É primavera. Ninguém pensa na morte num belo dia de primavera. Se pudéssemos escolher uma estação do ano, seria o outono o tempo certo para morrer, não a primavera. O outono estimula os pensamentos macabros, provoca a imaginação, incita a vontade de morrer com seu tom melancólico. O outono é poético, de uma poesia mórbida, doentia, que parece cheirar a mofo e a cinza.
Não deveria ser permitido morrer na primavera. Deveria haver uma lei prescrevendo: “Lei nº 100.100, dispõe sobre MORTE NA PRIMAVERA. ”Quem morrer, levar alguém a morrer, tramar a morte ou pensar em morrer na primavera...” Qualquer coisa assim, proibindo, expressamente, morrer entre vinte e um de setembro e vinte e um de dezembro. A verdade, porém, é que nunca deixarão de existir pessoas que violem as leis.
Pois o homem que saiu do Palácio da Justiça, na Avenida Prestes estava na iminência de violar essa lei salutar.
Normalmente era um bom cidadão, um homem trabalhador, advogado bem sucedido, marido fiel e amoroso, bom filho, pai presente, tudo como deve ser. Não tinha a menor intenção de ser violador da lei. Também não sabia que a morte era proibida, mas, ainda que soubesse, não se interessaria pela lei, uma vez que a morte e a idéia de morrer eram as coisas de que menos cuidava neste mundo.
Na verdade, ele estava pensando na vida. Que seu aniversário aconteceria dali a três dias, que faria cinquenta anos e que, no entanto, de modo algum parecia ter um dia sequer acima de quarenta. Estava pensando que os cabelos grisalhos, embora não de todo desejáveis, davam a sua fisionomia uma expressão de nobreza; que os ombros ainda eram largos, que os músculos se mantinham rígidos, que as partidas semanais de tênis e golfe tinham eliminado a ameaça de uma barriguinha, essa sim, indesejável, que se dava muito bem com a esposa e continuaria a dar-se, ainda que não mais pudesse leva-la anualmente a Miami.
Estava pensando em todas essas coisas, quando a bala sibilou através do fresco e agradável ar primaveril, sinistramente, inexoravelmente, com uma precisão absoluta, vinda do outro lado da rua, passando por cima dos carros e da cabeça das pessoas que gozavam a primavera. Veloz, implacável, mortal, até chegar à calçada oposta e atingir o homem entre os olhos.
Apenas um pensamento lhe veio ao espírito no instante que a bala o feriu, e logo depois todos os pensamentos cessaram. Sentiu uma pancada violenta entre os olhos e, durante uma fração de segundo, imaginou que estava com dez anos em sua cidade natal, e que havia sido atingido acidentalmente por uma pedra vinda de um estilingue manuseado por algum companheiro de infância.
A bala perfurou o osso, atravessou a massa macia do cérebro e, ao sair do outro lado, explodindo, abriu um orifício do tamanho de uma bola de ping-pong. O pensamento parou, os sentidos pararam, fez-se o nada de repente.
O impacto atirou o homem para trás mais ou menos, um metro, fazendo-o colidir com uma moça vestida modernamente de rosa e cinza. Caiu de costas, enquanto a moça se afastava assustada, e seu corpo dobrou-se sobre si mesmo. Já estava morto antes de atingir o chão. Do grande buraco que se abrira abaixo de sua testa escorria um filete de sangue, ao passo que do enorme rombo da base do crânio emanava um verdadeiro córrego de líquido vermelho ainda vivo. Que escorreu rapidamente até o ponto em que a moça parara, paralisada pelo horror, com os olhos fixos no sangue que se espalhava pela calçada.
A mulher afastou o pé exatamente a tempo: dentro de mais um instante teria manchado de sangue os elegantes scarpins cor-de-rosa.
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