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Constança
Eduardo Borsato

Constança

     

     Sufocado pela fumaça do charuto barato da suerdieck, Elias viu surgir de dentro dela a cara balofa de Exu Trinca Ferro. Que, peremptório, depois de mais algumas baforadas, a voz rouca de um Rei Momo de turbante, garantiu:
     –Teu pinto vai cair.
     –Hein?!
        Elias sentiu uma pontada no coração.
     Há coisa de uns quinze dias, uma ferida dolorosíssima o atormentava. Procurou o doutor Alberto, que, depois de examiná-lo, ao contrário do ar alegre e bonachão de sempre, disse, a voz seríssima, um São João depois de escrever o Apocalipse:
     –Vou encaminhá-lo a um oncologista.
     Seguiu-se uma enfiada de exames, radiografias, junta médica, uma sarabanda infernal da qual ele saía como tinha entrado, ou seja, absolutamente arrasado.
     Enfim, primeiro judeu macumbeiro de Campo Grande, e inteiramente desesperançado da ciência, fez o que devia ter feito desde o início: procurou seu babalorixá. Que repetiu:
     –Teu pinto vai cair. Tá podre.
     E Elias, balbuciante:
     –Mas... mas... certeza?
     Trinca Ferro deu um gemido rouco, trincou a ponta do charuto, encarou-o, os olhinhos apertados:
     –Tás duvidando?
     –Não, não... mas é que...
     –Tua mulher.
     –Qué que tem?
     –A culpada.
     –Constança?!
     –Mandinga.
     –Escuta... escuta...
     –A xoxota dela.
     –A xoxota?
     –Não tá gosmenta?
     –Hein?!
     Ultimamente, Constança... bom, tinha se queixado de... já tinha até consultado o ginecologista e...
     –Não gosta mais de tu.
     –O quê?!
     Trinca Ferro de novo mastigou o charuto, encarou-o:
     –Tu é surdo?
     –Não, mas...
     –Ela tem nojo de tu. Daí a gosma.
     –Mas a gente faz sexo como antes e ela...
     –Tá fingindo.
     E Elias, a voz contorcida, em tremenda angústia:
     –Por quê? Por quê?
     –Além de surdo, tu é burro?
     –Ai...
     –Ela finge porque tem nojo.
     –A mandinga?
     –Qué que tem?
     –Ela que fez?
     –Pode ser, pode não ser.
     –Ué, mas então...
     –Vou desfazer.
     –E aí ela volta a gostar de mim?
     E Trinca Ferro, de novo encarando-o:
     –Tu é mesmo uma besta. Ainda não entendeu?
     –O quê?
     –Desfaço a mandinga. Só.
     –Quer dizer que ela...
     –Morreu pra tu. Não procura mais ela como homem. Teu pinto cai de vez. Sem cura.
     Elias quase gritou:
     –Eu continuo gostando dela. Amando.
     –Transa com outra. É o jeito.
     –Mas... quer dizer... quer dizer que eu estou condenado a... – gaguejou Elias.
–Está!
Trinca Ferro deu-lhe as costas, afastou-se, em meio a um aura de fumaça.
          A FALECIDA
No leito de morte, num arrepiante vagido, os olhos revirados, Constança gritou:
     –Pablito! Meu amor! Pablito mio! Ai, Pablito! Ai, ai!
     E morreu.
     Elias enxugou uma furtiva lágrima, Dr.Alberto, cerrou os olhos da defunta, os parentes e vizinhos, na sala ao lado, iniciaram uma sentidíssima ladainha.
             A FILHA
Tinha os olhos tristes, de agonia.
Ai, por que será,   
por que será    
tão triste   
o olhar de Ana Maria?

Papai sempre vinha almoçar em casa. Chegava à uma hora. Pontualmente. A gente comia junto. Ele, mamãe, eu, meu irmão. Papai gostava muito de carne picadinha com quiabo. Pedia sempre. Às duas horas, ele voltava pra loja. Às duas e meia seu Pablo chegava. Conversava um pouco comigo e com meu irmão, depois se trancava no quarto com mamãe. Eu ouvia os dois conversando baixinho, o risinho dela. Depois ficavam quietos, só dava pra ouvir uns gemidos abafados, entrecortadinhos. Às três e meia ele ia embora.
              A DECISÃO
–Não venho mais, pronto.
–Mas...
E Constança, definitiva, puxando para si a ponta do lençol, tentando se cobrir:
–Em motel, nunca mais.
–Ai, meu Deus!
Pablito, ou Pablo Alvarez Vicunha, olhou-lhe as coxas perfeitas, os braços roliços, os olhos amendoados, de um azul faiscante, gemeu fundo. “Mulherão! Mulherão!”. Chileno, baixinho, barrigudinho, modestíssimo propagandista de laboratório, um prosaico Che Guevara com caxumba, Pablito com ele compartilhava apenas o idioma e uma sacrossanta fama de guerrilheiro perseguido e injustiçado. Coisa, aliás, que só o favorecia. E da qual, safadamente, tirava o maior partido. Acima de tudo com as mulheres. Tinha sido assim com meia dúzia delas, até que encontrara Constança. Ela era tão... tão... Mas agora via-se na iminência de perdê-la, a menos que...
–Sou uma mulher casada.
–Eu sei. Só que...
–Não posso me expor. Me comprometer.
–Se comprometer?!
–Ora, acha que ninguém vê a gente?
–Mas a gente tem variado. Não vem sempre no mesmo motel.
–Pior ainda.
–Pior?
–Os motoristas... os atendentes... além do mais...
Fez uma pausa. Levou uma das mãos ao cabelo, ajeitou-o. Ficou alguns instantes assim, o braço erguido. Ele lhe via o sovaco. Depilado. Era tão excitante que...
–... sou professora pública. Muito conhecida. Já pensou? Dar de cara com um aluno meu? Sem falar que Campo Grande tá cheio de fofoqueiro. Sabia?
–Não... eu não... quer dizer...
Diabo, a conversa estava tomando um rumo que... ele era pobre, não tinha carro, dividiam o motel e... tinha mulher, filhos... será que ela se esquecia que...
–Escuta... eu sei... já pensei nisso...
–Já?
–... em alugar um apartamento... um cantinho só pra gente...
E ela, débil:
–Peraí... peraí...
–... mas é que agora não dá... uma miséria o que eu ganho... e tem minha mulher... acho até que ela...
Constança quase gritou:
–Não tou pensando em nada disso!
Ele a encarou, espantado. Constança tinha se levantado, vestia a calcinha, o sutiã.
–Ora, mas então...
Ela se voltou para ele e, os olhos cintilando:
–A partir de amanhã, te espero lá em casa. De tarde. Depois do almoço.
O FILHO
Mamãe e a mulher dele ficaram muito amigas. Ela se chamava Gertrudes. Não era chilena. Era uma mulatinha baixinha, muito sorridente. Tinha nascido no Méier e eles se mudaram pra Campo Grande logo depois do casamento. Tinham duas filhas pequenas. Vinham muito aqui em casa. As meninas ficavam sempre brincando comigo. Minha irmã não queria saber delas. A gente também ia na casa deles. Quando mamãe ficou doente, dona Gertrudes foi uma mão na roda. Cuidou muito dela. Mamãe sofreu muito, teve câncer no ovário. Papai ficou sem cabeça pra nada.
               O ENTERRO
     Pablito segurou um das alças do caixão. Elias teve uma violentíssima queda de pressão. O Dr.Alberto lhe aplicou benzetacil na veia. Elias não conseguiu ir ao enterro. Ficou prostrado em casa. Dava urros de ensurdecer um urso. Não deixou vizinho nenhum dormir. Ficou por três meses assim. Findo os quais amigou-se com a gerente de sua loja de roupas e utensílios para o lar em geral, na Rua Gianerini 33.
     Abandonou também a macumba, deu adeus a seu babalorixá. Voltou ao seio do velho e bom deus de Abraão. Com tamanho empenho que pretende fazer uma viagem à Israel, para se aprofundar nos   ensinamentos rabínicos e nos estudos da Torá.


     
     
     
     
     
     
     
     
     











Biografia:
Escritor não tem currículo nem biografia. Escritor tem talento, texto, amor, ódio e muita hipocrisia. contato@eduardo.borsato.nom.br
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