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Homero
Lucas Dames

Início de noite de uma quinta-feira qualquer numa pequena cidade do interior do Rio. Homero caminhava pensativo dedilhando o violão; meio cansado da rotina. 19 anos, mulato, estatura mediana. Ensino médio incompleto, queria ser músico profissional. E tocava bem. Seu sonho era tocar como Peter Tosh. Trabalhava numa oficina mecânica pra manter uma vida bem modesta. O que ganhava com música mal dava pra boemia. Era órfão e foi criado por uma tia.
Quando chegou à Praça Amaral Peixoto, alguns carros pararam buzinando perto dele. Viu Luis Roberto, um amigo que fazia faculdade no Rio e tinha ido morar em Niterói. Era do tipo agregador, carismático. Com ele havia mais meninos e meninas dali mesmo e de fora.
- Bora, cara! Luau! A galera toda ta indo. Entra! – disse, risonho. Sem pestanejar, Homero apertou-se no carro de Luis Roberto. No rádio tocava Secos e Molhados. Desceram a Rua Luiz Gomes e tomaram uma estrada de terra que dá nas Cabiúnas, onde a Lagoa de Juturnaíba proporciona um belo horizonte no qual, vez ou outra, a lua nasce escarlate. Lugar ideal para o que a turma queria. Pararam próximos à margem. A água batia sonora num vento quase morno de setembro, e brilhava forte sob o quarto crescente. Logo começaram a tocar – violões, flauta, bongô -. Havia isopores com cerveja além de garrafas de vinho e cachaça. Homero bebia e deslizava os dedos nas cordas do seu violão como se acariciasse uma paixão. Solava numa improvisação cheia de originalidade e de marcas do que gostava (reggae, samba de raiz e rock n´ roll).
O clima era o habitual: a galera local e suas figuras. O novo e excitante eram as pessoas de fora. E todos já trocavam idéia como se fossem velhos conhecidos. Faziam uma roda para a cantoria, enquanto rolavam muitas conversas e gargalhadas paralelas, além de flertes e beijos e etc.
No meio de toda essa descontração Homero olhava Alice; e não conseguiu mais deixar de tê-la em vista. Lia as palavras na sua boca, estudava os gestos, as mexidas no cabelo. Era bonita! Pele branca, loura, olhos azuis. Traços angelicais num rosto expansivo, que contrastava com algo vulcânico no olhar; conferindo-lhe um aspecto deveras atraente. Tinha maneiras extrovertidas, marotas. Era isso o que mais seduzia Homero, na sua timidez. Ela falava com ele; pedia músicas; agradecia; elogiava. Às vezes deixava uma ponta de dedo deslizar pelos seus braços.
Conversava-se sobre astronomia, astrologia. O céu estava radiante! E de música, cinema e literatura às fofocas locais e da grande mídia. Quando alguém falou na Lei da Ficha Limpa e perguntou a opinião de Alice, ela deu uma risadinha e respondeu apenas: - sou anarquista! –. Homero não entendeu e ficou olhando em vão na espera de algum complemento. Alice estendeu os olhos pra ele e assim permaneceu, numa pose que explodia feminilidade, deixando-o estático. Ela moveu os lábios de mansinho num riso sacana e, súbito, laçou a boca na dele, num beijo longo e explorador. Trocaram afetos até o fim da noite, entre papos e risadas. Seus universos sociais eram completamente distintos, mas isso nada importava a Alice e, pra Homero, era quase um sonho. Ela disse que tinha 21 anos, morava em Icaraí e fazia Direito na UFRJ. No fim ela ainda lhe dizia que adorara seu gosto musical, seu tato e suas viagens. Ele ria e lhe dedicava as palavras mais lindas do seu dicionário.
E o luau foi penetrando a madrugada, predominando MPB. Sentiram cheiro de erva queimando num canto. Homero deu uns tapinhas. Alice não gostava, mas apreciava a marola. Dizia que sua cabeça já era, “por natureza, muito viajante e via adiante...”
Homero pegou a primeira carona que pintou. Trabalharia cedo no dia seguinte. Despediram-se num beijo que não queria acabar, dentro de um abraço ardente. Ele, que jamais se apaixonara de verdade, foi embora levitando com o telefone e o perfume dela.
Ao entrar no seu casebre, arregalou os olhos. Atônito, via dois conhecidos policiais que estavam à paisana e sorriam; um com uma sacola na mão. O outro com uma arma. O coração dele gelou. Sabia que tinha rodado - depois de certa relutância, consentira em guardar em casa pequena quantidade de cocaína de uns traficantes (amigos de infância) -. Recebia um troco por semana pelo depósito, mas fazia aquilo a contragosto. Estava com umas contas atrasadas e precisava terminar de emboçar sua meia-água, que ele próprio erguera porque não queria mais incomodar a tia, a quem mantinha respeito e carinho. Antes que pudesse dizer algo, levou um tapa na cara seguido de um chute na barriga. Caiu no chão. Jogaram o violão na parede, danificando o braço. Tomou umas porradas a mais enquanto via seus poucos pertences serem jogados num valão que passava rente.
- Seu maconheiro de merda! Quero tu fora da cidade! Entendeu? Tem dois dias pra meter o pé. Depois disso é vala, tá ligado? – disse um deles apertando sua garganta enquanto o outro lhe batia nas pernas com cassetete.
Saíram deixando Homero completamente desorientado. Sentia vontade de chorar; não conseguia. Conhecia pessoas que talvez pudessem lhe ajudar, mas estava com muito medo. Sabia de sua vulnerabilidade. Era pobre. No dia seguinte, juntou as poucas coisas que lhe sobrara numa mochila e, despedindo-se de poucos, rumou para uma das centenas de favelas do Rio de Janeiro, onde morava um primo que não via há tempos. Levava o violão. Conseguiria consertá-lo. Do resto nada sabia; destino impostor imposto pelos homens da lei. Mas era acostumado ao improviso. Toda sua vida fora assim, na base do jeitinho.     
E os donos da mercadoria encontrada continuaram, sem vício, o exercício de seu mister. Pagavam em dia o arrego. Só tiveram um pequeno desfalque para o abastecimento da cidade, que serviu pra engordar um pouco a caixinha das necessidades mais urgentes daqueles policiais: um sonhava com uma casa em Búzios. O outro já se via numa BMW branca.
Quando atravessava a Ponte Rio-Niterói, em certo momento Homero sentiu um frio na espinha. Pela janela do ônibus viu um avião decolando e pensou em Alice.


Biografia:
Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em março de 2004; advogado e servidor público. Vivo a juntar umas palavras o tempo todo quando posso minha inquietude apoquentar. Alguns textos publicados a partir de outubro de 2011 pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores - CBJE - e, a partir do início de 2012, na Escrita - Biblioteca Virtual -.
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