- Hoje em dia está tudo diferente. O mundo é completamente outro. Em tudo há a corrupção. A falta de conduta, moral.
O nosso vizinho aí defronte, chegando no carro, acompanhado por adolescentes...
D. Ana escuta o marido, sem retrucar. Para quê, para discutirem, se contrariarem?
Ele prossegue falando:
- Dali da janela, eu vejo tudo. Os carros, as pessoas nas calçadas, e a casa grande, de portão largo e a guarita com o vigia forte, amulatado e... Altas horas da noite o vizinho chegando no seu carro cinza, com as meninas-de-programas. Às vezes até eu pergunto: até quando irá essa pouca vergonha? E o que se passa entre as paredes daquela residência?
A mulher então impaciente dá a sua opinião:
- Inácio você não devia ficar pensando nessas coisas. Cada um que viva como quiser. A vida privada das pessoas se deve respeitar. Não é nada sensato a gente se meter na vida alheia! O mundo é assim mesmo, cheio de imperfeições...
O velho nada responde, intimamente aquiescendo com a esposa. Ela tem razão: cada um que tenha a vida que traçou... O indiferentismo, o egoísmo nos ajuda a viver, encarar o mundo.
Silêncio entre ambos. Da rua chega-lhes o som dos carros e motos cruzando-a, na agitação natural da tarde que vai morrendo. E D. Ana:
- Vou tomar o meu banho para cuidar do nosso jantar.
Volta-se ao esposo e inquire:
- Você vai querer alguma coisa Inácio?
- Não, não. Pode ir tomar o seu banho.
Ela se ergue do sofá defronte e em passos curtos ausenta-se da sala e entra no corredor que a conduzirá ao banheiro à direita.
Seu Inácio segue-lhe os movimentos. A Ana está mais gorda... O que é a velhice: a pessoa se transforma noutra criatura, sente a terrível mutação em tudo!
Põe as mãos sobre os braços da cadeira e num impulso jogando o corpo a frente conduz a cadeira ao quarto, onde à janela tornará a observar o que se passa fora.
- É a minha distração, já que não saio, não vou a lugar nenhum.
À janela, recua a cadeira para trás, procurando não se exibir ao todo e perscruta interessado em vê o que ocorre embaixo e na residência murada, enquanto as luzes dos postes nas esquinas e nas varandas dos edifícios circunvizinhos acendem as luzes, no anúncio de que a noite nasce.
Como aquele vigilante agüenta passar a noite dentro daquela guarita? A pessoa quando precisa... Submete-se a tudo para garantir o próprio sustento e o da família. O mundo com suas desigualdades!
Então a voz de D. Ana o desperta ao presente:
- Vai jantar agora Inácio?
- Vou Ana. Pode botar.
Responde voltando-se. E a mulher retrocede indo esquentar a comida.
Se alguém denunciar o morador da casa grande de corromper menores, o homem magro sofrerá as conseqüências. Será um escândalo. Manchete dos meios de comunicação. Contudo, há um silêncio cúmplice, como se nada estivesse acontecendo dentro das horas mortas. Ah, se não pensasse tanto, se fosse indiferente ao que presencia e sente...
Lu Dias BH disse:
Paulo Valença O escritor dos contos curtos.
Você é o escritor de seu tempo.
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