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UMA DOR ESCONDIDA
ivete tôrres

Seis horas da manhã. O velho general está sentado em frente à janela. Assim ficara quase toda a noite. Fria, para a capital do Império, mas perfeitamente suportável para um gaúcho acostumado a se abrigar do minuano nas noites de inverno. A audiência que havia tido com Dom Pedro na tarde anterior, lhe tirara o sono.

Seus pensamentos são interrompidos pelo ajudante de ordens, que chega trazendo o chimarrão:

- Bom dia, general!

- Bom dia. Benjamim. Hoje vou ficar apenas com o amargo. Dispenso o café.

A fiel ordenança coloca na mesa, próxima da cadeira de balanço, os apetrechos do chimarrão, ou amargo como prefere seu superior. E sai silencioso, como a não querer incomodar o general, a quem serve desde os tempos do Rio Grande.

O gaúcho inclina a chaleira sobre a cuia e a água cai, lentamente. Vê aos poucos aparecer a espuma amiga e companheira. Sorve um longo gole.

Volta novamente à lembrança a conversa com o Imperador. Esse estava relutante em assinar a promoção de um capitão.

- O senhor conhece bem esse oficial?

- Nada sei que o desabone – respondeu.

- Ouvi dizer que gosta muito de mulheres – disse Dom Pedro hesitante.

- Se é por isso, eu não deveria passar de simples soldado. Muito menos ser Vosso Ministro da Guerra, como hoje sou. Os dois riram e o capitão foi promovido.

Osório tristemente sorri para si mesmo. Não fora a promoção do oficial que lhe roubara o sono, e sim suas próprias palavras. Havia sido mulherengo. Algumas mulheres deitaram em seus pelegos, sim. Afinal, passara quase toda sua vida a chefiar batalhas. Mas também é verdade que fora homem de um amor só.

Manhã ensolarada de domingo na pequena Rio Pardo. Completara vinte e um anos de idade e já fora promovido a primeiro-tenente. Há poucos dias havia chegado à cidade, não conhecia ninguém, apenas subordinados e superiores.

Saída da missa. Distraído, olha as pessoas que saem da igreja. Eis que vê uma bela moça com longos cabelos negros e olhos claros. Seus olhares se cruzam.

Logo descobre seu nome: Ana. O mesmo nome de sua mãe. Filha de estancieiros, gente de posse. Vem-se algumas vezes. E num baile, ao convidá-la para dançar, fica sabendo que os pais não querem o namoro. Preferem casar sua única filha com alguém com boa posição econômica, e não com um tenente da cavalaria que apenas tem de seu, um magro soldo. Proíbem seus encontros, mas os enamorados não aceitam a decisão e resolvem levar adiante o romance. Só a ajuda de um peão de confiança compensa a distância que os separa. As cartas de amor vêm e vão trazidas e levadas pelas mãos de um fiel subordinado. Osório faz versos para Lília, como chama sua amada.


Só vivo quando te vejo/
Dia e noite penso em ti,/
Se nasceste para amar-me,/
Eu para te amar nasci.

Mas a influência dos pais de Ana faz com que Osório seja transferido para a cidade de Bagé, na fronteira com o Uruguai, uma região cheia de salteadores e contrabandistas que não temem nem o Exército. O militar terá muito trabalho e esquecerá sua filha, assim pensam seus pais.

Engano. Entre uma luta e outra, Osório segue escrevendo cartas e versos de amor para a amada. Mas não recebe resposta. Até que um dia resolve escrever uma última vez:

                  Ingrata que me deixaste,/
                  Na tua cruel mudança,/
                  Recordações do passado,/
                  Uma perdida esperança.

Neste meio tempo a família de Ana resolve casá-la com um parente rico. Ela, desesperada, mesmo acreditando que o amado lhe esquecera, manda-lhe uma última carta. Pede a Osório que venha buscá-la, pois está disposta a fugir com ele, a abandonar seus pais e a família.

Os dias passam. Chega o dia do casamento, e Ana não recebe resposta. Nem o mensageiro retornara a estância. A pobre noiva chora, sentindo-se abandonada.

Por ironia do destino o peão de confiança, a quem Ana confiara seu segredo ficara doente por semanas, a caminho de Bagé. Finalmente segue viajem e ainda febril chega até Osório. Que ao ler a carta, compreende que a família de Ana escondera todos os bilhetes e versos que mandara. Mal tem tempo de avisar seu comandante, salta no dorso do cavalo e ruma para Rio Pardo.

- Ana? Ana casou e foi embora com o marido.

Sem nada poder fazer, volta sobre seus passos.

Pouco tempo depois recebe uma carta de Rio Pardo dizendo que Ana, em poucos dias de casada adoecera. E em alguns mais, viera a morrer, como manda o destino de todas as Julietas.

O primeiro-tenente Osório seguiu sua vida. Casou-se anos depois, com Francisca. Com ela teve cinco filhos. Ficou viúvo. Major, general, marechal, duque, senador e tantos outros cargos e honrarias. Fora temperado pela vida. Mas decepções, a viuvez, os ferimentos, a doença, a velhice, não foram capazes de abater seu espírito sempre alegre, amigo e jovial. Nesse momento, porém...

Levemente batem à porta:

- Senhor General, o Imperador Dom Pedro II quer a sua presença.

O general se volta.
   
- Não Benjamim. Neste momento estou muito longe. Lá no Rio Pardo numa linda manhã de domingo. Hoje não atendo nem mesmo o Grande Imperador do Brasil!

Dito isso o homem, Manuel Luís Osório, recosta seu corpo cansado na cadeira predileta. Olha para o horizonte. Mas não vê as belezas do Rio de Janeiro, e sim os verdes campos do seu Rio Grande.

Uma lágrima desce pelo rosto do bravo General Osório. Amado por muitos e admirado por todos que o conheceram, como homem e como soldado. Leva a bomba do chimarrão à boca. Não consegue sorver o amargo. Seu corpo sacode num soluço. Agora, entregue totalmente as recordações, deixa as lágrimas rolarem livremente em seu rosto. São lágrimas de saudade de uma vida que não chegara a viver. Vida que lhe fora roubada antes mesmo de ter provado seus encantos.


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