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Os pastores de deus
Eduardo Borsato

–Quero ser um pastor famoso, mulher. Tipo
Silas Malafaia, por exemplo.
E ela, irônica:
–Não serve o Bispo Macedo?
–Pelo amor de deus, Clotilde. Não me goza. Tou falando sério.
–Eu também.
–Escuta...
–Escuta você.
–O quê?
Ela o encarou, deu um suspiro da mais funda resignação. Ele parecia não perceber o quanto aquilo era absurdo. Mas, que diabo, seria tão difícil assim enxergar a realidade?
A verdade, límpida como papo de anjo, era a seguinte: Jerônimo não levava a menor chance. Isso porque era um desses sujeitos que já trazem pregado na testa o carimbo da mais radiosa obscuridade.
A começar pela aparência. Pardo, puxado para o marrom delavê, comprido de pernas, chupado de carnes, tinha a cara ossuda, olho de peixe babão, enfim, um Obama fazendo colonoscopia. Ou um falido traficante de quibe.
O que ainda podia salvá-lo era a alma: ouro puro, dezoito quilates. Mesmo assim com a seguinte ressalva: ouro em alma é o mesmo que chulé em centopéia. Quem liga?
Resumindo: tudo somado, Jerônimo contava apenas com uma, mas, por isso mesmo, fundamental vantagem. Como babalorixá do terreiro Mamãe de Oyê-Oyá, transformava-se, ficava lindão, sapo virado príncipe. Era supimpa vê-lo rodopiar pelo salão, charuto na boca, olhão torto, sempre vestido nos trinques: alaká richilieu cor de dente de sereia; kipá de meia aba aragonês turmalina; às vezes, um torço azul pavão; pano roxo na cintura, tudo arrematado com fios de contas etéreo cintilantes, peixinhos nadando no céu.
–Vais trair os santos? Mudar de lado? Tens coragem? –––quase gritou Clotilde.
Dessa vez, ele é que suspirou fundo, encarou-a, o olho duro.
Mas, afinal, por que Jerônimo tinha suspirado? E por que a olhava de maneira tão estranha?

O SEGREDO
O fato é que ele nunca tinha dito a quase ninguém, muito menos a Clotilde, que sua crença estava ficando cada vez mais rasa que cova de passarinho.
–A crença é o de menos, Jerô. O de menos – garantia Adauto, o amigo do peito, o único com quem ele se abria. E emendava, ostensório: –Nesse negócio, o que importa mesmo é a grana. Acima de tudo. A gente vende deus e ainda fica numa boa.
–Não tem medo?
–Do quê?
–Essa historia... vender deus...
–Não acredito nele.
–Em sua existência?
–Também não.
–Então, sem deus, tudo é permitido?
–Com ele também. Com deus, tudo é permitido.
–Acredita mesmo?
–Ele não é puro amor?
–Dizem, né?
–Então ele vai me perdoar. Sempre. Assim fica tudo quites. Elas por elas.
Adauto parecia saber muito bem do que estava falando. Babalorixá dissidente, pentecostal pós-moderno, tinha fundado sua própria igreja e ia de vento em popa, os fiéis aumentando a cada dia, enquanto o terreiro de Jerônimo...
Esse era outro assunto sobre o qual Adauto opinava com a convicção de um São Tomás de Aquino campo-grandense:
–Abre os olhos, cara. O candomblé. Está morto e não sabe.
Espetava o dedo no peito de Jerônimo:
–Olha só você. Está matando cachorro a grito. Confessa. Está ou não está?
Jerônimo abaixava os olhos, pundonoroso, num conformismo aviltante. Mas como negar? Há oito, dez anos, seu terreiro era fulgurante. O próprio Adauto tinha sido iniciado por ele. Seus consulentes eram políticos, artistas. Maior por aquelas bandas só um, e no passado: Seu Sete da Lira, em Santíssimo. Agora, no entanto...
Adauto continuava, cada palavra uma ferroada nas bochechas de Jerônimo:
–Pastores eletrônicos, cara. Milagres pela televisão. Direto na casa do freguês. Dá pra fazer concorrência? – e depois de uma pausa de efeito: –Um dia eu chego lá. Tou batalhando pra isso. Muito–e terminava, quase escarninho:–E você, cara? Vai segurar a onda? Bancar o herói? Até quando? Qué que vai ser da Clotilde, do teu filho?

O PAU MANDADO
Quem é você,
que passou
os sonhos dele
a povoar?
Será o demo?
–Não sou. Não sou.
Será o Senhor?
–Não sou. Não sou.
Então quem é você,
torpe criatura?
–Que importância tem
minha triste figura?

Então riu e chorou. Andava aos saltos, um pingüim sem galochas. Era magro, descarnado como bula de remédio. Finalmente, depois de atroz insistência:
–Sou o Anunciador.
Represento as entidades
que podem dar
tudo o que ele deseja
com tanto ardor.
JERÕNIMO
Se existe um caminho,
Por ele sigo
com todo o meu amor,
com todo o meu carinho.
ANUNCIADOR
É caminho de sofrimento,
de muita dor.
JERÕNIMO
Seja como for.
Só gostaria de saber
porque mais ainda
devo padecer.
ANUNCIADOR
Não quer as entidades
abandonar?
Esse é o preço
que deve pagar.
JERÕNIMO
Que preço será,
que preço será?
Será o sol,
será a lua?
Uma estrela
no céu,
um peixinho
no mar?
Ou minh’alma
suspensa no ar?
ANUNCIADOR
Querem o sacrifício
daquilo que você tem
de mais precioso.
Daquele que é o seu bem
mais valioso.
O FILHO
Quer saber? Quando a gente se casou, eu já tava de barriga. Três meses. Foi aí que eu entrei numa fase brava. Me bateu o maior desespero. Dia e noite tinha uma baita vontade de morrer. Tinha vontade até de acabar com a minha vida. A morte não é a única coisa que a gente conhece da vida? A única coisa certa? Pois então? Mas será que dava pra viver com essa certeza? Sentia um peso tão grande dentro de mim. Um peso pelo Jerônimo. Outro peso por mim. Outro pela criança que ia nascer. Rezava dia e noite. Pedia um sinal. De deus ou duma entidade qualquer. Eu me sentia tão culpada. Mas culpada do quê? Qué que eu tinha feito? E por que eu não recebia o tal sinal? Já tava chegando nas últimas, quando tive um sonho e nesse sonho Iemanjá me apareceu e me disse que a salvação eu já tinha, era só ter olho e enxergar e eu aí fiquei sabendo que a salvação era o meu filho que eu carregava bem dentro de mim e foi a partir daí que eu e o Jerônimo...

O AXOGUM
Sou o mão de faca. O matador do terreiro. De mim depende a entidade aceitar ou não a matança e o sacrificado. Deve-se dar um banho nele, limpar a carne e os cabelos de toda impureza. Sua carótida é aberta do lado esquerdo. Colhe-se o sangue num alguidar de barro. Em seguida, abre-se o peito e retira-se o coração. Abre-se por cima a artéria grande e o coração é dividido em duas partes. Corta-se em bifes, que são passados no azeite de dendê, com bastante pimenta malagueta, farofa de água e sal, farofa de marafo, alho feito com areia de praia, acaçá de milho. Depois de cozido, são feitos os bolinhos, enrolados em folhas de bananeira e...

O MENINO
Desceram pelo calçadão. O pai e o menino. O menino tinha cinco anos. Era esperto, de olhos vivos. Segurava a mão do pai. Diante das lojas, pedia coisas. Já tinha comido batata frita e hambúrguer. Agora chupava um picolé de maracujá. O dia estava quente, de céu aberto. O menino vestia um conjunto bege, comprado nas Lojas Americanas. Calçava tênis da Nike, com luzinha nos calcanhares. Dobraram a esquina da Viúva Dantas. Pararam no shopping Passeio. O pai levou o filho ao banheiro. Urinaram. Depois seguiram em direção ao terreiro.

Seis meses depois, Jerônimo tinha sua própria igreja, a Primeira Messiânica do Rio Jordão e um programa na RDTV, em dois horários. Das quatro às cinco da manhã, falava de Jesus e seu maravilhoso sacrifício pelos homens aos trabalhadores. Realizava milagres. Anunciava a venda da bíblia e de outros livros santos. Concedia desconto de dez por cento a quem comprasse mais de um volume. Das cinco às seis e meia da tarde, repetia a mesma coisa para as donas de casa, os aposentados e os desocupados em geral. Fazia milagres variados e pedia donativos em dinheiro para a construção de um grandioso templo da Messiânica, com espaço para vinte mil fiéis, em grande terreno na Rua Jaguaruna. A meia hora final ficava a cargo de Clotilde, que dava receita de bolos e quitutes, misturadas com orações, pedidos de bênçãos e santos ensinamentos dos caminhos para se ganhar o paraíso. Um deles passava necessariamente pelo pagamento do dízimo, em conta corrente aberta no BANERJ. Os depósitos podiam ser feitos pessoalmente ou pelo telefone de qualquer agência, em todo o território nacional.






Biografia:
Escritor não tem currículo nem biografia. Escritor tem talento, texto, amor, ódio e muita hipocrisia. contato@eduardo.borsato.nom.br
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