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  Texto selecionado
Cabaz
com frutos do meu delírio
João Felinto Neto

Resumo:
Assim como um cesto vai se formando na mão do artesão. os versos vão, nos traços do poeta. E quando a poesia está completa, tal qual o cesto, é para outros dedicada. Os frutos do meu delírio oferto a você dentro de um cabaz. Você que quando se alimenta de sonhos se refaz, absorva-os através da leitura de versos na doce loucura de minha poesia. Jamais saberá o paladar desses frutos, sem antes, deles ter provado. É como querer chegar ao futuro sem ter vivido um passado. Desejo que estes frutos a pouco amadurecidos sejam apetecíveis. Agradeço se deles for servido. Bom apetite.

CABAZ

Um cesto envernizado
no qual eu guardo os frutos do meu delírio.
Um livro anunciado
e nunca editado,
intitulado de cabaz.
Um sonho engavetado e esquecido.
A cada dia acrescido de uma página,
uma a uma,
em poemas despertos pela inspiração.
Depois de escritos,
adormecidos no escuro de uma gaveta,
iluminados pela luz da imaginação.
Quem sabe ao amanhecer
possa me surpreender,
e agradar-me o resultado.
As páginas que eram antes separadas,
estejam editadas
em um livro encapado.





AUTO-RETRATO

Sou de nascimento,
humano.
De substância,
eterno.
Na poesia,
anônimo.
No comportar-se,
lépido.
De índole,
excessivo.
De convivência,
sentimental.
Na multidão,
passivo.
No aspecto,
normal.
De opinião,
inverso.
De ambição,
um pouco.
Na devoção,
incrédulo.
No pensamento,
um louco.




GRAMATICAL

Só em letras imprimo minha alma.
Mais do que texto
sou contexto indecifrável.
Meu sinônimo é antônimo de si mesmo.
Um sujeito indefinido
que é objeto de um erro
gramatical.
Entre modos e tempos,
triste verbo
que ecoa na forma nominal.
Orações que são subordinadas
aos meus vícios de linguagem.
Um início em letras ordenadas
e um fim
numa expressão oral.





AFLORA UM POETA

Assim se fez um poeta.
Como talhe na madeira
esculpi minha poesia.
De uma maneira fria
infundi minha alma no papel.
Nas costas de um corcel
cavalguei por entre versos;
muitas vezes sem regresso,
o poema, me tornei.
De um sono despertei
enquanto escrevia,
da caneta então fluía
as idéias que sonhei.
Quem sabe se eu errei?
Foram mais de trinta anos,
foram tantos desenganos
que poeta, me tornei.





ABSTRAÇÃO

Meu paradeiro,
não me pergunte,
é ermo.
Meu erro,
um desengano.
Meu abstrato querer
é verdadeiro.
O meu agora,
é quando.
Por ser em parte,
não sou inteiro.
O meu tinteiro
é preto e branco.
Apenas passo pelo primeiro,
mas sou o último plano.






IMAGINAÇÃO

A metade de mim
é sonho.
Do que sonho,
metade sou.
Eu não sou
metade do sonho
da metade
que não sonhou.





SOU EU

Estou eu no mundo
em um lugar em que ninguém me entende.
Movo os lábios e parece
que ninguém me escuta,
somente um louco que para mim sorri
parece entender o que eu digo.
Ao reconhecer que o único que me entende
é um louco,
aproximo-me um pouco,
maior é meu espanto
ao descobrir que o louco
agora em pranto
sou eu.





VIVO

Viver
é para mim
distanciar-me
dos que são como eu
distantes.
É não procurar ombro.
É simplesmente chorar
por alguns instantes,
por não ficar.
É querer então estar
em mim presente,
para ver em seus olhos
que não estou ausente
da eterna ilusão
de que vivo.
Viver
é para mim,
seu riso.





EU POETA

Eu, poeta, choro agora,
as lágrimas de outrora,
de hoje e de amanhã.

Eu, poeta, sou inteiro.
Sou último e primeiro
em minha poesia vã.

Eu, poeta, sou reverso.
Sou verso do anverso
de ilimitadas versões.

Eu, poeta, sou um homem.
Minhas ambições somem
quando perco as ilusões.

Eu, poeta, não existo.
Sou um ato fictício
de minha própria criação.





INGÊNITO

Seguir os passos
a um lugar perdido na distância;
entrar na dança
de um ritual de acasalamento;
sentir nas mãos
o instintivo dom
que vem de dentro;
ouvir o som
de vozes ecoadas;
e nas entonações
das poesias declamadas,
revelar-se poeta.





DIMENSIONAL

No meu olhar
está o meu desfecho.
Sendo eu meu próprio eixo,
não consigo me deter
no movimento circular
do ser.
Volto a me ver
numa rua sem fim,
numa curva enfim,
volto ao mesmo lugar.
Olho as paredes sólidas,
diviso uma janela,
vejo-me nela
numa visão secular
como figura temporal
traçada no esboço do anormal.
Sou assim,
em mim,
dimensional.





DOR DE CABEÇA

Não consigo decifrar-me no enigma da vida.
Desconheço a mim
no escuro sono inconsciente da noite.
Talvez meus sonhos
tentem revelar-me ao meu próprio eu.
Estou sempre questionando
se são minhas as verdades ou as mentiras.
Descobrir-me
é meu eterno problema,
é minha dor de cabeça.
Serei culpa de um mundo avesso
no qual devemos todos ser direitos.
Posso até estar do lado errado.
Mas qual seria o certo
se errado não houvesse?
Sou uma língua estranha.
Não consigo traduzir-me.





VERSÃO DE MIM

Falo de mim,
ao mesmo tempo
diante de mim,
eu me calo.
Meus olhos me vigiam com vagar,
e devagar,
a divagar sobre um princípio
chego ao meu fim.
Começo a me despir de mim,
sem embaraço,
falando que enfim
eu me pareço
com o que eu mesmo sou,
antagonicamente pessoal.





AMPLIDÃO

Meu rosto já não cabe em minhas mãos
por ser meu pranto
bem maior que minha face.
Eu sou em parte,
parte de mim
que em mim não cabe;
sou amplidão.
Ponho na mão
o mundo que nela não cabe.
Peço perdão
à parte que ainda cabe em mim,
por meu sorriso,
é por saber que nada sabe.





ATRAVÉS DOS OLHOS

Inquieto,
meu pensamento
movimenta-se por trás dos olhos fixos.
Compenetrado,
absorto em uma ampla sala,
guarda minhas recordações.
Volta
no piscar dos olhos castanhos claros
e percebe o mundo à sua volta,
desordenado
pela ordem natural do caos.
E torna-se real
no obscuro mundo das idéias,
a síntese de tudo
que sou.





APELOS

O que desejo,
acaba sempre em lágrimas.
Meus beijos,
em despedida.
Ainda não vejo
para minhas mágoas
uma saída.
Os meus apelos,
que o mundo não saiba.
Nunca deixei de amar
por um só dia.
Já que a voz
no tempo em mim se cala,
que minha dor
não dure a minha vida.





ILUSÃO

Não abdico de quem sou,
não por que sou,
mas por me acostumar a ser.
Esta é a forma que o mundo me ver,
não a maneira de saber quem sou.

Sou por extenso e rubricado.
Sou um grande número cadastrado
em um pequeno pedaço de papel.
Sou uma foto três por quatro
resguardada por um véu
de plástico.

Uma imagem revelada
do negativo de um sobrenome.
Uma figura desbotada
com o passar dos anos.

Sobre as linhas de minhas digitais,
rabisquei demais
meu nome.

Sendo assim,
tornei-me enfim,
a ilusão de acreditar
quem sou.





FRACOS, FORTES E LOUCOS

Os fracos se suportam
por serem fracos,
os fortes se sufocam
tentando superar
uns aos outros,
e os loucos
toleram a ambos.
Pois os loucos sabem
que na solidão
a saudade é companhia lúgubre,
as horas se intensificam,
e os amores se distanciam.
Sou um fraco na dor,
sufocar-me-ia sem amor,
sou um louco.





CORES

Foram pedaços de lápis
que pintaram minha vida.
Em preto,
em branco,
pintaram meu pranto.
Em vermelho,
minha ideologia.
Em verde,
o interesse pelo campo.
Em amarelo,
um sol que brilha.
Em azul,
um mundo em céu
com um arco-íris
de utopia.

Em cores vivas,
em cores mortas,
são minhas dores.

Não há borracha
de tempo
que apague
minhas cores.





EXPOSTO

Eu pedi
que meu sorriso
fosse exposto,
mesmo a contra-gosto,
no caderno de tristeza.

Que servissem à mesa
com o meu cardápio,
mesmo que meu gosto
fosse amargo.

Que meus lábios
fossem lidos
pelos ouvidos
que não me escutam.

E que tudo que pedi
me fosse negado.





IMCOMPREENSÃO

Pensei encontrar uma brecha,
um buraco,
uma fresta
no lençol de estrelas,
e espiar para fora
dessa redoma de cor.
Rasgar o céu
como uma folha de papel
azul.
Rasgar o véu
para ver a forma
de seu corpo nu,
num branco virginal
de flor.
Iluminando caminhos,
hei-me facho de luz.
Na dor,
sacrificar-me-ei por nós.
Suas datas
são minhas lições de casa.
Suas falas
são meus verbos perdidos.
Na ausência do ser,
não sou.





IMPROLÍFICO

Pensei poder me repensar
como pessoa,
pensei à toa,
pois não consigo personificar
meu próprio eu.
Às minhas costas
meu ancestral morreu.
No meu presente,
em mim,
um parente distante
sou eu,
a fechar-se
no livro que nos serve aberto.
Não acrescento às páginas
o que decerto
à posteridade serviria,
limitando o meu mundo
entre paredes vazias
de céu,
de mar,
sem a genética luz
de minha essência vulgar.





REBELDIA

Não quero fazer o sinal da cruz;
não quero luz
para me cegar;
não quero uma outra vida,
quero a minha vida
e a mesma chance de errar;
não quero ver
a terra comer
meus próprios olhos;
não quero ver os meus mortos
entre corpos
decompostos;
não quero sangue nas mãos
e sim nas veias;
não quero ver condenadas
almas alheias;
não quero ser anjo seu;
mesmo sob os grãos
de areia,
quero ser eu.





SERIA

O que seria a vida
que me fez?
Um ponto de luz
num abismo sem fim,
seria o não,
seria o sim,
ou apenas o talvez.
Seria a vida
um colibri
num vôo constante,
parado um instante
em si.
Seria a flor
a se abrir
ao toque do coletor.
Seria a ilusão do amor;
ou ser,
seria um verbo sem cor
para definir
a matiz do existir.





LONGEVO

Essas marcas do tempo
no meu rosto
me revelam
que já vivi demais.
Aliás,
quanto mais será preciso
se estou na idade
de meus pais.
As perguntas
que fiz em minha vida,
sem respostas
ficaram para trás.
Não encontro um porta de saída,
se não saio
me prendo por demais,
e atado à vida
sem sentido,
sem saber que eu vivo,
vivo mais.





SENILIDADE

Um caminho que andei sozinho,
não é mais caminho,
é a minha estrada.
Essa estrada me trouxe tão longe,
deixou-me na porta de minha morada.
Namorada que deixei chorando,
encontrei sorrindo na porta de casa.
Voltei-me para ver de onde vim,
de onde vim não tem mais importância.
Não tenho lembrança
de quem sou, de quem fui.
Eu não sei se vale mesmo a pena,
nessa grande arena,
ser um vencedor.





PASSAGEM

As minhas míseras atitudes
são virtudes
no cotidiano alheio.
O reflexo no espelho,
de meus vícios,
é meu cotidiano.
Vivo o limite desse pesadelo
em meus medos;
o resumo do que sou,
em meus anos.
É minha vida,
uma rápida passagem
a lugar nenhum.





LIAME

Sou livro
intitulado.
Um desabafo.
Sou todo
em parte.
Um lacre violado.
Sou tudo
num nada
dissipado.

És flor
dissecada
na mão aberta
em palma.
És colo e calma
na casa onde cresci;
moeda encontrada
que perdi;
o berço
em que nasceu
minhalma.





O CHÁ

Estou ficando só,
e mais gente me cerca,
na certa
já fiquei para trás.
Eu quero paz,
não quero a porta aberta,
não quero festa
por viver demais.
A última notícia
desespera,
eu serei ela,
não pude escolher.
Fiquei na solidão
e na espera,
apenas o chá na xícara
continua a me acolher.





O QUE DEVEMOS FAZER

Se ainda estou triste,
talvez seja porque sofro.
Se a felicidade existe,
por que morro?
Minha alma não resiste
ao eterno desconforto
do que vê.
O que aos meus olhos
me dói,
como Tolstói,
o que devemos fazer?





O MUNDO NÃO ACABA NA ESQUINA

Abro a porta
para olhar a lua,
para mim o que importa
é achar uma saída para a rua.

Meus passos numa pressa ilusória
alcançam uma meta pretendida.
Aos olhos uma visão que fascina,
ver que o mundo
não acaba na esquina.

Não posso ser feliz em uma sala
sem ter a fantasia de partir.
Em minhas descobertas perco a fala,
em meu silêncio
o barulho do mundo posso ouvir.
Mesmo sem conhecê-lo ainda,
saber que o mundo não acaba na esquina
me faz sorrir.





JARDIM

Histórias.
Cada um com um doce sorriso.
Olhos espertos.
Cada gesto um sobressalto, um grito.
Mais um dia na escola do tempo,
intocável tempo no museu da vida.

Uma flor
questiona seu próprio néctar.
Um pequenino deus.
Um adeus
ao jardim de letras.





SEM ESPELHO

Ver a si mesmo
não é
meramente olhar-se
num espelho.
Pois meramente ver-se
não é descobrir-se,
é reconhecer a si.
Descobrir-se
é justamente não se olhar,
e sim
ver-se sem espelho.





SUBLIMAR

Você
é noite e dia
um caminho de céu,
a maciez do véu
que me toca a alma,
a doce calma
do entardecer,
a liturgia
de meu fenecer.

Você
está em mim
numa imagem retida
que não me deixa
desaparecer.

Eu continuo aqui
numa fotografia esquecida
no fim do corredor,
procurando você amor,
na transparente cor
da poesia.





SOBRENOMES

Não somos tão importantes
com as nossas caras
inconstantes,
nossas falas
intercaladas
pelo silêncio.
Somos sobrenomes
que talvez não digam nada,
pois nossa alma
não atende pelo nome.
Somos doce mundo,
triste fundo,
espelho dágua,
somos quase tudo,
quase somos nada.





QUEM

Sua mão se perde em sua busca,
sua busca é sua perdição,
os seus olhos são
as suas mágoas
que em lágrimas
derramam sua razão.
Sem razão
se torna indomável,
um carrasco
que chora sua fé,
uma vítima
que adora seu algoz,
uma voz
que não sabe mais
quem é.





POETAS E PROFETAS

O poeta escreve torto
por linhas certas.
Ao contrário do profeta,
não redime, não condena,
não faz da vida um dilema.
O profeta o futuro vaticina.
Para o poeta o futuro
é um muro,
basta só olhar por cima.
O que está escrito o profeta segue.
O poeta simplesmente escreve.
O profeta é poeta
quando dorme.
O poeta é profeta
quando morre.





PAINEL

Um painel
pintado letra a letra.
Meu pincel,
uma caneta.
O cavalete,
minhas pernas cruzadas
sob a prancheta.
A imagem, a mais bonita,
a poesia.
Aos olhos de um artista,
uma figura.
Aos olhos que a lêem,
uma mistura,
não de tintas,
mas de letras.
Aos olhos que a vêem
com calma
na altura dos olhos do poeta,
uma tela
com as cores de sua alma.





PECADO

Perder-se em vão,
achar-se em mãos erradas,
no devasso pensamento dos castos.
Com cruz no peito a purificar-se.
Pagar de joelhos
ações invertidas
no pecado criado por cabeças de santo.
Encontrar-se sem companhia
numa cama fria
e
partir
sem pecar o amor.





PERCEPÇÃO

Sentir-se um eixo
no qual giram vidas em torno de si.
Olhando rostos que se movimentam
sem nada sentir.
Ver-se neles,
percebê-los como sendo sua imagem humana
retratada nos espelhos de outros semelhantes.
Reconhecer
que cada um é eixo,
que cada eixo é vida,
que cada vida gira
em torno umas das outras.





OLHAR DE GAROTO

Cada passo
é um regresso no tempo,
sinto aqui dentro
saudade no que mudou.

A cada passo que dou
revivo cada momento,
a sensação é que o vento
que sopra
é meu passado trazendo
de volta
velhas lembranças
que meu presente levou.

A cada passo,
olho meu mundo
de novo,
como um garoto
olhou.





O PASSADO

O braço ainda empoeirado,
poeira antiga de criança.
No movimento do balanço,
hoje, a cadeira é que balança.

Como a pesar num só momento,
dois mundos juntos num só tempo,
em que o abraço de seus netos
traz o carinho dos seus pais,
e ao regressar nos seus afetos
retornam em vidas atuais.

Vento inocente,
assanha os seus cabelos brancos.
São tantos anos
de um passado tão presente.





O BEIJO

Suicidar-me em sua boca.
Deixar que sugue minha alma
num beijo doce e com calma,
trocarmos uma pela outra.

Tal como nossos ancestrais,
amor eu quero, até demais,
num ritual antropofágico,
num ato trágico,
consumi-la.

Seria a primeira vez
que um lábio num beijo francês
trocava a morte pela vida.





O CAMINHO

Saí de casa,
só sonhos levava.
Seguia sempre sozinho
o longo caminho
que nunca acabava.

No caminho encontrei
alguém que chorava.
Troquei os meus sonhos
por um punhado de lágrimas.
Continuei no caminho.
No caminho encontrei
alguém que cantava.
Troquei por suas melodias
o punhado de lágrimas.
Continuei no caminho
por dezenas de dias.
No caminho encontrei
alguém que corria.
Troquei por seus passos
minhas melodias.
Continuei no caminho.
No caminho encontrei
alguém de braços cruzados.
Troquei os meus passos
pelo seu abraço.
Continuei no caminho,
caminho sem volta.
No caminho encontrei
alguém sem amigos.
Dei-lhe meu abraço,
não quis nada em troca.
Continuei no caminho.
No caminho encontrei
alguém que versos fazia.
Troquei minha vida
por sua poesia.

Continuo no caminho.
Agora sou poeta.
Eu choro, eu caminho,
eu canto, eu corro,
de braços cruzados
eu abraço,
eu morro.





ONDE ESTÁ O POETA?

Onde está
o poeta que não cansa de falar,
que está ficando rouco,
o poeta quase louco
que não pára de pensar?
Talvez rabiscando caminhos
em papiros, pergaminhos,
dentro de velhos moinhos,
ou mesmo em qualquer lugar.
Alguém pode perguntar
se é antigo, se é novo,
se está vivo ou se está morto;
sendo antigo ou sendo novo,
vivo ou morto,
não importa,
a mais certa das respostas
é simplesmente
o poeta não está.





OUTONO

Corro por entre árvores
que se desfolham,
folhas secas se acumulam no caminho.
Gotas de orvalho que me molham
ao som do vento que diz baixinho,
é outono.

Corro entre as pessoas no parque
que não se olham.
Sou mais um entre todos, e sozinho.
Gotas de lágrimas que me molham.
Soa estranho
a voz do vento que me diz baixinho,
és humano.

Corro em direção ao fim
e não me encontro.
Estação sem ano.
Outono em mim.





O TRIO

O livro, o relógio e a chave,
objetos arrumados nessa ordem.
O livro, um amigo inseparável.
O relógio, minhas horas não devolve.

A chave abre e fecha minha vida,
as portas de entrada e saída.
O livro me transporta pelo mundo.
O relógio marca tudo por segundo.

O livro leva e traz meu pensamento.
O relógio continua no seu tempo.
A chave esquecida não reclama.
Um trio que a vida inteira me acompanha.

Fecho o livro, fecho as asas.
Olho as horas, ponho o relógio no bolso.
É a chave que me traz à realidade,
que saudade,
estou de volta em casa.





O LOUVA-A-DEUS

A minha forma é imperfeição.
Perfeita ação da natureza.
Um Louva-a-deus
que não louva a Deus.
Sou Louva-a-deus pela magreza.

As dores que há no coração
são de tanto dar adeus.
Adeus que dou com minhas mãos
imperfeitas como eu.

As minhas calejadas mãos
são por lutar contra a incerteza.
É mais uma perfeita ação
de um predador na natureza.

As minhas asas sempre vão
aonde não leva a correnteza,
dessa corrente de ilusão
com elos feitos de tristeza.

As minhas pernas aonde irão,
se não caminho com os meus?
Eu sigo em outra direção.
Um solitário Louva-a-deus.





VICIOSO

Tinto degustado em minha boca,
compunção louca.
Chego a ser sóbrio,
no alcoólico sou normal.
Sou cálice inquebrável de cristal.
És trinca viva
que se abre em mim
esvaziando-me
do líquido moral.





VÔO

Cercado por corpos
num trigal sem rostos
estou.
Tela original
da qual
o autor sou eu.
Num vôo rasante
ao paraíso dos corvos
voei.
Em minha própria criação
eternizei
meu vôo.





VOLÚPIA

Minhas noites são poucas
em seus braços,
num compasso de pernas
entre coxas,
no contorno da língua
pelos lábios,
com malícia em sua inguinal.
És nas cócegas do desejo,
um lacrau
que caminha sozinho, obsceno.
E com pinças mortíferas
de orgasmo
me inocula o veneno
do silêncio.





VENEZIANAS

A vida
com sua ingratidão.
O tempo
acaricia meus cabelos
com o branco de sua mão.
Uma estranha sensação
de estar revendo meus pais
pelas venezianas da janela.
Quem é ele?
Quem é ela.?
Os meus olhos me transportam
aos meus ancestrais,
desalojam o meu ser
entre quimeras
do que eu era
a muito tempo atrás.





VER

Ver o silêncio
de um louco isolado,
grito abafado
pelo excesso de razão,
enquanto uma mão
inocula o veneno,
a outra
tranqüiliza com afago.
Ver os dois pratos
da balança no desejo,
desequilíbrio
que eleva o mais fraco,
enquanto desce o mais forte
pelo peso.
Ver a si mesmo
num retrato desbotado.





UM TE AMO

Beijo, amor e pensamentos
são motivos para seguir em frente,
são motivos para voltar aqui,
e dizer te amo
em um grito permanente.
Um te amo às costas
se estás envergonhada;
um te amo de joelhos
para a reconciliação;
um te amo à noite,
o mais verdadeiro.
No aconchego,
o te amo é paciente;
de manhã cedo,
o te amo é café quente.
Um te amo refaz o corpo inteiro,
nos prepara para enfrentar o novo dia.
Um te amo sorrindo
é alegria.
Um te amo chorando
é para sempre.
Muito embora eu te ame loucamente,
repetir que te amo
é poesia.





UM PASSEIO

As ruas cheias, em movimento;
as pessoas em suas casas;
no centro,
as lojas fechadas
no vazio momento,
um paradoxo.

Pela janela do ônibus
uma visão de luar;
mais um aceno,
o acento ao meu lado
agora ocupado;
continuo ocupado com minhas visões;
um bar,
suas mesas, os casais,
a bebida aquece as paixões;
os sinais,
as mesmas direções.

Calçadas, calçadas e não calçadas,
intermináveis cadeiras
separadas
por pessoas desiguais;
mais uma parada,
uma a mais.
Uma praça,
alguém que corre, uma rotina;
na esquina uma mulher calada.
Uma pequena viagem
terminada.

Chego em casa
na remota cidade onde moro,
que poderia ser em qualquer lugar do mundo,
uma outra língua,
um outro rumo.
Mesmo assim,
eu continuaria a ver
um curto passeio noturno,
como a vida,
uma viagem poética
que finda.





VÓS

O que buscais vós?
Porque eu busco fugir de mim mesmo.
Vivo em constante fuga
de minha capacidade de terror.

O que temeis vós?
Porque eu temo o vencedor da luta dos que habitam em mim,
o que sana e o que fere.

O que sentis vós?
Porque eu sinto medo
diante de sentimentos tão grandes e tão contraditórios.

O que vedes vós?
Porque eu vejo,
com vista embaçada
por lágrimas derramadas pelo sofrimento do outro,
o brilho do olho sedento de ódio.

O que dizeis vós?
Porque eu digo
que vós sois eu,
que não sei quem sou.





O PARQUE

Sons desconcertantes.
Não temos idade.
Roda que nos faz gigantes.
Vemos ao longe as luzes da cidade.

Mãos que ainda mais se unem
no entrelaçado de seus dedos.
Risos e gritos se confundem
nas artimanhas dos brinquedos.

O doce do algodão colorido
que é repartido entre as pessoas,
como o sorvete que saiu do líquido,
é derretido em suas bocas.

Canoa que procura o céu,
movimenta-se no mesmo lugar.
Cavalo alado preso ao carrossel,
mesmo com asas não pode voar.

Chegada a hora de ir para casa,
nossa alegria se desfez em parte.
Na solidão da rua mal calçada,
sentimos falta do velho parque.





TRECHO

Todos os outros.
Somos os outros.
Somos todos.
Ainda assim
somos nós.
Todos no fim,
estamos enfim,
Sós.





TEORIA

Adormecida entre braços,
deixei
minha velha vida.
Em minha nova vida,
sonho
com o molde do passado.
Assim vejo minhas mãos
com os olhos do filósofo,
também à minha alma.
Como uma idéia fixa,
já de costas para a sombra,
extasiado diante de minha verdadeira forma,
desperto
para o mundo.





TELA DE AMOR

Recobri com lápis
todo o seu contorno.
Repintei seu rosto
antes de dormir.
Contornei sua boca
com o tom do gosto.
Seu amor exposto
colori pra mim.
Usei todo o espaço
de uma velha tela.
Refiz seu abraço
usando aquarela.
Terminei seus traços
com tinta nanquim.
Fiquei fascinado
com a imagem bela,
obra tão perfeita,
terminada enfim.





DESFAZER-SE

Vê desfazer-se
seu rosto,
papel na água.
Desfazer-se
em lágrimas
a carta que lê;
tinta borrada
já não diz nada
do que tinha a dizer.
Vê desfazer-se
seu gosto
no dissabor de perder.
Vê desfazer-se
sua alma;
vê desfazer-se
a si mesma
em você.





DEGELO

Manto de neve
que cobre a paisagem,
uma bela imagem
sentida pela pele,
e com saudade dos dias de inverno,
rios de lágrimas
escorrem nas encostas,
são as montanhas que choram no degelo,
num triste grito
se despem em avalanches.

Domar o medo
diante do perigo
de um inimigo
que olha pelas costas,
fica o silêncio
e o mesmo olhar perdido
de uma criança
que fica sem resposta.





AFEIÇÃO

Os degraus da escadaria
que lhes unia,
eram as dobras do papel
das cartas de amor.
Entre as pétalas da flor,
desfeita
no movimento da mão,
mal-me-quer,
bem-me-quer,
um resumo do querer num todo.
Não seria em vão,
amar ou não
um ao outro.





AQUÁRIO

A inquietude dos peixes no aquário
é um fato
para minha consciência.
Talvez a minha enorme cabeça
para eles estabeleça
sua própria existência.

Duas vidas,
duas figuras geométricas
nos mantém aprisionados.
Os peixes,
nas estéticas
linhas de um quadrado,
e a mim,
na esférica
forma do planeta.





ASSIM SEJA

Um vento forte,
um galho quebrado,
um ninho no chão
de uma árvore com espinhos.
Embrião no ovo.
Cascas separadas.
Apenas uma fatalidade,
uma casualidade
na existência universal dos acontecimentos.
Haveria outra forma,
outro desfecho.
Se não fosse o vento,
se não fosse o galho,
se não fosse ovo,
se batesse as asas,
seria um dia
vítima enclausurada,
com um triste canto,
num canto da casa
morreria de tristeza.
Foi melhor assim.





A PESCA

Um arremesso.
Uma vida pendurada
por uma vara
numa linha que nos une.
Medindo forças
está presa pela boca.
Minha vitória,
sua sorte foi selada.
Provável morte
como sempre do mais fraco.
Quando esportiva, que tolice,
a presa é solta.
Quando por fome
tem o nome de cadeia
alimentar,
meu caro peixe,
alimentar.





FINALIDADE

Para riscar o céu
com o bico da caneta;
para rasgar o papel
deixando cair as estrelas;
para apagar os erros
com a mesma mão que falha;
para viver de sonhos;
para superar meus medos;
sou poeta.

Sou poeta
para beber meu riso
e chorar,
depois me afogar
em minhas lágrimas;
para me acordar
no céu,
no purgatório
ou no inferno,
quem me dera,
como dantes
Dante o fizera.





FETO

Encontre-se mãe
antes da morte chegar
até a mim,
e minha essência em feto
ao mundo vir.
Não há engano,
eu preciso encontrar
a luz que há na vida.
Vejo a saída,
só preciso de uma ajuda,
mas apenas no momento certo.
Empurra-me para o ar,
preciso respirar
o mundo.





FOLHEADO

Folhas verdes, amareladas e secas,
costuradas entre galhos.
Cores diversas,
como as cores dos retalhos
dos vestidos das bonecas.
Cores vivas,
não tão vivas como as flores,
seguem os passos das meninas,
das bonecas aos amores.
Folhas que caem,
amores que vão,
cores que desbotam
com a própria solidão.
Vida renovada e colorida,
fruto de uma nova geração.
Vento que carrega uma folha despercebida
nos braços da recordação.





FILÓSOFO

Nas pontas dos dedos
a criança aflora;
descobre-se a cada hora
um mundo de cor.
No canto da sala,
o poeta chora,
no fim do poema
que não terminou.
A dúvida mora
no olhar do filósofo;
mas como a criança,
vasculha o lugar
e tenta encontrar o último verso.
Enfim é poeta ao admirar,
ao não desvendar,
seu próprio universo.





ESPAÇO TEATRAL

O teatro sem aplausos,
altívago,
ressoa
na solidão infinita.
Imaginada platéia de estrelas.
Uma plêiade
que atua a milênios,
uma nova
que brilha tão recente,
um planeta perdido
que cochila
na enésima fila
do infinito,
uma anã branca
que pede autógrafo
a um velho
sol,
que reina absoluto
na fantástica esfera
teatral
do universo.





GIGANTES

Não sei quem sou ao certo.
E de certo não seria
quem sou
se de certeza soubesse.

Talvez não seja eu
melhor e nem igual
a ninguém.
Apenas sei que sou
individual.

Não sou um indivíduo a sós.
Sou bem maior que meu querer,
por ser em parte
um gigantesco ser,
que somos nós.

E nesse nós,
Não somos só plural.
Somos cada um,
um singular,
essencial.





GOTAS

Gotas, em gotas
que se filtram num funil,
a multidão se escoa
numa seqüência infinita
de gotas
de lágrimas,
de suor.
Gotas em nó
de garganta.
Gotas de almoço,
de janta.
Gotas para sobreviver.
Gotas de sono,
de encontros;
em conta-gotas de sonho,
contam-se as gotas
do viver.





HIPÓTESE

Homem que caminha hoje
passos de bilhões de anos.
Revoaste pelos ares,
rastejaste pelos pântanos.
Tua matéria estelar
em átomos ainda existe.
Foste na terra e no mar
coisas que nem mesmo viste,
da mais simples forma viva
a ti, ápice da evolução,
também das formas não vivas,
do universo em expansão.
Por que quer explicação,
se acredita no poder
de sua própria invenção
da possível compreensão
do mundo.





HIPOTERMIA

Sentei-me só
na solitária noite.
Uma neblina me cristalizou
na escadaria de um antigo albergue.
Alguém abriu a porta
e falou.
Eu já não o escutava.
Um vento frio soprava em minha cara
duras palavras
fazendo-me tremer.
Sois vós que vades morrer.
Sois vós,
sois,
sois.
Num arrepio de morte,
então me diz por que
é indubitável a minha triste sorte.





INFORTÚNIO

Se eu plantasse sua alma num jardim
e regasse com todo o meu querer,
eu veria seu corpo renascer,
exalando um cheiro de jasmim.

Sei que a vida não funciona assim,
pois nem tudo é uma questão de escolha.
Ao acaso o vento leva folha,
dessa forma levou você de mim.

Ainda escuto sua voz dizendo sim.
Por meu punho agora eu confesso,
gostaria de ver o seu regresso
não apenas num poema que tem fim.





INGENUIDADE

A inocência
é o reflexo da alma livre,
a supressão do ódio,
a liberdade do amor.
Se assim não fosse
não haveria diferença em ser criança.
Enquanto a dança
é a representação da infância na arte,
em parte,
todo adulto é lembrança
de ingenuidade que parte.





LUTO

A morte
é o empalidecer de um dia
observado do umbral da janela;
é a saliência
entre linhas rabiscadas,
entre páginas dobradas
em silêncio;
é o descortinar despercebido
da fumaça,
em uma nuvem que passa
deixando o céu se impor
azul;
é a noite de insônia prolongada,
na qual o dia esperado
tarda amanhecer;
é a fotografia preferida
a se desdobrar em vida,
em seu eterno lugar,
para manter presente
quem se ausentou;
é a maior das saudades;
é dor.





LIBERDADE

Sofro
com uma ferida na asa da liberdade.
Meu vôo foi interrompido com ardor,
pelo furor da glória
de um caçador sem sonhos.
Minha visão se turva,
igual poeira levantada no deserto,
pelos cascos do cavalo ao vento.
E o calor
de um sol quente e abrasador
queima-me a alma.
Encarcerados
continuam meus dias.
Mas não há prisão
que apague a chama
de sonhar-me livre.





MEU REFLEXO

Melhor que tu
não sou,
pois és de mim
a melhor parte,
e vendo-te crescer,
estou
em parte, entristecido
por que partes
na direção inversa
aonde vou;
enquanto vais à festa,
eu volto na lembrança
ao jardim de infância.





MELANCOLIA

O mundo é tão melancólico
quanto o ar que eu respiro.
As lágrimas que transpiro
circundam o meu coração,
que é uma pequena porção
melancólica do mundo.

No pêndulo do meu relógio
todas as horas são melancólicas
e infinitamente duradouras.
Em uma trajetória metódica,
as horas dimensionam minha vida
que é mensurável pelo tempo
de horas de melancolia.

No solo do meu pensamento,
um relevo de melancolia.
Do cume onde sopra o vento
ao eterno abismo de todo dia,
junto a mim a terra gira,
gira em si,
gira em mim,
melancólico movimento.

Triste verso que invento,
como sombra que me guia
pela luz que vem da lua
cheia de melancolia,
melancólico movimento,
melancólica poesia.





MUSA

Em meu verso encimado
és a rima,
és ainda
em meu poema
o toque de inspiração.
Não sabes tu
que és o azul
em minha poesia;
a mesma cor
do céu,
do mar,
da tinta que me guia
pelos caminhos
da imaginação.





MAGIA

Refletir-se
no espelho dágua.
Expandir-se
pelo universo
de um mundo inverso.
Resumir-se
no caderno do tempo,
de conteúdo infinito,
de linhas traçadas pelo acaso.
Enquanto obra de um gênio mudo
que é princípio e fim,
enfim,
com a agonia de um ser
que tem na fantasia
a magia da fé.





MEU CORAÇÃO

Meu coração é tolo.
Ele concorda com os outros
e discorda de si mesmo.
Meu coração não é começo,
é meio e fim.
Meu coração é grande e pequeno.
A grandeza,
é que sente muito
pelos males do mundo.
A pequenez,
é que talvez
não sinta nada por mim.





NOTURNO

Suaves
seus passos dentro de casa
no silêncio da noite.
Pés com meias,
meias-voltas pelo quarto.
Falta de sono,
excesso de sonhos
descritos em versos
nos papéis amassados jogados fora.
Lá fora continua o silêncio.
Cá dentro
os passos suaves.
Ainda durmo,
que sono,
sonhos...





ENGANANDO-ME

Meus pensamentos são ambíguos,
umas vezes dignos,
outras vezes perdidos
num estado de demência.
Com ausência de escrúpulos e consciência,
são pensamentos sofridos
que me levam ao exílio
de mim mesmo,
por opor-me ao que sinto e digo
numa viagem de instantes,
imensamente distante de mim.
E quando volto a ter comigo
olhando a meu próprio eu
trajado de inimigo,
outra vez a mim repito,
e me pergunto,
será que sou eu esse inimigo,
enganando-me e sorrindo,
e a mim mesmo iludindo
por pensar
que eu
sou eu.





ENGANO

Pátria!
Pensa consigo mesma
não poder se libertar
do labirinto de miséria em que se encontra.
Pela janela da lembrança
põe-se a olhar
suas crianças no quintal.
Então consegue compreender que sonha.
Na verdade
não há mais criança,
não há mais quintal.
Mas resta a esperança
que ainda haja flores.





ANTAGÔNICOS

Enquanto procuramos
vozes nas pedras
e sentimentos nas rosas,
enlouquecemos
ou apenas filosofamos.

Somos pedras com voz
que não se falam.
Somos rosas sensíveis
que se maltratam.
Temos um coração de pedra.
Desejamos um mar de rosas.
Nos apedrejamos com as mesmas pedras
que sustentam o jardim.
Pedras ou rosas,
o que somos?





EMPÍRICO

Viver é uma farsa,
uma vontade que passa
quando paro de pensar.

Posso tocar
em meu próprio pensamento.
Sou apenas um invento,
uma vaga idéia de ser.

Não há fim, não há começo;
sou um círculo perfeito
que não pára de girar.

O concreto é minha sombra,
o abstrato é meu eu;
vivo em minha criação,
a mais real ilusão
é ser eu.

Sou um louco
nessa vida temporal;
estou sendo racional
por um momento.

Ao morrer eu volto a ser
o que sempre fui,
um pensamento.





CONTAGEM REGRESSIVA

Um homem passaria a vida
contando seus dias nos dedos,
não fosse o medo de perder a conta.

O dia não faz conta
do medo do homem
perder sua vida
na perda do próprio dia.

O dedo que aponta o caminho
anula o destino fazendo que não,
aperta o gatilho,
evita o aperto de mão.

A vida levará os dias
do homem que não leva a vida
por medo da vida levá-lo.





MEU SER

O meu ser enfadado de pensar,
por andar entre linhas rabiscadas
por estradas que não pode pisar,
não descansa de suas caminhadas
pelas páginas impressas entre capas,
arrancando as entranhas do saber.

O meu ser habita a minha mente,
pelos olhos registra o que ver,
pelas mãos escreve o que sente,
nas palavras procura compreender
o imenso vazio à sua frente.

O meu ser tão pouco sabe ler
os enigmas que lhe expõe o mundo;
questiona o vale mais profundo,
a consciência do próprio existir.

O meu ser procura não ouvir
os murmúrios de um mundo tão ferido.
Em meu crânio mantém-se escondido
esperando a hora de sair
para um mundo que parece tão real,
já que é parte de um mundo fictício.





CONFISSÃO

Sou apenas um ato desumano,
entre tantos outros,
de um desejo insano
de consumo,
em uma dimensão limitada
do poder de possuir.
Já não se pode redimir
o santo homem na estrada
que o leva ao desejo de ter posse de tudo,
enquanto pisa o chão
onde há túmulos de inocentes
que tão diferentes
não puderam consumir o pão.





COMPARAÇÃO

Entre pétalas perfumadas
viraste flor.
Eu deliro amor,
não escuto a razão.
Em tuas coloridas mãos
vejo um pouco do que sou.
Nesse jardim
que plantei comparação,
as gotas de orvalho
são pingos de suor
que tornam bem maior
a minha solidão.





CASTIÇAL

Fujo de mim,
meu chão se abre.
Paredes que se fecham
e me isolam.
Sombras e credos.
Releio meus versos:

"Num bocejo abro
a boca que me engole.
Gole de ti veneno.
Gola que sufoca-me.
Velho casaco
a me matar de frio.
Vozearia,
alguém que canta
e encanta-se.
Reapareceste dona,
em um lugar que não é meu.
Na minha cama,
alguém morreu.
Pergunto quem chama,
uma voz acalma,
um pedido de alma,
acender a chama de um castiçal”.





CONDENADOS

As partidas
nos deixam em pedaços
no abandono da ida
sem regresso.
Despedida envolta nos abraços
de uma vida
perdida em mistério.
É tão cedo
para dizer o que é verdade,
a verdade
não sabemos o que é.
Sendo Deus
o nosso desespero e desamparo,
estamos condenados
a ter fé.





COTIDIANO

Os dias,
passamos por eles.
A vida
já não nos pertence.
No mundo
do qual fazemos parte,
vivemos por posse.
Nos expomos na vitrine
do cotidiano
para nos vendermos,
para nos comprarmos.
Passamos a vida
a nos olharmos
sem nos percebermos.
Somos meramente
manequins que sonham.





CAMINHADA NOTURNA

Enfileiradas luzes
que deleitam minha sombra pelo chão.
Tão solitária rua
em que caminho na contra-mão
do destino;
somente um vento perdido
a me assoprar aos ouvidos,
a me dizer:
-Tendes razão,
sois só,
sois multidão.
Em minha ânsia de ser ouvido
me perco em meu próprio grito
num eco sem dimensão:
-João, João, João ...





CEMITÉRIO

Corpos semeados em covas
demarcadas por cruzes.
Restos de velas.
Odor nauseante de morte.
Desconhecidos que observam
de seus túmulos
através de fotografias desbotadas.
Lábios trêmulos
que murmuram ladainhas.
Ao calor do sol,
por entre lápides,
há olhos em pranto.
Ao pudor da lua,
sob a terra,
há homens que descansam
na única e eterna
paz.





ÚLTIMA MORADA

Na casa do teu desterro
um fecho cerra a entrada.
Não há cortina à janela
para ocultar os teus medos.
Há um espelho quebrado,
pedaços de quem se olhar.
Num quarto de lua partida,
uma mortalha em retalho.
Não há bem vindo na porta.
Não tem sala de visita.
Há sempre uma rede armada
como armadilha perdida.





SEPULTAMENTO

Os meus olhos pregados
no infinito
como os pregos nas tábuas
cravejados,
e de pontas viradas,
redobrados,
sustentados e fixos
numa curva.
No aconchego da madeira macia,
minhas costas
nos ossos da bacia
consolam meu corpo
tão curvado.
Pelo tempo que tenho acumulado,
a ferrugem do mundo
me comeu,
e a tampa que pregam
me prendeu
para sempre num rito consumado.
Por debaixo da terra
condenado
a ser parte da mesma
e não ser eu.





POEMA PÓSTUMO

Eu quero ser uma velha lembrança no cardápio;
que o meu melhor retrato
fique exposto às visitas;
algumas flores e declamações poéticas
em meu túmulo,
nada de rezas
nem de missas.
Não quero escândalo,
apenas lágrimas reservadas;
deixar saudades
é o intuito de quem morre,
não seja forte,
apenas viva.





FASES

Eu lembro que via,
sentado no acostamento da rodovia,
as rodas dos caminhões
que giravam
como as vidas
em torno de suas cargas.

Agora me sento
no banco quebrado da praça,
observando os rostos das pessoas
em suas caminhadas
matinais,
dóceis animais
de carga.

Os mesmos rostos,
repetitivos,
mas por mim esquecidos,
são como novos,
nunca os vi.

Vejo o jornal de hoje,
amanhã o verei como de ontem,
e digo: - Já o li.
Há uma notícia de um homem que foge,
uma foto com a cara do infeliz,
feliz.

Eu me encorajo
e acho
que ainda posso andar sozinho.
Perco-me no caminho
por desistir de encontrá-lo.

Quase que perco a fala
pelo tanto que perguntei.
Quem tem boca
chega em casa,
sem saliva, mas cheguei.

Na lua enfim espiei
que quatro fases havia,
se havia São Jorge,
não sei,
que era cheia eu sabia.

Na cidade ajunta gente.
No campo há junta de bois.
Parece que a lua nasceu no campo
e foi pra cidade depois.

Assim como a lua
também temos fases.
Somos minguantes, crescentes.
Quando novos, cheios de nós.
Em quartos, somos dois.
Quatro pontos sei que havia.
O meu pai me dizia que eram cardeais.
Cardeais eram homens da igreja,
dizia minha mãe.
Quem dá mais?
Leiloou suas virgens.

De brincar, ir à escola,
de namorar e casar,
sentar no canto da sala
e ver o tempo passar,
são muitos dias,
mas passam tão depressa
que não é preciso pressa.

Talvez a lembrança
seja a maior companheira,
a cada dia traz de volta o dia-a-dia
que ficou para trás na poeira,
ou talvez não seja.
A lembrança nos persegue sem pudor,
é tortura permanente na saudade.

Da distante idade
que eu tinha
a idade que no instante tenho,
há um imenso espaço de vida,
há um pequeno espaço de tempo.
Viver nunca é demais.

Os cenários
acompanham o calendário.
Vejo do berço
os desenhos na parede,
no meu quarto de solteiro
vejo formas nuas,
dessa cama de casal
só fotos suas.
Olhando o punho dessa rede
eu balanço nossas recordações.

Numa massa inconsistente
as emoções moldam minha face,
e no espelho da vida
meu olhar se expressa diferente.
Minhas fases se revelam
em face ao olhar
alheio.

Última fase.
Descanse em paz.
O nome por completo,
aqui jaz,
João Felinto Neto.





CARBONO

No carbono eu vejo
o avesso
d’aquilo que escrevo.
Assim não me esqueço
dos versos que fiz.
E no inverso,
eu leio a mim
no carbono que diz:
És um traçado
em forma espiral
num universo
de linhas elípticas;
és imortal
no natural
carbono da vida.





DAMA NEGRA

Eu sempre fui levado a temê-la,
dama negra,
meu fim,
minha alma presa
na profunda escuridão.
Um dia por acaso a encontrei,
a vi sem disfarce,
hei-me a mais bela face,
tão próxima,
que aos seus lábios me entreguei.
À morte eu amei,
um bom tempo fui amado.
Mas de alguma forma eu deixei aquela cama,
havia saído do coma
onde estava aprisionado.
Mas à bela dama negra eu jamais esquecerei.





AS CARTAS

Queixo-me talvez,
quando através de minha letra,
pois a escrita não espelha
a minha timidez.
Também confesso
o quanto quero vê-la outra vez.
As cartas
são para mim uma saída.
Aprisionados em minha voz
estão meus pensamentos.
Como é estróina
essa forma de me confessar.
Não foi à toa
que escreveu Pessoa,
que são ridículas
todas as cartas de quem diz amar.


Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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