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Dr. Ernesto era um jovem advogado especialista em Direito Constitucional e Administrativo. Prestava consultoria jurídica em alguns órgãos públicos. Exercia com competência e probidade seus deveres profissionais. Um tio o indicou a um amigo que era vereador de uma cidade vizinha. O convite veio e agora ele chegava em seu gabinete:
- Entre meu nobre causídico! Seja bem vindo à sala deste humilde edil. Sente-se, por favor! Tenha a bondade. O Josué me falou muito bem de você. Seu tio é um velho amigo. – Em seus 55 anos, o vereador Oduvaldo Barbosa era um homem muito gentil e muito obeso. Falava manso e pausadamente, sempre com uma expressão risonha.
- Me sinto lisonjeado pelo convite, Excelência. Espero que eu lhe seja útil de alguma forma.
- Dispenso as cerimônias, meu jovem tribuno! Me chame de “você”, por favor! [Risos] Estou precisando de um bom advogado, de total confiança, para me assessorar aqui na Câmara. Pelo que me consta, você tem os atributos profissionais que procuro.
- Muito obrigado. E qual seria o serviço?
- Bem... quero lhe nomear meu assessor jurídico especial. Cargo bom! De 1º escalão. 6 mil por mês e possíveis adicionais! A gente pode combinar de você vir ao gabinete umas 2 vezes por semana... Você escolhe os dias. Pra não te atrapalhar nas atividades do seu escritório. E você pode levar trabalho pra casa ou pra outro lugar. O importante pra mim não é você estar aqui; é estar trabalhando em algo do meu interesse, seja aonde for. E não precisa me acompanhar em plenário; só se for um caso especial.
- A oferta parece boa. Mas com o que vou lidar diretamente?
- Basicamente analisar licitações e contratos administrativos da Prefeitura e aqui do Legislativo. Quero que você me faça uma auditoria completa em todos os quais irei te passar. Apontando todas as irregularidades formais e materiais. Consigo cópia dos processos; alguns através de requerimentos aprovados pela Câmara, mas a maioria em off. Sou muito bem relacionado em todos os órgãos do Governo, e aqui na Câmara nem se fala! E tenho muitas fontes preciosas...
- Entendo. E você saberia dizer, aproximadamente, o número de processos...
- ...Não se preocupe! Te passo um de cada vez. Quero que você analise com calma. Não tenho pressa. E você me dá o parecer dentro de um prazo razoável, segundo sua consciência ético-profissional.
- Muito bem, vereador. Estava precisando mesmo afim de novos ares. Esse meu último trabalho assessorando uma CPI da ALERJ me esgotou demais. Posso começar na semana que vem?
- Ora, mas é claro, meu nobre! Tenho certeza de que você se dará muito bem aqui comigo! Formaremos uma vitoriosa parceria! [Risos]
- Tá certo! [Risos] Mas... e a política aqui, como anda? Te vi conversando muito descontraidamente com um senhor assim que você chegou; me disseram que é o Presidente da Câmara. Ele parece ser um cara legal, né?! Muito simpático... e tem um discurso bem progressista. Antes de você chegar, ele deu uma entrevista pro jor...
- O Kikí Khemás?? Há! É um canalha! Mas é lábia pura... Está em seu terceiro mandato se reelegendo apenas com o abuso esdrúxulo do poder. E com dinheiro de caixa 2 daqui e lá do Executivo. A maioria dos seus votos é sempre comprada no dia da eleição. Ele costuma falar: “voto eu compro e procuro o melhor custo-benefício; não perco tempo com assistencialismo”. Aqui na Presidência ele trocou a empresa de limpeza porque a anterior se recusou a pagar o aumento do valor da propina que ele exigiu (de 20 para 30%) na licitação que deu origem ao contrato atual. Então ele escolheu outra empresa pra ganhar. [Risos] Tem a cara de pau de desviar gasolina – superfaturada - da Câmara para um posto do qual ele é sócio oculto. E ainda adulteram a gasolina... Ganham uma nota com isso! Ele manda na Secretaria de Agricultura: é a pior do Governo! Tem uma máquina da prefeitura que não sai do sítio dele. Fora tantos outros esquemas... Ele não para! [Risos] E eu tenho provas concretas de boa parte de tudo isso. Tenho vídeo e áudio de algumas conversas... documentos... até cópia de notas frias...
- Caramba! To vendo que saí de uma CPI para entrar numa CPP. [Risos] Mas eu não terei que participar desta Comissão Processante, não, né?
- Que Comissão Processante?
- Você não vai denunciar essas fraudes? Pedir o afastamento dele da Presidência e depois a cassação do mandato? O que me disse é bem grave!
- Não!... Ele desistiu de disputar mais uma reeleição da Mesa e vai me apoiar para a Presidência no ano que vem. É vitória certa! Discuti isso com meu Partido (e lá discutimos muito; há reunião pra tudo). E a Direção decidiu por unanimidade que era mais correto e eficaz chegar ao poder deste modo do que partir para um enfrentamento direto com denúncias. De qualquer forma, tiraremos um bandido da Presidência e poderemos implementar as bandeiras históricas do Partido na administração e liderança desta Casa de Leis. Um avanço, sem dúvidas! Embora com concessões. Faz parte. Em políticaEm política, como no xadrez, às vezes é preciso deixar a rainha ser comida pra salvar o rei. -Ernesto tossiu.
- Ah!! Você começa na semana que vem, mas... olha... leva essas cópias aqui e vai dando uma olhada. Não tem tantas folhas, ó. É o processo da licitação da reforma da praça da cidade. Confesso que o projeto é bacana. Mas é uma fortuna! Existem outras prioridades... E desconfio de um bom superfaturamento. O prefeito tem cara de bonzinho, mas não me engana. Precisamos fiscalizar mais esse cara. Quero fatos e provas! E você vai me ajudar muito nisso, ao lado do resto da minha equipe. Precisamos de mais espaço no Governo... Seria um avanço extraordinário pra nossa cidade! Conto com você, meu brilhante advogado! E lembre-se: quanto mais conquistarmos, maiores serão seus honorários... Bom pra mim, bom pra você! [Risos] -levantou-se da mesa e estendeu a mão, alegando que precisava sair para tomar um cafezinho “no sindicato de um amigo”.
Dr. Ernesto despediu-se com um cortês aperto de mão e um sorriso e, novamente, agradeceu-lhe o convite.
Nunca mais voltou.
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