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Alguns degraus
João Felinto Neto

Resumo:
Não são degraus para o sucesso, mas sim, conquistas. O poeta norte-riograndense João Felinto Neto é desconhecido, quase anônimo, portanto fala de cada degrau como sendo cada livro escrito e publicado. Dessa forma, os leitores são as pedras que alicerçam esses degraus. Alguns degraus é mais um passo em direção ao reconhecimento, pelo leitor, do profundo empenho do autor para congraçar o prazer da leitura. São poemas dispersos que falam de diversos assuntos, sobre vários aspectos. Tal qual um velho pedreiro, cuidadosamente, o poeta constrói seus degraus; que para nosso prazer e deleite podemos acompanhá-lo através da leitura desses versos nessa escalada, ou ficarmos cá embaixo extasiados diante da declamação de seus poemas. Porém, de ambas as formas, faz-se necessário lê-se Alguns degraus.

Alguns Degraus

Na escalada em busca de um sonho, eu galguei alguns degraus. Degraus que enfim eu componho com poemas. E a cada dia eu monto pequenas peças, detalhes em forma de versos, que se concretizam em suportes que sustentam o peso de minha ansiedade.
A escadaria é longa e de difícil acesso, poderá desmoronar-se sob os meus pés, ou apenas acabar-se à minha frente no abismo da realidade. Por ser um sonho, pode ser só ilusão. Por isso, a cada degrau alcançado, eu retorno ao primeiro, e em seguida ponho os pés no chão.
Alguns degraus é bem mais que um simples título, é o reconhecimento de um caminho percorrido por alguém que olha para trás.

                              O autor



























O além

O corredor é imenso,
minha figura caminha sob o teto
empoeirado e coberto
por teias de aranha.

A solidão acompanha
os meus passos, com pesar.

Talvez eu possa encontrar
uma cópia de mim mesmo
para desvendar os segredos
que eu tento em mim, decifrar.

Eu sinto as paredes frias.
Mas, o silêncio me acalma.
Mesmo vazio de alma,
eu continuo a seguir.

Não sei se devo dormir
para voltar a sonhar,
ou simplesmente acordar
para voltar a sorrir.



Abandonados

Eu me sinto abandonado,
não por aqueles que me amam e me cercam,
mas, pelos que de mim precisam
e não me pedem;
os que pedem mais do que eu posso dar;
os que não querem o que ofereço;
os que pedem mais do que necessitam;
os que são miseráveis, mas não sabem;
os que sabem que são e não aceitam;
os que deitam à noite, mas não dormem;
os que dormem sem ter onde deitar;
os que choram de dor para enganar;
os que sentem dor e que não choram.
Apiedados os tolos entre os maliciosos,
essas feras que por prazer devoram.










Eu ou você

O amor
em suas mãos,
arma fatal
que causa dor
como um mal
que não tem cura.
Aprisionado a um quarto em solidão,
subjugado em uma cama sob tortura,
o amor não é desculpa
para sofrer.
Mas sem querer,
é culpado por uma vítima que tem culpa.
Talvez seja motivo para escolher,
eu ou você,
a razão crê
que é loucura.









Infinitivo

Rejuntar a argila.
Refazer sua crença.
Aceitar a mentira.
Rejeitar o que pensa.

Recobrir a vergonha.
Esconder a verdade.
Descobrir que não sonha.
Voltar a realidade.

Recobrar a memória.
Enfrentar os seus medos.
Recontar a história.
Revelar seus segredos.

Reescrever os seus versos.
Declamar sua poesia.
Desvendar seus mistérios.
Acordar para a vida.






Pequeno desbravador

Apenas uma volta em meu pequeno mundo,
em círculo,
pensava haver-me perdido,
no entanto chegava em casa.
Já me considerando um desbravador,
um conquistador de terras estranhas.

Atravessei o rio que me cobria as pernas,
a um destino incerto.
A cada desafio, as horas eram eternas.
Eu não sabia ao certo se não voltaria atrás.

Fascinado com minha jornada,
o que eu mais desejava
era ver mais,
muito mais do que via.
Minha voz me alertava,
Mas, ao mesmo tempo dizia
que eu devia prosseguir.

Numa expedição rara,
onde havia um só
que também era guia,
que nem mesmo sabia
onde estava.
Viajante virtual

O barulho da água
que modela, de um riacho, as margens;
o ruído do vento a acariciar o pêlo dos sagüis;
o canto doce dos bicos das aves,
compõem um mural de sons e imagens,
pintado sob a copa das árvores, a me iludir.

Chego a escutar os meus passos
no intenso desejo de estar ali.
Sou capaz de pegar, estendendo o meu braço,
uma folha que no chão acaba de cair.

Na virtual imagem me distraio,
no mais puro ambiente que eu pude criar,
no arrastar do mouse eu me traio,
à frieza da razão tenho que voltar.

Entre quatro paredes estou sufocado
frente a um monitor vazio e estático.
Uma falsa beleza de um mundo inventado
que me dá a certeza de estar condenado
a viver caminhando em um jardim
com flores de plástico.

Desabafo de um herói

Entre marcos, fui herói.
Onde há heróis também há vítimas.
E quando vencedor,
perdi a ilusão de achar que vencia.
Desconhece essa dor
quem não sabe o valor
que tem a conquista.
Ser herói de verdade é uma grande mentira.
Não sei qual o pior,
se a fé ou a glória.
Sei que é muito melhor
só sonhar com a vitória.













Poema sem fim e sem começo

...Enquanto o poeta que esquecera da vida,
via a criança entretida nos braços da mãe
e esta embevecida ao sorrir para a filha
que talvez algum dia também seja mãe,
e tenha em seus braços uma filha entretida,
embebida em abraços
e para a filha sorria,
enquanto o poeta que esquecera da vida,
a tudo assista.
Uma filha querida
que também poderia um dia ser mãe
e ter a criança entretida em seus braços,
em meio a afagos,
enquanto o poeta que esquecera da vida,
vê a tudo calado.
Uma doce menina
que um dia quem sabe também poderia...








Atuar

Abre os braços em um movimento crescente.
A luz focaliza uma sombra,
forma de pássaro que voa num corpo de gente,
entra em cena um louco que à platéia assombra.

Segue-se o silêncio como num templo.
Transborda a idolatria a uma divindade que atua,
o seu altar é o palco,
há uma força que não é sua.

Entre aplausos deslizam seus passos.
O olhar contempla o tempo que resta.
Lembra a estréia e também os ensaios
antes de cada peça.

Um deus que se curva ante os fiéis
ou mesmo um Rei diante dos súditos,
agradecido por tê-los aos pés,
envaidecido com o seu público.

Fecham-se as cortinas.
O teatro fica vazio.
Cada apresentação um desafio,
cada desafio é superado
e para sempre gravado em suas retinas.
Êxtase

No sopé da montanha estou ajoelhado.
O suor que nos banha
transforma-se em riacho
que transborda em águas
que são um misto de sorrisos e lágrimas.
Ao meu grito
a resposta é um eco afinado.
A montanha é tê-la de costas
e de quatro.
Um silêncio que voa em liberdade,
carrega nossas almas.
Nós somos o milagre.
Um instante que dura tão pouco,
vira eternidade.











Humanar

Um humano que sabe escutar,
acredita e não perde a calma.
Suas palavras são ditas com alma,
nos seus olhos um doce olhar.

Este humano pratica o que fala,
não há ódio em seu coração,
sua essência, um vazio, uma falta,
ele é símbolo de humanização.

Um humano que é triste e ardiloso,
arrogante em seu pedestal,
envaidece-se e é orgulhoso,
converte-se numa catedral.

Este humano é preciso humanar,
dar-lhe a luz de uma mente sadia,
ensiná-lo a saber tolerar,
dar-lhe a mão e tornar-se seu guia.

O que sai de uma boca maldosa
se oculta no próprio falar.
Um humano que vive em revolta
não consegue a sua casa voltar.


A este humano é preciso humanar
e mostrar-lhe o caminho de volta.
Liberdade é a chave da porta,
humildade é sabê-la encontrar.






















Episódio

O barulho do tombo de uma escada
sucedido à porta escancarada em supetão.
A visão
de uma casa mal caiada.
Sua parede a pouco rebocada,
olha o branco que escorre pelo chão.
Um pincel a procura de uma mão.
O pintor se levanta aturdido.
Tudo isso
num complexo sistema indefinido
é resultado de um velho conhecido,
o acaso.













Eco da consciência

Corro de casa
para poder fugir.
Corro para poder fugir.
Vôo sem asas
sabendo que vou cair.
Vôo sabendo que vou cair.

Não me apoquento,
sou lento como um zumbi.
Não me apoquento, sou lento.
Não agüento
passar mais um dia aqui.

Eu quero ir
sem saber aonde vou.
Eu vivo aqui
desconhecendo quem eu sou.
Eu sem saber vivo aqui.
Não mais importa
se um dia eu vou voltar.

Não mais importa
se da minha porta
eu vejo o mundo girar.
Da minha porta eu vejo o mundo girar.
Manguezal

Um braço perdido na profunda lama.
Sua mão engana,
sendo a própria isca.
Busca sua presa sem saber aonde.
Na lama se esconde
a sua comida.
Neste mundo insólito,
de aparência estranha,
a alma acompanha,
como a um ritual,
no olhar que se encanta.
Mundo manguezal.













Apelo à miséria

Quem me dera, miséria,
eu fosse parte
de um baluarte de sonho e de quimera.
Pela boca mantem-se assim o povo,
a lavagem é a comida que a si, dera.
Na vergonha de reconhecer-se porco,
ter o rosto metido na sujeira,
enlameado atrás de uma porteira
seu anseio é mantido na espera.

Quem me dera, miséria,
eu me calasse
e ocultasse o meu rosto na janela.
Meus princípios mantem-me assim exposto.
Sou mau gosto travado na goela.
Quem engole as palavras que eu digo
traz de volta a vontade de lutar,
elas tocam a ferida no umbigo
que o conformismo já ia cicatrizar.

Quem me dera, miséria,
quem me dera,
que de ti eu pudesse me livrar.


Premonição

Vem agora na lembrança.
Eu acordei cedo,
disse à minha mãe: - alguém me visita em segredo.
Eu era apenas uma criança.
A minha mãe deu um conselho:
- pergunte quem é,
depois da resposta
ela vai embora.

Assim chegou, à meia noite,
e novamente aconteceu.
Ouvi o som de um açoite,
mas nada a mim apareceu.
Eu já sem fala, quase mudo:
-Mas quem és tu, que não te vejo?
A alma então se projeta no escuro
e diz seu nome em segredo.

Eu me acordei ainda mais cedo,
não conseguia mais dormir.
Para mim ela ainda estava ali,
revia seus olhos em meu medo.
Mas, de uma coisa tinha certeza,
mesmo sem me dizer mais nada,
um dia ela foi uma princesa
ou uma sereia encantada.
Interessante é que de dia
enquanto eu me divertia no terreiro,
nada de estranho acontecia.
Ficava lá o dia inteiro.
Mas já à noite, quando acendia o candeeiro,
tudo que é coisa aparecia.
Até minha sombra dava medo,
sob o lençol eu me tremia.

Fazia frio, meu quarto agora era uma praia.
Eu via um triste pescador
numa embarcação furada.
-O que procuras meu senhor?
-Uma sereia encantada.
A minha rede balançava
e de repente ela parou,
o quarto ao normal voltara.

O sol mais uma vez nascia.
Eu resolvi ficar calado.
Achei que eu mesmo merecia
ficar com meu mundo encantado.
Juntava as peças e nada descobria.
Talvez faltasse algum pedaço.
E nunca mais eu sonharia.
Fiquei sem saber o resultado.

Hoje, tenho mais de trinta anos.
Gosto de pescar sozinho.
Enquanto pesco, faço planos.
Cuido do barco com carinho.
Saio em direção ao mar.
Nem imagino o que me espera.
Jamais pensei em não voltar.
Sempre voltei na hora certa.

Estou no barco a pescar,
o barco bate, noto uma rachadura,
começo a me desesperar.
Vejo no mar a minha ajuda,
uma princesa, uma sereia.
Eu nado em sua direção.
Essa foi minha salvação.
Eu piso firme na areia.

Vem agora na lembrança,
eu era apenas uma criança.
Eu sou aquele pescador
e a sereia que me salvou,
foi esse o nome, Esperança,
naquela noite, e o barulho do açoite,
escuto agora, são as ondas.
A espera

Um ônibus passa ao largo,
um outro pára,
um passageiro desce,
um outro sobe,
e eu à espera.

Cada um viaja espremido
no assento do descaso.
Mesmo em seu próprio carro
é estreito o espaço
por onde ele trafega.
Um pára e troca o pneu.
Um outro mais veloz desapareceu.
E eu
continuo à espera.

Alguém de bicicleta
cai sozinho.
Por pouco
um outro em uma moto
não o atropela.
Os transeuntes param no caminho
para comentarem a queda.
E eu em meu cantinho,
ainda à espera.
Um caminhão se desgoverna
em busca da calçada.
Um corre-corre louco.
Uma pasta ensangüentada.
Uma mulher em pranto.
Um homem ainda moço,
esse já era.
Enfim, eu me levanto,
acabou a minha espera.


















Que falem

O que se diz de mim,
quando às minhas costas,
sei que não me importa
se é bom ou se é ruim.

Talvez me achem tolo.
Uma flor entre abelhas
ou uma fera solta,
um lobo entre ovelhas.
Um pobre homem louco
que acha que um dia,
a porta da utopia,
o mundo vai abrir.

Não sei se vou sorrir por minha vida toda.
Mas, como qualquer boca,
a minha vai calar.

Enquanto eu empunhar
o peso da caneta,
que o mundo não esqueça
e que fale de mim,
mesmo às minhas costas,
há mim pouco importa
ser bom ou ser ruim.
Torturas

Uma seringa de ódio
injetada em sua veia.
A dor alheia
não o incomoda.
Uma torneira que pinga a noite inteira
sobre a cabeça
de quem chora.
A intolerância
explode com furor
na mão que leva o fio até tocar a língua.
Um ferro em brasa que fere a retina
tornado opaca a visão do opressor.
Um braço extenso
que engana e que destrói.
Em um porão o pavor de um herói
que morre em silêncio.









Insensíveis

Eu corro e não te abraço
por que de ti despeço-me
antes mesmo de partires.
O teu olhar se entristece
e mesmo assim a vejo sorrir.
E todo o querer caiu por terra.
E toda a dor te fez chorar.
A tua pressa foi o teu erro.
A minha calma o meu castigo.
De braços abertos morre comigo.
De olhos fechados tenta me encontrar.
Duas pessoas que se adoram,
que se odeiam
e que choram
por não conseguir amar.










Platônico

O que faço por mim
se nada sabes,
se de teu mundo
nem ao menos faço parte.

O que faço por ti?
Bem que eu poderia jugar-te.
Mas, é mais fácil te amar
que te condenar.           

O que seria depois,
se enfim soubesses?
Meu coração, quem sabe, talvez
amasse por nós dois.











Por trás da árvore

Algumas coisas não mudam nessa vida.
Sempre há uma referência na lembrança.
Aquela árvore sempre esteve lá,
desde que eu era uma criança.

Não é difícil querer ocultar
toda uma vida por trás dessa árvore.
Seus grossos galhos já foram uma tarde,
sustentação para o meu balançar.

A vi plantar, uma mão na areia.
Valeu a pena ter ficado à espera.
A noite chega, a lua é cheia,
cheia de vida como essa terra.

Um belo dia subi até o galho mais alto,
pus um alçapão com uma gaiola
para pegar passarinho verde,
verde como as folhas.

Também cai.
Quebrei o braço enquanto brincava.
Já não sabia quanto tempo a esperava,
ela não veio, doce namorada.

A árvore continuou lá
até o último dos meus dias.
Por trás da árvore meu corpo jazia,
eu a nutria,                  
sou fruto que ela dá.






















Mutismo

A poética leveza dos sinais
no gestual de minhas mãos
é reforçada com emoção
em minhas expressões faciais.
E o meu profundo silêncio
inspirou-me
a uma belíssima forma de comunicação.
Uma música audível ao coração
num movimento melodioso
e numa tocante letra de expressão.
Um gesto pode dizer mais do que uma palavra,
e uma palavra em gesto
pode dizer mais ainda.
Retornei ao tempo em que não havia fala
e que os olhos eram a língua.
Num mundo de fingimento,
a beleza da linguagem de sinais
exprime minhas idéias e meus sentimentos.
O que deixamos para trás,
eclodiu na necessidade que tenho de dizer:
- Estou vivo.

                         
                                       

Loucura   

Eu acaricio a minha face
enquanto ela tenta me morder.
Tão triste bem querer,
porque não vejo que em mim, a loucura nasce.

Dentro de cada um
é tão comum se esconder em alguma parte.
Parti de mim,
talvez para ocultar você.

Meus olhos, o que vê?
Já não se sabe.
Reconheço-me
na imagem embaçada pelas lágrimas.

Um desesperado para viver,
que não consegue mais voltar para casa.
Um estranho tranqüiliza a minha dor,
por não saber
que na verdade,
sou você.              




Guinada

O poema encara o próprio poeta,
é atrevido,
faz o que quer comigo
e eu não sei me defender.
O poeta sem querer
fala de coisas passadas,
desabafa.
O poema se exalta,
não me deixando escrever.
O poema joga duro,
meu pensamento afugenta.
O poeta então se apega a versos que depois, lamenta
tê-los um dia escrito.
O poeta é mais que isso.
O poema acha pouco.
De repente, uma idéia,
dessa vez vou dar o troco,
pensa consigo o poeta.
E nos passos da caneta
toma a frente do poema.
O poeta faz careta
arremedando o poema
que agora é invertido.

O poeta encara o próprio poema,
é atrevido.
Faço o que quero contigo
e você não pode se defender.
O poema sem querer
fala de coisas passadas,
desabafa.
O poeta se exalta,
não deixa o poema ser.
O poeta joga duro.
O poema se afugenta.
Então o poeta se apega
a versos que nunca lamenta
por tê-los feito um dia.
O poeta acha pouco
e escreve como um louco
o inverso do poema.










Absorto                                      

Não há mais tempo,
o relógio quebrou,
agora simplesmente não haverá atraso.
Continuarei aqui,
sentado,
achando que o mundo
parou.
Com o relógio quebrado
não haverá mais recado.
Ao meu lado,
o movimento cessou.
Não haveria mais dor,
porque o mundo parou.
Não haveria trabalho,
o mundo havia parado.
Eu ficaria eternamente aqui
debaixo dessa barraca,
com uma bebida gelada,
olhando um barco partir
tal qual numa tela pintado,
não se movia dali.
Agora escuto as batidas do meu coração,
e apenas o tique-taque do relógio.
O mundo parou ou não?
O mundo não pararia, é lógico.
O que houve afinal?
Parei no espaço e no tempo,
no mundo dos pensamentos,
parei o mundo real.























Diante

Diante de mim,
ninguém.
Diante do mal,
o bem,
bem diante de nós.
Enquanto eu falar
com vós,
não vão me faltar
lençóis
para me cobrir.
Despeço-me do mundo
aqui,
com um aceno
para alguém
bem diante de mim,
ninguém.









Em movimento

Mundo que gira sob os meus pés
deixando-me em diversas e cruéis
situações.
Tão imperceptível movimento,
faz com que eu lhe obedeça
e que permaneça na mesma posição.
A sua rotação está em minha cabeça
e não deixa que eu perceba
que é pura ilusão.

Mundo cão,
gira em torno de si, rotação.
Ao redor do sol, translação.
Até que eu desapareça.

Mundo injusto,
que assim seja,
eu não quero virar busto,
peço que de mim se esqueça.

Mundo sujo,
espero que ainda veja
a sua própria podridão.
Mesmo que eu já esteja
incorporado ao seu chão.
Mundo imenso.
Dentro do solo ou nas alturas,
a mão do homem é o veneno
que está comprometendo
suas complexas estruturas.

Mundo vazio de vida.
Mundos, enfim é plural.
No universo, uma ilha
fragmentada no caos.

















O pescador e a sereia   

Passou a vida navegando
para o outro lado.
Estava sempre de costas.

Mesmo acordado,
estava sempre sonhando
com o seu barco afundado
em um mar de rosas.

Sobreviveu aos espinhos
e à beleza também.
Mas, naufragou no caminho
pelo perfume que tem.

Um cheiro doce
que a maré trouxe
do seu amor que não vem.

E foi pego de surpresa
pela mão da natureza,
que de vermelho manchou
o mar que sempre sonhou.

A cor não era das pétalas,
era do sangue nas velas
que como chamas, o queimou.
Na sua face esculpida em bronze
com o sol, espelhava o nome
d'aquela que sempre amou.

A vida, assim, separou
com uma enorme desfeita.
Seu amor era uma sereia
que ele mesmo pescou.


















Eles sabem o que fazem

Nos gritos arrastados pelo vento,
escuto,
é o fim dos tempos,
da boca de um ancião.
O apocalipse é uma anunciação
que um dia enfim, o levaria,
e tudo continuaria
como sempre foi.

Por trás das portas
das Sinagogas e das Mesquitas,
o ódio vence o amor,
e lá fora
a guerra eclode.

Como uma bomba,
um dia explode
em seus próprios pés,
a intensa disputa por fiéis,
entre a Igreja e o templo.

Prega-se o amor.
Pratica-se o ódio.
Pede-se perdão.
Pune-se com a morte.
Fala de humildade,
enquanto crê por ambição.

Lavo minhas mãos.
Talvez seu próprio criador tenha feito isso,
é a única explicação
para ser tão omisso.




















Quem era

Imaginou que era tarde,
tarde não era.
Mas, era tarde demais para voltar a quem era.
Será que ela iria à montanha
ou a montanha viria até ela.
Quem dera
que o seu nome, tão forte, ecoasse
como resposta que vem da montanha
a uma dúvida que era tamanha,
como uma chama que queima e arde.
Já que a si mesma,
amaldiçoara,
a sua voz para sempre calara
ante ao eco de sua pergunta.
Sua garganta,
uma fenda profunda.
Seu coração,
uma ferida à parte.
Talvez, não seja tão tarde
para voltar a ser ela.





Só meu

Um lugar que é meu.
Meu não possessivo,
meu sentimental.
Um lugar cativo.
Um sonho ideal,
só meu.
Só meu,
um sonho ideal,
um lugar cativo.
Meu sentimental,
meu não possessivo.
Um lugar que é meu.













Filho e pai

Corro para um solitário adeus,
um beijo.
De todos, o mais infeliz desfecho,
a despedida.
Enquanto na distância
parte a minha vida,
parte dela para o esquecimento,
resta-me lembrar
numa viagem pelo tempo
de tudo que me restaria
na memória, do que fui outrora.
E o que seria agora,
se eu soubesse nunca partiria.


Procura se encontrar,
como procurei um dia.
Como não pude notar
a dor que meu pai sentia?
Tantos anos se passaram,
a mesma cena aconteceu.
Desta vez, foi o meu filho
que minha dor não percebeu.
Somos bem mais,
quando somos filho e pai.
Dia-a-dia

Tu és para mim
uma flor retirada de uma tela viva.
Aquela flor que há
no vaso da vida,
um vaso revestido de amor e tédio.

Não sei se és a minha cura.
Mas, és o único remédio.

Estou na velha cadeira,
a engolir poeira e a fazer planos,
pensando na mesma e rotineira
tarefa do cotidiano.

Você já não agüenta mais,
disfarça e faz de conta
que não faz conta de mais nada,
que a liberdade é uma estrada
e que no fim da caminhada
o seu destino a espera.

E agora somos meramente,
dois patéticos sorridentes
que acreditam ser felizes.

A tempo e a hora

Tenho pressa,
o tempo urge,
nos ponteiros vejo a hora que o relógio anuncia,
vai-se o dia
a noite surge.

Olho o dia da semana
e a data no calendário,
se a idade não me engana,
hoje é meu centenário.

Minha mão nunca desiste,
mas escrevo com demora.
O tempo já não existe,
meu relógio jogo fora.
Esqueço que há noite e dia.
Arranco os marcos da história
para poder terminar
esta singualar
poesia,
a tempo e a hora.




Idéia fixa

Ao olhar a imensidão, de cima da serra,
escancaro minha boca em forma de caverna.
Faço de conta que não é comigo
a volta de um eco de meu próprio grito.
Abro os braços para um vôo,
enfim reflito,
penso até em arriscar,
mas sei que não conseguiria.
Sei a força que me prende a terra.
Sei que a morte
espreita-me na janela.
A vida sem voar não faz sentido.
Tenho uma idéia,
volto ao abrigo.
Depois de muito tempo o céu ainda me espera.
Usando um novo invento vôo pelos ares,
sentindo em mim
a liberdade.







Pretensão

Jamais saberei quem tu és,
lendo a palma da tua mão
ou as marcas dos teus pés.
Nos teus olhos, a tristeza diz não.
Na tua boca há um sim de alegria.
Nem traje e nem companhia
revelarão quem tu és.
Conheço o teu jeito de andar,
os gestos na hora de falar,
teus gostos para se vestir,
a maneira de dormir,
quase tudo em ti, eu já sei.
Quem tu és, eu jamais saberei.

O teu ser é oculto à distância.
Em tua voz posso ouvi-lo falar.
Somos feito da mesma substância.
Mas, jamais vamos nos encontrar.

Como posso querer desvendar
um enigma que também é meu?
Pretensão é saber quem tu és,
se nem mesmo sei quem sou eu.
Para sempre seremos a sombra
de um ser que não sabe quem é.
Moléstia

O arcabouço
de meu corpo macilento
no esforço para respirar,
faz um triste movimento.
Há um pulmão asmático
no intento.
Um rosto apático,
transfigurado pelo tempo,
não me deixa sorrir.
Aonde ir,
se já não posso caminhar?
Um grande fardo
para um homem suportar.
Um alvoroço,
logo depois um corpo estático,
um lençol de enorme peso,
uma febre sem desejo,
um olhar desfigurado.







Guri

Esta é tua essência,
que em criança
corre livre com os passos da inocência.

É maleável a realidade na infância;
quando a tua mão
dá forma a uma outra forma
e molda com a imaginação.

Nada mais importa
em teu mundo de fantasia,
não há razão,
não há ciência,
tudo é pura poesia.











Bodas

União duradoura
numa balança de ouro,
um e outro,
dois pesos numa só medida.

Cinqüenta anos de vida
dentro da mesma aliança;
a palavra preferida,
esperança.

Um exemplo a cada filho,
para sempre na memória.
Seguindo no mesmo trilho,
nunca houve um descarrilo
nas páginas de sua história.

Em um mundo tão descrente,
um casal admirável.
Sustentaram o que é decente
com uma fé inabalável.

Diferença há em suas opiniões.
Mas isso não é tudo.
Dentro de seus corações,
o querer é mútuo.
Por trás da colina

Um amor que não tem poesia
já nasceu condenado a morrer.
Não seria possível ir muito longe,
muito longe não iria.
Não veria seus olhos, quando se esconde
nas janelas do bonde.
Perderia o bonde,
o bonde apressado.
Parou onde?
Aonde ele foi?
Não seria muito,
nem pedir demais,
quero saber do bonde,
quero vê-lo aonde vai.
Lá atrás da colina
não há linha de trem,
não há virgem, menina,
não há doce, também.
Ao abrir a cortina
vejo luz, é meu bem.
A poesia termina
e o namoro também.



O amor

Eis o que é o amor:
uma vontade inata.
E o próprio amor
de amor nos mata.
E nos machuca uma dor
que se faz necessária.
Desnecessária dor,
dor que nunca passa.
Na ferida do amor
nasce uma flor rara.
Tão rara e fina flor,
que o amor não sara.













Herança de guerra

Amaldiçoei meu planeta.
Já não posso mais fitar meu rosto
em uma poça d'água,
por não haver mais poça d'água,
não por desgosto.

Enquanto cai uma fina chuva ácida,
sinto queimar a pele cancerígena
do meu corpo.
Ninguém virá ao meu socorro.
Esse é um planeta alienígena.

O tempo todo estou de máscara.
O ar é tóxico.
O amor é livre, mas ninguém encara
a estranha cara
do seu próximo.

Morrer de tédio ou de ócio.
Antiga terra,
não há amor,
não há remorso,
és a herança da guerra.


Caminhoneiro

Ao cofiar a barba,
recorda que a carga
em seu coração
foi sempre bem maior
que a que ele levava
em seu caminhão.
A lona cobria,
o quanto podia,
as suas paixões.
As cordas prendiam
e assim não partiam
suas ilusões.
A vista cansada
de ver só estradas vazias.
A volta para casa
é o fim da jornada
e a razão da partida.








O mar da vida

Em cada boca
um sorriso,
em cada dor
um gemido,
cada cabeça
uma forma de pensar,
e cada qual
com seus medos,
guardando em si
seus segredos
que podem
a sua alma desvendar.

Feliz de quem pode olhar
a imensidão do seu nada
na longa e triste jornada
com seu lento navegar,
e refletir um pouquinho
enquanto se está sozinho
sem porto para aportar,
que a vida
é cada momento,
cada momento,
um tempo,
em cada tempo há um vento
para a vida direcionar,
e que se pode naufragar
se não for firme no leme.
No mar da vida o que se teme
é ter que à terra
voltar.





















Escravizados

Não há prisão que segure
a força da liberdade.
Um dom que a humanidade
quer que perdure.

Não há razão para escravizar a coragem,
enquanto a covardia é a única atitude.

Assim foi no passado,
é no presente e será no futuro.
Das mãos afrouxa-se o laço,
dos olhos a venda que nos mantém no escuro.

Quem são os nossos vassalos,
se somos nós os nossos senhores?
Quem são os nossos escravos,
humanos sem raças e sem cores?

Somos um berço de vida
que lida,
que não sabe ler.
Falta-nos sempre comida.
Que vida devemos ter?


Escravizados ainda,
não sabemos o que fazer.
Reaja que tudo finda,
é só questão de querer.

Como posso ser senhor,
se a minha maior dor
é ser escravo do poder?



















Confissão de Eva

Não vivo à sombra de Deus.
Não sou sobra de Adão.
A sobra de minha maçã,
não foi satã quem comeu.

Eu vim ao mundo assim.
Não há pecado, nem culpa.
Foi uma bela desculpa
para livrar-se de mim.

Além do vasto jardim,
não havia mais ninguém.
E de onde é que vem,
a esposa de Caim?

A estória é tão ruim,
que devia contar outra.
Livre arbítrio é só de boca.
Você tem que dizer sim.

Uma coisa, eu lhe peço:
Não se esconda, tente ver-se.
Precisando, eu confesso.
Mas, confessar não é arrepender-se.

Paradeiro

Ha! Se o mar
fosse mais perto.
Todo dia eu sairia para pescar.
Não seria a minha vida, esse deserto.
Um deserto, que ao contrário,
virou mar.
Eu vejo o velho Antônio,
meu conselheiro,
sem conselhos,
com a barba a cofiar.
Desconhece o seu próprio paradeiro.
O meu,
quem sabe,
ele possa desvendar.











Reversível

Estou errado, quando certo.
Tenho a certeza ao errar.
Sou infinito entre os homens,
para entre os deuses me acabar.
Sou preto e branco entre cores,
tão colorido no incolor.
Um perdedor dos ganhadores.
Um derrotado vencedor.
Sou sempre inverso
ou não sou.















Dissimulada

Não me pergunte o que pretendo.
Entendo
se o torno infeliz.
Não vale a pena ouvir
o que minha boca diz,
o melhor é seguir
o que diz meu olhar.
Não basta me entregar
pra lhe fazer feliz,
nem lhe odiar
por me aprisionar.
Mas se não há lugar
para nós dois,
não desejo partir,
vou esperar aqui.
Não me importa, pois haverá depois.
Preciso como sempre   
me enganar
e nessa hora acreditar
que vou lhe esquecer,
e mesmo sem querer
eu volto a aceitar,
estendo a mão pra receber,
enquanto o coração
tenta dizer te amo.
Os fantasmas

Tenho medo da solidão.
Ouço vozes e falo sozinho.
Vejo olhos
que brilham na escuridão.
Ando de mansinho.
Sinto um calafrio,
um desafio
para minhas pernas.
Ventania que abre a janela,
me enregela a alma.
Ponho a minha mão
no vão
da porta entreaberta,
passo através dela,
mantenho a calma.
Que decepção
ao ver a sala,
todos vivendo a ilusão
de que sou um fantasma.






Vejo a vida

Abro a rede
e mergulho no mar de notícias.
Vejo a fome e a sede,
violência e carícias.
Vejo a vida.

Vejo alguém que anuncia
com a boca jocosa.
Não há graça nenhuma,
propaganda enganosa.
Vejo a vida.

Vejo uma cobra macia
que desliza na areia.
Vejo um teto cair
sobre algumas cabeças.
Vejo a vida.

Vejo a flor que encanta
com a sua beleza.
Vejo a pedra que agride
com a sua dureza.
Vejo a vida.


Vejo a virgem que espanta
com a sua pureza.
Vejo a dama da noite
com a sua frieza.
Vejo a vida.

Vejo uma mão estendida,
um perdão ser negado.
Vejo uma árvore caída
e na mão um machado.
Vejo a vida.

Com os olhos fechados
vejo o céu e o inferno.
Entre o breve e o eterno,
vejo a vida.











Personagens infantis

Será que o lobo é tão mal.
O lobo ama também.
Ele protege os filhotes que tem.
Caçar, para ele é natural.

A chapeuzinho, talvez,
quando crescer seja outra.
Se torne uma megera
que não gosta de criança
e perca toda a esperança
de voltar ao que era.

O caçador, o herói tão valente
que salvou a vovozinha,
costuma matar friamente a fêmea,
deixando a cria sozinha.
Ele acabou sendo preso
por caçar ilegalmente.

A vovozinha morreu.
Pois, a idade a levou.
Mas, quantas vezes brigou com a vizinha da frente.
Isso prova que a bondade e a maldade,
na verdade, são apenas uma história diferente.
No isolamento

- Pare de falar.
- Eu já parei faz tempo.
- Então por que escuto a sua voz?
- Não é a minha voz, é o seu pensamento.
- Dessa forma somos nós um só?
- No mesmo espaço e ao mesmo tempo.
- Eu não acredito nisso,
deve ser sabedoria.
- Sou apenas uma vaga idéia
do que você mesmo seria.
- Sendo assim,
não há um você nem um eu.
Somos nós em mim.
- Ainda não entendeu.
Não existe nós,
sou apenas eu.









Na lapela

Não seria o lugar da rosa,
o peito,
ou o jeito
é deixá-la no jardim.
Na lapela do meu lado direito
ou seria do esquerdo,
enfim.
Não há cravo nem rosa.
Não há verso nem prosa.
Não há terno para mim.















Fidelidade

Não me deito em outros leitos,
não me queixo.
Vida louca,
quantos beijos
eu dei em outras bocas.
Nos meus sonhos,
talvez eu tire a roupa.
Mas na vida,
apenas te desejo.
Minhas lágrimas não são pelo que vejo.
Mas, por medo
de não tê-la à vida toda.













O todo

Não me pareces uma flor.
Todavia, uma seiva permanente
que mantém o jardim vivo.

És o meu riso
e a minha dor.
És meu eterno compromisso.

Sou por inteiro
no que sou.
Metade do que em ti,
seria.

Somos o todo no amor,
que em cada um
não caberia.









Sombra

Não há detalhe
em minha sombra na parede.
A luz não pode
atravessar-me.
O meu receio
é que a imagem
que está presa no espelho,
venha para a minha sombra,
assombrar-me.

O meu descanso
é uma simples ilusão.
Eis que sou sombra
dissipada na escuridão
do quarto.

Uma sombra que vaga
pela vida
à procura da própria
identidade.
Por ser sombra,
de forma indefinida
na minha realidade.


Pintura

És na noite,
um quarto sem pudor.
Na tela,
uma pintura apaixonada.
Entre as cores,
uma figura desbotada.
Entre as flores,
abaixo da janela,
és aquela,
a de cheiro adocicado.
Entre todas,
é a dama à espera
do autor do belo quadro.












Fobia

O tíbio som de minha voz
cessou de vez.
Eu jamais poderei
alçar vôo.
Cordas vocais de timidez
mantém-me ao chão,
em silêncio,
só.

O que farei por nós,
enquanto sou assim?
Apenas um esforço
em vão.
Um sangue quente entra e sai do coração,
tingindo minha face de pavor.
Sou eu em meio à multidão,
um rosto, sem querer,
sem vontade de ser
quem sou.

Cada rosto me agride
com violência existencial.
Cada aperto de mão,
um revide à minha invasão
ao mundo real.
Cibernéticos

Corremos entre verbos e quimeras,
em uma vida estóica e sem sentido.
Já fomos aos pólos da esfera.
Descemos ao mais profundo abismo.
Subimos às elevações da terra.
Conquistamos o altar.
Evoluímos.

E agora o que fazemos?
Só caímos.
Caímos em desgraça,
em desuso.
Não somos mais humanos.
Somos máquinas.
Os nossos periféricos,
que absurdo,
são extensões
de nossa própria alma.







Futuro

Eu sairia para a calçada
em meio a chuva.
Tuas passadas pela rua, eu seguiria;
sem perceber
que a sua existência
era apenas fantasia.

Eu correria louco,
pela rua.
E sob os pingos,
abriria os meus braços.
Imaginando o teu abraço,
abraçaria a própria chuva.

Superaria a minha timidez,
e como um eco eu repetiria:
- Te amo, e jamais suportaria
perder-te outra vez.

De olhos fechados, a veria sorrir,
longe no tempo,
sob uma chuva fina.
Abriria meus olhos,
ainda estarias ali,
apenas como parte de minhas retinas.
Insônia

Cores.
Um crepúsculo a chorar.
Um silêncio acabrunhado.
Um olhar de peixe morto.

Dores
espalhadas pelo corpo.
Um motivo para estar
acordado.
Não se despiu dos sonhos,
ainda pensava dormir,
apesar do dia estar ali,
recém chegado.

Flores.
Um cheiro de jardim regado.
Chuva no telhado.
Afinal,
um bom motivo para sorrir.






Resignação

Ali estava,
em mais um dia de lida,
mais um pouco que colhia
da terra que tanto amava,
sob o sol que a rachava.
E no cabo da enxada
conhecia
esse chão que não chovia.
Com seu suor, o molhava.
Não era noite,
pois, ainda o sol se via.
Quando chegava em casa,
já o céu escurecia.
Em seu quintal,
um lampião era o guia
com a sua luz acesa.
Vai ao curral
pela beirada da cerca
para ver a sua vaca
(Ele não compreendia,
com tão pouco que comia,
noite e dia
mastigava).
Voltando às costas,
vai em direção da casa.
Em pé na porta,
observa a família,
todos em volta da mesa
esperado o que trazia.
Uma coisa era certeza,
a oração de todo dia
era sempre ter na mesa
uma porção de comida.



















Vintém

Não tomou de ninguém.
O seu dinheiro é vintém.
Aperta a mão de um e outro.
O seu aperto é no bolso.
O seu dinheiro
é o troco
de um louco
que era alguém
que achava ser natural
não ver ninguém.
Afundou-se num poço
dentro de seu paço.
Era moço,
um osso duro de roer.
E foi além
de seu harém
de belas idéias.
Findou-se sem elas
e sem ninguém.






Ira

As palavras remoídas
em silêncio,
esmigalhar-se-ão em um minuto.
Não serão as escolhidas.
No momento,
terão forma de insulto.
Pois a ira,
atravessar-lhe-á o pensamento
Como flecha disparada do escuro
que deixará um vazio sem dimensão,
que partir-lhe-á a alma ao meio,
quando atingir o seu triste coração,
em cheio.












Intrusos

Os intrusos não são os outros.
Entre nós,
nada mais me surpreende.
Sabemos de cor
que não há razão para sermos
um só,
e não seremos.
Ou você me compreende
ou simplesmente
não aceita a inevitável separação.
Não está em minhas mãos
nem nas suas.
O que motivou a nossa união,
leva-me de volta
às ruas.










Fração

Infinidade de mentiras.
Duas palavras.
Uma infelicidade.
Meia verdade.
Como igualdade:
nada.



















O aniversário

- Hoje é meu aniversário.
- Ha!
Parabéns por esse dia.
Desculpe eu não ter lembrado.
É que não me importam os dias.
Eu não olho calendário.
Espero
que por toda a minha vida
esteja sempre ao meu lado
para eu lhe dar parabéns,
mesmo que seja atrasado.
Parabéns
pelo seu aniversário.
Desculpe-me
não tê-lo lembrado.










Trincheira

Na imensidão da terra,
sei que ainda há guerra.
E agora
eu vejo uma trincheira.
E mais atrás
uma tenda com feridos.
Tapo os ouvidos,
a dor deles me incomoda.
Além do mais,
a dor é traiçoeira.
Não é preciso prego nem cruz,
escuridão ou luz,
é suficiente retina.
O que é pior,
a dor não lhes ensina
a tornarem-se humanos.









Ciclismo

Talvez sejas uma miragem
de minha própria visão,
que me ensinaste a andar
na mesma direção.
E sobre o mesmo pedal
trocamos nossos pés.
Afinal,
tu és quem eu sou,
eu sou quem tu és.
Viajamos assim,
no mesmo celim.
Eu por ti,
tu por mim.
Numa corrente em movimento,
somos elos fundidos
numa mesma junção.
No final,
somos um casal
em competição.






Flor carnívora

Dê-me a flor,
amiga,
flor inimiga
que me faz sofrer.
A flor vermelha,
a flor carnívora
que quer me comer.

Sou um inseto,
livro-me da víbora
e dos espinhos que circundam a flor.
Porém, entre as pétalas
da flor carnívora,
sou diluído
em seu líquido
Incolor.









Imorais

Beijar tua testa,
pelo mal que tenha feito.
Perder o medo
de trair minha moral.
Dizer te amo
com o embargo de um gozo.
Depois, composto,
da própria descompostura
de um matrimônio
totalmente anormal.
Entre sólidas paredes,
nossa virtude
é um vício social.
Tão imorais
ante a púdica maneira,
a vida inteira
somos simples animais.








Pedaços

Os remendos na retina
me fazem ver
em pedaços.
Pedaços de ti, menina,
que me deixaste
em pedaços.
Um pedaço que te ensina.
Outro que nunca encontraste.
Talvez, por ser pequenina
a razão que o procuraste.
Pedaço de mau caminho.
Carinho
despedaçado.
Meu olhar em pedacinho,
enxerga a imensa saudade.
Vai montando peça a peça,
esse teu quebra-cabeça.
Quebra, não deixa que eu esqueça
que ainda estou em pedaços.






Maioridade

Eu dividi meu rosto
em disfarce
e mal olhado.
Eu divisei olhares
de bons olhos,
de olhos maus.
Eu odiei a ordem.
Eu abracei o caos.
Fui ao limite da maioridade
para poder sentir
saudades
de quando ainda era
jovem.












Mariposa

A escuridão
é minha imensa tela.
Fascinação
é essa luz tão bela;
contudo, me leva
à triste extinção.
Entro em transe
tal qual vocês
diante
de suas cruzes.
Sou alvo fácil
para meus predadores.
Caros senhores,
apaguem suas luzes.











O cão

O seu calor transpira em sua língua.
A cauda longa em pêndulo, balança.
Espera o dono que não chegou ainda.
Todavia, seu instinto mandou-o ir para a porta.
A ele importa o mínimo carinho.
Para um estranho, uma arma perigosa.
Breves latidos por deixá-lo tão sozinho.
É fiel e forte.
Grandes distâncias ele percorre,
como se houvesse um mapa em sua mente.
Dorme bastante se o dia está quente.
É paciente a espera da comida.
Dá impressão que ele olha para a vida
como a gente costuma olhar para a morte.
É extensão da mão que o domina.
Triste sina ser por ela sacrificado,
sendo vítima e não culpado.
Sem razão, quando olha para cima
é simplesmente para ver quem lhe ensina.
Quando filhote é querido pelo filho.
Depois crescido, é vendido pelos pais.
Fica a lembrança num retrato colorido,
de um tempo tão bonito
que não volta nunca mais.


Afasto, muitas vezes,
aquele que me cerca.
Má sorte,
o caso é irreversível.
Com a mão aberta,
cumprimento o amigo invisível
que me abraça.
Com a razão incerta,
tento entender o que se passa.
Abro os olhos e vejo
a necessidade de se ter um amigo.
Converso sozinho
por não haver ninguém comigo.
A pesada mão da solidão
dá-me os pêsames
por minha vida
sem sentido.








Inibição

Leitura feita pela própria alma,
em silêncio,
marca a entoação da fala,
e no decurso da declamação
que só eu escuto,
do ditado inconsciente de palavras.
Leitura de mim.
Pobre de mim por me perder na fala.
A minha voz
que entre vós se cala,
se perpetua em meus pensamentos.
E vez em quando,
foge no seu tempo,
enquanto tento
que não se distraia.
A minha mão que movimenta a folha,
tão sem escolha,
a uma nova página.
Pois, não sou eu que escondo a voz,
é minha voz
que entre vós se cala.




Leito

De pé ante o leito
sobre o qual eu adormeço,
enfim, eu me despeço.
Então, a mim confesso:
tal castigo não mereço.

Preso ao leito
pelo mal que me acama.
Alguém me chama,
Mas, a tempo estou desperto.
É minha voz decerto,
a reconheço.

A existência dupla
me faz voltar atrás.
E não me tira a culpa,
rever o meu pai
na pequena estatura
que agora me observa
de olhos tímidos, em reserva,
sou filho e pai.




Matinal

É uma tortura
molhar cedo o rosto,
depois de dias sem sair à rua.
O mesmo cômodo
por vezes visitado,
é tão incômodo
quanto meu reflexo barbado,
no espelho.
Quanto mau gosto
por não lavar a boca.
Vida louca
e sem resultado.
Mesmo sem graça,
não contenho o riso
ao ver em minha cara
a falta de siso,
de sono constante,
de sonho distante,
de uma noite rara,
de dormir
e simplesmente descansar
a vida.



Dádivas

Não ver as dádivas da juventude,
é uma atitude
própria da idade.
O gigantesco totem da liberdade,
erigido com devoção,
desconhece a fúria
da vasão de vitalidade.
Na miopia, ante a nítida imagem
de um ser efêmero,
desnutre-se aos poucos.
Sem noção,
desconhece
a saudade que virá
na dor de ouvir a rouquidão
da voz que tenta chamar
a sua própria atenção.
Mas não há como voltar,
não há,
não há como avisar a si.
A noite vai clareando.
O dia, enfim, escurece.
Passo a passo,
a gente esquece
o que devia fazer,
até um dia acordar-se
assustado,
olhando o imenso espaço
deixado
às suas costas,
e sem respostas,
no madurar da idade,
pra não morrer de saudade
é necessário
lembrar-se.


















Avô II

Chegava em casa,
recontava os seus passos,
e falava tão baixo
que não mais era ouvido.
Quando dizia a verdade,
sua mão se abria em rosa.
Em verso e prosa,
recontava suas mentiras.
Talvez, o culpado
fosse o excesso de tempo.
Mal enxergava,
porém, ouvia muito bem.
Feliz quem tem
um avô despreocupado.
Viveu por dentro
do que a gente deixa de lado.
Velho ilhado
por vivência e sentimento.







Obra-prima

Horas imersas em um lodaçal de espera.
Forma dispersa.
Ela nada de chegar.
Em seu lugar
se encontra uma pedra
vinda da terra.
Escultura a se formar.

Talhe perfeito.
Uma madona expressiva.
Levaram-me dias,
para vê-la terminar.
Uma obra-prima,
que entre lágrimas, ainda,
a pedia pra falar.

Como entregar
encomenda tão amada,
se vosso par
poderá desconfiar.
Fi-la perfeita,
não pelo modelo exposto,
mas, pelo toque no rosto
que eu pude enfim amar.

Devo acordá-la
ou mantê-la em seu sono.
Não sou seu dono,
porém, não a quero deixar.
Posso calar
para sempre minha boca.
Uma da outra,
eu não posso separar.

Triste partida,
só restou-me minha obra.
Quem sabe um dia,
possa vê-la respirar.
De volta à vida,
eu terei minha senhora.
Só que agora,
eu é que serei seu par.










Sobre nós

Em besouro,
transforma o semelhante,
arrancando-lhe as asas
para não mais voar em sonhos.

Enquanto pisa na lua,
esquece a rua
em que pisou.
Busca vidas distantes
enquanto destrói
a que o rodeia.
Forja sua própria cadeia,
e a todo instante
observa-se,
achando-se um herói.

Tem comida na mesa
e mata suas crianças de fome.
À procura de esperança,
vasculha sua casa.
A sua cara
parece paternal.

Sinto-me mal.
Sinto-me humano.
Amantes sobrenaturais

Dois desconhecidos
sempre sós,
todas as manhãs
vamos nós,
ao mesmo jardim,
e nunca nos encontramos.
Ao entardecer,
eu e você
sentimos o cheiro da flor
que aprendemos a chamar de esperança.
Todas as noites,
nossas almas se encontram
para falar de amor.
Ao amanhecer,
não há lembranças
de que fomos amantes
não carnais.
Para sempre próximos e distantes,
somos nós,
sobrenaturais.





Passos no salão

Sinto
que meus passos
são um só movimento
no tempo,
um momento
infinitamente belo.
E a música
que escuto
é como um manto
sobre os sentidos,
vibrando em meus ouvidos.
Um toque na alma,
que é possível ver
mantendo os olhos fechados.
Música e passos,
passos e música,
completam-se em mim.








Tuberculose

E vem a tosse compulsivamente.
Mente para a gente
ao aliviar.
A morte em sangue,
volta bruscamente,
como avisando:
Só para lembrar.
Altos e baixos,
relevo indistinto.
No mar da vida,
chego a afundar.
Retorno à margem,
não encontro a cura.
Genialidade ou loucura,
o que pensar?
Neste século
que apaga suas luzes,
há tantas cruzes
para se pregar.







Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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