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A viagem do filho e a do pai
Carlindo Soares Ribeiro

O ÔNIBUS deixou o asfalto e entrou na estrada de terra. Coisa de mais meia hora pra viagem terminar. Ele tentava distrair-se olhando a paisagem. Pastos, bois, pontes, rios. Quase nada tinha mudado desde que deixara a pequena cidade no interior, havia pouco mais de seis anos. Ali estava o corguinho que tantas vezes lhe refrescara o corpo du-rante os verões. Adiante, a restinga de mato onde caçava passarinhos, além o canavial, outro rio.
     Sentiu que a vista embaçava. Esfregou os olhos com a costa da mão, mas o coração em pedaços dificultava a visão. A mulher que ocupara o assento ao seu lado, na última cidade em que o ônibus havia parado, disfarçou :
               – Essa poeira acaba com a vista da gente.
     – É – ele disse aproveitando a deixa.
     Vinha ver o pai que estava doente. Ligaram no dia anterior, viesse urgente caso ainda quisesse encontrá-lo com vida. Pediu dinheiro emprestado para um colega da pensão, largou tudo, correu pa-ra a rodoviária. Enquanto o ônibus deslizava furando a noite, ele recordava o dia em que tinha vindo embora.
               – Tô de passagem comprada, amanhã me mando...
     Foi durante o jantar. O pai nada disse, apenas fitou-o com o olhar mais triste deste mundo. A mãe sem jeito, o garfo suspenso no ar, tentava dissuadi-lo :
     – Vai agora não, filho. Eu e seu pai estamos velhos, quem vai cuidar da gente?
     – Tenho que pensar no meu futuro, ele falou resoluto.
     Depois do jantar foi pro quarto. Os pais ficaram na sala. Pela porta entreaberta ele via as caras abatidas que o clarão da tevê alumiava. Tinha pena dos dois velhos, ele era filho único, mas pre-cisava fazer alguma coisa, estava com vinte e tantos anos, não podia enterrar a vida naquele fim de mundo, lugar que não oferecia nenhuma chance de um futuro melhor.
     O pai apareceu na porta antes de deitar :
     – Vai precisar de algum dinheiro pra viagem?
     – Tinha uma grana guardada.
     – Então amanhã a gente se fala...
     Pulou da cama ainda com o escuro. A mãe ajeitava a mesa para o café, o pai, como sempre, estava encostado no batente da porta, o olhar vagando pelo quintal, o copo de café numa das mãos, o cigarro na outra.
     – Vem tomar um café, disse a mãe assim que o viu aparecer na porta da cozinha com a mala na mão.
     – O ônibus já deve estar encostado no ponto, ele falou com os olhos no chão.
     Da rua, ainda deserta àquela hora, ele enxergou os dois vultos de pé na varanda. Os olhos umedeceram e ele não viu mais nada até chegar no ponto do ônibus. Sentou na última poltrona e puxou a cortina. Quando o dia clareou por completo o ônibus já estava longe.
     Agora, depois de tanto tempo, voltava. Para ver o pai, doente. A pessoa que lhe deu o recado disse que viesse urgente. Entretanto, algo em seu íntimo lhe dizia que o pai ainda o esperava, como sempre o esperou, quando ele estava fora de casa.
     A primeira coisa que avistou foi a torre da igrejinha. Depois, as casas foram surgindo no meio do arvoredo. Por fim, a pracinha, onde o ônibus estacionou. Ele esticou os braços, pegou a mala no bagageiro, apeou. E foi subindo a ruazinha de terra, a cabeça baixa para evitar os olhares curiosos que surgiam nos vãos das janelas semi-abertas.
     Empurrou o portãozinho de madeira, cruzou o canteiro de rosas brancas e vermelhas que a mãe ainda cultivava e, com o coração aos baques, subiu os degraus da varanda. A mulher veio ao seu encontro, os braços estendidos, um misto de alegria e de tristeza no semblante envelhecido.
     – Fez boa viagem, filho?
     Ele fez que sim com a cabeça, a mãe tomou a mala de suas mãos, conduziu-o até o quarto. A cama do mesmo jeito, parecia nunca ter sido desarrumada, as havaíanas ainda o esperando debaixo do criado-mudo...
     – Descansa um pouco enquanto eu preparo alguma coisa pra você comer.
     A pergunta inevitável veio com muito custo:
     – E ele?
     A mãe explicou, ele agora estava dormindo sob o efeito de medicamentos. O doutor tinha acabado de sair, uma lesão aguda no pulmão, não tinha mais jeito, só por milagre. Duro eram as crises de tosse, a falta de ar. O médico tinha dito que era só esperar, nem adiantavam mais internações, hospital, essas coisas.
     Ele desceu até o quintal, caminhou devagar por entre as árvores, parou debaixo do pé de manga. A manhã estava fresca, como são as manhãs de outono. Um silêncio angustiante pairava por sobre a pequena cidade. Pensou no pai lá em cima no quarto, também se preparando para a sua viagem, uma viagem que todo mundo tem de empreender um dia, quer queira quer não.
     – O almoço está na mesa, a mãe avisou.
     Ele recusou a comida. Inventou que tinha beliscado alguma coisa na viagem. A mãe quis saber como ele estava, e o emprego que arranjou era bom, quanto ganhava por mês, a cidade era bonita, onde morava, com quem? Ele respondeu que na cidade as coisas eram difíceis, mas por enquanto o que ganhava dava para sobreviver. Depois disse que queria descansar um pouco. A mãe puxou a porta do quarto, ele ficou só.
     Antes de deitar abriu a janela, ficou debruçado no parapeito, o olhar passeando pela vilazinha lá embaixo, o pensamento visitando trechos do seu passado. Não podia negar que fora feliz, embora os pais tivessem levado uma vida simples, despretensiosa, num lugar que também não proporcionava a realização de grandes anseios. Sempre quis deixar o interior, procurar uma cidade grande, estudar, arranjar um bom emprego, ser alguém na vida, ideia com a qual os pais jamais concordaram.
     Seis anos se passaram. E o que tinha mudado em sua vida? A saudade dos velhos, o conforto do lar, os cuidados da mãe, parece que alongavam ainda mais o tempo, aumentavam ainda mais a distância entre eles... A cidade grande seria uma ilusão? Que gosto ele tinha morando numa pensão, entre estranhos, se sujeitando a trabalhar de dia e de noite, que nem um escravo, para ganhar o que ganhava?
     A mãe veio interromper seus devaneios.
     – Acho que acabou tudo, meu filho!
     Ele apalpou o bolso da calça, tirou a passagem de retorno, amassou o bilhete, jogou-o no chão e foi para a sala.


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