–Não aceitamos.
–O quê?
A caixa da antiga Sendas, no Viaduto, mulatinha magricela, dentuça, foi quase escarninha:
–Seu cheque, senhor.
–Mas, mas... – balbuciou ele, como se tivesse levado um choque. Saberia ela com quem... Correu os olhos em torno. Ne-nhum conhecido. Ah, aquele anonimato a vibrar-lhe no corpo como uma chibatada, as mesmas chibatadas dos avoengos sobre os das terras do Campo Grande, sobre os crioulos vergados no eito das plantações de laranja, propriedades do avô, estendidas além da ponte Washington Luiz, nos dois lados do Rio Guandu.
O pai pegou-o pela mão, ele com cinco para seis anos, levou-o até o meio da sala. Ele se viu à beira do caixão, os círios acesos, o cheiro, um cheiro que não mais o abandonaria, o pai o ergueu, ele deu com o avô deitado, o corpo mirrado, aquele velho que com ele percorria os desvãos do casarão da Coronel Agostinho, que tinha poderes mágicos, que nos dias de chuva e trovão desviava os raios com o próprio corpo, e seu sotaque em língua estranhíssima, invocando santos e santas e duendes e fantasmas que os protegeriam. De repente sentiu em sua mão a mão do velho e o velho se levantou e com ele percorreu de novo os mesmos caminhos.
–De onde vinha o velho, de onde vinha ele?
–Dos mares e enseadas e praias e areias da Toscana.
Quando aqui chegou, seus olhos se pejaram de deslumbramento, eram os campos, eram os mares e areias do campo grande que lhe tomavam os sonhos, os devaneios, os cansaços, a esperança. Anteviu o futuro e nele o neto e com ele percorreu os corredores da grande casa da Coronel Agostinho e depois, um belo dia, a dor no peito se tornou intensa a ponto de... e agora de dentro do caixão via o garoto, erguido pelo pai, encarando-o e dele sentiu medo e deu um grito que encheu a sala, espantou os fantasmas que nela se acotovelavam.
“Anos depois, aquele foi o grito, o mesmo, que ouvi de meu pai, idêntico, idêntico, ele também a me olhar do fundo do caixão, no cemitério de Campo Grande. Ou seriam os choros e a agonia vindas das outras capelas, ah, aquele cheiro, o cheiro a me corroer, como um agudo espinho. Mãe estava sentada à frente do caixão, sua minúscula figura, toda de preto, os vizinhos, os amigos, a capela repleta de fantasmas. Os caminhos do cemitério eram de areia, o caixão sobre o carrinho, figuras a empurrá-lo, o mausoléu no fim da alameda e sobre ela a sombra dos ciprestes, o vento a balançar as folhas, dança de dançarinos embriagados. Os dois se encararam, o pai e o vô. Era como se entre eles houvesse mistérios, meandros indevassáveis, queixas e queixumes para sempre selados. Vô se deitou, pai se deitou ao seu lado. Em silêncio, o séquito voltou, de novo percorreu as alamedas, distanciando-se dos túmulos, das flores mortas sobre as covas, dos retratos nas molduras ovaladas com figuras que alongavam os olhos sobre nós, travessas, zombeteiras.”
Depois da morte do avô, o pai, filho único, herdou as terras, as plantações.
–O que foi que ele fez?
–O mesmo que todo mundo.
–O quê? O quê?
Cassiano:
–Vendi.
–De rendas passou a viver.
E o campo grande virou imenso loteamento. E as casas e os edifícios se ergueram, e o povo para elas se mudou, os que eram gente viraram sombras, zumbis a entupir as ruas, a vagar à noite pelas vielas, a se perseguir, a se matar pelos becos, seus gritos a apavorar as criancinhas, a suster o sono dos velhos.
–A herança... –Abel encarou Cassiano:–Assim como a propriedade...
Cassiano sorriu, Dimas abaixou os olhos. Estavam os três na varanda do casarão, sentados nas cadeiras de palhinha, ao longo da parede grossa, cor de musgo. Eram quase sete da noite, as lojas começavam a se fechar, o bulício do calçadão arrefecia. Aqueles encontros faziam parte de um ritual, Cassiano recebia os dois quase todos os dias, depois que deixavam o trabalho, Abel subgerente de banco, Dimas alto funcionário de uma financeira. Eram jovens, Abel o mais exuberante, gestos largos, barbicha em ponta, cabelos propositalmente revoltos, um Bukanin suburbano, com fumos de tardio marxismo, apreciador de chope e croquetes de camarão. Era alto, a voz bombástica. Dimas, ao contrário, baixinho, mais para o franzino, a voz débil, sempre um tom abaixo do normal, quase um suspiro, voz de alguém com hérnia estrangulada. A cara lisa, apenas o arremedo de um bigodinho, cabelos alourados, já rareando nas frontes e no alto, bem no meio do cocuruto. Ao contrário de Abel, nada tinha de revolucionário, frequentava a igreja, era quase um papa hóstia. Cassiano gostava de imaginá-lo de batina, a aspergir água benta na cara das fugidias beatas com ar de sono, freguesas da primeira missa das cinco.
–...são um crime!–completou Abel.
–Hein?–fez Dimas.
–Contra a classe operária, contra os oprimidos.
Dimas suspirou fundo:
–Essa lengalenga! De novo? Abel, pelo amor de Deus.
Abel, o dedo em riste:
–Ah! Aí está! Aí está!
–O quê?
E Abel, quase apoplético, projetando o queixo, erguendo-se na ponta dos pés, um Mussolini de fancaria:
–Deus!
–Hein?!–e Dimas olhou para Cassiano, como se pedisse socorro, o ar perdido, de gato em terreno baldio.
–Deus!–repetiu Abel:–A ultima ratio. A razão dos de-sesperados.
–Peraí... peraí...–balbuciou Dimas, enquanto Abel, veemente:
–Sabe por que você acredita? Sabe?
–Não... –sussurrou Dimas, resignado.
–Então imagina, só imagina...
–O quê?
–Deus todo dia tomando o trem da Central, sentando a seu lado.
–Ahn...
–Você continuaria a acreditar?
Dimas fez um gesto desarvorado. Cassiano não desgrudava os olhos de Abel, suas convicções, o que mais esperar?
–Sabe por que não? Sabe?
Dimas, agora com firmeza:
–Peraí... quem disse que eu não...
E Abel, definitivo:
–A banalidade! A banalidade, meu caro! Nenhuma divindade resiste. Já imaginou deus com ataque de soluço? Com chulé? Que crença resistiria ao chulé divino?
Cassiano abafou uma gargalhada, Dimas ergueu os olhos para o céu, resignado. Na rua, o movimento era quase nenhum, subia um ar cálido, que os invadia. Cassiano pensou no filho, já taludo em seus quase quinze anos, no que o esperaria, no que o campo grande, a vida lhe reservaria.
A cena a seguir deve mostrar todo o ar dorido e torpe de uma madrugada suburbana. Deve também parecer fantasmagórica, trecho perdido de algum pesadelo. Passa-se no corredor e no quartinho dos fundos do casarão. São três da manhã. A iluminação é baça, reflete a penosa solidão de uma pequenez que a tudo corrói. O avô caminha pelo corredor, em trajes de dormir: um camisolão de cor indefinida, quase encardido, que lhe realça o lubricidade, não o ridículo. É preciso acentuar bem esse ponto, já que seus olhos, ainda que não de todo visíveis na semiobscuridade, faíscam de desejo, um desejo decadente, porém não risível. É o que deve dar à cena um tom de grande amargor, penúria. O avô tem quase setenta anos. É meão, atarracado, a figura ainda robusta, o pescoço taurino, físico típico dos aldeões europeus do início do século passado. Chega à porta do quartinho. Está aberta. Ele entra, sem fechá-la. Na cama encostada à parede, a crioulinha, deitada entre lençóis amarfanhados. Não se vê seu corpo por inteiro, ela é mais uma sombra, quase um borrão esmaecido. O velho se aproxima, com estudada cautela puxa o lençol, desvenda-lhe o corpo. Ela está nua. E finge não perceber seus gestos, sua presença. O que deve emprestar à cena um ar de pantomina, de canalhice compartilhada, mas velada, escondida. Ele recua, encosta-se à parede e, sem desgrudar os olhos dela, ergue o camisolão, começa a se acariciar. Passam-se breves minutos. De repente, na porta surge o neto. Está com treze para quatorze anos. Entra, despe-se, aproxima-se da cama. A crioulinha, agora fingindo-se de todo desperta, acolhe-o entre os braços, as pernas. O velho, os olhos arregalados, acompanha os movimentos dos dois. Cadencia seus próprias movimentos com os deles, dando abafados, mas indisfarçavelmente tristes gemidinhos de gozo.
O CASARÃO
Ficava bem no centro do terreno. Rodeado de árvores. Gozado aquilo. Curioso. Magine, em pleno calçadão, cercado de falso chiquê, lojas, prédios comerciais, quintal, goiabeiras, mangueiras. De dia, resplendia. De noite, enchia-se de sombras, o avô, o pai, a mãe, a crioulinha a vagar pelos corredores, a dar suspiros doídos, a erguer os olhinhos para o céu, a torcer as mãozinhas. Nas tardinhas de verão, as joaninhas enfileiravam-se no parapeito das janelas, as cigarras empestavam as folhas, os galhos altos. “Não sei por que ele se casou comigo. Disse que tinha sido paixão, assim que me viu. Sei não.” Não era bonita, não tinha fortuna, quase matuta, nascida no Carapiá, só o via quando ele passava de carro. “Mas ele foi se chegando, pediu, eu aceitei, ai, era um jeito, um sonho sair daquela roça, mudar pro casarão, levar vidinha de rico.” Ele foi muito claro: “Você vai fazer companhia ao fantasma da minha mãe. Se sente muito sozinha.” “Verdade, eu podia ver ela zanzando pelos cômodos, sem sossego, uma codorna no chão. Daí em diante, passei a ajudar, ela ficou mais animadinha, a gente servia cafezinho, biscoitinho de araruta que ela mesma fazia no forno de lenha da cozinha pras visitas que sempre apareciam na sexta-feira de noite.” E as duas conversavam sobre o passado, sobre o tempo em que ele era criança, em que o casarão era só uma casa, alegre como as outras da rua, cheias de gente como as outras da rua, até que tudo se foi e só ficou aquele peso, a cova do avô, do pai, dela, no apertadinho do mausoléu, nas noites de chuva. E para que esse peso não ficasse maior, a mãe, que já estava gostando dela, convenceu o filho a transformá-la também em fantasma. Foi o que ele fez. E agora, as noites de sexta-feira se enchem de risos e gritinhos, a ponto de espantar os raros passantes, invejosos de tanta alegria, mesmo em meio à tão lúgubre escuridão.
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