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AS SETE CABEÇAS DA HIDRA
Eduardo Borsato




Cineminha
Cena 1

O CASAMENTO

Claudete procura a amiga, precisa desabafar, descobriu que o marido a está traindo. Agoniada, espera consolo para sua dor. São três da tarde e ela sai apressadamente de casa. Adélia, a amiga, não mora longe, mas ela toma um táxi. O dia está muito quente, Claudete evita andar, acima de tudo porque está grávida de três semanas. Embora pouca, a demora em chegar aumenta mais ainda sua angústia. Entenda-se que ela agora precisa desesperadamente de consolo.
Claudete olha fundo nos olhos de Adélia, sussurra:
–Não guento mais, viu? Não guento!
E a outra, assustadíssima:
–Que foi, Dete? Meu deus! Aconteceu alguma coisa?
Dete era como os íntimos a tratavam e Adélia era para lá de íntima, era como se fosse uma irmã. Mais: como se fosse irmã, pai e mãe. Claudete era filha única e as duas tinham sido criadas juntas, com a diferença de que, dez anos mais velha, Adélia tomara para si a função de canino alter ego da amiga. Feíssima – a cara da Marina Silva, o ET de Xapuri –, via-se lindíssima como Claudete, a viver seus amores, devaneios, ilusões, temores. Enfim, aquilo não era mais uma amizade, era um típico caso de xifopagia passional, prato cheio para qualquer empilecado Freud campo-grandense.
Claudete aperta com força as mãos da amiga:
–É o Waldir– e suspira fundo, revira os grandes olhos verdes, com a submissão de quem só espera um empurrãozinho para fazer a mais transcendental das confissões.
Adélia, no entanto, permanece calada, numa imobilidade de Maria Madalena em terreiro de macumba. Mas mantem as mãos de Claudete presas às suas. Basta sentir-lhes o tremor, a quentura, uma víbora conferindo a dependência de sua vítima. Claudete tinha-se casado com Waldir há três anos e...
–Magina só... ele... ele... oh... oh...
Ah, como Adélia tinha esperado por aquilo. Sim, porque é preciso explicar que ela não era um alter ego tão confiável assim, tinha momentos de impensáveis vacilações. Um deles, talvez o principal, ocorreu quando deu de cara com Waldir.
Foi num sábado à noitinha, no parque de diversões Tro-lo-ló, montado num terreno baldio, ao lado da Esquina do Pecado. Claudete tinha marcado encontro ali exatamente para que os dois se conhecessem. Waldir era amulatado, mais baixo que alto, tinha lábios de babão e uma carapinha emplastrada de brilhantina, estilo chuca-chuca, que lhe dava um ar de pinto molhado. Falava com cuidados de bispo, batendo a língua nos dentes, o pescoço descarnado e o queixo apontados para o firmamento, sempre acima da linha do horizonte. Os olhos eram em capela, debaixo de óculos de lentes grossas, escurecidas.
–Muito prazer– e ele lhe estendeu a mão.
Aliás, pegajosa, de defunto inconformado. A voz, porém, era profunda, envolvente, ao telefone passaria fácil, fácil por um Roberto Faissal redivivo. Um perigo. Será que tinha sido por isso que Claudete... O fato é que era muito difícil adivinhar como uma Ava Gardner da Rua Manaí tinha se apaixonado por um sujeito que... A verdade, porém, é que Adélia não perdoaria quem conseguisse despertar verdadeira paixão em Claudete. Ciúme inconfessável. E aquele sujeitinho...
Mais tarde, as duas, na volta para casa:       
–Não é um amoreco?
–Hun...
–Fala tão bem.
–Hun.
–Belíssimo futuro.
–Hun...
–Faz faculdade.
–Do quê?
–Direito. No Afonso Celso.
–Hun...
–Foi convidado.
–Pra quê?
–Entrar pra política.     
–É?     
–Quer se casar logo.     
–Quer?
–Devo?
Claudete não esperou pela resposta. Deu-lhe as costas, correu (ai, meu Deus, talvez ainda afogueada pelas carícias daquelas mãos nauseabundas), entrou em casa, bateu-lhe a porta na cara.

Cena 2
Dez anos depois

O POLÍTICO
Redação do Clarim, decadente jornaleco suburbano. Ocupa uma única sala, no edifício Olímpica, no centro de Campo Grande. Enéas é o proprietário e editor. Já passa dos sessenta. É alto, magro, um galgo famélico. Ostenta uma calva brilhante, de queimar os olhos. “Alopecia nervosa”, explica aos que reparam no grande retrato pendurado sobre sua mesa, um Enéas jovem, mitológico, cabeludérrimo e barbudo, em pose de Che Guevara da Central do Brasil. Além dele, na sala, só Adilson, jovem e único repórter. São oito da noite e estão fechando mais uma edição.
Enéas olha para Adilson com amargor e revolta. Sua juventude é um acinte. Juventude, impulsividade, sonhos, componentes de alguma coisa, um laivo, uma dor, um aguilhão a lhe ferroar o peito. Oh, a vida, impiedosa, a escorrer, a se esvair. E ele, impotente, peado, a assistir ao próprio funeral. O progresso o avassalava, estava sendo engolfado, sua memória seria varrida, a memória do jornal, tudo a jazer no fundo de um sarcófago, no fundo do mar.
Mas, mesmo por entre as águas, um grito se ouve. Hidras e suas sete cabeças de sete serpentes brotam do chão, povoam a sala, o bulício antigo se refaz, enche-lhe o peito, o troar das teclas, máquinas de escrever, a algazarra dos repórteres, as estagiárias de peitos sanhudos.
–Vamos publicar?
É Adilson, de pé à sua frente, um papel na mão. E, sem esperar pela resposta, lê:
“Tão inteligente quanto brilhante, vida em fora ele nos brindou com seu talento, aspergindo sobre nossa juventude lições do mais impertérrito e imortal saber, qual seja o do lustre dos avoengos, hoje tão negligenciados quão injustamente relegados ao deslustre do esquecimento e das mais...”
Interrompe-se, e, com um risinho, os olhos fixos em Enéas:
–Matéria do Dr. Waldir. Três laudas. Vamos publicar?
Enéas suspira fundo, olha pela janela. A sala é de frente, terceiro andar, sobe até eles o ruído da rua. Começa a chover.
Vamos?–insiste o repórter, sempre escarninho.

FLASHBACK

–“Ecos do Planalto”.
–O nome da coluna?
–Quero página nobre.
–Terceira?
–Um quarto de página.
–Ahn...– fez Enéas.
–E chamada na primeira.
–Ahn...–repetiu Enéas.
Waldir se vestia todo de branco: terno, gravata, sapatos. Quando entrou, a redação parou. Alguns o olharam espantados, outros com um meio sorriso, de nervoso ou de desdém.
–Então?
A voz era envolvente, insidiosa, voz de raposa escolada. Fazia quatro anos que Enéas só o via de raro em raro. Explica-se: eleito deputado federal, Waldir tentara a reeleição. Derrotado, voltava agora para Campo Grande, o rabo entre as pernas. Mas sem perder a pose. O nariz emproado, o olhar de peixe gordo era o mesmo com que olhara Enéas no dia em que o procurara, logo no início da campanha.
Advogado, o forte de Waldir era a própria classe. Ora, o jornal tinha muito trânsito entre os advogados. Logo... E Enéas pensou que ele se serviria do Clarim para sua promoção. O que significaria um belo reforço para cobrir os infindáveis rombos do jornal, àquela altura um Titanic prestes a encalhar no piscinão de Ramos.
Encontrou-o na salinha que lhe servia de diretório, perto da Rodoviária. Só que Waldir mal o deixou falar. Sem mais nem menos, iniciou uma catilinária interminável sobre a validade do que chamava “meios de comunicação potencialmente esgotados”. Citou mil autores, mil teorias, tudo de supetão, num matraquear capaz de estontear um ogro.
Resultado: Enéas saiu dali com uma mão na frente outra atrás, jururu como missa sem beata. Quanto a Waldir, meses depois ganhava as eleições, vaidosíssimo pelo fato significar “uma acachapante vitória contra as oligarquias locais, através da vitória de uma candidatura inovadora e independente.”
–Não foi nem uma coisa nem outra–diz Adilson.
Ah, a infinita mediocridade dos suburbanos, dos mal nascidos – e Enéas faz um gesto vago.
Adilson:
–Em Campo Grande: política de cabresto – um favor, um voto.
Enéas dá de ombros. E Adilson:
–Em Brasília, sabujo dos poderosos. Brilhareco dos discursos empolados. Sempre no pequeno expediente.
–Não fez o que podia?
–Perdeu a chance!
–Chance?!
–Discutir o Brasil!
–Nascido no Carapiá?!
–Ser um estadista!
E, inflamado:
–Imensa dívida.
–Dívida?
–Para com os jovens. Acima de tudo.     
Adilson se cala, engasgado pela própria indignação. Mas, logo:
–Agora, faz o mesmo... de novo se insinua ... adula os poderosos... discursa em público... mantém uma coluna no jornal...
E, a voz cava, de vilão de capa e espada:
–Permanecerá impune? Até quando?
Enéas coça o alto da calva, desvia os olhos. Adilson o culpa, acusa-o de cumplicidades. Mas como explicar... a informatização... a praga da internet... os anúncios minguando... ah, os malditos carros de som... Campo Grande, uma gigantesca Caruaru...
–Será... será que você não vê? – gagueja Enéas.
–O quê?
–Os jornais de bairro... mortos.... o nosso, o único da Zona Oeste... Waldir paga... e muito bem... sem ele o Clarim.... o Clarim...
E, quase num berro:
–É tão difícil assim entender?!
A cara balofa de Waldir surge-lhe à frente, encara-o, o riso babão. Prendera-lhe uma pedra ao pescoço, aprontava-se para atirá-la ladeira abaixo, mas Enéas a ele se abraçaria, cairiam juntos, os dois, a culpa, aquela culpa, não mais a levaria e assim ele... ele...










Biografia:
Escritor não tem currículo nem biografia. Escritor tem talento, texto, amor, ódio e muita hipocrisia. contato@eduardo.borsato.nom.br
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