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  Texto selecionado
AGNUS DEI
Eduardo Borsato


     
     
     PERSONAGENS
     PASTOR – Morreu de velho. Pneumonia dupla, em madrugada ventosa. Foi considerado pela comunidade evangélica campo-grandense “um príncipe entre os pregadores do Evangelho”. O filho está angariando recursos para publicar um livro de louvação à sua vida e obra.
      FILHO – Encontradiço nas madrugadas pelos becos e botecos locais. Empilecado, uiva versinhos à lua, conta pintassilgos à meia-noite, chora amores sagrados e eternos.
     NETO – Prestou concurso para a polícia. É cuidador de presos no presídio de segurança máxima Bangu I.
     PADRE – Retirou-se para o convento da Imaculada, em Tere-sópolis. Vive em reclusão, entregue a penitências, jejuns e orações, temeroso de que sua alma seja presa fácil para Satanás.
     MONSENHOR – A contragosto, permanece em Campo Gran-de. Tenta desesperadamente integrar-se a seu rebanho. A tal ponto que muito contribuiu para a elaboração deste texto.
     
                            LOUVORES
     Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
     Teus são o louvor, a glória, a honra
     E toda a bênção.
     Só a ti, Altíssimo, são devidos;
     E homem algum é digno
     De te mencionar.

     A INVEJA
     O padre beija a mão do monsenhor, quase se atira a seus pés e, dramático, um Pavarotti de sacristia:
     –Nossa igreja periclita.
     Monsenhor se assusta:
     –Hein?
     –E periclitamos com ela. Todos nós.
Monsenhor:
     –Eu não periclito coisíssima nenhuma. Onde já se viu? Que história é essa? Fale por você.
     –O pastor.
     –Que pastor?
     –Foi o escolhido. Por Ele.
     –Escolhido?
     –Para nos dar uma lição... de amor... humildade... a mais pro-funda...
     –Não preciso de lição alguma.
     E o padre, embora os olhos baixos, embaciados, com um meio sorriso:
     –Não?
     Depois, desarvorado, esfregando as mãos, em puro desespero, num balbucio:
     –Ele nos trocou... e o preferiu... por quê... por quê?
     Velhote, baixinho, frágil, olhos cansados, mas acesos. “Acesos em demasia. Olhos de demente”. Monsenhor deu um suspiro fundo. Ao contrário do outro, era um sujeito de meia idade, mais para o jovem. Mastodôntico, sapopançudo, jamais cabia dentro das batinas, a cabeça de ogro careca, os lábios finos, assustadiços. Jonas patinhando na barriga gosmenta da baleia, tinha assumido há pouco a paróquia de Campo Grande. “E agora me vem esse sujeito com...”
     –Peço-lhe que interceda... por mim... –disse o padre.
     –Interceder?
     –Junto a Ele... peça-Lhe que me conceda o mesmo...
     –Ora...
     –Caso contrário... se Ele não... corro um risco enorme...
     –Risco?
     –De relegá-Lo... de... – levou as mãos ao peito, ergueu os olhi-nhos para o altar:
     –De perder minha alma... de me entregar ao...
     Lambia as chagas de Cristo. Pretendia chantagear o paráclito. Paróquia em crise, crentes mofinos, vocação nenhumas, e agora aquilo. Oh! Non nobis, domine, nom nobis, sed nomini tuo ad glori-am.
     E o padre, agora ciciante, mas num jato, como em confissão:
     –Crescemos juntos... a mesma vocação... ele preferiu o desvio, o evangelismo... segui a vereda reta, da Santa Madre ... mesmo as-sim... mesmo assim... o assassino da filha... ele o visita... leva o ne-to... na Ilha Grande... beija-lhe os pés... perdoa-o... a cada instante... recebeu a dádiva... é um santo... um santo... enquanto que eu... eu...
     Estonteado, deu alguns passos a esmo, saiu da sacristia. Mon-senhor o acompanhou com os olhos. No pátio, uma lufada de vento agitou-lhe a batina. Ele se desengonçou, um boneco, o vento a de-sengonçá-lo mais ainda, como se um súbito e forte sopro o engolfas-se, o súbito e forte sopro de Satanás. “Vade retro! Ai, Jesus!”. E monsenhor fechou a porta, albergou-se sob a sombra do Senhor.
     

     O PREÇO
     E os quatro círios se acenderam. E as quatro bestas deles se aproximaram. O cavalo reluzente do deus, de crinas esverdeadas e cascos argênteos, com eles lutou e lutou. Covas e abismos escuros e sombrios se abriram aos seus pés. E a cara façanhuda do assassino, um Mefistófeles com diarreia, apareceu.
     Na manhã de raios azuis ele à porta bateu. Ela, criança a correr por entre lírios, a porta lhe abriu, na fronte um diadema de flores matinais. Em dança muda, cheia de risos, levou-lhe os braços ao peito, cingiu-o com seu amor. Concedia-lhe o perdão, os vidros gotejantes da vilania não mais escorreriam por aquela manhã suburbana. E o menino, o filho, os cabelos cintilantes, a eles se juntou. Oh, seu abraço de cristal. Qualquer que os visse diria que o deus neles se corporificara.
     Um estampido espocou, os vizinhos se alvoroçaram. Oh, seu abraço de cristal! O dorso curvo da besta mais se curvou, perdeu-se numa brisa, leve, sem culpa, sem detratores. O tesouro tinha sido enfim violado. Logo as bestas tomaram a peia, estilhaçaram o arco-íris. Os vizinhos gritaram. Morta ela jazia.
     Onde estaria o brâmane, o deus menino que lhe pedia para dar a outra face? Como nele agora acreditar, velar suas palavras, em voos escarlates com elas atravessar as planícies, as montanhas, ver-se nos penhascos da ilha, daquela grande ilha na qual o carrasco fora exilado? Sua sabedoria de nada adiantava, mas o mandamento devia cumprir, aos prantos, na boca o sal de mil anos, no dorso o furor de mil açoites. E nos olhos o perdão ofertar.
     A noite caiu sobre ele, a estrada sem lume. Teria mesmo levado o amor? Como o deus, que tudo enxergava, o veria? Como dele esconder o negro escorpião, o rubro rancor? Por que o deus lhe dera a imposição da escolha? Oh, ser inteiriço. Oh, as delícias da mentira com o deus compartilhar. Oh, tudo, tudo, menos aquele luto. E aquele triste duvidar, aquela primavera que não vinha, o feitiço do mar. Oh! Oh!
     
     NO BAR – A FAMÍLIA
     O FILHO – Olhos franzidos, miudinhos, uma toupeira caolha. Sujeitinho curioso, possuidor de manias: tinha de cor e salteado o nome de todos os cornos de Campo Grande; tinha tampinhas de re-frigerante Mirabel, encontradiças à vazante das praias onde o vento sopra a barlavento.
     
     Leninho, leninho   
     vou curtindo    
     o meu caminho.
     
     Madrugada brumosa, o vento varre o balcão, caraoquê comen-do solto, gritos, vozes, sufocados empilecados a se agitar, pulgas no pulgueiro, o sobrinho fala pausado, a voz, gangster de cinema mudo:
     –Você torturava o meu avô.
     –Jamais.
     –Por quê?
     –Jamais. Torturei.
     –Com um alicate de unha.
     –Jamais, jamais.
     –Cortava-lhe pedaços da orelha.
O FILHO (avinhado)
     Ora, não venha,    
     não venha
     estragar   
     o meu ninho.    
     De belo e nobre      
     passarinho.
     
     –Morria de ciúme dele.
     –Do pastor?
     –Seu pai. Meu avô.
     Morria, morria. Depois do assassinato da filha, a mãe defi-nhou, virou ninguém. Um traste. O tempo todo. E vinham-lhe coi-sas, sua infância, a infância da filha, um anjinho que ensombrava os cômodos, levitando, grávida, diáfana, era o vento, aquele vento que inundava o sobrado, que será que o pai fazia durante as noites da agonia, trancado com a irmã dela, o calor abafado, as vozes abafadi-nhas, ah, ele morria, morria, sim.
     O SOBRINHO¬–Porque ele se casou com a irmã de minha mãe.
     –Oh, oh.
     –Sua paixonite. Aguda.
     –Oh, oh.

     Lampião de gás,   
     lampião de gás,   
     quanta saudade   
     você me traz.
     
     Cortava-lhe, sim, pedacinhos da orelha. A esquerda. Amontoava-os nos caixilhos da janela. No sótão. Salgava-os. Tostavam ao sol. E os pardais vorazes vinham devorá-los todas as manhãs e ele se deleitava, ah! a algaravia, pios desencontrados, penas esvoaçantes, revoadas cortando as manhãzinhas.
     
     Menina dos olhos grandes   
     não olhe tanto pra mim.    
     Se não quer o meu amor,     
     por que me olha assim?

     O sobrinho o ensombrava. De dia, noite, de madrugada oh céus, seria o deus, seria o quê, uma alma penada?
     O FILHO–Não há justiça nisso.
     E o fedelho, gambá neurótico, os traços curtos, sem qualquer fogo, um porquinho da índia mumificado:
     –Pois eu te acuso.
     Sorria-lhe, às escâncaras, enquanto os bêbados no bar, um bandolim de grilos, assuavam-se, afogueados. Julgava-o, o fedelhu-do, procurava um sentido, oh, mártires das catacumbas, acudi, acu-di. Saberia ele no que tinha-se transformado sua amada, depois da morte do pastor, do pai?
     –Saberá ao menos dizer para onde ela foi?
     –Ora, para os lados do mar.
     –Então me deixe procurá-la.
     
     E quando a encontrar,   
     me deixe tudo esquecer.    
     As dores, os penhores,   
     os atos e os fatos.    
     Me deixe apenas viver.

     E a noite caiu sobre eles, verdosa, pujante, o vento a puxar as nuvens para o cimo do morro do Rio da Prata. Lá do alto, maroto, o pai, o pastor, de fraque, a espreitá-los através do lorgnon prateado, a rir-lhes um riso enviesado, agnus dei, agnus dei.




Biografia:
Escritor não tem currículo nem biografia. Escritor tem talento, texto, amor, ódio e muita hipocrisia. contato@eduardo.borsato.nom.br
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