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LONGE, MUITO LONGE
ivete tôrres

Maria Rita é uma mulher forte. Trabalhou por mais de trinta anos como médica legista. E agora está aposentada. Mas como diz uma colega sua: aposentada não, jubilada. Que seja, embora isso não a incomode em nada. Um nome ou outro, qual a diferença? A verdade é que já faz alguns anos que não usa o bisturi em ninguém.

Parece que desde sempre quis ser médica. Era muito pequena quando ganhou um estetoscópio, que virou seu brinquedo favorito. Nas brincadeiras com os amiguinhos geralmente havia alguém doente, precisando de cuidados. Talita não se fazia de rogada, atendia com carinho e presteza. Cresceu dizendo que seria médica de criança.

Os anos passaram. E a menina foi se tornando introspectiva, de poucas palavras, até arredia. Mas era uma boa aluna e não foi tão difícil entrar para a faculdade de Medicina.

Mesmo no ambiente acadêmico, com toda a juventude a seu favor, continuava uma pessoa quieta, e isso não a ajudava a fazer amigos. Não poucas vezes, passava até por antipática. O que não a incomodava, pois gostava de conviver consigo mesma e dizia ser a melhor companhia que podia desejar. Sempre levara na mente, um mundo paralelo, não perfeito, mas diferente do real. E este a satisfazia plenamente. Portanto, ficar sozinha não lhe fazia mal algum, pelo contrário.

Apesar de seu temperamento, sendo uma mulher bonita e muito inteligente, antes mesmo de terminar a faculdade conheceu aquele que seria seu marido num futuro próximo. Roberto, um jovem extrovertido, muito falante e com facilidade em fazer amizade. Exatamente o oposto dela. Não fora difícil apaixonarem-se, pois dentre tantas diferenças havia a medicina que os unia.

Com o fim do curso se aproximando, Maria Rita passou a pensar na especialização que faria. Entre partos, cirurgias e outros procedimentos começou a desenhar seu futuro: não pretendia mais ser pediatra. Como gostava de ficar só, concluiu que melhor se daria com aqueles que já passaram para outro patamar. Não a interromperiam para trocar ideias, nem atrapalhariam seus devaneios.

Feita a residência, e aprovada num concurso público iniciou a vida profissional. Bem como queria: geralmente estava sozinha.

Um casal de filhos e o companheiro. Estava formada a família. Ficaram casados perto de dezoito anos. E o casamento terminou quando ele se apaixonou por uma mulher com idade inferior à dela. Uma enfermeira que o auxiliava no bloco cirúrgico e que cantarolava enquanto preparava os instrumentos. Gostava de ouvi-la. Fascinado ficava a olhar as belas unhas pintadas de vermelho, enquanto ela calçava as luvas. Daí a um elogio, um sorriso e um convite para jantar, foi um pulo. Pronto. Robeto já não mais dividia a cama com Maria Rita.

Passada a surpresa, veio a dor. Que não foi intensa e também não durou muito tempo.

Logo os filhos entraram na universidade, casaram e constituíram suas próprias famílias. Continuaram morando na mesma cidade, mas fora ela quem ficara tomando conta da casa.

Nesse período teve algum relacionamento. Porém, a bem da verdade, nenhum namorado fora convidado a partilhar sua cama por duas noites seguidas. Não demorou muito, e veio a aposentadoria. Enfim, cumprido seu papel na sociedade, agora gozaria as coisas boas da vida.

Foi o que fez. Construiu uma rotina totalmente satisfatória para si.Gosta de ler, de música, televisão, computador. Como sempre acordou às sete horas, agora se dá o luxo de levantar as oito, em ponto. Fez curso de cerâmica e de tapeçaria. No momento se aventura no inglês. E nunca abandonou as palavras cruzadas. É feliz. Basta-se.

Porém, quase sempre nas reuniões de família ou entre conhecidos, há alguém que questiona a vida solitária que leva.

Hoje num aniversário ao qual não pode deixar de ir, uma prima distante pergunta:

- Mas aí Rita, não pensa em casar novamente? Olha que o inverno tá chegando e dizem que vai ser rigoroso.

- Que venha! Tenho edredons macios e quentes, de sobra. E já providenciei um lençol térmico.

Não era sua intenção, mas todos riram. Na verdade custava-lhes entender como uma pessoa preferia viver daquela maneira. Afinal, dizem que o ser humano não foi criado para viver só.

- Pelo menos a companhia de um cachorro ou um gatinho. Uma empregada em tempo integral... – arriscou uma sobrinha.

- Todos aqui me conhecem, gosto mesmo é de ficar sozinha – rebateu. Em pensamento soluciono os problemas da humanidade, e um bichinho de estimação talvez me atrapalhasse neste trabalho. Sobre uma empregada me interrompendo a toda hora, não tenho palavras – disse com um tímido ar de riso.

As investidas não amainavam.

- Tia, a senhora ainda está nova e com saúde. Mas quando a velhice chegar? Ela não costuma vir sozinha. Geralmente nos traz, de presente, doenças. Algumas crônicas, difíceis de conviver, outras incapacitantes e até fatais. Sozinha como vai passar por isso, caso seja premiada? Ninguém sequer para lhe alcançar uma xícara de chá...

Maria Rita sacode a cabeça, numa negativa impaciente.

- Sabes, nestes últimos tempos o mundo ganhou diversos meios de comunicação, disse com uma pitada de ironia. Temos telefone fixo, celular, internet com webcam, dentre outros. Como eu já disse me sinto bem. Falo com meus filhos todos os dias pela manhã e à tardinha nos vemos pela internet. Se eu precisar de alguma coisa e não possa resolver sozinha, ligo. Logo um deles ou os dois estarão lá em casa.

Olhou os rostos que a focavam e sentiu não ter convencido ninguém:

- Vocês esqueceram que sou médica? Olhem prá mim! Mantenho praticamente o peso que tinha quando jovem. Sempre cuidei da alimentação. Açúcar, cigarro, refrigerante não entram no meu cardápio. Faço ginástica, pedalo e ando na esteira. Sozinha, mas faço. Portanto, morrer vou! Mas não tão cedo. Nunca me atrasei em compromisso algum, costumo até chegar com antecedência. Porém esse, com São Pedro, como será o último, não terei tanta pressa. Irei, na última chamada.

Continuou defendendo sua vida, com entusiasmo.

- Para deixá-las menos preocupadas, trago sempre o celular no bolso. Ah! Carregado. Não na bolsa, no bolso! E mesmo em casa. O telefone sem fio todas as noites dorme na mesinha de cabeceira. Qualquer problema eu pedirei socorro.

Se com estas palavras, convenceu ou não, deu por encerrado o assunto. E foi para casa.    
                            
No caminho pensou que não falara toda a verdade. Ultimamente tem sentido certa dor de cabeça ao acordar. É coluna. Má postura quando fico muito tempo no computador. Preferiu não comentar. Para que preocupar os parentes ainda mais? No resto, foi sincera.

Ao chegar a casa, logo trata de deitar. As revistas e os livros estão ao alcance da mão. O controle da TV, também. Coloca o celular e o telefone no criado mudo. Lembra ter ficado de emprestar um livro para uma amiga e vai buscá-lo na biblioteca, antes que esqueça. Ali estão prateleiras repletas com os exemplares catalogados por assunto, titulo e autor. Não demora a encontrar o que precisa. Sobe na escada e pega o exemplar desejado.

De repente uma vertigem, e cai no chão batendo com a cabeça. Sente o sangue escorrer pelos cabelos. Antes de perder os sentidos por completo, leva a mão no bolso. Mas, infelizmente, o socorro se encontra longe, muito longe.










                                        

                                   





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