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A travessia
Carlindo Soares Ribeiro

O HOMEM pediu que ele apressasse o passo. Mas o menino não tinha mais forças. E disse eu não consigo mais caminhar, já que a noite está tão próxima, por que é que a gente não se senta pra descansar e volta a caminhar amanhã? O homem ficou puto com as ponderações do menino que não queria segui-lo e esbravejou que tinham que seguir, não tinham nada que esperar a noite chegar, aliás seguiriam caminhando mesmo com a noite fechada, já que o tempo estava firme e provavelmente a lua estaria clara e eles precisavam chegar na margem do rio, o barco com toda a tralha os esperava para a travessia.
     O menino olhou com raiva para o homem, o traste que o arrastava daquele jeito impiedoso sabia Deus para onde. O homem sentiu o olhar do menino cravar em seu peito e proferiu um palavrão que o menino não entendeu direito mas ficou pensando o que pudessem ser aquelas sandices que o chato do homem dizia de vez em quando. O homem fustigou o menino com a ponta da vara e ele resistiu mas viu que não adiantava resignar-se e seguiu-o a contragosto.
     Quando o sol se foi de vez o menino quase não enxergou mais o homem a sua frente. Não fosse o clarão do luar, o vulto desengonçado que seguia na dianteira desapareceria por completo. O menino gritou que precisava parar mais uma vez, estava apertado, se insistisse faria as necessidades na roupa mesmo. O homem deteve-se. O menino atrás do barranco estava demorando e o homem, impaciente, pôs-se a gritar que ele estava atrapalhando a sua vida, se não chegassem a tempo de atravessarem a culpa seria dele que era uma lesma, um estúpido que não entedia nada do que estava acontencendo.
     O menino subiu a calça e logo emparelhou com o homem. Não se olhavam. O homem não queria conversa, queria apenas seguir em frente. Parecia nem pensar ou se pensava pensava apenas em si mesmo. Por um instante, o menino compreendeu o homem e teve pena dele. Quanto tempo duraria a travessia? O homem com aquela incum-bência e ele, o menino, sem cooperação nenhuma... O homem pareceu adivinhar o pensamento do menino e acelerou ainda mais a marcha. Mas as pernas do menino pesaram como chumbo. Ele ficou para trás novamente e o homem ignorou-o dessa vez.
     Quando não avistou mais o homem o menino pensou em retroceder. Mas o homem poderia dar pela sua ausência e também voltar. E eles tinham que seguir. O homem só estava cumprindo as ordens que lhe foram dadas. O menino precisava compreender que era para o seu bem a travessia. Surpreendeu-se ao verificar que o homem o esperava e que, ao vê-lo, nada disse. E assim puderam seguir, o homem agora andando mais devagar, parece que também vencido pelo cansaço.
      O homem bocejou e o menino aproveitou a deixa para sugerir que parassem, a travessia poderia ficar para o outro dia. O homem teve um ataque de histeria ao ouvir o despropósito que o me-nino acabava de proferir. Será que era tão difícil assim compreender que tinham urgência, o barco os esperava, precisavam fazer a travessia, eram ordens, o tempo tinha sido cronometrado pelos pró-prios doutores, era a vida dele, do menino, que tinha que ser salva, não a sua...
     O menino custou a entender e o homem não quis perder mais tempo com explicações, só sabia que tinham que caminhar, ainda bem que a noite estava fresca e com mais hora, hora e meia de boa caminhada, estariam batendo na margem do rio para a travessia. Ali estaria cumprida a maior parte da sua missão, o resto era com os outros e com o próprio menino. O menino compreendeu o propósito do homem, mas uma raiva surda pela tenacidade do homem e pela forma com que ele o vinha conduzindo para a travessia, ignorando suas dores e fracassos, foi tomando conta do menino a ponto de ele desejar a morte repentina do homem.
     O homem imaginou o que poderia estar passando pela cabeça do menino e não se compadeceu dele. Tinha o coração duro para certas coisas. E o menino também era um fardo que ele tinha que carregar. O rio não devia estar longe. E de fato o terreno já começava a se inclinar e tinha certeza que com pouco estariam avistando o mundaréu de água. O menino viu no silêncio do homem uma afronta e resolveu espicaçar-lhe novamente dizendo que não agüentava mais, quisesse desistir da empreitada era só deixá-lo ali mesmo, ele não fa-zia questão de sobreviver não. De mais a mais, sabia que não faria falta pra ninguém e se pudesse descansava em paz e também deixava os outros descansarem em praz.
     A sombra do homem tomou a dianteira. E ele pensou quanta ignorância, meu Deus do céu, a margem do rio ali mesmo e o menino com aquela relutância descabida, pudesse deixava-o mesmo ali abandonado como um cão sem dono. E açodou a marcha. Mas o menino percebendo a intenção do homem apertou o passo e um sorriso súbito aflorou-lhe aos lábios quando a lua refletiu no lençol branco e enorme da água do rio. O homem também sorriu, tirou o chapéu, curvou a cabeça e achegou-se ao menino. E deram-se as mãos como velhos e bons companheiros.
     O motor do bote roncou e em poucos segundos, com os três seres a bordo, rasgou a água deixando atrás de si uma onda de espuma.


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