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DDI com Raul Seixas
Hermélio Silva

Resumo:
Uma viagem factual e ficcional com o mito do rock brasileiro.

DDI COM RAUL SEIXAS
(Publicado em 1999 e 2007)

Um zumzumbizar ficava atormentando minha cachola para textualizar melhor o significado para mim do mito Raul Seixas. Já assistindo na cidade paulista de Campinas, no ano da copa do mundo na Alemanha, fui instigado pelo jovem vereador Vinicius Gratti a revisar, atualizar e publicar em livro pelo fã-clube Toca Raul - uma grande sacada até no nome -, do qual é o presidente, um texto que escrevi no fim do milênio passado. Após uma breve e recente visita ao meu compadre Benê, personagem importante, que mora em Embu das Artes, percebi que haviam colocado a gota que faltava para o transbordo do drinque. Aproveitei a ociosidade causada pela edição da competição futebolística para executar a tarefa.
Agora, viciado na sobriedade e absorto, ouço pela enésima vez Para Raul, do Zé Ramalho. Intimidado com a linda letra, noto que dificilmente vou acrescentar alguma coisa plausível, mas, insistente como o que, cumpro minha sina do conto e... quem souber que conte outro.
Participei ativamente da fundação do Toca Raul, no ano de 2005, na Concha Acústica, do Parque Portugal, mais conhecido como Lagoa do Taquaral, quando tive a oportunidade de conhecer o Marceleza - como dizia o Raul - o Marcelo Nova, e o cover do Raul, Danielzito, num evento marcado pelos apaixonados do rock´n´roll. Enturmei-me com uma galera empolgada, num local aprazível, com arquibancadas de cimento, num templo que mais parecia um sorvedouro do rock, rodeado do verde natural, com cheiro de mato, nas mais diversas formas. Fiquei intrigado porque não vi nenhum aceiro, extintor ou brigadista. A presença marcante do amigo neófito, cicerone e raulseixista Dáblyw Luiz me animou. Ele me levou ao camarim, depois ao palco, bem próximo ao Marceleza, para que eu apreciasse a maestria da sua guitarra, numa Envergadura Moral, para a Sílvia, e outros acessos até então irrestritos.
Em outros encontros conheci novos artistas que me lembravam o Raulzito, como Amorim Meneezes, numa apresentação celestial no Campinas Moto Week, na Pedreira do Chapadão, em abril do sexto ano do novo milênio, num desempenho maravilhoso ligando a letra da música à vestimenta. Embarquei no Plunct Plact Zum, como se fosse uma nave espacial numa imagem onírica e multicolorida, se é que se sonha em cores.
Tudo isso me levou à presença pictórica da coleção de vinis, fitas cassetes, CDs, pôsteres, revistas, livros e outras lembranças do meu ídolo que juntei por longos anos. Da minha esposa e filhos, evangélicos, que não compartilhavam da minha paixão musical, deixando-me incomodado e com medo de perder a coleção, por voto vencido, já que me achava democrata.
Numa ação incomum, mas pensando na perpetuação da coleção, resolvi doar tudo a um jovem reco que servia ao Exército Brasileiro, pois achava que ele gostava mais do Raul do que eu, quando o conheci no aniversário de 12 anos da viagem interestelar do rei do rock, no final de mais uma exposição do material. As lágrimas vieram aos borbotões, tanto as minhas quanto as dele.
Nas minhas andanças, vi metamorfoses do Raul de várias formas e versões, desde o Raul-garimpeiro Beto Juara, até o Raul-Gospel Enock Lou, de certa forma, em usufruto da marca original.
Pensei seriamente em escrever uma linha do tempo de trás para frente, pois sentia que o Raul Seixas estaria rindo lá do alto; eu até senti que ele me deu um cutucão imaginário para aprovar tal atitude.
Do sinistro para o destro, entretanto, não fiz o consuetudinário. Então vamos abrir as taramelas.
Há quase 30 anos, morando no interior da Bahia, descobri-me ouvinte das músicas do baiano Raul Seixas. Curti “Ouro de Tolo”, “Mosca na Sopa”, “Al Capone”..., falando o que eu queria ouvir e falar, num período em que os governantes desejavam que todos nascessem sem ouvidos e boca. Principalmente boca. Não havia naquela cidade imagens televisivas. Talvez por eu ter também um jeito irreverente e anárquico de ser - moda à época - passei a gostar daquele moço magrelo, como eu. Claro que também gostava do Gil, Caetano, Luiz Gonzaga, Fernando Mendes, Alcione, Martinho da Vila... Ouvi inúmeras vezes no gravador de mão, que mais parecia uma rapadura e comia as pilhas como se fosse um andróide voraz, aquela voz chata e renitente, como o próprio cantor dizia, nas praias de água doce e no pontal dos rios Carinhanha e São Francisco, nos finais de semana em luaus memoráveis, onde gastei pilhas de pilhas e palhas.
Viajei com minhas fitas cassetes à procura de oportunidades não musicais, pois não as possuía, e isso se perpetuou. Surgiram oportunidades as mais diversas, principalmente de orêa seca; agarrei-as com unhas e dentes, mesmo já tendo poucos. Esqueci várias cópias delas nos bares da vida, propositadamente, como um bom multiplicador. Pedi e ouvi muita gente pedir: toca Raul. Estive nos estados do Pará, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo, depois Amazonas, e, em 1985, estava no estado de Mato Grosso, trampando num banco federal, quando recebi um convite do compadre Benê e do amigo Jotabê, parceiros baianos de infância, que já assistiam em Sampa, para visitá-los e conhecer o fã-clube do qual eu fazia parte. Não hesitei. Peguei a cachorra, como se diz da mala nos garimpos, e me mandei para lá.
O Benê era o maior e mais velho da turma, trintão, branco do cabelo enrolado – se é que se classifica assim - sapiente, saliente, debochado e pau para toda obra. Jotabê era um moreno jovial de 25 anos, inocente, puro e besta, mas, com a nova função de cobrador de ônibus, dizia já conhecer Sumpaulo como a palma da mão. Enquanto não me levou a passear no buzu de dois andares não sossegou. Vimos e fomos ver de baiano as minas.
Após o encantamento com a cidade, avexei meus amigos a me levarem ao meu objetivo. No clube fui apresentado ao presidente. Na realidade era um boteco igual a todos que conhecia. Comprei camiseta, vinis e soube que o Raulzito estaria naquele dia fazendo uma visita ao local. Meu coração acelerou e não titubeei em pedir uma cerva para diminuir a tensão. Disseram-me que uma das mesas seria sorteada e nela sentaria o Magrelo Abusado. Preparei a caneta e papel para o autógrafo e a câmera fotográfica.
O procedimento do sorteio era através da escolha de uma pedra de birro, tirada entre outras, de um saco de pano. Nossa mesa era correspondente ao numeral do macaco no jogo do bicho. Meu amigo Jotabê ficou um tempo no balcão falando com a atendente e foi ele quem retirou a pedra sorteada, que coincidentemente era do mesmo número da nossa mesa. Até hoje não entendi porque a pedra estava molhada e gelada.
O home chegou, disse alguma coisa incompreensível e sentou-se à mesa. Ficou quase meia hora sem falar nada. Benê, Jotabê e eu nos entreolhamos com interrogações na cabeça. Eu queria falar alguma coisa, mas não tinha coragem, queria ouvir, mas ele não falava. Fiquei nervoso, apreensivo, alegre por dentro, porém com medo de magoar meu pop star. Lembrei dos shows que assisti e não imaginava que ele ficasse ali parado na minha frente, tão perto e tão longe. Como ele próprio dizia: “... E agora eu me pergunto, e daí? E tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar, eu não posso ficar aí parado...”.
Deu um frio na barriga e uma vontade de mijar daquelas. Chamei o Jotabê para irmos ao banheiro. Ele falou na lata que as mulheres é que vão de duas em duas ao banheiro, pois, como não têm nada para sacudir, uma sacode a outra. Rio da piada manjada dizendo outra mais ainda: essa é do tempo em que Sua Santidade, o Papa, era coroinha.
Perguntei ao Jotabê se o Raul era assim mesmo, caladão. Respondeu-me que não devia me preocupar, que dali a pouco ele se soltaria. Perguntei também porque o Jotabê não mijava no vaso como todo mundo.
- Você acha que fizeram a pia dessa altura por quê? - respondeu.
- Vôte cobra! - recriminei.
Voltamos à mesa. Raul pediu ao garçom:
- Traz uma daquelas para mim.
Eu me empolguei e pedi uma também, achando ser uma garrafa de cerveja. O garçom retorna com duas caipiroscas. Não era minha trivial. Fiz uma regressão empírica e lépida, chegando somente à crisma, em Poções, norte de Minas Gerais, entretanto não tive outro jeito a não ser o novo batismo. Daí deslanchou a conversa entre nós. Falamos trivialidades. O Raul começou a falar que gostaria de eternizar seu trabalho, passando para seu filho tal compromisso, mas meio cabisbaixo lembrava que gostaria de ter um filho homem. Advirto aos leitores que optei pela versão, por achar mais interessante que o fato, porém fica o registro de que a partir daquele momento senti uma sensação estranha, como se fosse de uma pancada na cabeça que soou num tóóóóiiiimmmmmm... sem fim. Olhava para o Raul e via todas as imagens que tinha dele, sobrepostas. Fitava a boina, o chapéu de panamá, a capa, os cabelos, ora encaracolados, ora não, as botas, a jaqueta, os óculos escuros, a chave, o pingente, a barba... Ou estava imberbe? Fiquei estupefato. Não sei se a ordem era essa que citei, ou se parte dela já existia até então.
Falou-nos que era um problema de genética só ter filhas. Disse estar chateado, pois vivia longe delas. Falava desenfreadamente do próximo disco, do retorno à mídia e dos shows. Eu já estava pra lá de Bagdá devido às misturas. Eu já conversava com o home como se fosse amigo. Efeito da solidez da versão e do líquido.
Hoje tenho um grande hiato na minha cachola, pois quando acordei, com uma dor de cabeça danada, como se a massa cinzenta – se é que estava cinzenta – fosse um caroço de abacate maduro e solto dentro da fruta, que com qualquer movimento, luz ou som gerava uma dor insuportável. Não me lembro como fui parar num hospital a tomar soro. Sentia-me um urso após a hibernação. Tentei localizar se era minha esposa, a empregada, ou outro capô de fusca que estava à minha cama - claro que estou satirizando o Raul. Nada completava meu raciocínio, esse interstício me deixava maluco... um maluco beleza. Procurei o autógrafo e a câmera e não os encontrei. Estava mesmo internado. Fiquei imaginando o que ocorrera. Só tinha uma lembrança tênue de que havia estado ou sonhado com o mito Raul Seixas. Acionei a campainha e chegou correndo uma enfermeira, de verdade. Perguntei o que eu estava fazendo ali. Ela respondeu que eu precisava tomar glicose para me recuperar da bebedeira. Fiquei com vergonha, querendo rememorar o dia anterior. Seria só o anterior? A memória não recuperava os dados.
- Acorda preguiçoso! Os passarinhos que não devem nada a ninguém já acordaram. – era a voz do Jotabê.
Chegaram os amigos da farra. Eles riam o tempo todo. Imitavam meus trejeitos e minhas falas quando bêbado. Entre as tantas fanfarronices que fiz, disseram que eu mesmo havia sugerido a internação de graça, pois tinha a carteira de saúde do trampo, que me garantiria a gratuidade e seria medicado com acompanhamento profissional, ao passo que no hotel não teria nada disso.
Recebi alta logo após o almoço; antes, porém, tomei um bom sermão do médico. Fomos assistir a um show do Zé Ramalho e, quando menos esperava, eu já estava com um copo de cerveja à mão.
Voltei para o Mato Grosso, divisa com o Pará, próximo à Serra do Cachimbo, onde diziam que o governo fazia experimentos nucleares. Zona de garimpo. Fui assediado pelos amigos que queriam saber das novidades da visita a Sampa e ao fã-clube do Raul, e principalmente do banho cultural. Falei-lhes sobre o contato, as visitas, mostrei os apetrechos do Raul. Comecei ali a colecionar as coisas do mito do rock. Só não falei do vexame.
Como adido da instituição bancária estive algumas vezes em Serra Pelada, no Pará, como operador para compra do ouro, não era o de tolo, mas havia amálgama. Só se via mulher pela televisão no Programa do Chacrinha, ou nas revistas masculinas, que cheguei a comprar em duplicata, pois as folhas comumente se grudavam, no manuseio insalubre. Assisti aos shows do circo mambembe. Não havia hotel ou pensão, só espaço para armar redes de dormir. Ângela Rô Rô hospedou-se em nossa república, que era de madeira, e ficávamos a espreitar pelo buraquinho do banheiro, previamente executado, mas a belíssima, desconfiada, apagou a luz durante o banho. Um caos. A venda de bebida alcoólica era proibida pela Polícia Federal e eu fui o precursor do veto da venda de álcool, Biotônico Fontoura e Sadol nas drogarias, pois o delegado descobriu o meu segredo para desamarrar o bode.
No fatídico dia 21 de agosto de 1989, já estava em Goiás, quando recebi a notícia-bomba de que um disco-voador havia pousado no Brasil para levar meu ídolo. Parei de trabalhar, não acreditava naquilo que me contaram. Chorando, fiquei em casa ouvindo suas músicas e os flashes jornalísticos. Meditei muito e, por incrível que pareça, não bebi nada. Ouvi sem parar os meus vinis. Viajei nas letras e nos bons pensamentos. Como ele mesmo gostava de dizer, não era parte de nada: era único. Foi-se ou ficou-se?
Perguntas vieram sem respostas, continuando sem elas até então. Como seria o mundo sem meu guru? Passou como um rastilho de pólvora, queimando e deixando sua marca na nossa cabeça, inclusive em jovens que não pertenciam à sua época.
Divaguei inerte. Minha esposa estava grávida do meu primeiro filho homem. Pensei em colocar o nome de Raul nele, mas nada falei. Meses depois, mais calmo, minha esposa me falou que o nome do menino seria Luiz Fernando, uma simbiose dos nomes dos candidatos a presidente da república que foram para o segundo turno nas eleições naquele ano. Nem fiz objeção.
Fiquei muito fraco com o acontecimento da morte do Raul. Perdi o apetite. Descobri que é na impotência, na exaustão e na dor que adormece no homem a vontade de viver. Entendi o Raul. Chorei, chorei e às vezes choro escondido. Ainda hoje, 17 anos depois da viagem, meus olhos lacrimejam ao refazer esse texto. Não que eu seja um chorão ou uma carpideira de plantão. Aprendi com ele a desconfiar da verdade absoluta, mas Deus nos deu a terra para viver o amor fraterno e, após a morte, o universo para ser eterno. Refleti muito.
No aniversário de um ano da ida do Raulzito para outra dimensão resolvi aceitar outro convite da dupla de amigos de Sampa, para ir ao evento de inauguração do "Parque Cultural Raul Seixas", em Itaquera. Desse evento eu tenho fotos para provar que não foi um sonho. Passei um dia inteiro no parque. Comprei todos os souvenirs possíveis que diziam respeito ao ídolo. A grana não deu para comprar o disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta a Sessão das 10”, que completaria minha coleção. Conversei com muita gente. Conheci alguns sósias e tirei fotos ao lado deles. Curti o evento. Discuti sobre os trabalhos do Raul. Vi o Zé Geraldo chegar numa van. No final da tarde, caiu uma chuva fina. Uma banda mineira executava as nossas canções prediletas. Achei que era o prenúncio de um ensaio para trazer do espaço aquele mago magro que usou mais de dez por cento de sua cabeça animal! Iria tentar tudo outra vez. Não apareceu nenhum trem, metrô ou disco-voador. Não foi daquela vez...
Como multiplicador daquela filosofia recebi inúmeras críticas. Aceitei-as ouvindo Raul, pois o monstro sist tava retado e doido... Como o homem é um camaleão por natureza, mudei alguns pontos de vista, maturei, no entanto, sempre propagando o raulseixismo. Registro que não concordo com o estilo de vida que meu herói levou.
No início da década seguinte mudei-me mais uma vez. Fui parar na cidade de Barra do Bugres, no Mato Grosso. Naquela cidade, mandei emoldurar as capas dos discos, aleatoriamente. Seis em cada, perfazendo seis quadros.
Entre meus colegas de trampo havia um que curtia o Raul e outro apaixonado por Tião Carreiro e Pardinho. Fui a uma loja que vendia fitas cassetes, adquiri uma de cada um dos cantores citados. Pedi à atendente para desmontar e inverter os rolos de fitas, presenteando os amigos que jogavam sinuca num barzinho. Não esperei eles ouvirem as músicas, zarpei antes. Mais tarde fiquei sabendo da bagunça. A intenção era quebrar o paradigma e fazer meu amigo, radical musicalmente, ouvir o Raul. Pelo menos, ele vai lembrar da brincadeira.
Meados dos anos noventa eu estava quebrado financeiramente, sem emprego e na minha cidade natal, Rondonópolis, no Mato Grosso. Ao invés de procurar o álcool ou outras coisas, aguentei firmemente as instigadas para não vender minha coleção do Raul e olha que achei uma boa grana! Fui incriminado por alguns supostos amigos. Eles não entendiam que ali estava uma vida. Não era idolatria ferrenha, mas amor e inspirações para divagar e alimentar a alma, pois o físico estava difícil para se manter. Prometi aos meus botões que não iria me desfazer com facilidade do meu acervo.
Quem sabe um dia eu doaria tudo para um museu, mas não havia chegado o momento. Também pensei em mandar para a cidade em que vivi a infância na Bahia, onde tudo começou. Foram apenas conjecturas.
Passei privações e provações de toda sorte. Trabalhei de padeiro, balconista, maître, sem saber o que era e nunca ter sido garçom, depois, vendedor ambulante. Não desisti por pouco. Lembro-me quando era vendedor de cosméticos e peças íntimas pelas cidades circunvizinhas, de porta em porta, e, em muitas delas, eu ficava próximo às residências ou bares que tocavam músicas do Raul, comum por aquelas bandas também. Eu chorava e tinha vontade de voltar correndo para minha edícula, mas não podia voltar sem o pão e o leite para as crianças. Às vezes, tinha de colocar meio litro de água num litro de leite para poder alimentar as três crianças com meio litro cada uma, por dia.
Publiquei o primeiro trabalho, Ouro & Melechete, modesto, sobre o garimpo, mas tinha uma grande importância para mim, uma vez que mediria a reação do público. Para pagar a gráfica e pegar os livros, tive que vender a televisão e a máquina de costura da esposa. Era o ano da copa do mundo de 1994. Eu assistia aos jogos na casa de outro compadre. Levava a família toda, almoçávamos por lá, regados à cerveja e petiscos. Não ia a todos os jogos, senão iria perder o compadre. Minha esposa, hoje em dia, às vezes fala de costuras. Ainda finjo não entender.
Num desses jogos que não fui à casa do amigo, acompanhava a seco, num radinho de pilha, pois não podia desviar nenhum dinheiro para um litro de pinga e limões. A certa altura, meus filhos menores entraram felizes, cada um com um saquinho de pipoca. Assustado, avisei para não comerem, enquanto eu não falasse com o pipoqueiro, pois eu não tinha o dinheiro para pagar. Deveriam devolver as pipocas. Quando argumentei com o vendedor, ele me falou que não precisava me incomodar porque ele havia dado de presente para as crianças. Agradeci com um rio de lágrimas nos olhos. Nada mais falei. Pensei apenas que aquilo pertencia a meu carma. Voltei para casa e desliguei o rádio. Coloquei o Raul para esgoelar nos meus ouvidos e embebedar-me com suas letras de protestos. A agulha arranhava os sulcos dos vinis numa velocidade constante. Uma voz me chamava num poço lúgubre e profundo. Usei a pinguela.
Consegui um novo trampo numa oficina mecânica como recepcionista. Ali conheci um grande amigo radialista, Bira Olivéra. Em conjunto começamos a realizar um evento no dia do aniversário da viagem interestelar do Raul Seixas. Era pela rádio 105FM, a partir do quinto ano. Fazíamos entrevistas e colocávamos as músicas do Rei do Rock, interagindo com o público e as entrevistas que tínhamos já gravadas do Raul com o Pedro Bial, Gabi, Kid Vinil, Marceleza, Fantástico e por aí afora. Tinha a intenção de gravar perguntas de ouvintes e editar a resposta do material que possuíamos, como se o próprio Raul respondesse, mesmo que sofresse um processo pelo uso indevido. Coloquei meu acervo em exposições. Algumas portas foram abertas para mim. Fizemos o evento em outras cidades e repetimos até o décimo quinto ano de sua viagem por um vórtice temporal. Vivi um bom período dessa produção e poderia estar vivendo até hoje.
Fiz contatos e discursos em reuniões e exposições. Após os eventos, conversava com o público, havia perguntas as mais diversas. Muitos jovens presentes não curtiram o Raul vivo, tenho certeza. A pergunta mais usual era para saber qual era a do Raul. Devolvia que todos deveriam meditar mais sobre o ídolo, principalmente sobre sua filosofia. Atentarem para o que ele dizia e não para o que fez. Para lutarem por seus direitos e, se não era direito, lutarem para que fosse, porém, com lucidez e respeito ao próximo. E que Jesus estava em todas as músicas do Raul, isso foi dito por ele, acrescentava. Que paroxítona é proparoxítona e outras baboseiras. Nem acreditava ser eu quem estava ali falando com aqueles amantes da música raulseixista. Muitas vezes me sentia fora de órbita, num buraco de rato ou cocheira de cavalo, com cópula e odores próprios.
Cheguei a fundar o fã-clube Raul Mania, mas não emplacou por falta de apoio cultural. Optei por fazer um fã-clube próprio, até presentear meu acervo ao jovem que citei no início.
Sempre quis escrever alguma coisa sobre o Raul. Sonhava um dia contatar com pessoas que, mesmo não o conhecendo pessoalmente, quisessem escrever a seu respeito ou um pouco da sua própria vida em comparação à dele. Não deu certo. Ainda bem que agora resolvi concretizar, porque a ideia estava se esvaindo e falta pouco para me tornar cinqüentão de pele morena estorricada pelo sol e intempéries.
O ciclo se fechou com o recente papo que levei com o mito Sylvio Passos, fã número um do rei do rock, quando expôs seu acervo na Estação Cultura, em Campinas, no último sábado de agosto de 2006. Durante a conversa passou um trem fumegante e carregado de minério de ferro, que mais parecia cinza. Ninguém me tira da cabeça que o maquinista era o lendário Dom Camilo, ativista do rock e da noite campineira. Foi a fagulha que faltava para colocar o compadre Benê na roda, virtualmente. Juntei o factual com o humor, agreguei uma pitada do ficcional, bati no meu liquidificador ilusório e sorvi a goladas, como um fausto.
O luaR também é de Deus.
Tornei-me um abstêmio por motivo da ressaca financeira.
Quê! Dá dose dupla? Quero uma tamém.
Foi muito bom estar com o Mago Abusado, novamente.
Lá vem o Trem das Sete... Com Deus ele chega...
Oxênte menino!... É mermo é?!!!!...


Biografia:
Consultor de marketing, produtor cultural e escritor com 14 livros publicados.
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