Orácio andava; não sabia pra onde. Pensava nela. Amava! Amava Isabela já num ponto em que não conseguia deixar de odiá-la. O crepúsculo insinuava suas últimas cores no céu. Caminhava por ruas meio desertas com os olhos num horizonte embaçado. Fazia muito calor; sentia muita sede e cheiro de lixo. Começou a buscar a direção da Riachuelo, sem saber se iria pra Lapa ou para os lados da Praça Onze. De repente, passou ver pessoas paradas em frente a um boteco sujo. Era um sobrado do fim do século XIX com uma placa de hotel. Tudo parecia muito excêntrico e natural. Dentro, chamava a atenção um cara sentado que ria alto e gesticulava sem parar, abraçado a duas mulheres que também riam. Velho, baixo, calvo, muito barrigudo e uma alegria nos lábios murchos e arroxeados.
Entrou e ficou em pé no balcão. O rosto dela apareceu na sua frente. Imenso. Ele ficou paralisado. Ela era linda! Charmosa! Gostosa! Ele sentiu um desespero; perdido por estar fora dos domínios dos carinhos dela. Não ouvir mais as vozezinhas que ela lhe fazia nos momentos de maior intimidade. Lembrou do perfume, do sorriso, da cintura dela. Das palavras de incentivo nos momentos complicados. Do sexo certo, imprevisível e completo. Quase chorou ao se lembrar de uma viagem que fizeram no início do namoro. Abriu os olhos e viu uma parede branca; cheia de infiltrações. Havia um cheiro de mofo no ar. Virou uma dose de conhaque e pediu outra. Em seguida deu um longo gole na cerveja gelada e uns tragos no cigarro. Tocava um samba de Cartola.
- Sente-se, meu nobre rapaz! - Orácio virou e viu o cara barrigudo em pé fazendo um gesto, quase reverencial, pra que sentasse.
- Obrigado. Tudo bem? Orácio - e apertou sua mão úmida e mole.
- Tranqüilidade! Pode me chamar de Geléia. Tu nunca teve aqui...
- Tava meio perdido, com sede; vi o bar e entrei.
- To vendo que tá perdido mermo - deu um gole num rabo de galo -. Como eu conheço essa cara! Mulheres... – Orácio olhava fixamente pro cara, numa curiosidade voraz. - Meu jovem, elas são pura ilusão! Por isso é que digo: o negócio é metiê pa dientro - fez uma cara maliciosa com olhos desvairados e Orácio riu com gosto. - Mas qualé a parada, meu nobre: amor platônico ou tu é corno? - Riu escandalosamente. Orácio riu sem vontade; desviou os olhos pra rua; abaixou a cabeça e acendeu um cigarro. Bebericou um pouco enquanto olhava algumas mulheres feias e maltratadas subindo e descendo com homens bêbados.
- Me largou pra ficar com um cara que eu detesto; que só me sacaneia. Não consigo suportar os risos das pessoas atrás das costas. Nunca esperei isso dela. Logo ela! E ainda disse que me ama. Cínica! Vagabunda!
- Ah! Um brinde! A vida é assim. Eterna dança das cadeiras - riu com a boca escancarada faltando alguns dentes. - As mulheres são uma ilusão! - Falou num tom solene e gargalhou. Olha isso! - abria os braços pros lados mostrando o bar. Vem e vão estonteantemente fácil. Ondas deixando marcas em nossa praia. Apesar do sexo e percepções sensitivas diferentes, inclusive com um ou dois sentidos a mais, no fundo têm os mesmo desejos e aflições que nós. De outro jeito, claro. Outro modo de pensar e ver, mas é a mesma coisa. Isso que equilibra. Cê deve tá sendo muito rigoroso com sua moral. Em pleno século XXI! Um rapaz de não mais de 30 anos! Os cacos do velho mundo ainda se agrupam. Essa babaquice continua mesmo após a contracultura. Somos fruto de milênios vividos por uma civilização machista e hipócrita. Cara, penetre o universo feminino. Precisam de carinho; todas elas. Sempre. Se cê ficar sem saber como fazer um carinho, cai fora. Porque a coisa vai desandar. Todas têm um ponto fraco, que pode ser teu ponto forte! Até as mais secas e autoritárias se entregam vertiginosamente. É só saber os toques e palavras certas. Aí é tua. Mas se não souber cuidar, já era. Os dengos, os charmes, as exigências sem pé nem cabeça; as mulheres são fascinantes! Sempre preferi vê-las mais soltas do que trancadas em certos padrões de conduta. O homem sempre teve medo delas. Da sagacidade; instintos; seus olhares finos e certeiros. São elas que movem o mundo, meu chapa! Impulsionam as grandes mudanças com observações impertinentes aos nossos ouvidos e olhos medrosos e dominadores. Finalmente os homens parecem ter entendido e elas não cedem mais – atento, Orácio mirava Geléia, bem diferente de quando sentou. Parecia querer ouvi-lo agora. - É por isso que te falo: se entregue a elas em liberdade e atenção - e ria convulsivamente.
Surgiu uma menina meio bonita, não parecendo ter mais de 18 anos. Geléia ficou louco e falou expansivamente: - Jujubinha! Que bom que sobrou na pista! Tava morrendo de saudade, amor! - Ela foi sorrindo pra perto dele; sentou em seu colo e beijou-lhe a boca de língua. - To apaixonado, cara!... Desculpe, mas vou ter que subir. Divirta-se com minhas meninas. Afogue suas mágoas, rapaz. A vida é doce... de tão amarga. – Levantou-se abraçado com a menina, cantando um funk proibidão e mexendo a bunda grande pros lados num compasso que só ele parecia saber calcular. No meio da escada, virou e disse: - Meu caro, as mulheres são nosso melhor refúgio e o pior suplício; sofrer por elas é o maior louvor que lhes fazemos. Só não exija mais do que elas podem suportar. Não cobre o que você mesmo não suportaria. Orgulho é correr atrás do vento. Nada de novo debaixo do sol... – fungou o nariz e subiu rindo com sua menina.
Orácio ficou ali um tempo; absorto. Pagou a conta e se mandou; trocando as pernas pela noite. Pensou nos erros dela... e nos seus. Quando deu por si, já estava na Glória. Foi dormir antes das três da manhã. Levantou cedo espontaneamente e se deu conta de que não estava de ressaca. Ao contrário, sentia uma inusitada disposição. Lembrou de Isabela e, pela primeira vez em semanas, não sentiu raiva; só saudade. Riu de si mesmo, emitindo um som curto e seco do fundo da garganta. Por uma fresta da cortina do quarto viu um céu bem limpo e claro. Lembrou-se da noite anterior... E foi à praia.
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