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VELHOS TEMPOS
ivete tôrres

Manhã fria de junho. O dia iniciara muito cedo para dona Nilzinha, a escrivã do único cartório da cidade. Ainda não abrira as portas, mas sabe que a segunda-feira vai ser daquelas. Escuta algumas vozes vindas da calçada. Falta quase uma hora para o início do expediente, mas resolve começar a atender. É uma agonia saber que estão me esperando.

- Bom dia. José Nélson me ajuda aqui com a porta, por favor.

Conhece a todos pelo nome. E é capaz até de saber o que estão buscando. Sempre tem alguma palavra de agrado para um e outro.

- E aí Tereza, eu não disse que tu precisavas da certidão de casamento? Depois que a gente casa, dificilmente usa a de nascimento. Mesmo que esteja separada, como é o teu caso. Foi em setenta, que vocês casaram, não é? As tuas crianças vão bem?

Abre os livros grandes e pesados. Lida com eles desde os onze anos de idade. Logo encontra cada um dos registros que precisa.

Adão, velho freguês, pede a certidão do filho. Como sempre bebeu além da conta ou ainda é efeito do dia anterior. Tu já perdeste a que eu te dei? Quantos anos têm o Edmilson?

- E eu é que sei? Foi a senhora que fez. Tá aí nos livros.

Todos riem. Com paciência a escrivã encontra o registro, muito mais por sua reconhecida memória, do que pela ajuda do Adão.

- Agora senta lá na praça, para te aquecer no sol, quando estiver pronta eu te chamo.

Sem retrucar, ele atravessa a rua e se acomoda num dos bancos.

- Quem é que consegue suportar o bafo do Adão? Agora ele vai dormir um sono e depois vem pegar a bendita certidão. E então vai perdê-la no primeiro boteco que encontrar. Pobre do Adão!

A manhã quase chega ao fim, quando entra um homem alto, jovem, de botas e bombachas:

- Bom dia dona Nilzinha.

- Bom dia. Não vai me dizer Pedro Jaci, que vieste registrar outro filho.

- Vou ter que lhe dizer, senão ele fica orelhano.

- Mas não é possível. Com esse são seis. Há quanto tempo eu te casei? Nove, dez anos?

- A senhora lembra? O Roberto Carlos tem dez anos, e eu casei quase na polícia.

- Pedro Jaci, tu vives de changa. Não tens condições de criar tantos filhos. Talvez um, e isso porque te adiantastes. Meu Deus do céu! Tu não conheces televisão?

- Eu vi na vitrine das Lojas Urbis. Sei que um vizinho meu, tem. Mas ver, assim de pertinho, não vi não.

- Era o que precisavas e assim o risco de vir outro filho seria menor. Bem, mas vamos fazer o registro. Menino ou menina?

- A senhora prefere Vanusa, Vanderléa ou Valdirene?

- Tem que ser da Jovem Guarda? Então, Marta, para chamar de Martinha e, além disso, é mais bonito.

- Martinha eu já tenho. E mais: o Roberto Carlos, o Erasmo Carlos e os gêmeos Vanderley e o Jerry Adriani. Ah! Ia me esquecendo, eu lhe trouxe umas laranjas.

Dona Nilzinha imaginando estar num filme de Fellini ou em algum quadro de Dalí (apenas para ficar com os excêntricos da Europa), agradece a gentileza. Que dia nasceu a Vanusa?

O tempo passa. Muitos registros e casamentos foram feitos. Até que numa tarde entra no cartório um sestroso Pedro Jaci.

- Lhe trouxe umas mandiocas. São bem tenrinhas. Cozinham em dois tempos. Uma beleza. E umas bergamotas bem doces.

- Obrigada, meu amigo. Mas que lindas, bem novinhas. Amanhã vou mandar cozinhar. E estas nossas bergamotas são as que mais gosto. As mãos ficam na miséria, mas vale a pena. E aí, como está a vida?

Conversa vai. Conversa vem. Nilzinha não se anima a perguntar o que o trouxera até ali. Mas pelo trote da petiça parece que foram só os presentes mesmo.

Perto da hora de fechar, o pai de quase toda a Jovem Guarda se anima a dizer o que está trancado na sua garganta.:

- Dona Nilzinha, o Ronnie Von chegou.

- O quê? Nasceu outro filho? Mas tu hein, Pedro Jaci. O Ronnie Von não era da Jovem Guarda. E, se não me engano, nem se dava com o Roberto Carlos. Criatura, sete filhos?

- E vim lhe perguntar se a senhora não sabe de alguém que tenha uma televisão meio velha que não queira mais.

Dona Nilzinha lembrou que seu colega Juiz de Paz lidava com eletroeletrônicos. Telefonou para ele. Logo ficou sabendo que tinha uma TV preto e branco usada, para vender. Acertou o negócio. Em pouco tempo estava dando lições para o Pedro Jaci de como se lidava com a televisão.

Logo depois foi feito o registro do menino: Pedro Henrique. Nome sugerido pela escrivã, que o pai gostou, pois assim o guri ficava meio tocaio dele.

- É o fim da série. Chega de Jovem Guarda ou qualquer outro movimento musical. Agora com a televisão tu vais namorar menos, e se Deus quiser, ficarás apenas com os filhos que já tens.

Outros invernos vieram. A rotina do cartório continua. Pedro Jaci sempre que vem à cidade dá uma passadinha para deixar algum presente.

- E a televisão? Firme? – pergunta dona Nilzinha sempre meio apreensiva.

- Uma beleza! Pega que nem um espelho. E as novelas? Eu que acordo muito cedo, às vezes não vejo, mas a patroa não perde uma. Tem programa de música, noticiário, coisa muito especial. A gurizada então, com todos aqueles desenhos? Lhe agradeço de novo.

- Que isso, Pedro. De nada. Foi por uma boa causa.

Até que num novembro com cara de julho, Pedro Jaci entra no cartório, meio se encolhendo. Seria por causa do frio?

- Bom dia criatura? Me trouxe algum desaforo? – dito isso, estende a mão para pegar um mogango.

- Trouxe e dos bons, verdinho, pra a senhora fazer com guisado.

Apesar da correria do trabalho, dona Nilzinha percebe que algo não está bem com o amigo. Chega a sua vez. Diz só estar ali fazendo uma visitinha. Ele logo puxa conversa:

- Mas dona Nilzinha, os programas da televisão estão uma porcaria a senhora não acha? Lá em casa a gente nem liga mais, para não gastar luz à toa.

A escrivã sacode a cabeça. Sorri. Mais para si mesma do que para o chateado telespectador. Que nome vai ser?

- Acho que vamos batizar a guriazinha com o seu nome, pode?

Anos mais tarde, Pedro Jaci acompanha Roberto Carlos, para fazer o registro de seu primeiro filho.

- Dona Nilzinha, para agradar meu pai, a gente vai chamar o nenê de Ronnie Von. Ele queria tanto e o danado não veio.

O avô se surpreende. Mas não aceita a homenagem. Diz todo sem jeito:

- A mulher andava meio ruinzinha e foi ontem no doutor. Se nascer guri homem vai ser Ronnie Von.

A serventuária da Justiça dá uma sonora risada, daquelas que fazem bem para a alma:

- É meu amigo Pedro, esqueci de comentar contigo o quanto a programação da televisão anda ruim. Tens razão: uma verdadeira porcaria. Só não desligo, como tu, porque tenho muito juízo.


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