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As mininas do sinal
Sob o sol do verão
Paulo Valença

Resumo:
Sob o sol quente do verão, os angustiantes instantes das meninas que em busca do obter dinheiro, lavam os vidros dos automóveis ao fechar o sinal.

1
O sol quente de verão. Os automóveis cruzando a avenida larga, defronte ao hospital da Restauração. O sinal fechado. E ela com outras meninas, com a esponja dentro do balde d’água na mão esquerda e na outra mão o pequeno rodo se avizinham dos vidros descidos dos carros, para os lavar e enxugar em gestos rápidos, enquanto o sinal não abre e assim tentar angariar o dinheiro que mãos lhes estendem após descer o vidro junto à direção.
- Obrigada madame.
- Obrigada meu tio.
O senhor gordo, corado, sorri e apressado, desce o vidro, receoso. Nunca se sabe o que pode vir dessa gente. O desajuste social provoca tudo...
O sinal abre e ele, com os demais veículos avançam, deixando para trás às laterais da avenida, as meninas de blusas que mostram a barriga escura e shorts que exibem as pernas longas, finas. Qual será o futuro dessas criaturas sem uma chance de uma infância normal? Por que há sempre (sempre!) as aberrações socias?
O calor. O boné na cabeça, apenas protegendo o rosto em brasa. O sinal novamente abre e os gestos se repetem, enquanto dura o intervalo de minutos até que o sinal torne a abrir.


2
- Pois é, filha, comi “o pão que o diabo amassou!”.
Tive uma infância de miséria: mãe (coitada!) lavando roupa de ganho; o pai com o salário de mixaria, na fábrica onde era ajudante de obra; os irmãos pequenos, em número de quatro... E tive então de me “virar”, para ganhar uns “trocados”, nos sinais, lavando os vidros dos carros, em tempo de me acidentar!
A moça fita a mãe. Morena. Os olhos apertados, achinesados. Os lábios grossos. Os cabelos lisos, compridos. Tipo cabloco, que ainda mantém a beleza da origem indígena. Escuta. Compreensiva. Quanta vez ouviu esse desabafo amargo? Com a idade, a mãe se torna mais saudosista. As cenas retornam, nos sofrimentos até certo ponto, masoquistas. Aí fala, sorrindo, aquiescendo:
- É mãe, a senhora já me contou tudo isso e...
A voz da velha então cresce, contrariada:
- Eu sei que lhe contei Angelina. Eu sei! Mas, gosto sempre de me lembrar, para dar valor ao que tenho hoje. Casa própria. Seus dois irmãos trabalhando, homens de bem. Você bem casada com o “alemão”. Mas, é assim mesmo, a dor só interessa a quem sofre. Para os outros nada significa...
A filha retruca, disfarçando-se:
- Mãe, o que eu quero dizer é que...
- Já sei. Estou lhe entendendo. Você se enfada com a minha conversa chata. Esquece!
Cala-se. A moça respeita-lhe o silêncio assim pesado de repente. Para que contrariar a mãe? Afinal, o que interessa à mãe nessa sua idade, são mesmo as lembranças sofridas, edificantes. Sim, a mãe está certa: a dor educa, nos eleva como ser humano!
A idosa fecha os olhos e cabeceia. Cochilando, exausta ao peso das horas de quando mesmo sob o sol abrasador lavava e enxugava os vidros dos automóveis, na tentativa de obter dinheiro?
Angelina se ergue do sofá e pisando devagar, evitando barulho, ausenta-se da varanda.
Embaixo, na rua transversal os automóveis passam. Adiante, na esquina, uma menina morena segurando o balde e o rodo pequeno, aguarda que o sinal feche para se avizinhar dos carros e lavar e enxaguar os vidros desses. Aquela menina de outrora à frente do hospital da Restauração também assim procedia...
Com o coração apertado, uma coisa subindo, dominando-a... Angelina vence os degraus do oitão do terraço, em sentido do térreo, onde está o carro que a restituirá a vida interrompida ante a visita a mãe idosa, vítima do passado de cenas que dolorosamente se repetem.

3
No sinal, a menina morena, esbelta, de blusa e short curtos, com o balde, a esponja dentro, na mão esquerda e na outra com o rodo, aguarda.
O sinal fecha e ela, com outras meninas se avizinham apressadas dos automóveis nervosos.
Os gestos rápidos. A água que desce. A esponja que corre esfrega e o rodo que enxuga os vidros. A mão que deixa a direção, abre o vidro e lhe estende a cédula de dez reais.
- Agradecida, D. Angelina.
- Até moreninha!
O vidro que desce e o carro que parte se perde entre tantos na avenida nesse final da tarde, já de luzes acesas nos postes e varandas dos imponentes edifícios circunvizinhos.
- D. Angelina é legal!
Diz a menina, sorrindo e pondo o dinheiro no bolso traseiro do short azul e desbotado pelo uso de todos os dias, nesse corre-corre para ganhar o dinheiro que ajudará a mãe e os irmãos pequenos no morro do “Alto do capitão.”.
- Ela topou com a tua cara Simone.
- Pois é. Sorte minha, colega.
Responde à vizinha, a Vaneide, sempre metida com a vida da gente...
Os carros prosseguem na marcha ininterrupta de sempre e as meninas aguardam que o sinal feche, quando tornarão a se avizinhar dos vidros dos mesmos para lavá-los, enxaguar e aguardar a mão com o dinheiro.
- Obrigada moça bonita!
O sorriso. O vidro que desce e o carro que arranca, fugindo.
Sim, de tudo se ausentando.


Quando li me lembrei de João Antonio. Paulo Valença, você é um grande cronista do cotidiano dos marginalizados. É um escritor de verdade.
Comentário enviado por:
William Porto em: 19/8/2010.





Biografia:
Paulo Valença é autor paraibano premiado nacionalmente com seus livros de contos e romances; Pertence a várias Instituições Literárias; Consta de diversos sites; Vive em Recife/PE.
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