Era uma noite chuvosa e de muitos relâmpagos. Sempre começa assim. O apartamento era grande e vazio com imensas janelas privilegiadas com a vista do décimo primeiro andar, de onde eu observava a rua deserta. O chão de madeira sustentava o sofá, que por sua vez passou a me sustentar. Estava sozinho e sem nenhum compromisso. Mas no fundo, eu os esperava. Sabia que viriam. Estava tudo pronto. Era só aguardar...
-Quando a música acabar, apague as luzes...- Disse uma voz familiar
-Ah, mas é claro. Quem sabe não escuto o “grito da borboleta”- Respondi com indiferença.
-Ela sempre foi sua verdadeira amiga. Quem te levou até as portas.
-Já você sempre foi um maldito bastardo. Sempre falando bosta.
-Hahahaha...e você adorava! A gente se divertiu um bocado.
-É verdade.
-Sem ressentimentos ?
-Nunca os tive.
-É, afinal é o meu disco que está tocando na sua vitrola.
-Pois é. Quero que me diga quem vem.
-Ah, velho amigo...te confesso que não são poucos. Galera da pesada. Mas é um, em especial, que te quer mais que tudo.
-Por que hoje?
-Estão com saudade.
-De me encher o saco?
-Hahahaha, mas é claro! Ora vamos, já esteve em situações piores. Soube de uma vez em que quase foi morto por um rebanho inteiro. Hoje é quase igual: Você tem as armas, mas eles têm o número...
-E que número! – Exclamou uma terceira voz quase me fazendo enfartar.
-Ora se não é Mefistófeles, o rei da lorota – Disse eu, acendendo um cigarro.
-Há, tinha que ver tua cara, coisa rara. – Comentou.
-Ainda fala rimando que nem um palhaço? – Perguntei tentando ganhar tempo.
-Falo como os poetas, sempre disparando setas. – Respondeu olhando para Morrison.
-Você não tinha que estar cuidando do seu doutorzinho de merda? – Questionei sem pensar muito
- Quer ganhar tempo não é?! Te pego pelo pé! E eu sou o “rei da lorota”...você é quem tira e bota! Não precisa tramar contra mim. Só vim curtir seu fim.
-Adorei a piada. Alguém toma pinga? Mas que pergunta! Já volto. – E fui pegar a garrafa.
A música havia acabado. Resolvi apagar a luz e deixar que viessem os que faltavam. Os relâmpagos cuidavam da iluminação e os trovões do som ambiente. Eu estava com medo mas não podia demonstrar, ou chamaria o mesmo em pessoa para a nossa “festinha”. Além do mais, conhecia bem meus dois primeiros convidados. Não estavam contra mim. Era só um demônio literário e um roqueiro bêbado numa festa de velhos conhecidos. Com um pouco de sorte e argumentos certos, ficariam do meu lado.
E foi, literalmente, num piscar de olhos que a casa ficou cheia. Parecia um puteiro com garçons, mesas, stripers... definitivamente, não era mais só um apartamento. Alguém havia trazido o inferno inteiro de penetra. Percebi que o buraco era bem mais embaixo. Tomei um gole de cachaça e caminhei lentamente até o tapete da sala. Lá permaneci fingindo que tudo era mais do que normal. Todas personalidades estavam matando a saudade do ódio que sentiam uns pelos outros, mas é claro, em “ritmo de festa”. Era só uma questão de tempo até alguém vomitar provocações em cima da minha camiseta favorita.
-Sua conta está alta. Soube que logo vai pagar. – Sussurrou o fantasma de um grande amigo, Pedro.
-Oxalá fosse Pedro! – Disse eu – Veio me culpar novamente pelo teu belo buraco na testa? Ou pelas correntes? Ah, já sei! Veio me culpar por ter se fodido completamente!
-É a função dos fantasmas – Comentou uma bela e perigosa voz que eu não escutava a muito tempo.
-Janine...se esse for teu nome mesmo, como vai? – Perguntei dando o ultimo gole do meu copo.
-Sabe que não é. Vou do mesmo jeito de sempre.
-A vantagem de ter aparecido, fora teus belos seios falsos e teu maravilhoso rabo fétido, é que sempre manda meus fantasmas embora.
-Não precisa ser tão grosseiro. Gosto de você.
-Quer dizer, da minha virilidade.
-Uma súcubos não pode amar?
-Pergunta pro diabo.
-Enfrenta esses fantasma porque quer. Antes não passavam de larvas.
-Ah, sério? Onde leu isso? Eliphas Lévi? Papus? Paulo Coelho? Ou na Wicca teen?
-Hahahaha, você é hilário! Sempre me faz rir. É muito bom saber que logo vai estar no inferno. Vou poder rir de você o tempo todo!
-Veio reclamar minha alma ou só encher lingüiça?
-Só se for a tua.
-Sem chance.
-Que pena...mas não sou eu que vou reclamar tua alma hoje. A fila é grande e a burocracia maior ainda. Afinal de contas, é o inferno.
-Quem é? Leviatã? Belial? Nimorup? Ou um Zé Galinha qualquer?
-Acha que saberia cuidar deles não é? Mas eu lamento. O círculo mágico escondido embaixo do tapete não vai adiantar contra quem quer lhe desgraçar. – Disse Janine me olhando de cima a baixo.
Então me dei conta. Realmente o círculo mágico de nada ia adiantar...que tolo eu fui. Um temor imenso me tomou. Eu não esperava isso. Todos estavam olhando para mim e gargalhando. Pela primeira vez na vida, desejei que não fossem embora. Mas era tarde demais. Não havia mais nada...o bar, as dançarinas, as mesas...nada. Tudo e todos haviam desaparecido, me deixando frente a frente ao espelho da sala. Vi meu adversário. Seria um longo e perigoso duelo. Peguei o maço de cigarros, acendi um e perguntei a ele:
-Fuma?
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