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A saudade preservada
O silêncio que abraça
Paulo Valença

Resumo:
No reencontro com a mãe, D. Marilda, Júnior e ela se lembram do velho Mateus... E o repentino silêncio que os abraça no aconchego da recordação.

1
Defronte do mercado de Beberibe o pai na barraca, vende laranjas, melancias, tomates, jerimuns, melão, banana, uvas, e sorrindo:
- Que vai querer mais, freguês?
O sujeito baixote, que todos os sábados aparece para fazer as compras, sorrindo responde:
- Mateus por hoje já basta.
- Você é quem sabe. Se for por causa do dinheiro...
O outro se mantém sorrindo:
- Eu sei disso. Você é um cara arretado!
Segura as sacolas, distribuindo-as em cada braço e se afasta:
- Vou lá!
- Vai com Deus, freguês.
Voltando-se o pai fala:
- Júnior me ajude a arrumar essas laranjas.
Ele atende e com o pai arruma melhor a mercadoria.
Às laterais da barraca, transeuntes passam, na agitação natural do sábado pela manhã. O sol esquenta.
- Calor da peste!
- Tá mesmo pai.
Apressa-se, temendo ouvir a reclamação costumeira:
- Menino olha a moleza!
- Mas pai...
- Meu filho você tem de ficar mais ligado ao serviço. Mais ativo.
A nova freguesa chega e, na saudação conhecida:
- Bom dia, seu Mateus.
O pai outra vez sorrindo:
- Bom dia, D. Madalena. O que a senhora manda?
Ela também sorri, iluminando o rosto moreno, de traços corretos, bonito:
- Quem sou eu pra mandar? Me veja aí dois kilos de melancia e um de uva.
O braço comprido, a mão do pai cortando a fruta, atendendo-a. E ele, para o senhor avermelhado, gordo, que também se avizinha da barraca:
- Diga, seu Elias.
- Ou menino... Mas você tá é crescido. Por esses dias vira um homem!
Ele entende e responde à indireta:
- Seu Elias que é isso? Homem eu já sou.
Este gargalha aquiescendo, malicioso:
- E eu não sei disso, Júnior? Mas me pese dois kilos de uva.
Apressa-se atendendo a solicitação, enquanto a freguesa ao lado, se despede do pai:
- Obrigado, seu Mateus. Vou indo.
- De nada, D. Madalena.
A mulher se afasta. Rebolando as ancas nos passos cadenciados do corpo bem-feito. Assemelhando-se a um animal provocante, no convite sensual.
Os olhos de pai e de seu Elias também seguem a imagem do pecado se indo, confundindo-se entre os que fazem parte da feira agora mais agitada ante o avanço da manhã.
O azul do céu se destaca, pois é verão, e tudo se entrega à rotina da manhã do sábado movimentado da feira.
- Júnior pese aqui o gerimum.
- Certo pai.
Desperta ao trabalho, executando-o em gestos apressados, temendo a reprimenda do pai, contudo, não a evita:
- Júnior pelo amor de Deus, apressa isso, menino!
O freguês que aguarda sorri. Compreensivo. Entendendo tudo.

2
O rosto branco do pai, suando, os olhos aflitos, os lábios trêmulos, a voz perdida, e o fiscal:
- Você bem sabe que é proibido botar a barraca aqui. É ordem da prefeitura. Dê um jeito de tirar pra dentro do mercado.
Ante a ameaça, enfim a voz do pai sai baixinha, em defesa:
- Mas... Pra eu botar a barraca aí dentro, tenho de mexer com os “pauzinhos”, para conseguir a legalização do negócio.
O homem grande, negro, prático encerra o diálogo:
- Problema seu. Se vire!
- Mas, moreno...
- Por enquanto, você tá livre. Me pague a taxa de cinqüenta “paus” e depois a gente vê como fica...
A mão nervosa do pai abre a gaveta da mesa, em busca da cédula. O rosto duro, mais fechado, negro, do fiscal. A humilhação ante o olhar de dois homens próximos, que disfarçam, fugindo os rostos de lado. Respeitando a dor do feirante... A cena que jamais a esquecerá enquanto viver.
- Tá, Mateus. Vou lá! E vai até a prefeitura. Lá, você me procura.
- Sim, sim.
Devagar, cabeça erguida o fiscal se afasta, para adiante, repetir a ameaça, e adquirir mais dinheiro.
- Safado.
A voz baixa, enrouquecida do pai, na libertação do desabafo do que sente e, para ele, Júnior:
- Vá aprendendo a ver a vida como ela é realmente, filho. Nesse mundo o que vale, pesa é o dinheiro, que tudo pode, compra.
Ele entende, e pensativo arruma as frutas, aproveitando a pausa dos fregueses ante a hora do meio-dia.
No futuro, um dia, não mais estará aqui na feira, trabalhando com o pai, será outro Júnior. Sim, para isso acontecer é que está estudando à noite. Aprendendo a profissão de torneiro mecânico. Especializando-se. Sim, será outro...
- Venha cá, Júnior.
- Tou indo pai.
3
Estaciona o automóvel. Ali em cima do morro, está à casinha com o terraço, de porta e janela, o muro baixo defronte, com o portão ao centro.
Fecha a porta do carro e com vagar sobe a escadaria longa, estreita.
A tarde vai mudando, com o vento que circula frio, anunciando o começo da noite. Sobe. O pai estará no terraço, naquela cadeira de balanço, cadenciando-se, o olhar perdido? Magro. A cabeça alva. Os gestos calmos. A voz presa, contida pela idade, o desencanto da vida. O silêncio da velhice. O Pai hoje o reconhecerá? Ah, por que a gente tem de passar por instantes assim de uma realidade cruel?
- Por quê?
Conclui a subida e ruma ao portão que dá acesso ao terraço, à residência.
Diminui os passos, como sempre procede ao visitar o velho, como se temesse algo, prevenindo-se.
De uma casa circunvizinha o rádio toca o “brega” do momento. Por que pobre gosta tanto de ouvir música?
- Para se esquecer.
Sorri irônico, concluindo o pensamento. Abre o ferrolho.
No terraço, o rosto do idoso se volta. Reconhecendo-o?
- Sou eu, pai. O Júnior.
Então, a voz baixinha, num sussurro do velho:
- Júnior? Ah, entra esse menino.
Com um aperto no coração, sensibilizado, ele aquiesce. Como procedia ao ser chamado pelo pai de antes, aos sábados, ali na feira de Beberibe.
- Tudo bem com o senhor?
- Melhor do que tá é impossível.
A gargalhada de ambos, enquanto à porta, assoma a figura pequena da senhora morena, gorda, que é atraída pelas vozes, e que se admira com essa quebra do mutismo do marido, o Mateus, que há dias não dava uma palavra...
- Obrigada Santo pai.
Sim, de repente, tudo pode acontecer, para pior ou melhor! E espera o abraço do filho que ainda brinca com o pai.
- O senhor parece que tá mais gordo... Remoçou!
- Ah, quisera eu tá mais novo. Como se isso fosse possível...
Decorridos três dias, o pai se ergue devagar da cadeira e anuncia:
- Marilda vou me deitar um pouco. Tou com uma moleza no corpo, um cansaço...
A mulher vendo-o mais magro, pálido, de repente, sente. O que se concretiza para sempre.
4
O portão. Avizinha-se. Os passos cautelosos, como se temesse algo... Como sempre está em alerta. O terraço. A cadeira com a idosa. Mais gorda. A cabeça branquinha. Cochilando? À semelhança do pai?
O pai que disse à mãe que iria descansar um pouco e que no leito adormeceu... Para sempre. Tanto tempo disso!
- Oito anos.
Repete e empurra o portão. Adentra.
O rosto se volta e reconhecendo-o, a velha sorri:
- Ah, é você Júnior?
Ele também sorri, achegando-se.
- Mas filho você está à cópia do seu pai. Até o jeito de entortar a cabeça sobre o ombro, quando ele caminhava... Igual!
Sorrindo, ele se achega:
- Pois é, mãe. Tal pai, tal filho.
Estende o braço longo e com a mão aberta lhe afaga a cabeça num carinho. Como fazia o outro.
- Senta aí, menino.
Atende-a, ocupando a outra cadeira à frente. E silenciam. Respeitando-se. Preservando a saudade à memória do pai.
De uma casa próxima o rádio toca a música ruim de sempre, enquanto com força o silêncio os aproxima.

Quando li me lembrei de João Antonio. Paulo Valença, você é um grande cronista do cotidiano dos marginalizados. É um escritor de verdade.
Comentário enviado por:
William Porto em: 19/8/2010








Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
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