Chovia no Rio naquela sexta de maio. Letícia ria e rolava livre com John num frenesi de precisão e velocidade que só a paixão e o perigo concedem. Davam-se inteira vazão. Ela falou de uns sonhos que tivera com ele e estava ainda mais radiante. John, após espasmos supremos, relaxava os músculos. Olhava pra ela de um jeito doce; entretanto já começava a querer se livrar dela.
Letícia tinha pele e cabelos morenos e lisos, corpo rijo e torneado pela natureza e pela ioga. Bonita em expressões. Já passava dos 35 parecendo ter menos. Era casada com o Dr. Ciro de Oliveira, renomado neurocirurgião de 42 anos. Traços finos, semblante sério, mas sem antipatia. Introspectivo; muito dedicado aos estudos e ao trabalho. Pertencia a uma família proprietária de ricas fazendas no norte do Estado. Seus pais mudaram-se pra Ipanema na década de 70. Estudou num tradicional colégio onde conheceu Jonh. Tornaram-se amigos inseparáveis. Quando Ciro foi trilhar a Medicina, John entrou a fazer Economia. Seu pai era um diplomata estadunidense, divorciado da mãe brasileira em sua adolescência. Tinha porte atlético, bonito, jovial. Surfava. Nunca trabalhara, vivendo de boas mesadas que não pedia, mas que não podia deixar de aceitar com prazer. Foi morar em Londres poucos anos depois de formado.
Foi por essa época que Ciro e Letícia se conheceram numa madrugada no Mistura Fina. Era da Tijuca; arquiteta; vida média bem classe média. Apaixonou-se perdidamente por ele e, pra ele, ela era tudo, tudo era ela. Um ano e meio depois, estavam solenemente casados, com festa de gala. Letícia deixou de trabalhar quando foram para os EUA, onde passaram os últimos 8 anos. Depois de aprovada sua tese de doutorado com louvor, Ciro ficou por lá lecionando e medicando, conquistando respeito e dinheiro. Vinham pouco ao Brasil. Não tinham filhos.
Ciro e John perderam contato por algum tempo, mas voltaram a se falar rotineiramente por meio virtual. Quando retornaram de vez ao Rio, John aqui já estava há 6 meses, após uma temporada na Ilha de Páscoa. Voltaram a ser amigos como antes. A mesma lealdade e freqüência. John nunca tivera muito contato com Letícia; conhecia-a pouco. Mas a sentia mais sóbria no vestir e no se portar. E mais gostosa. O casal passou a sair sempre com John, e ele sempre com uma namorada diferente. Isso contrariava Letícia; e a excitava. E o furor foi crescendo dentro do peito até tomar conta das suas mãos. Para Jonh era só mais uma de suas reticentes aventuras. Tentou recuar por certo tempo, por causa do amigo. Mas Letícia tinha dado mole, “e mulher quando dá mole, não se desperdiça”, pensava. No início ainda sentia uma agulha na consciência, mas os dias e os mimos dela foram amaciando a superfície.
No sonho, Letícia via-se feliz com ele numa bolha isolada de todo o resto do mundo. E o sentia cada vez mais dentro dela. Ficariam juntos! John ouviu isso espantado, embora fingindo achar fofo. Significava ou a morte de Ciro ou a revelação. Isso o aterrorizava. Quando saíram do motel, ele seguiu de moto pro Baixo; ela foi de táxi pra Barra, num evento onde Ciro recebia honrarias. Letícia estava sempre ao seu lado nas glórias, mas também nos problemas. Era uma esposa carinhosa e conselheira.
No dia seguinte o casal completava 10 anos de casados. Celebrariam com um jantar só pra dois, preparado por Ciro. Ela acordou. Pela 3ª noite seguida o mesmo sonho! Estava nas nuvens. Acreditava nos sonhos. Fez massagem no marido. Deu-lhe sexo. E ele fazia a cara que ela mais gostava. Passara uns dias mais quieto; longe... Mas Letícia logo percebeu que eram coisas de trabalho. Ciro tinha algo tão bom quanto ruim a lhe dizer. Depois do almoço, ela saiu a compras e sessões de beleza. Ele ligou pra John e pediu que fosse a sua casa. Era uma emergência. John ficou assustado. Passou o pente fino na memória a fim de encontrar qualquer vacilo, mas nada. Em seguida, sentiu-se ridículo. Com vergonha do próprio medo. Foi sereno até o Cosme Velho. Não havia de ser nada; e, se fosse, paciência. Quando chegou, Ciro estava meio impaciente e lhe pediu pra que o ajudasse a escolher um presente pra Letícia. Não sabia o que dar. John riu e disse “vambora!”.
O jantar foi à luz de velas. Estavam sós em casa. Somente seguranças no quintal da mansão. Letícia estava divina num vestido preto. Ciro, galante, lhe servia vinho e carne de cordeiro – sua especialidade. Dessa vez o tempero a ela parecia exótico; doce e amargo. Lembrava-lhe uma macia vitela. Ela chorou, riu e o abraçou quando recebeu um robusto colar de brilhantes. Ele o colocou em seu pescoço e se entorpeceu com seu perfume. Enquanto comiam, falou: Lê, cê sabe que sempre quis estudar na Índia, berço da cirurgia. Agora surgiu a oportunidade; um semestre lá! Como já tinha falado, não ficarei apenas na Universidade; pretendo peregrinar pelos rincões do país que Alexandre não dominou. Então... você fica - ela sentiu um fogo por dentro e não sabia o que dizer. Estava feliz, mas simulou aborrecimento por ficar longe dele. - No fundo, to feliz por você. – o que não era mentira. Ciro, anunciando a sobremesa, respondeu-lhe com um brilho estranho no olhar: - Amor, me peguei perdido de amores pela Pérsia antiga. Li mais sobre a história de Ciro, o Grande. Adorei o avô! - e levantou a tampa de uma linda bandeja de estanho onde jazia fria a cabeça de John com os olhos arregalados. Letícia deu um grito de pavor e ficou sem conseguir respirar por instantes. Ciro, alucinadamente, completou, apontando para as travessas encima da mesa e para a cabeça que segurava pelos cabelos: - tinha certeza de que você amaria essa carne!! Ela iniciou uma crise de náusea e ele descarregou uma pistola em seu ventre, deixando apenas uma bala.
Em seguida, com a mente enevoada, sentou à mesa a lembrar em febre dos primeiros contatos com Letícia e a paixão lhe escorria pelos olhos doidos. Ficou assim até a primeira testemunha da cena do crime chegar, momento em que explodiu seus miolos.
Não sei se isso é tudo, mas é tudo o que consta dos autos.
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