Sou Graça Aranha
e também Lima Barreto.

Sou Modernismo.
Sou ruptura acadêmica.
Sou fracionado.
Sou Oswaldo, Drummond e Mário.
Sou Lins do Rego,
Graciliano e Jorge Amado.
Queiroz, Meireles e Lispector.
Sou Vinicius de Moraes.
Sou poesia concreta.
Sou nada mais
que o anônimo poeta
Felinto Neto.





DEBAIXO DO CHÃO DA CASA

Era um moleque esperto.
Estava sempre por perto
quando algo acontecia.
Um dia, de um pão que comia,
cai no chão, um pedaço.
Sua mãe lhe diz: - Tem cuidado,
tu vais dá gosto ao diabo.
Ele olha assustado e meio desconfiado.
Apanha a sobra e come.
Esse moleque tem nome,
é Tito de Malaquias.
Seu pai como de costume,
chega em casa achando graça.
Vai direto para a garrafa
avizinhada do pote.
Põe da cachaça, uma dose.
Derrama a metade no chão.
Quando Tito diz que não,
Malaquias fala : - É pro santo.
Eis que o moleque já tonto,
pensa: Não entendo nada.
Pois o diabo e o santo
moram juntos
debaixo do chão da casa.





ARRASTO SOL E CHUVA

Por que as árvores resistem ao tempo?
E por que ainda estou aqui?
Se já cresci e dei meus frutos,
envelheci sobre os lutos
de muitos companheiros.
Eu continuo inteiro,
arrasto sol e chuva,
declamo à luz da lua,
os versos da insanidade
que sob à minha idade
se perdem na memória
pelo tempo.
Às vezes,
mexe o vento
com os galhos do passado;
são toques na lembrança
de uma doce criança
que envelhece num futuro solitário.





LUA E MOMENTO

Não passei a vida inteira
sorrindo
para morrer de tristeza.
Eu pus as cartas na mesa
e mesmo assim duvidaste.
Não desejei
que o nosso mundo acabasse
e que a dúvida
nos levasse ao silêncio.
Nós dois sabemos
que o culpado é o tempo
pelo que somos agora.
Fomos outrora,
minha senhora,
Lua e momento.





SEM TRINCO

Eu deixei meus erros
sob os meus vícios.
Enterrei as súplicas
e o amor.

Degradei-me aos olhos
da humanidade.
Falei a verdade,
disfarçada em dor.

Eu juntei pedaços
de ressentimentos.
Sobre minha vida,
eu os despejei.

Quem sabe, talvez,
procurasse a fuga.
Mas não há saída
onde eu entrei.





ESCALADA

Todas as razões são impostas,
se alguém não gosta,
é apenas mais um louco.
Algumas montanhas são rochosas,
outras são de ouro.
Nada impede a escalada
simplesmente pela conquista;
a visão apaixonada
até se perder de vista.
A vitória de um tolo.
A tolice de um morto.
As razões, ninguém explica.





HORA DE VISITA

São as horas,
dissipadas no silêncio.
O tique – taquear não me aborrece,
apenas me distrai.
Não importa quantas horas eu espero,
se espero é por que quero
esperar.
Os ponteiros se movimentam
num compasso.
Entre passos dos que passam,
eu percebo que a pressa é corriqueira
e os ponteiros na carreira
se dissipam no espaço.
Meu relógio,
acredito estar quebrado,
ou meu corpo foi lançado
contra o tempo.
Não é meu esse acento
que espera alguém, calado.
Não espero nesse quarto
pela idéia de quem vem.
Abrem a porta,
ainda há tempo,
e de pé, fico esperando
a coragem me levar.
O relógio, paciente,
consciente como as horas,
não me deixa ir embora.
Foi engano, não é ela;
eu dirijo-me à janela,
vejo a escuridão lá fora,
só assim percebo as horas
que caminham lentamente
sem cessar.
Finalmente,
brilham os olhos à minha frente.
Sei que estou apaixonado,
mas como seu advogado,
não poderei confessar.





POESIA MACABRA

Tal qual um pássaro
que tem os olhos perfurados,
o mundo canta,
engaiolado,
sua nudez , sua ganância;
em uma dança,
mantém seu ritual macabro.

Com suas bruxas e seus magos,
regride o mundo,
à ignorância do passado.
Na multidão do cemitério,
na solidão do campanário,
o mundo chora o desencanto
de um futuro condenado.

Marca seu corpo, fura seus lábios.
O mundo vê-se no espelho,
há um reflexo degradado.
O mundo sente-se abandonado
pelas vontades que o cerca.
O mundo morrerá, na certa,
por culpa de seus próprios atos.





CONFISSÕES DE MOLDURA

O meu retrato
era apenas um ornato
retirado de algum lugar do quarto.
Cansado de olhar as atitudes
alheias a mim mesmo
por ser apenas adereço,
não me sentia magoado.
À noite, na penumbra, sombreado,
me perguntava
quanto tempo ainda teria.
De manhã cedo
era apenas um objeto sem valia;
deixado a esmo,
descuidado.
E na moldura
aprisionado, em silêncio,
sentia o lenço
que me tirava a poeira.
Ontem,
uma vida inteira
sem sorrisos, sem abraços.
Hoje,
uma pequena parte
de um mundo em pedaços.





INVERSO

Não me escondo,
apenas prefiro não ser visto.
Não porque seja um herói
nem tampouco,
um bandido.
Simplesmente,
sou um homem que constrói
num universo de versos,
um pequeno mundo
inverso
ao mundo dos sentidos.





NOBRE LIÇÃO

Enfado,
eis a palavra que melhor definiria
o meu desconforto.
Eu gostaria de voltar a fazer graça
com o caderno escolar.
Entre as paredes mal caiadas da escola,
eu faria a minha história
diferente.
Eu mudaria o caminho dessa gente.
Transformaria o meu lugar.
Tenho vontade de chorar
diante de tanta tristeza;
tem gente quando põe a mesa
é uma vela pra rezar.
Não há comida, nunca haverá.
Pois a ajuda é passageira,
tal qual a vida.
E nesse beco sem saída,
o povo tende a lutar.
Mas essa luta não é ganha com a vitória;
o simples fato de deixar para a história
a reação
que é a mais nobre lição
que seus filhos podem herdar.





TRISTE CENA

Sinto
o seu pequeno coração
bater dentro de mim.
Vejo
os seus primeiros passos
no jardim.
Um belo adolescente
que me lembra
o garoto que brincava
até a pouco.
Olho seu rosto
banhado de sangue.
Eu grito seu nome,
mas ninguém pode me ouvir.
Duras palavras
que aumentam o meu sofrer.
O meu filho na TV,
um exeqüível ladrão.





NÃO PARECE

Nem parece que estamos sóbrios,
por nossas atitudes,
por nossos filhos nus,
nossas sobras no açougue.
Uma fera carnívora
com sua voracidade,
com sua sensualidade
e seu corpo cru.
A amplidão de nosso abraço,
nosso beijo traiçoeiro,
nossos vermes no terreiro,
nosso passo em falso.
Estamos à procura de quê?
Da dor alheia,
do chão que cheira
a sangue derramado
misturado a suor e a lágrimas
de alguém ao lado
do mais forte,
do mais fraco
que precisa escutar nossas ofensas;
benevolência
de um partido proletário.

Nosso hino de louvor
não é de graça.
Não tem graça
a comédia que fazemos.
Continuamos com as máscaras da peça.
Não me peça
para sorrir o tempo todo,
para chorar
sobre a lápide cinzenta.
O meu cérebro não agüenta,
por ter sede,
por ter fome.
E onde estão todos os filantropos do cortiço?
Meu olhar é submisso,
o meu grito
é silêncio.
E quando estou calado,
o rasgo de minha voz
é ponto de luz,
é crucifixo na parede
que despenca com o barro e o barbeiro.
O amarelo de meu rosto,
o meu coração que cresce,
minha alma que se enfurece.
Eu me precipito
no abismo da revolta.

Numa volta
em meu último modelo,
uma canção lembra seus olhos,
um perfume,
seus cabelos.
Voa triste
quem pousa sobre os vícios.
Dá vontade de injetar-se a si mesmo.
Não suporta
nossas súplicas,
nem atende às injúrias.
Há quem queira pedir perdão,
um afago de mão,
uma bala perdida,
um começo de vida
num pedaço de chão.
Até parece que estou desistindo,
por eu não ser ninguém
ou será que somos nós
mais que um,
um povo,
uma civilização.
Solidão,
eu
só,
somos
nós.





BALÃO

No intuito de fugir
do descrédito de meu coração
que diz não,
digo sim.

Simbolicamente,
o amor é como o ar quente
que levanta o balão.
Diminua-o gradativamente,
para por os pés no chão.

Sendo um amor duradouro
ou uma breve paixão,
eu despenco no estouro,
causa da separação.

Nas montanhas,
sobre o mar,
o amor assim viaja.
Sem pensar como pousar,
é um pagão que tem asas.





CLÁSSICA

Quero ver as partituras eloqüentes
entre as folhas amassadas;
uma música eterna e clássica
de um gênio diferente.

Muitos anos pela frente,
num concerto em meio a praça,
a batuta de um regente
traz de volta a sua alma.

Em silêncio, a platéia absorvida,
engrandece a memória de um autor
que negou seu talento quando em vida.

Sua forma enlouquecida de compor
não marcou sua refinada harmonia
e deixou na sua ausência, seu valor.





JURAS DE AMOR

As minhas mãos
não fazem juras.
Minhas juras são
de amor.
O amor não é eterno,
como também não
o sou.
Como vento
no inverno,
sopra minha decisão;
por mais fria que ela seja,
mais aquece
minhas mãos.
Juro,
que as juras de amor,
sejam elas de quem for,
nunca devem ser
em vão.





VERSOS QUE FALAM DE NÓS

Sob a linha do tempo,
rabisquei alguns versos que falavam de nós.
Do encontro antigo
que ficamos a sós
para lembrar dos amigos:
“O passado, um dia sentido,
lembrado por eu e você,
que nos fez reviver
os mesmos conhecidos”.

De nossos beijos perdidos
no degrau da escada:
“Quando na madrugada,
os teus lábios toquei
na entrada da casa,
me perdi na estrada
quando a ela voltei”.

Do quintal de sua casa
onde geralmente nós ficávamos escondidos:
“O amor proibido
numa cena ilegal,
entre os galhos floridos
das árvores do quintal”.
Do mais lindo sorriso
que eu presenciei:
“Nem a lua entendia
a luz que a ocultava,
era a mais pura alegria
que tua boca expressava”.

Do mais duradouro amor que encontrei:
“Os bisnetos assinam embaixo
quão sólida é a nossa união.
Nossos corpos no solo plantados,
iremos ser flores da mesma estação”.





EMPALHADO

As paredes me enquadram
em um tom monocromático
mantêm o meu mundo estático
na forma quadrangular.

Há no teto, uma lâmpada
num movimento pendular
e no piso minha sombra
a me assombrar.

Sou apenas um objeto
colocado em tom estético
para enfeitar o ambiente
ou um cérebro doente
que desconhece a razão.

Um animal empalhado
que se sente enquadrado
na cela de uma prisão.





RACIONALISMO

A minha existência
é uma breve coincidência
entre acasos.
Nas costas,
já não mais carrego Eva.
No barro
em que estou atolado,
não reconheço Adão.
Eu vejo
a humanidade afogada
em um mar de ilusões.
Com certeza nessa hora
não há arca
que lhe sirva como tábua
de salvação.
Eu lavo as minhas mãos
por não ter culpa.
Talvez sua desculpa
foi morrer.
Não haverá regresso de seus ossos.
Meus olhos decompostos
jamais poderão ver.





MENDIGO

Não que eu tenha
que sublinhar meus méritos
por ter passado
boa parte de minha vida
mendigando pelas ruas,
caminhando sobre calçadas
que por força de raízes
tinham suas pedras arrancadas.
Vi pessoas infelizes.
Dormi em banco de praça.
As maiores cicatrizes
não são marcas,
são um cancro
que mina a nossa alma em silêncio.
Nada encontrei lá fora.
Tudo estava o tempo todo aqui dentro.
Porém no mundo,
aprendi muito
do que realmente sou,
um mendigo de sonhos.





MADRUGADA

Passei a noite em claro
no escuro do meu quarto
com o corpo mal coberto,
o pensamento deserto,
sem oásis.
Algumas vozes distantes.
Um barulho no telhado
(Patas que não me incomodam mais).
O ar frio que vem da madrugada
não consola,
porém me deixa aconchegado.
Há um mundo alucinado,
porta a fora,
que explorei no meu passado.
Encontro-me com o que o tempo
não conseguiu destruir,
a minha paz,
que mora aqui
nesse quarto abandonado.





EXCEPCIONAL

Habilitem-me, sonhos,
para a realidade.
Já que a minha idade
não reconhece os anos.

A minha estatura física
é estranhamente calma
diante de minha
puerícia de alma.

Vivo apenas
o que posso lembrar,
um pedaço de sol,
uma gota de mar.

Minha pessoa,
para o mundo é absurdo;
uma eterna criança
em um corpo de adulto.





CÚPIDO

Tardes aleatórias
que nos levam ao delírio
da cupidez.
Tudo pode ocorrer à nossa volta.
Numa torpe embriaguez
sou apenas um,
somos mais que dois,
somos três.





ANÔNIMOS

O melhor dos enganos
são os planos
de amor.
Ramalhete de flor
sem cartão.
Um aperto de mão
com pudor.
Um decote
que chama a atenção,
mas diz: - não,
por favor!
Um olhar
que disfarça o querer.
Camiseta com definição.
A mentira
como sedução.
Estes são,
dois anônimos
que querem se ter.





ESTRANHOS

Sob a penumbra,
parecemos iguais.
Na claridade,
os mais estranhos mortais.
Meus pensamentos,
afligem.
Os seus atos,
comovem,
quando não assustam.
E na escuridão
silenciamo-nos.





AO MEU ALCANCE

Tudo que estava ao meu alcance
eram escassas flores
que simbolizavam os amores
que sobreviveram
entre as ervas
que brotavam.

Na imensa solidão de meu jardim
as folhas amarelavam
sob o escaldante sol da quietude.
Com o ancinho da lembrança
juntei todos os amores ressentidos
espalhados pelo vento.

Sentar no banco empoeirado
não restituiu meus sonhos,
mas acalentou-me a dor.
Saber que não restava um só amor
em um jardim que foi florado
era demasiadamente frustrador.





RESIGNAR-SE

Bela dama,
que tem a face
entre minhas mãos,
implora o beijo negado.

Por quantas vezes,
a olhei calado,
tal qual um menino levado
que sofre uma repreensão.

Eu sempre disse que não,
enquanto não percebia
que nada no mundo poderia
ir contra uma paixão.

Na eterna liturgia do amor,
fugir como lutar seria em vão,
numa batalha que o único vencedor
é o inexorável coração.

Eu a beijo para ser feliz ou não.
Não importa o desfecho nem o autor.
Numa peça que é regida pelo amor
o ponto culminante é a emoção.





A MANCHETE

No jornal matinal,
uma manchete, estampada:
uma criança fora
eletrocutada.
O poeta lê, se pergunta
e fala.
Onde estava a mãe?
Ela trabalhava.
Onde estava o pai?
Também trabalhava.
A criança então,
com quem ela estava?
Com a empregada.
O que ela fazia?
Ela namorava.
De quem é a culpa?
Do filho da puta
com quem ela estava.





O JORNALEIRO IMORAL

E o que diria
o homem que vende jornal
na esquina,
que sonha com a quina,
da sua bela atendente
que trabalha no hospital.

Se fala bem ou fala mal,
numa conversa entre amigos
sobre artigos antigos
de uma edição especial.

Cara de pau,
os pormenores da sua vida
são tratados com o mundo.
Esse mundo imoral
quanto o desfecho final
do mesmo assunto.

Ele gostava, afinal,
dessa conversa banal,
quanto essa vida,
que tem medida
mas que mede muito mal.
Um acidente fatal.
Noite agitada.
Uma atendente que corre
desesperada.
Seu homem vira notícia
depois que morre.
O jornaleiro imoral.





EM QUALQUER LUGAR QUE VOU

Não importa
os lugares aonde vou,
o céu continua o mesmo.
Apenas entre opostos
eu me acordo
ou simplesmente adormeço.
Uma árvore
protege-me sob a copa,
do sol que eleva o calor.
Do outro lado,
a lua deixa exposta
a antiga rua onde estou.
As pessoas
agem sempre da mesma forma,
não importa
sua língua, sua crença ou sua cor.
Os seus gestos e atitudes,
sejam eles
na infância, na velhice ou juventude,
são os mesmos
em qualquer lugar que vou.





POEMA DE QUEM AMA

Para a flor,
o jardim não seria
o mais belo lugar.

As estrelas
não seriam guia
para o barco
perdido no mar.

Não teria valor,
o brinquedo
que a criança
ainda sonha ganhar.

Nem seria o amor,
poesia,
sem os versos
de quem sabe amar.





O HERÓI MALUCO

Nas andanças das histórias,
sou o herói
que valsa e chora,
que é cético,
e ao ver
diz que é ilusória,
a mais real criatura.
O meu corpo
é esquelético
e não tenho muita altura.
Uma espada não perfura
o meu elmo.
À procura da princesa
que mantém uma chama acesa
na masmorra de um castelo,
eu cavalgo dia e noite,
uso versos como açoite
em meu cavalo Fantasia.
Eu descanso muito pouco
declamando como um louco
a mais triste poesia.





UMA ESCOLA ESPECIAL

A construção ainda intacta
com suas telhas em declive.
Suas paredes brancas,
suas enormes salas
com portas azuis.
Grades de ferro nas janelas.
Um enorme pé de cajarana
na entrada.
Um pequeno parque de madeira
com as cores amarela e vermelha.
Um mato que precisa de um corte.
A alegria das crianças que percorrem
os grandes corredores.
Novas e antigas lições.
Pessoas que amam o que fazem.
O que as crianças trazem,
energia e impaciência.
É um mundo de ciências,
de sonhos e ilusões.





MODERNAS

As horas são efêmeras
como muitas mulheres de agora.
Senhora,
dona de seu novo nariz,
é mais feliz
com o silicone comprado.
Seu corpo coberto de outrora,
é o tempo todo mostrado
de forma um tanto banal.
O seu botoque
não é mais um adorno facial.

As horas
não são submissas aos homens,
são como algumas mulheres de agora.
Não querem ser Victor.
Vitória é sua bandeira moral.
Não mandam,
só querem respeito.
Ter peito não é sensual,
é mais que o devido direito,
é um ideal.

O que são os homens,
senão,
um antigo relógio enguiçado.
O toque do velho pecado,
sua única salvação.
A elas pertence o porvir.
Senhoras,
sem horas,
estamos condenados
a não existir.





MANCHA DE TINTA

Em um rascunho final,
sobra de tinta.
Queimei o sol
que o meu corpo detinha,
projetando minha sombra num paiol.
Fiz labaredas,
com o mesmo pincel
pintei o céu
e a terra fria,
e lancei poeira
que o vento volvia do chão.
Mancha de tinta sobre o velho calção.
Fogueira extinta.
Um tom de cinza
no antigo galpão.
Com minha mão anuvio o céu.
Com um pequeno pincel
pingo a chuva.
Engrosso a tinta,
ponho uma luva,
dou uma estranha versão
à aquarela,
uma ilusão de que ela
está sem cor.
Pseudônimo

Tento olvidar
meu pseudônimo
escrevendo o seu último poema.
Para assumir minha existência,
deixarei de ser
anônimo.
Minha tradução
não é lingüística,
é filosófica e existencial.
Talvez eu seja o falso
e o meu pseudo,
o real.
Serei eu o homônimo
do autor dos versos meus.
O meu nome
foi tudo que me restou.
Mas não haverá vocábulo
que defina
quem verdadeiramente eu sou.





ELÉTRICA

Um pássaro
pousou no fio de alta tensão,
sem pretensão.
Bica o fio abaixo de si.
Um barulho.
Um torrão.
Isso aconteceu
em um trecho inacabado de uma rodovia.
Em que lugar?
Em qual época?
Não importa.
Era apenas um pássaro
e a distribuição de energia elétrica.





COM EXCEÇÃO DO TELHADO

Entre os coqueiros,
o vôo da andorinha
que plana sob os pingos da chuva
que cai
sobre o telhado da casa
que está
sobre a areia macia
da praia
que sob o céu azul
parece um imenso espelho
que inspira esse poema
sobre um pequeno quadro
pintado pela mão
da natureza.





NAMORO

Não foi por zelo
ou por compreendê-la,
nem a plena certeza
de que a queria;
foi a piedade de teus lábios
que me permitiram
beijá-la,
que da noite pro dia,
a vida
a tornou minha namorada.

Não foi excesso de sonhos,
nem de palavras,
nem a intimidade de nossos corpos,
foi a precisão de nossos passos
em direção um ao outro
que concretizaram em aliança
o nosso eterno namoro.





POEMA DE PAREDE

De uma antiga casa
abandonada,
restava
uma parede de pé,
como o último resquício da fé
de um homem condenado.
O poeta
que não era observado,
rabiscou no reboco envelhecido
alguns versos que ficaram conhecidos
por poema da parede:
Megalito
da tristeza e do sorriso,
sustentei em um dos lados
sua rede.
Em criança, punha o braço
e em mim chorava
e me acariciava
por sobre a foto pendurada
em um prego cravejado no meu peito.
Quantas vezes a pintura foi mudada.
Nas reformas
fui poupada.
As histórias
que contava aos seus netos,
eu estava ali,
tão perto,
que podia escutá-las.
Mas um dia
você partiu
e consigo a família.
Nada mais me restaria.
Com o teto descoberto,
toda a casa desabava.
Eu continuei erguida
para me tornar poesia
de um poeta que passava.





POR CIÚME

Na praça,
num movimento angular,
apenas nos distanciávamos um do outro.
Nada reconstituiria esse amor.
Talvez não fosse tão forte
quanto nossa decisão.
Meu álibi seria inovação.
Meu cálice cheio de despedida,
uma bebida amarga,
um brinde
a nenhum de nós dois.
Mãos trêmulas,
choro contido
nas pálpebras borradas de ciúme.





A MORTA

Aura da chama
de uma vela apagada.
Sua voz se cala
sob o peso da areia.
A lua cheia
ilumina a nossa cama.
O amor me engana,
vendo a alma que passeia.
O sol clareia,
desfazendo a sua imagem.
Volto a ser parte
de uma vida em solidão.
Entre meus braços,
só me resta uma vontade:
que essa realidade
seja apenas ilusão.





SONETO DO VERDADEIRO AMOR

Abdiquei de tua companhia
e desejei tua felicidade.
Se assim não fosse, eu não teria
no peito a mais nobre qualidade.

Restou-me a solidão no dia-a-dia,
também a poesia e a liberdade.
Se para mim, meu coração mentia,
o meu amor dizia a verdade.

O egoísmo que em mim crescia
era o ciúme disfarçado em lealdade,
venceu o amor, em forma de amizade.

Talvez amar assim seja utopia.
De outra forma só seria vaidade.
O verdadeiro amor tem hombridade.





SEM DEFINIÇÃO

Não serei porquê,
resposta ou sim.
Não serei o que
já sei de mim.
Não serei para mim,
o que é você.
Não serei ninguém.
O que hei de ser?

Eu serei palavra
feita por giz
que se apaga
ao passar a mão.
Serei frase solta
que me diz
és uma pessoa
sem definição.





LAMBUZADELA

Meus vasos
não são sangüíneos,
são de barro,
para acomodar minhas raízes
que não precisam de estrume,
pois são minha língua
que não lambe,
fala,
e são meus costumes
que não morrem
por serem lembrados.
Seus lábios,
grandes e pequenos,
não me beijam,
porém fecham o meu esporo hereditário em seu interior reprodutivo.
Meu fruto
é amadurecido
na imensa árvore genealógica.
Meus membros
são da família,
primatas modernamente instintivos.
Entre fauna e flora,
sou mamífero vegetariano.





ALCOUCE

Bela senhora,
que me espera na sacada.
Ao chegar,
logo indaga:
- Veio me ver?
- Quem sou eu sem ver você.
Vim vê-la sim.
Em minhas mãos,
uma rosa a pouco regada.
- A colhi em seu jardim.
- É para mim?
Muito obrigada.
- Não há de que
minha senhora.
Foi colhida para você.
Sinto no ar um perfume
que agora me confunde
se é da rosa ou de você.
Sua face ruboriza.
Estende a mão e indica
o caminho para a entrada.
Abre a porta,
eu adentro.
Subimos ao mesmo tempo
pro maior quarto da casa.
No corredor,
movimento,
finjo não ver e disfarço.
Semi nudez.
Outra vez,
um casal desenrolado.
Sussurros, gemidos e risos.
Eles parecem felizes.
Sob a pele, cicatrizes
que elas preferem ocultar.
- Beije-me.
Tento falar,
mas seus lábios não me deixam,
enquanto os meus
não se queixam.
Ela é a dona do lugar.





NA CABECEIRA

A quantas horas,
os anúncios e as vozes.
O sono me embala
com baladas.
O chiado e as vozes engraçadas,
aparenta está mal sintonizado.
Na madrugada,
uma companhia que ignora o silêncio.
Em meu sonho ando por dentro
do transistor.
Com a cabeça
sobre o macio travesseiro,
escuto o meu companheiro
que estava fora do ar.
Fora de mim,
personalizei o objeto
e em meu próprio universo
fui notícias vagas
em ondas sonoras.
Sinto estar de volta.
Sua voz me acorda
ao desejar
bom-dia.





SIMPLESMENTE GENTE

Não importa quanto tempo faz,
nada me trará de volta,
a não ser, suas lembranças.
Não tenha revolta.
Mantenha as esperanças,
eis o dom de viver.
Siga a sua vida,
só assim descanso em paz.
Não me queira mais
do que já me teve.
Para você é um mistério
do começo ao fim.
Para mim
é um pequeno segredo.
Nunca tive a pretensão de ver Deus.
Deus estava em todas as coisas
e eu jamais o enxerguei.
No sorriso das crianças,
no abraço dos amigos,
na compreensão dos que amam.
Mas em minha imperfeição
em um poço de emoção
mergulhei profundamente.
Eu fui simplesmente gente.
Não um anjo desgarrado
ou um diabo inocente.
Estas palavras
é para quem fizer sentido.
Se o dedo de um espírito
poder tocar seu coração,
que seja o meu.





ECO DA COVA

Partiu bruscamente
a alguns anos.
Nossas recordações o mantém vivo.
Continuemos a vida
e louvemos sua memória.
Sua história
é a de um homem comedido.
Por ser humano
era passível de erro.
Mas seus defeitos
não importam, agora.
A sua estada
na terra acabou-se
e lá no cosmo
abriu-se uma porta.
Para os que amava
deixou o silêncio.
Porém sua voz
ainda ecoa da cova:
- Sigam o amor.
Sejam livres.
São as palavras
que Deus nos evoca.





AMPULHETA

Ainda sinto o vento
que apaga
a chama em mim acesa.
Meu copo
emborcado sobre a mesa,
ampulheta,
que o meu tempo,
marca.
Há grãos de areia
no silêncio,
espalhados pela casa.
São anos cremados,
em cinzas.
Não me resta nada,
além de minha
ampulheta.





REFRÃO

Andei só,
além do meu limite.
Nunca desiste,
um coração que ama.
Poucas noites,
suporto a nossa cama,
sem sua companhia.
Acompanho,
dos ponteiros, o movimento.
Conto as horas
como um velho passatempo.
Nada importa,
enquanto em nossa porta,
sua mão não bate.
Quando invade
meu ser, a solidão;
meus olhos
começam a chorar,
meus lábios
repetem o refrão:
ela vai voltar.





NA ESTRADA

Ainda quero de ti,
benevolência.
A solidão é extensa
na estrada tempestuosa.
Uma curva tão sinuosa
que faz tardar.
Nas margens pude encontrar
diversas rosas;
nenhuma delas
conseguiu me consolar.
Havia água
no extenso talude.
Um grande açude
começava a se formar.
Entre as lágrimas de meu pranto,
eu via a chuva,
a estrada, a curva
e o seu avejão
a acenar.





ABSCONSO

Rabisquei versos
que falavam pouco.
Rabisquei outros
que nada diziam.
O que seriam?
Versos mudos,
roucos,
ou versos soltos
que não me serviam.

Rabisquei versos
em um livro morto.
De um jeito torto,
versos diferentes;
distantes, sempre,
dos que pensam novo.
São versos toscos,
loucos e descrentes.





EVIDENCIO

Só imagino o que estás fazendo,
revendo um pouco do meu coração.
Alguém diria que é ilusão.
Até parece ser, assim dizendo.

A solidão, mesmo que em pouco tempo,
move seus braços e procura mais.
Assim é a falta que você me faz,
a mesma ausência quando abraço o vento.

Escuto a voz que em mim silencio.
Tal qual moinho destrói a amêndoa,
eu piso o seixo que atravessa a senda.

Fecho meus olhos para tê-la presente
diante do imenso sol poente,
o nosso amor assim evidencio.





DELIRANTE

O tredo terreno arenoso
prende meu pé, pesando o meu corpo
no arrastar de velhas alparcatas.
Já próximo do lago,
avisto a tranqüila água,
tal qual o leite coalhado
na panela de barro.
Arrastando-me, esbarro
nas árvores ribeirinhas.
Descanso na sombra,
que há pouco, sozinha,
servia de descanso a algumas rolinhas
que voaram para os galhos.

Entre folhas e ninhos,
eu diviso o céu
num azul de pincel
esfregado na tela.
Volto a água tão bela,
olhos quase a fechar
pelo sol que está
por lentes ocultas
a procura da lua
no mais profundo mar.
Submersas minhas mãos em concha,
trazem-me à face tonta
uma clarividência,
quando os olhos que na água trêmula,
fitam distorcidos
o meu eu perdido
na própria ciência.
A tarde foge.
A noite se insinua.
No iluminado lago
surge a imensa lua
e não distorce o meu eu molhado.





DOBRADURAS

Carta relida
em silêncio,
vinca por dentro
numa dor aguda.
A mesma carta
que se dobra
e guarda
sob o livro
que a gaveta
oculta.





O PAJEM

Apenas me situo entre eles;
os que desprezam as peças
da artilharia.
Eu morreria ante a guerra,
com um olho eu não faria
pontaria.
Quem em um corcel
não correria
quando sua montaria
era apenas nuvem e céu.
Antes de perder-me
nesta ilusão,
fiz uma alusão a um grande herói.
Quantas selas pus sobre meus ombros.
Uma veste suja me enxugava.
Não esporearia o meu desgosto
nem o corpo do ferido animal.
Minha lança
não faria mal
ao arcabouço defensor.
Um extenso reino
desabou
e entre os escombros
surge o povo.
Reina absoluto sem heróis.
Sendo pajem,
sendo vagem
para alimentar a todos nós.





FANTASIA DE UM PLEBEU

Eu faria do sol, anel dourado.
Colocaria em teu dedo, como aliança.
Na mão direita reluziria esperança.
Eis que seria o mais belo noivado.

O céu em minha cabeça, coroado.
Faria do mar gelado, salão de dança.
Em seu cabelo molhado, uma trança.
Com os cometas, um tapete desfiado.

O casamento marcado há um ano luz,
seria então consumado no céu,
com as estrelas em forma de cruz.

O mundo inteiro faria o seu véu.
A tudo isso, a verdade reduz
à realidade de nossa lua de mel.





LONGE

Longe de cada beijo,
de cada abraço.
Distante um passo,
de mim mesmo.
Longe, acordo cedo
e em mim descarto
a última chance;
desespero.
Longe, também me calo.
Já não me vejo.
Sou ela
e não me trajo.
Sou eu,
não a desejo.





PRECOCE

Envelheci mais anos
nessa cadeira
que envelheceria
a vida inteira.
O resto de meus dias
envelheceria
nesta sala vazia.
Envelheci mais cedo
por não acordar
para ver no espelho
que eu não iria parar
de envelhecer.





TORNEIO

Sob tétricas notícias,
encosto o jornal.
O cansaço é natural;
a espera é cansativa.
Em nossa despedida
tudo foi tão mal,
numa pressa imprevista.
Ante o olhar alheio
nos tornamos veio
de degradação.
Do suposto torneio,
houve perdedores,
nenhum campeão.





CARNE

Carne minha
que sobre a terra caminha
sem descanso
à procura de uma saída.
Dentro de ti,
tem vida.
Fora de ti,
engano.

Casas soberbas em ruínas.
Enquanto caminha
minha carne,
sinto que arde
os olhos que perscrutam
meus anos passados.

Carne de pouca duração
que já não mais,
caminha.
Carne em putrefação
que já sem mim
germina.





INVETERADO

Baiúca que consola o meu pranto,
meu riso tonto,
minha doce embriaguez.
Em copos mal lavados,
tiro um trago.
Nos velhos dados,
aposto minha vez.

A cada gole,
esmero e bom trato.
Torno-me de fato
um áulico, um burguês.
No meu cotidiano instituo:
não há recuo
diante da escassez.

Meus lábios ressecados pela sede,
levantam-me da rede,
é preciso me inspirar.
Assim vou encontrar,
entre conversas,
os amigos que na pressa,
esqueceram de avisar.

Quem sabe sepultá-los é destino.
E sobre copos,
o tempo todo, rimos
da nossa mais feliz e nobre graça.
A toda hora nós mesmos nos servimos
do mais doce e fino vinho
e da mais pura cachaça.

As brigas são remotas;
o vicio nos comporta,
nos matem sempre em contenda.
Espero meu amor,
que um dia entenda.
Não a substituo,
apenas a divido com a boêmia.

Às vezes chego em casa, amparado;
mantenho o brio.
Mal fecho a porta
começa o desafio.
Mas nada nessa vida me importa
se eu tenho a boresca
ao meu lado.

A meretriz que olha de soslaio;
o velho papagaio
pede a conta;
na mesa alguém aponta
para a rua,
uma negra semi-nua
que passava.

Saímos todos juntos
pra calçada.
Um copo e uma garrafa,
as nossas companhias.
Agora que o dia
Amanhecia,
há tempos que a gente esperava.

Não sei se é teimosia
ou obstinação.
Diz minha sogra em casa:
é o diabo, é tentação.
E diz isso com raiva
Talvez tenha razão.
Pois essa maçangana é endiabrada.

Em minha inópia,
não de cabedal, mas de alma,
cheguei a abjeção de minha carne.
Em parte estou sujeito
à morte ingrata;
um merecido escarmento
de minha parte.

Não foi de dia.
Foi numa noite clara.
Olhei pra lua
e prometi a mim:
Jamais verei a vida da sacada;
sempre estarei na rua
em frente ao botequim.

De compleição mortuosa,
sou um sequioso centenário
que mesmo à beira da cova
não esquece o calendário
e se entrega à dengosa
em seu último aniversário
e apifa bêbedo.





MEU IRMÃO

E talvez,
seja assim meu irmão:
Entre o peito
e a razão,
seja a dor;
de um galho de flor,
seja espinho;
de um ninho,
seja seu abandono;
de um casebre sem dono,
o telhado;
de um velho curvado,
seja as costas;
da encosta,
seja o mar revoltado;
e calado,
a tristeza e a lógica.





FLOR BELA

Doce princesa,
nasceu como flor.
Buquê de amor
que não se põe na mesa.
Talvez seu sangue
não tenha nobreza,
mas tem a sua letra
em versos, valor.

Tão bela flor,
criou a natureza.
Enquanto a mesma
em si, desabrochou.
A irmã que amou
acima da certeza.
Tanta tristeza
que a flor em si
murchou.

Os seus polens
espalhados pela areia,
são a sua poesia
que ainda hoje semeia
seu olor.
Bela flor,
entre páginas,
és a chama que clareia
o amor.


















Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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