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Sob meus calcanhares
João Felinto Neto

Resumo:
Silencio, depois começo a escrever este prefácio. Sob meus calcanhares deixou-me perplexa pela influência que os versos de João Felinto Neto, tiveram em minha compreensão de qualidade e amadurecimento a cada página, numa evolução constante que traduz sua concepção de tempo e espaço, de vida e ausência, de solidez e liquidez. Transparecendo-me e mergulhando nesta liquidez, vislumbro toda a essência poética transmudada em vicissitude do verso, do verbo e do sentido. Paralelo ao que chamo de coesão silenciosa, caminha à sombra, o reflexo do verso em significação pueril e inversa na dificuldade da leitura como um paradoxo que se sustente sob pilares de sua própria construção edificada pelo exagero. Nas digressões metamorfoseadas, os versos desaparecem como meras palavras e se obstinam em apresentarem-se como transmutador de imagens e sinais. A melhor maneira de enveredar-se nesse emaranhado de sonhos é ler com paciência e zelo, cada verso, dando liberdade total ao pensamento insidioso do poeta que estará rastreando suas pegadas, enquanto você leitor, o segue na leitura, ele estará sob seus calcanhares.

Sob meus calcanhares

Sob meus calcanhares,
deixei meu caminho,
sem versos, sozinho.
Triste caminhada,
sem hora marcada,
também sem destino.
Sem ter um cantinho
para minha morada.
À beira da estrada,
uma árvore sem ninho.
Então de mansinho,
deponho a espada.
À sombra da mata,
eu penso um pouquinho.
Bom senso, carinho
e uma folha dobrada,
em branco, sem nada.
Eu risco um versinho
e o vento me agrada.
Em vários lugares,
pus meus calcanhares
e Sob meus calcanhares,
alguma poesia
que fiz na jornada.
Anciã

Sob meus pés,
há marcas,
pegadas que me levam
ao futuro,
ao pé do muro
de uma casa
(Uma construção tão antiga
quanto meus ossos).
Quantos séculos se passaram.
Sou, agora,
apenas uma criança,
uma lembrança deixada
aos pósteros.
Essa lembrança
tem os meus traços.
Volta ao passado
na emoção de outrora,
num amor proibido,
numa história
triste
de uma menina
que caminha
de mãos dadas com uma anciã
silenciosa.
Descoberta

Não há ninguém em casa,
e a porta escancarada
me convida a entrar.
Meus passos são suaves
como o perfume que exala, o ambiente.
Meu coração descrente,
ainda procura
por vestígios dos que moram ali.
Quem sabe antes de partir
deixei alguém à espera.
Seria ela
no quadro pendurado?
Olhos que me deixam encantado,
Parecem-me descobrir.
Tento sair dali,
para fugir das lembranças
que me vêm ao pensamento.
Nesse exato momento,
não encontro minha face no espelho.
Então, eu sinto medo
ao descobrir que ainda existo.



Jóia

O céu não me diria nada,
se não fossem as estrelas
a brilharem à noite
fazendo-me lembrar de seus olhos.

Ao caminhar nessa estrada,
a lua paira
sobre minha cabeça
que não tem mais certeza
se essa tristeza
vai passar.

Onde posso encontrar
jóia tão rara,
pelo amor lapidada.

Sinto o vento tocar
na minha cara
num ato de carinho,
encurtando o caminho
e a caminhada.




Escolha II

Estou sentindo saudade
agora mesmo,
minha doce amada.
Risco seu nome a esmo
nessa folha arrancada
pela mão do desamparo,
sem conseguir sanar
a dor de quem só quer voltar
para seus abraços
e para seus beijos.

Meu pensamento voa
num lampejo,
iluminando algo que não vejo
mas me acoita,
esse amor
que foi a minha escolha,
que é o meu desejo.

E não importa se são palavras tolas,
sem senso do truanesco;
por serem belas e verdadeiras,
a minha única maneira
de me sentir inteiro.
Turgescência

Eu sinto os teus cabelos
entre meus dedos,
teus lábios comprimidos
ao meu desejo,
o arfar de teu cansaço
entre meus braços
e ouço teus gemidos.

Vejo teus olhos tolhidos
fitar meu medo
de não tê-la satisfeito ainda.
Tenho todos os sentidos
na extensão do meu leito.
E no auge da turgescência,
me torno uma larva imersa
em teus fluidos.








Armadilha

Tua atitude e compromisso
já não são mais submissos,
é o teu caráter.

És a mais frondosa árvore,
que florida,
num impulso
brota a vida
quando a semente se abre.

Percebes cada detalhe
e me guia
para tua armadilha.

Numa rede de abraços,
a mais remota saída
é a espera e o cansaço.







Soneto da admonição

Não me sinto maior que ninguém.
Meu tamanho é o meu coração.
Eu demonstro que gosto de alguém
pelo afago da mão.

Nas palavras eu posso ir além,
muito além, da imaginação.
Ponho nelas a carga que tem,
toda minha emoção.

Um amigo, uma vez, assevera
que meus versos dispersos, na certa,
não revelam a minha expressão.

A resposta foi imediata:
Poeta não tem cara.
Poeta só tem coração.

                         





Muito mais

Deixei para trás,
muito mais
do que poderia,
as noites,
os dias,
a companhia,
um bem.

Deixei para trás,
um alguém
que eu ainda queria.

Quem ela seria?

Seria mais fácil
virar a ampulheta,
voltar ao passado,
àquele recado
deixado ao acaso
sobre a escrivaninha.




Deixei-a sozinha
enquanto fazia
o jantar.
Tentei encontrar
dentre a poesia,
o amor que perdia,
um bem,
a companhia,
os dias,
as noites,
muito mais
do que poderia
deixar para trás.














O troco

Eu tenho um pouco
do pedinte rouco
por rogar ao outro
que lhe dê um troco,
para agradecer.

Eu tenho um pouco
do menino morto
por roubar o troco
de um homem louco,
por não entender.

Eu tenho um pouco
do velhinho torto
que sofreu um soco
por não dá o troco
contra o seu querer.

Eu tenho um pouco
do estranho moço
que caiu no poço
pra pegar o troco
pra se entorpecer.

Eu tenho um pouco
do cidadão tolo
que arranca toco
e recebe um troco
pra sobreviver.

E tem um pouco
de mim
em você.


















Emocional

Essa minha pressa
de morrer em vão,
essa minha reza
pedindo perdão,
mostra que não prezo
a minha razão,
mostra que ainda presto
muita atenção
ao que diz em verso
o meu coração.
E assim desprezo
a racional compreensão
do mundo que me cerca.











Sem saber o que fazer

Fui o filho rejeitado,
o irmão que não cabia nas conversas.
Fui um anjo entre as feras,
o marido abandonado.
Como pai, fui enganado
pelas filhas que me dera
um amigo
desprezível
quanto elas.

Meus direitos
foram todos violados.
Meus deveres
recobrados.
Minha paz, ali jazia.
Tudo que eu possuía
foi roubado.
De minha casa,
despejado.
Do emprego,
eu saía.



Quando tudo parecia
acabado,
as pessoas ao meu lado,
me diziam para erguer
os meu ombros e ir em frente.
Eu a olhar aquela gente,
sem saber o que fazer.




















A espada

Quando a vejo,
o meu coração desfecha
numa estonteante velocidade
tal qual cavalo em disparada.
A minha boca, então, se cala
diante da minha idade.
A minha imaginação
dá-me asas
e lentamente ela caminha
com a minha alma
que nesse instante
é comparada
com as estrelas espalhadas
no céu escuro que não demarca
o horizonte.
Eu sou um cavaleiro errante
que corre estrada.
Ela, a princesa enclausurada.
Um coração dilacerado
e trespassado
por minha espada
que é feita de amor e ódio.
O amor que a salva.
O ódio que mata.
Estarrecido

Acredito no infinito,
sendo obra
de um deus em mim vencido
que frustrado com a derrota
se enforca
com a corda do castigo.
Morre Deus.
Fico eu,
estarrecido.















Migalhas

Não importa se foi Deus
ou apenas o acaso
que plantou
tamanho amor
no coração.
Não importa se é verdade
ou apenas ilusão,
essa sublime viagem
pelas curvas da emoção.
Não importa,
nunca,
não,
se meus versos convertidos
são migalhas de um antigo
Capelão.

               







Último recado

Que planeta é esse
no qual eu perco a vida?
Em uma cripta egípcia,
meu corpo não apodrece.
O mundo não esquece
minha filosofia
que na escola grega aparece.
Meu nome de batismo
não me leva ao Coliseu.
Gladiador romano
que na guerra morreu.
Nas telas do Cubismo,
um significado.
Nas páginas de um livro,
meu último recado.









Ensino

Ensino,
sino,
um badalar constante de idéias.
E sobre elas,
ecoa o sino:
Ensino,
sino...
Ensino,
sino...
Ensino
sino...













Fuligem

Sob o céu que não se abre,
a minha pele arde.
Uma fina chuva abre
o meu guarda-chuva.
Eu sou parte dessa indústria,
essa triste imagem
de uma vítima que tem culpa.
Volto ao céu depois da chuva.
A fumaça me impede
de enxergar o sol que abusa
e aquece a minha pele
ainda suja
de fuligem.











Quatorze de Março

O dia de hoje,
seria
um dia qualquer,
não fosse o que é,
o da poesia.
Nem onze, nem doze,
o dia de hoje
é dia quatorze.
São quatorze dias.
O mês, qual seria?
Seria do abraço,
do fim do mormaço,
de março,
quem diria.
Como todo dia
é de poesia,
o dia de hoje
é um dia qualquer,
de João, de José,
também de Maria.
O dia de hoje
não é só de dia,
é noite
escura e fria,
na companhia da poesia
que hoje,
quatorze de março,
é aquilo que eu faço,
não só hoje,
mas todo dia.





















Regras

A tua calma
me impõe silêncio e medo.
O teu desprezo
é cominado à minha alma.
O jogo pára
por ter cometido um erro.
Velhos conceitos.
Novas jogadas.

Não quero mais violar
as tuas regras.
Serei a elas
tão fiel quanto ao alfobre.
Um xeque-mate
de rainha,
a um rei pobre.








Amabília

Uma amável senhora, Amabília.
Apesar da idade e da fadiga,
não tem dia, nem hora.
Seu dispor ao trabalho, sua história.
Sua frágil saúde, sua melancolia.
Eu a vi numa lambreta outro dia,
tão pequena e esguia,
que nem mesmo notara
o cansaço que ela carregava
de um dia de lida.
Amabília vende batas, não botas.
Mesmo assim,
um ou outro passa-lhe a perna.
Amabília é a esperança viva
de que a idade
não fecha a nossa porta.
Mocidade,
a pergunta perdida.
A velhice,
a única resposta.




O ramo

Onde está minha alma,
que não encontro?
Onde está meu encanto,
minha calma?
São perguntas que faço,
ainda em pranto,
ao meu eu freudiano
que me cala.
Onde está este anjo
que me fala?
Um quebranto
que minha mãe me pôs.
Ouço a antiga canção
que ela compôs
em minha rede embalada.
Vejo um ramo na árvore desfolhada,
resistir ao vento,
envergado.
Nesse instante me sinto
envergonhado
pelo meu triste pranto.
Minhas lágrimas
são simplesmente água
que faz falta ao ramo.
Soneto ao espelho

Confirma meu desleixo
cofiar a minha barba
que ao meu rosto amarga
por esconder meu queixo.

No espelho em que me vejo,
a minha dor ressalta
a sombra de minha alma
que eu mesmo não a creio.

Mesmo assim, permeio
à procura de uma alma,
o meu intricado seio.

Minha voz, ali, se cala.
O silêncio em mim reinava.
Sou a imagem no espelho.







Da rua

Abre-se a flor,
com ela o dia.
Na sincronia de um beija-flor,
o colorido e a harmonia.
Como seria o mundo sem cor?

Abre à janela, a moça bela.
Cabelos soltos ao invasor,
que é o vento.
Traz para dentro,
cheiro e frescor.

Tirar ou por,
atos da vida.
Sombra, comida, água e calor.
Sou o que sou,
alma perdida
que se abriga seja onde for.

Olho da rua, o mundo à volta.
Sou na pintura, natura morta.
Triste criatura que não se importa
de que altura,
à rua, olha.
Jogatina

Na mesa, viro o jogo
entre cartas do mesmo naipe.
Outras vezes, perco o troco.
Mas nunca, a vontade.

Não importa a idade,
nem o tanto que vivi.
As cartas não vêm marcadas.
Não há como ser feliz.

O jogo é vicio, é angústia
em corações, reis e damas.
Na fraqueza, se insinua
como uma virgem nua
numa cama.

Entre meus dedos,
as cartas levam-me ao fundo do poço.
A jogatina
arrasta-me à ilusão do que ouço:
“Desta vez,
tenho certeza,
usando minha esperteza
vou ganhar”.
O pintor

Não há tinta em minhas mãos,
não há telas.
Não passa de invenção,
a embarcação
e as velas.

Não há mar e nem gaivotas,
nem mesmo uma pequena ilha.
Não há pessoas nas portas.
Não há vila.

Porém na imaginação,
de um borrão faço uma ilha.
Ponho água, céu e chão.
Crio a mais bela vila.

Ponho pessoas nas portas,
outras correndo pro mar.
Ponho um barco, rumo a terra,
velas e o vento a soprar.




Ponho alguém a escutar,
o barulho das gaivotas,
a onda que vai e volta,
e o canto de Iemanjá.

Ponho um sol já a se pôr
no entardecer do dia.
Ponho cor e harmonia,
como poria o pintor
em seu quadro de valor,
a mais bela poesia.
















O tempo passa

Se estou em casa,
o tempo passa.
Se saio à rua,
o tempo passa.
Passa o sol.
Passa a lua.
O tempo passa
e continua.

Eu vejo o mundo
tão sem graça.
A realidade nua e crua.
O tempo passa,
a vida passa,
e o dia-a-dia continua.

Eu vejo um folião na quarta,
tirar a máscara e as luvas.
O tempo passa.
A festa passa.
Só a tristeza continua.



O tempo passa
e a minha cara
se enruga.
Eu continuo a não ver graça,
se estou em casa
ou saio à rua.


























O casal

Uma vela solitária no candelabro.
Logo abaixo,
na parede, uma assinatura.
Eis a incrível pintura.
Óleo sobre carvalho.
Mãos unidas no retrato.
Uma laranja na janela.
Sapatos postos de lado.
Verde é o vestido dela.
Um toque leve na tela,
é o cão nela pintado.
Num espelho estilizado,
vê-se o inverso do cenário.
Ele em traje recatado.
Luz discreta
pela janela.



          







Vanitas

O crânio exposto à luz amarela,
me observa
com seus dentes à amostra.
Eis a natureza-morta.
A flauta e a charamela
são os símbolos do amor.
A jarra mantém oculta
a face de um imperador.
A concha vazia
no canto da mesa,
dá-me a certeza
que assim é a vida.
A lâmpada recém apagada,
deixa um fio de fumaça
chamar a minha atenção.
Nos livros a erudição.
No relógio a visão
de que o tempo é limitado.
Vejo no espantoso quadro,
uma bela criação.


                    



Duvidar

Duvidar de mim mesmo.
Duvidar se é erro,
esse meu duvidar.
Duvidar de minha dúvida,
de minha sanidade,
da verdade
e da culpa.
Sempre duvidar.
Onde devo pisar?
No que acreditar?
E em quem confiar?
Tudo pode ser engano.
Duvidar se ainda amo,
se ainda quero amar.
Duvidar.
Duvidar.
Duvidar de mim mesmo.
Duvidar se é erro
esse meu duvidar.




O quarto

A tinta grossa, na pintura, aplicada,
deixa visível cada pincelada
do renomado autor.
Arbitra a cor
para expressar mais força.
A bela moça
ao lado do auto-retrato
na parede, pendurado,
é a irmã do pintor.
Uma única janela,
mesmo entreaberta,
não se vê o exterior.
Na cama, dois travesseiros;
nas duas cadeiras,
duas jarras sobre a mesa,
demonstrava, com certeza,
seu anseio.
No quadro “O quarto”,
o descanso habitava;
como disse em uma carta ao irmão.
Em sua mão,
além do pincel, a vida.
Essa tela colorida
é a terceira versão.
São

Um subterfúgio
para evitar má criação.
Talvez em vão,
tenha sido minha última prece.
Da razão esqueço.
Por amor padeço,
acreditando que ainda sou são.
Tenho a ilusão
de que à noite, deito;
de que adormeço
e sonho com a razão.
Sei o meu nome
e me reconheço.
No espelho,
sou um homem são.
Acordo louco,
a dizer que não.







Tanto faz

Tanto faz,
fazer verso à mão,
soldar um portão,
construir andares,
limpar calcanhares,
passar a lição.

Tanto faz,
lutar pela paz,
cair para trás
de bêbado,
viver sem emprego,
ser um pistoleiro
ou um traficante,
um burro falante
ou um orador.

Tanto faz,
ser um locutor,
um estrategista,
piloto na pista,
gari, camelô,
um grande doutor,
um analfabeto,
um homem honrado,
ou ser desonesto.

Tanto faz,
o mundo é incerto,
a vida quer mais.
Se é errado ou se é certo,
se é muito ou se é pouco,
se é são ou se é louco,
se é rico ou se é pobre,
se é velho,
se é jovem,
tanto faz.

Somos pobres mortais.












O escorpião de ferro

Numa noite sombria,
com a praia vazia,
Um barulho calava o mar.
Eu corri para lá.
De repente, o que vejo:
Um escorpião amarelo
com seus olhos acesos.
Um gigante de ferro
vai movendo a areia,
desfazendo castelos
de pequenos insetos
que se deixam levar.
É estranho o lugar
que parece bizarro.
Mais um coqueiro abaixo
e nativos a olhar;
entre eles está
um poeta espantado,
sente os pés se movendo
com a terra tremendo
pela esteira de ferro
que faz o escorpião amarelo
caminhar.

Uma força estupenda.
O que o homem inventa
tende a tudo,
acabar.























O poeta está de volta

Passei alguns dias
longe de mim,
longe de minhas poesias.

Como uma flor que volta
ao jardim
nas mãos de uma bela senhora,
estou de volta.

O poeta que agora,
descreve o fim
de um dia,
de um mês,
dessa vida,
talvez.

O fim do João.
Do poeta, não.
Poeta é começo,
é meio, é inteiro,
porém não tem fim.



Uma história do mar

As ondas do mar
vêm me encontrar,
dizer onde está
o meu grande amor
que um dia partiu
num barco, a chorar.

Eu fico aqui,
sempre a esperar
que um dia ela volte
num barco, a sorrir.

Cansei de iludir
o meu coração.
Atiro no mar,
minha devoção.

Nadei sem parar
até vê-la surgir
nas ondas do mar,
num barco, a sorrir.
O meu grande amor,
vendo-me partir,
joga-se nas ondas
para me acudir.

O mar em traição,
afasta o barco.
Nós dois num abraço
de extrema união.

As ondas em vão,
tentam nos salvar.
Arrastam dois corpos
à beira do mar.
















Avareza

Afugento os abutres que me cercam;
entre eles os maiores inimigos.
O meu corpo enrugado e cadavérico,
nem a mão da natureza
moldaria tal castigo.
Isso é obra da extrema avareza
que eu mesmo fiz comigo.
Hoje pobre, bêbado e louco.
Nada é pouco
para um tolo sem juízo.
Um homem rico
sobre a miséria dos outros.
Um pai sem rosto
que a prole desconhece
e se contamina com a peste
de herdada ambição.
Já no chão,
levanto a mão,
peço, rouco e arrependido,
perdão.


                         

A jangada

A vela enfunada pelo vento,
e todo o seu talento
na pintura da jangada.
As nuvens,
tempestade anunciada.
A luz,
esperança simbolizada.
As expressões
ante o remoto salvamento,
o desespero e o dramático movimento
das figuras retratadas,
compõem a poética verdade
de um fascinante casamento
entre arte e realidade.










Poderia

Eu poderia tentar,
sem jamais conseguir
esquecer o seu olhar,
esquecer o seu sorrir.

Eu poderia morrer
aqui,
sabendo que você
poderia me esquecer.

Tão fácil é querer;
tão difícil esquecer
você.
Você que tão fácil,
me diz:
Serás mais feliz
sem mim.

Minha flor,
sou o seu jardim.
Sou árvore,
não posso, enfim,
existir sem uma raiz.

Você,
outra vez me diz:
serás sem mim,
mais feliz.


          




















Fiúza

Irromper na vida
sobre a própria musculatura
e abdicar do grito
de Deus,
e também dos homens.
Ser um primata
distante da mata
e talvez da cidade.
Camelo sem deserto,
incerto,
para onde ir.
Acreditar que a humanidade
se foi
e depois
o que será de mim?
No fim,
tudo não passa de acreditar.







Opinião II

Luto pela minha opinião.
Digo sim.
Digo não.
O suspeito,
tem peito
para o juiz,
não importa o que ele diz.
Não há senhor,
apenas um pendor
a badalar meu coração.
Qual a razão de estar aqui?
Não quero mais ouvir
a minha própria opinião.
O berço,
talvez não tenha percebido,
já não me cabe.
Ache
uma abertura para minha altura.
Não inclua
sua vasta opinião
(O que menos importa)
ao menino que chora atrás da porta,
é a sua razão.

Emancipação

A mão sobressai à cabeça,
num aceno de adeus.
Filho meu,
que à distância, obedeça.
Em meus olhos tristeza.
Em meu coração a certeza
de que agora cresceu.

“Esse mundo é seu”;
foram minhas palavras.
Se você me entendeu,
faça dele sua casa.
O respeito, a limpeza
e verás a beleza
da mais doce morada.

Sempre será ouvido,
se no tempo devido,
souber escutar.
Também saiba calar.
Deixe sim, fatigar
as suas retinas.
Nunca feche as cortinas.
Não evite olhar
as mazelas do mundo.

De um esgoto imundo,
você pode tirar
a mais pura lição:
Que o amor e a razão,
mesmo à contra-mão,
tomam o mesmo rumo.
Seu esboço de mundo.
Sua emancipação.

















O lobo e a águia

As janelas se abrem;
voam pássaros
pelo brusco movimento.
O mais frio vento
e o mais carnudo lábio;
a meiguice no olhar;
uma deusa a chegar
num terreno escarpado.
Sou um lobo isolado
pela angústia que há.
Minha fúria se aplaca
ante a deusa dourada.
Uma imagem adorada
que eu tento alcançar.
Tomo a forma humana.
A magia me engana.
Vejo a deusa cigana,
como águia,
voar.





O menino Brasil

Brasil foi assassinado
por homens armados.
O Brasil da favela,
na chacina moderna,
foi executado.
Os bandidos estão na caserna,
criminosos fardados.
O menino Brasil foi tirado
dos entes queridos,
que ainda podem,
de olhos fechados,
escutar os estampidos.
Brasil,
tem sangue jorrado
no solo querido.
A justiça,
os olhos vendados
para não vê-lo
ferido.





Flores contra o vento

Eu queria ter
todo o seu querer,
seu prazer imenso.
Flores contra o vento,
cheiro de viver.

Eu queria ser
fiel ao extremo.
Ver você por dentro,
tal como me vê.

Seu sexto sentido.
Seu amor provido
nunca está perdido
sem saber por quê.

Dar, sem receber.
Perder-se na troca.
Nunca pedir volta
e surpreender.




Ser intenso e vivo
como você é,
e quando ferido
manter-se de pé.

Quem me dera, enfim,
ser ao menos metade
da perfeita imagem
que você faz de mim.


















Entrega

Sonho estranho,
dentro de uma realidade.
Mesmo sem a mocidade
de antanho,
sinto-me revigorado.

Pelo desejo de um beijo,
pelo cheiro de jardim,
quero vê-la por inteiro,
quero tê-la junto à mim.

Apesar do obstáculo,
o acaso é que nos leva.
Hoje, em lados separados.
Amanhã, quem sabe, entrega.









Amanhã é um dia esperado

Amanhã é um dia esperado
que pode ser como todos os outros.
A rotina da casa e do trabalho
ou os fatos mais diversos e loucos.

Diante de um pequeno ato falho,
tudo pode se tornar diferente.
Eu posso me tornar um homem ausente,
ou um inocente condenado.

Adormecer um cidadão pacato.
Um violento sanguinário, acordar.
Amanhã é um dia esperado,
se o acaso não o mudar.

Ser um bom pai, um bom marido
ou um solitário bêbado, esquecido.
Se amanhã, eu não for lembrado,
serei mais um indigente atropelado.

Amanhã é um dia esperado,
se não houver uma fatalidade
que me faça chorar de saudade
de meus dias já passados.
Amanhã é um dia esperado,
onde o mundo pode ou não ser o mesmo.
Serei eu, apenas um retrato
ou ainda uma imagem no espelho.

Estarei em casa, bem sentado
ou irei embora sem destino.
Amanhã é um dia esperado.
Estarei acompanhado ou sozinho.

Amanhã é um dia esperado.
Sairei para caminhar, bem cedo,
se acaso não ficar aleijado,
chorando de dor e desespero.

Amanhã é um dia esperado,
no qual honrarei meus compromissos.
Serei eu, um homem respeitado
ou apenas motivo para risos.

Tudo pode ser diferente,
por ser amanhã um dia esperado.
Alguém me desejar ardentemente;
um outro, me ver desfigurado.



Amanhã é um dia esperado,
com ou sem os mesmos pensamentos.
Eu terei os mesmos cuidados
ou ficarei à mercê dos acontecimentos.

Mais um dia como tantos nesses anos,
amanhã é um dia esperado.
Quantos erros, acertos e enganos.
Não há certeza se estarei preparado.

Amanhã é um dia esperado
onde o inesperado pode acontecer.















Existência vaga

Todo dia
eu espero enlouquecer.
Fecho os olhos
e apenas adormeço.
Se desperto,
não consigo esquecer
esse eterno
pesadelo.
Tão real,
que acredito ser verdade.
Na verdade
é apenas devaneio.












Desapego

O meu amor em fúria
tornou-se brando,
somente quando
implodi em agonia.
Tento beber tuas lágrimas,
em mim vazias,
que enchem meu silêncio.

Em meio à sala,
quando nos amamos,
o mundo se exorciza
e tua alma,
calma,
com o tempo
traduz o que dissemos.

A minha solidão,
em teu querer germina.
Arrastando em meses,
aquele dia.
Enquanto teu encanto
em mim termina,
pelo que eu não sentia.

Estátua

A rua
vai tornando-se deserta;
na certa,
todos adentram em suas casas.
Minha morada é uma delas.
Aquela
que tem a mais triste calçada.
Descalça,
passa uma bela donzela,
pára
e torna-se estátua.













Invasão urbana

À distância
da estradinha de terra,
vejo plantas,
telhados e tijolos entre elas;
uma invasão urbana.
Vejo tantas
casinhas amarelas,
que se aproximam com o tempo.
Sinto o vento
batendo na janela.
Antevejo
o futuro que espera.
Deslizando, entre faixas amarelas,
vejo prédios
(Condomínios isolados).
Entre torres de concreto,
vejo asfalto;
mais distante,
vejo o morro e a favela.
E das plantas,
o que resta?
A memória do primeiro contato.


O que importa

Não importam,
as palavras que disseram,
nem o eloqüente orador.
O que importa
é se elas o fizeram
acreditar no amor.

Não importa
qual o nome do mártir,
nem o ideal que defendeu.
O que importa
é que por sua parte,
ele jamais se arrependeu.

Não importa
qual a divindade cultuada,
nem seu veemente defensor.
O que importa
é a fé creditada
e o verdadeiro amor.




Não importa
o tamanho da morada,
nem o luxuoso cobertor.
O que importa
é que a choupana de palha
seja o abrigo que sonhou.

Não importa
este poema ou o poeta.
O que importa
é se no leitor, desperta,
a decência e o amor.















Uma noite na praia

Água prateada,
em minha direção.
Lua que ilumina
a imensa escuridão.

Permaneço alheio,
água que traduz.
A cada passo, leio
o que escreve a luz.

Lua, de tão bela e cheia,
à onda clareia
dando um tom de prata.

Mais uma noite na praia.
Marcas na areia,
sombra, lua e água.







Eterna lua cheia

Há muitos, tal como eu,
que não conseguem se achar,
que passam a vida a olhar
um mundo que não é seu.

Breve como um adeus
é a vida nesse mundo
que jamais seria o meu,
posto o meu ser mais profundo.

A poesia em meu mundo
é luz que não encandeia,
que o ilumina a fundo.

Essa luz enfim clareia,
toda noite, o meu mundo,
numa eterna lua cheia.







Instinto

Por que nós somos iguais?
Por que somos tão leais
ao nosso instinto predador?

Temos uma fome voraz.
Nossa alma pede paz.
Nosso instinto pede dor.

Queremos que nossa presa,
nosso instinto assim deseja,
seja cobaia de amor.

De apetite insaciável,
somos fera indomável
e agimos sem pudor.









Encontro II

Jamais pensou
que eu pudesse lhe esperar.
Amor,
você também pode chorar.

O que a fez voltar,
senão o coração?

Em minha solidão
podia imaginar
que na velha estação
brotava uma flor,
a qual eu recolhia com pudor,
a entregava por um beijo seu.

Amor, hoje sou eu
que deixa de sonhar
por ver você voltar
com outro alguém.

Porém,
não poderia eu viver
sabendo que você
é infeliz.
O seu olhar me diz
que apesar do tempo,
me tem no pensamento
e talvez,
desfaça a insensatez
que cometeu.
Assim,
você e eu
vamos enfim,
nos encontrar.

















Imensidão

Minha voz ecoa
na imensidão.
Uma ave voa,
uma companhia
nesta solidão.
Eu estava à toa
e voei também.
Eu e mais ninguém.
O céu me habita
e a ave bica
o meu coração,
trazendo ao chão
o meu pensamento
que através do vento
pede compaixão.
Entre a dureza da realidade
e a liberdade da imensidão,
minha alma chora.
Pouso e vou embora,
volto à razão.




Desumano

Meu erro
é apenas um engano.
Sinto tanto
pelo ato cometido.
Se é comigo,
sinto muito.

Se é você,
ficaria estarrecido.
Como pode cometer tamanho erro?
Que desprezo
acreditar que foi engano.
Sente tanto;
isso é falta de capricho.
Não perdôo
sua falta,
é desumano.







Profano

Na minha dor,
profano o seu amor
pelo amargo gole
no cálice do silêncio.
Um intenso golpe,
um profundo corte
que atinge minha alma
e tinge minha face,
de sangue.
Não importa o seu nome,
nem importa quem me fez.
Talvez,
eu não suporte
olhar de frente, a morte,
sem vê-lo outra vez.









Ao espelho

Por que você chora?
Porque estás triste.
Posso saber por quê?
Um porquê, não existe.

Por que não cai fora?
Porque sou tua imagem.
Devo assim, ir embora?
Se for tua vontade?!

Por que continua aí?
Porque não me deixas sair.
Se meus olhos, eu fechar?
Não verás, mas estarei aqui.

Se eu quebrar o espelho?
Verás sempre a ti mesmo.
E se acaso eu sair?
Deixarei de existir.





Felonia

Acabei tecendo teias
que me enclausuraram
numa vaga entre o telhado
e o velho piso.
Acabei achando graça
em meu próprio riso.
Entre lágrimas derramadas,
meu soluço abafava
o meu próprio grito.
Enterraram com meus ossos,
minha doce pátria,
os meus bons amigos.












Poema mal ditado

Não quero reencontrar a minha mocidade,
posto ser em minha idade,
um velho perdido.
Sou um tanto esquisito
ante as amizades.
Poucas são as qualidades
de um homem ferido.

Fui demente, eloqüente,
cantador de coco.
Fui caboclo ribeirinho
que remava só.
Fui um anjo deportado pela mão do credo,
que nas portas do inferno
não sentia dó.

Aceito o dia de hoje
como um presente
que o tempo iminente
fez-me obedecer.
Desejo que o meu cérebro
seja conservado
em poemas mal ditados
que ninguém quer ler.
Putrefação

De amor não sofro nada
e se nada sofro,
morro.

De joelhos,
jurei amor eterno.
Do inferno,
as chamas apaguei.
Meu pecado,
os lábios devassados
que um dia beijei.

O meu paganismo
foi o sacrifício
de minha alma
que entregue à carne
não se conservou
e ficou tão podre
que já não mais pode
com o meu amor.




Sobressalto

Estou deitado
sobre o meu próprio cadáver
e peço luz.
Raios de sol
que encobrem o meu lençol,
saio da cruz.
Sangue!
Gritam meu nome.
É apenas suor.
Minha mãe me acorda.
Estou tão só;
um guri desamparado.
Eu fecho a porta.
O outro mundo não importa,
volto a dormir.









Farsa

Eu poderia usar
belas palavras,
para falar de caminho
e de poder.
Eu poderia romper
em gargalhadas,
a cerimônia
d’aquele que não crê.
Eu poderia chorar,
e entre lágrimas
pedir perdão pela farsa
de um cristão que acaba
de morrer.











Existência

Sou brisa,um leve perfume.
Sou o vigor, sou o lume.
Sou na verdade,
minha vontade de ser.

Sou o seu berço,
bebê.
Seu acalanto, seu terço,
seu choro brando,
começo
de um viver.

Sou os seus passos,
abraços,
seu banho mais demorado,
sua razão,
seu querer.

Sou a paixão,
o ciúme,
uma rotina,
o costume
de querer ter.

Um tempo só,
esse nó
na sua garganta.
Já fui a sua criança.
Hoje, o adulto em você.

Eu sou o fim
de mim mesmo.
Fui seu primeiro brinquedo,
sua primeira lição.

Sou resto, sou solidão,
sou uma velha oração.
O corpo preso ao caixão,
não posso ser.












Carne e verbo

Meu corpo não escuta
metade do que diz
minh’alma.
Minha calma
é a disputa
entre o coração e a cuca,
para me fazer feliz.
Minha alma desaprova
ao que o corpo pede bis.
Dessa forma,
o meu eu é consciente
que minh’alma inconsciente
acredita ser eterna.
O meu corpo cai por terra,
uma chama em mim, se apaga.
Minha alma enfim se cala.
Fui apenas carne e verbo
condenados ao inferno
de uma vida limitada.





Descontente

Não me contentei
em direcionar palavras,
em exorcizar fantasmas
em noites que sonhei
que era um sábio eloqüente,
um clérigo descrente
entre o amor e a lei.

Não me contentei
em interromper conversas,
em singrar em caravelas
no mar que inventei,
onde o tempo era pouco,
eu era um capitão mouro
na procela que enfrentei.

Não me contentei
em ter que me calar,
em ter que sepultar
palavras que pensei.
Mesmo sendo tristes versos
em minhas mãos, dispersos,
eu não me contentei.

Engano II

Acreditei que era humano.
Humano!
Onde anda minha humanidade?
Acreditei no amor.
Engano!
Amar é apenas vaidade.
Acreditei que havia santo,
no entanto,
a fé não é realidade.
Acreditar é um erro
e tanto.
Eu descobri que a verdade
é acreditar no próprio engano.











Triste poesia

Filho!
Sua vida
começou com uma história de amor.
Sua mãe, bela barriga.
E um dia
o bebê chegou.
Eis o que teu pai deseja:
que amanhã, com certeza,
seja um belo rapaz.
E um dia,
Um bom homem
que verá sua família
com orgulho e amor.
Haverá muita alegria
quando um dia,
for avô.
Pôr o seu neto no colo
e entre lágrimas repetir
esta triste poesia
com a qual o fiz dormir.




Presente

Quando chega a noite,
chega também o cansaço.
Banho demorado.
Uma cama quente.
Corpo perfumado.
Um jeito engraçado
de dizer
presente.
















Quadro inteiro

Acordei você
com um doce beijo.
Guardei seu sobejo
pra beber no fim.
O seu toque em mim,
aumenta o desejo.
No primeiro ensejo,
eu falo de mim.

Finjo ser, sem sê-lo.
Servir, sem um fim.
Somos quadro inteiro,
lua e jardim.











Claustrofobia

Sob a cúpula escura
do imenso céu nublado,
olhando o vasto campo,
ainda me sinto enclausurado.

A angústia me sufoca
entre flores coloridas.
Por pegadas espargidas,
eu me sinto circundado.

Tenho o perfume roubado
de minhas obstruídas narinas.
Na língua, um forte travo.

Por embaçadas retinas
eu vejo o mundo moldado
em uma forma que míngua.







Ambíguo

Há dois em mim,
sou ambíguo.
Um grande amigo
das letras.
Há um leitor esquisito,
um poeta na sarjeta.
Ambos em mim, inimigos
em uma eterna despeita.

Resta ao poeta esquecido,
a tinta de uma caneta.
E ao leitor, eu duvido,
que ainda reste uma letra.











Matilha

Sou lobo perfumado
pelas flores do campo
pelo qual corria.

Meu hálito enjoado
pelo sangue jorrado
da preza que eu trazia.

O bem e o mal, lado a lado.
Filhote alimentado.
Uma mãe em agonia.

Cordeiro arrebatado
para ser despedaçado
no meio da matilha.









Saudade

Escuto, distante, a voz do pensamento;
lembrando o tempo
em que me escondia
por trás dos muros de uma casa vazia.
Velho sobrado.
Amor inocentado
por risos de alegria.

Fomos amigos
e nunca percebemos o que o amor dizia.
Sonhos cativos
de dois adolescentes
que quando descontentes,
ao outro mais queria.

Tornei-me um homem
que como tantos outros se disfarça;
que ama o que tem
e vê que passa
por suas mãos, a vida.

Tarde perdida.
Na multidão percebo os teus olhos
com lágrimas contidas.
E o silêncio
em que se encontra tua alma,
explode o meu peito e delata
meu coração partido.

Tal como as nuvens passam pelo céu,
as mágoas
se desfazem no escarcéu
das lágrimas.

Graças!
Brindamos nosso encontro
entre taças.
O nosso amor foi tanto
que na praça
já não nos caberia
e fomos para aquela mesma casa
que agora não se encontra mais vazia.

Filhos e netos
compõem a melodia.
Somos eternos
em nossa família.
Pensávamos que a vida tinha, enfim,
[nos libertado,
no entanto, era engano.
Os nossos longos anos
foram apenas mais um quadro
emoldurado pela vida.

Ainda sinto em mim
a dor daquela insípida partida.
D’aquele dia até o fim de minha vida
não vou me perdoar por ter ficado.
Agora, sou um lobo solitário
e meu maior pecado
foi sempre acreditar que a teria
pela eternidade,
que a morte, a nós, jamais separaria.
O meu engano, agora, é
saudade.













Charneira mágica

Vejo uma antiga peça recoberta
por um macio e cândido lençol
no canto da sombria sala, onde
não chegam os raios do sol.
Minha mão a mantém descoberta.
Minha imagem não mais se esconde.

Olho pela charneira que mostrava
a farsa de um louco que iludia.
O símbolo maldito, a suástica,
que eliminava um povo que não via
seu berço, seus irmãos e sua pátria,
que era inumado em cova coletiva.

Fecho os olhos, sinto um alento candente
e no meu peito, o coração ardia.
De uma maneira um tanto diferente,
o mesmo burgo agora desfazia
seu ódio por um outro que ainda geme
sob o cajado de uma tirania.




O outro que se adornava de branco,
que sobre a lamúria de suas crianças
perdia a ternura e a esperança,
transforma em terror seu triste pranto.
Acreditando em sua inocência,
explode sua própria consciência.

Sentado ao trono, um insano disfarçado,
dá alento ao lado que tem mais poder;
talvez no objetivo de vencer.
Não importa se culpado ou inocente.
Pregando o amor de um ser onipotente,
se considera, então, inocentado.

Nas portas de um templo apedrejado,
ensangüentada, vejo a fé alheia.
Quando eu a escopo, sua face feia
deixa transparecer o ódio guardado.
A morte anda acalentando a guerra
entre o cristão e o evangelizado.

Escuto dialetos diferentes.
Na tradução o grito é um só:
Matem a todos, mesmo aos inocentes!
Na árvore, tenta desatar o nó,
aquele que na cor da pele morta,
vê o outro que ainda o enxota.
Por trás da imensa nuvem de fumaça,
lobrigo animais em disparada.
Uma floresta imensa destruída
pela ação de crudelíssimo predador
que na conquista, não vê contendor
para debelar a sua investida.

Em nome de uma terra prometida,
dois povos lutam sem necessidade.
Do sangue derramado abrolha a vida
que é assolada na mais tenra idade.
Não há vontade, o ódio é que os guia
pelos caminhos da iniqüidade.

Um povo amordaçado pelo medo;
onde tão cedo, o desejo era casto.
Os olhos repuxados e os segredos,
os filhos que serão sempre contados.
Mais uma triste imagem no espelho,
a prova que ninguém será poupado.

Um sinal fraco, intermitente e inconstante,
vê-se à linha do extremo horizonte.
Seria um navio que estava à deriva
ou uma perdida e pequena ilha
onde roubaram seus soberbos diamantes
e suprimiram todas as vidas?
Bispo uma arma por demais destrutiva,
enquanto um povo morre de torpe fome.
Um paradoxo que não caberia
na letra que inicia o seu próprio nome.
Uma religião que é por demais antiga
que caminha sem saber pra onde.

Aborígines saem de suas terras
e despontam na prosperidade.
Passa, o continente, da vida em cavernas
a morar em prédios da modernidade.
Ritos de uma cultura rica e bela
deixados à vela, sem posteridade.

Fecho os olhos ante a carnificina
de homens que invadem outras terras
que o nativo, a muito, as domina.
Com papéis se tornam donos delas.
Debatendo sobre o sangue, assina
com a madeira fina da floresta.

O mar me aparece numa procela;
são várias naus de um povo que desbrava.
Chegando em uma terra encantada
dizima o outro que habita nela.
O sangue derramado sobre a terra
de uma gente mais civilizada.
Por trás de uma janela vejo uma rua,
por ela uma multidão aclama
um líder em um carro, continua.
Eu vejo na janela uma chama.
A mão de uma dama não segura
a vida de alguém que ela ama.

Eu tenho minha vista ofuscada
(como se o sol caísse sobre a terra),
diviso uma sombra amarela,
uma silhueta disforme e calcinada.
Um homem, uma decisão tomada;
a vida é dizimada sobre a terra.

Distingo em meio uma multidão,
alguém que fala sobre liberdade.
Um tiro alveja o seu coração
e também fere a honra e a verdade.
O espelho fecha-se em escuridão
e eu vibro as pernas como um cobarde.

Laqueio os meus pesarosos olhos
e abaixo o macio lençol branco,
oculto o espelho, com espanto,
que me fazia ver somente ódio.
Saio d’aquela casa meio tonto
e em charneira alguma, jamais me olho.
Maré

Meu desejo tarda
como um gira-sol.

Minhas mãos de prata,
pela lua alta
a se extinguir,
sua luz se apaga
ante o arrebol,
me fazem sorrir.

Meu sorriso é o mesmo
de uma moça amarga
que olha da sacada,
envolta num lençol
tal um caracol
sob a carapaça.

Meu humor se agasta
ante a atonia
do meu dia-a-dia,
é sombrio no ocaso
pelo mesmo acaso
de uma poesia.

Felicitação II

Bato palmas;
a felicito por mais um ano.
A vida é um ramo
que nos desfolha;
mas, revigora
a cada inverno,
deixa o existir, eterno.
Assim, te amo.
















Por encanto

O meu amor é tanto
que eu morreria à toa.
Amor, não faça planos por enquanto.
Perdoa
se eu faço coisas loucas.
Eu beijo outras bocas
por encanto.

Um tímido perfume
com seu suave aroma,
me leva a outra cama
e sem querer
estou em mãos alheias.

Assim o amor semeia
em minha vida,
sementes de meu pranto.
Ao trair por desejo,
eu me espanto
comigo mesmo.

Amor, eu te amo tanto
que morreria à toa.
Por que beijo outras bocas por encanto?
Fumaça

A cada toco enrolado,
nas chamas, o papel se queima.
Mantenho meu nariz tapado
enquanto a inspiração rodeia.

Em meio a fumaça,
meus sonhos são dispersos.
Ficam em versos,
meu riso e minhas lágrimas.

O cheiro continua aceso,
enquanto entre meus dedos,
a minha ilusão se apaga.

São cinzas sem cinzeiro,
tal qual o meu anseio
que pelo ar se espalha.







Descuidado

Ando entre minas pelas calçadas vazias,
pisando sem cuidado
sobre papéis amassados.
Atravesso ruas em horas de extremo [movimento,
alheio, em tristes pensamentos,
sem olhar para os lados.
Carros e transeuntes se digladiam em [extrema desvantagem;
entre eles, eu me arrisco até que chamem [minha atenção,
e quando volto o rosto, em vão,
seria tarde.
Torno-me o copo com água derramado na [tempestade
que assola a cidade,
deixando-a na escuridão.
Em minha mão,
havia um aviso de pare,
que ninguém prestava a mínima atenção.
Enquanto isso, uma ferida se abre
em minha carne
que ainda arde
no chão.




Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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