Cabisbaixa pela estrada caminhava a enxada, temendo o pior pelo futuro que almejara. Refletindo sobre a história que seus antepassados construíram, com garra e coragem por tantos séculos. Agora vendo isso se esvaindo aos poucos e sendo substituída por máquinas, ficando encostada em um canto, ou guardada num depósito qualquer. Enferrujando, lembrava das batalhas que travara contra matos, pedras e animais peçonhentos por onde passava. Seu dono empenhado limava seu corte e a tornava mais ágil nos eitos, nos becos do cafezal. Saudade... Onde dantes era lavoura, transformou numa cidade de pedra sem dó. Bruscamente foi colocada nos ombros nu de um estranho que caminhava rumo a cidade. Foi encostada num canto de um bar, próximo a uma escrivaninha e sorridente lá estava a caneta.
_ Boa tarde dona enxada! Como vai a senhora?
_ Eu vou indo como Deus quer.
_ Parece triste, com esta testa franzida!
_ Pois é, há muito não limpo um roçado!
_ Para que se preocupar, A vida é assim! Uns vão e outros vem.
_ Mas quem sempre trabalhou, quando pára morre.
_ Eu não tenho este problema. Quando minha carga termina, o dono vai numa loja e pede para encher novamente. Aqui na cidade sou forte e imponente, sou texto, sou cálculo, risco e rabisco.
_ Eu, quando me enferrujo, o dono me tira do cabo, joga num canto e coloca outra mais forte.
_ Com sorte, você ainda servirá a seus filhos!
_ Que nada, eles estão na cidade e jamais voltarão a dura lida da roça. Me trocaram por uma caneta e viraram doutor sem igual, descrevem seus feitos aos pais, que orgulhosos estufam o peito e assim sou alvo ao rejeito e me ponho na vida a chorar.
_ Coitada dona enxada! Eu sei que a minha serventia é famosa, mas, lhe deixar assim não é intenção. Veja o lado bom, nem todas as crianças e adolescentes gostam de estudar e certamente a utilizará. Muitos preferem ficar ao sol escaldante, do que procurar a caneta para servi-los e daí terá a sua chance de limpar um roçado no enfado calor. Além disso, na cidade também és utilizada, nas capinas de lotes e nas construções. Porque os adolescentes que não estudam também, a utiliza na capital. Não se lamenta. Depois dos conselhos da caneta, a enxada ficou mais aliviada. Foi colocada nos ombros novamente, cambaleando, até que encontrou uma turma de gente.
_ Eu... falei que ía vim.. aqui estou eu... ic...!
_ você bebeu de novo Serafim!
_ É só um traguinho....ic!
_ O seu Antônio emprestou a enxada? Então pode começar.
_ Coloca ele na masseira seu Fiote!
_ Não. Deixa ele com a lata d'água. Pelo menos se molhar irá curar mais rápido. Quantos anos tem Serafim?
_ 17....
_ Tá vendo! Quem não estuda acaba aqui.
_ Tá bom. Não precisa humilhar.
Todos temos qualidade e dons. Se não tivesse o pedreiro, não teríamos as construções. Se não tivéssemos o engenheiro, não teríamos o técnico para calcular gastos de materiais e serviços. Se não tivéssemos o médico, a quem nós iríamos recorrer quando necessitarmos de boa saúde. E assim é a vida, cada um servindo a sua maneira. Humilhar o outro devido a sua inferioridade é um ato de inculturação, pois, somente àqueles sem educação e respeito ao ser humano é capaz de realizar esta prática. A mesma mão que nos leva ao ápice do conhecimento é aquela que nos coloca ao chão e nos pisoteia. Devemos pensar mais no próximo e dar uma freada no egocentrismo ignorante e inescrupuloso.
J.Chaves
|