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Análise do poema Imutável, de Cruz e Sousa
Flora Fernweh

Morrem as virgens, nos seus leitos castos,
Entre a mole e finíssima cambraia...
E a lua fria nos espaços vastos
Serenamente dentre as nuvens raia.

O ocaso da velhice a fronte enturva
E faz entristecer como um outono...
E o sol na doce e fulgente curva
Surge acordando os vegetais do sono.

A Dor lanceia os peitos lutadores
E rasga fundo a carne nas entranhas...
Pelas campinas vão brotando flores,
Brotam flores pelo alto das montanhas.

Brilha o sorriso cândido da infância
Na pequena boca perfumada...
O espelho, o cardo, as urzes sem fragrância
Brilham também aos cantos de alvorada.

As lágrimas rebentam-nos dos olhos
Em turvos rios de atros sentimentos...
O mar bravio ruge nos escolhos
E estoura sob as convulsões do vento.

As mães, no berço, embalam docemente
Os filhos, com os mais íntimos carinhos...
Nas árvores do campo recendente
Vão as serpentes devorando os ninhos.

Passa na estrada um límpido noivado
Cheiroso a rosa e a flor de laranjeira...
O coveiro, já velho e encarquilhado
Abre uma cova à sombra da nogueira.

Ó profundo contraste incomparável,
Eterna lei, ciclópica ironia...
Como tu és estranha e formidável!
Força impassível! Natureza fria!

Análise:
Em razão de seu pioneirismo literário e de suas origens em solo catarinense, tenho um apreço inestimável pelo poeta João da Cruz e Sousa, que ao lado de Alphonsus de Guimaraens, foi um dos maiores autores simbolistas do Brasil. Carregada de temáticas espirituais e de uma densa rede onírica, sua obra se emaranha-se em sinestesias que provocam as mais intensas sensações, e seus versos ricos em conotações místicas transparecem ainda resquícios formais do Parnasianismo. No entanto, a atenção detalhada de seus poemas permite verificar traços de seu contexto histórico e principalmente de sua condição quanto personalidade negra, o que se configura como uma característica marcante sobre sua vida que consequentemente se reflete em sua primeira fase de escrita, uma vez que tendo nascido no sul do Brasil, em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, as agruras do preconceito racial fizeram jus ao seu berço de origem, visto que viver em uma terra majoritariamente branca e almejada por imigrantes europeus foi um fator que favoreceu seu sentimento de desterro em relação às marcas que constituíram seu legado de cor, cultura e crenças. Entre suas obras, destacam-se Missal (prosa) e Broquéis (poesia), ambos publicados em 1893, na vanguarda do Simbolismo brasileiro.

Publicado por Cruz e Sousa na Revista do Norte em primeiro de agosto de 1902, o poema “Imutável” traduz a semiótica literária das fases da vida, tendo como sustentáculos para a ilustração subjetiva do passar do tempo, a riqueza em adjetivações, a descrição de paisagens e a alusão aos elementos da natureza. Tais aspectos de fluxo contradizem a ideia fundamental expressa no título do poema “Imutável”. Contudo, a análise criteriosa e aprofundada do desenrolar do tema possibilitam encarar a passagem do tempo como uma certeza absoluta e imutável, o que dialoga com a célebre máxima do pensador Heráclito de Éfeso: “A única coisa permanente é a mudança”. Pode-se observar ainda, que a noção de ciclos é sugerida pelo poema em questão, visto que apresenta sucessões de eventos de nascimento e morte em consonância com ocasiões e episódios de vida que se repetem ao longo da existência.

A primeira estrofe já inaugura o poema despertando uma série de impressões sensoriais no leitor, com enriquecidos detalhes que tornam sua leitura quase interativa no nível das sensações e experiências poéticas. Destaca-se a menção à lua, que identifica uma das singularidades mais marcantes de Cruz e Sousa: o fascínio pela cor branca, em contraste à sua realidade negra. No terceiro verso, torna-se subentendida a iluminação, ou até o embranquecimento da noite por meio do luar, a citação às nuvens, no verso seguinte, fortalece essa ideia. Outro contraste que se observa entre a primeira e a segunda estrofe, é a abrupta passagem da condição de virgem para o advento da velhice, acompanhada de sua assimilação com o sol, em aparente oposição ao luar da estrofe anterior, o que redimensiona a concepção de antíteses a nível subjetivo. Para materializar o correr das fases, a face decadentista e decídua do outono atribui ao envelhecimento, um sentimento de lento esgotamento e preparo para a próxima estação de desembarque: a fria morte, tão dura e rígida quanto o inverno.

A terceira estrofe impressiona e completa a sensibilidade do poeta, tecida nos versos antecedentes, ao exprimir a dor inspirada pela estação gélida. Novamente, um paradoxo aparece adiante, ao definir que a dor rasga profundamente a carne nas entranhas, que pode ser causada pelo sofrimento do devir, quanto pelo ardor da paixão, no sentido naturalista do termo, posto que indica claramente o ato sexual, cuja carnalidade se abranda a seguir, pela comparação feita entre a sensualidade e a natureza. Por exemplo, ao esboçar que as flores vão brotando, o poeta apresenta a singeleza da fertilidade, em um símbolo alusivo à renovação da vida. A infância se manifesta então na quarta estrofe, em uma inquebrantável atmosfera de inocência banhada pelo início do viver, pelo raiar do dia no brilho da referida alvorada. Porém a juventude irrompe as ferocidades tão próprias da adolescência e do carrossel de intensidades, retratada pela passagem em questão, por lágrimas, sentimentos, rugidos bravios e convulsões que reiteram a natureza como tela para as emoções humanas.

A serenidade retorna na sexta estrofe, ao transformar a antiga criança e jovem descritas em momentos anteriores, em uma mãe doce e carinhosa que transpira leveza e tranquilidade enquanto cuida de seu filho. Como contraposição a essa cena maternal, Cruz e Sousa se utiliza de artifícios naturais de luta pela sobrevivência a partir do paralelo entre ave e filhote, entre colo e ninho como uma referência aos perigos exteriores que a vida se encarregará de apresentar ao recém-chegado ser. Com um toque de fatos que se sobressaem na experiência de vida de cada um, a sétima estrofe possibilita uma divergência entre a felicidade e a tristeza, simbolizadas respectivamente pela alegria do casamento e pela dor da morte. O elemento que traça um vínculo entre esses dois eventos é novamente sinalizado pela natureza: no casamento, as flores com sua energia intrínseca de vida. E na morte, a nogueira, representando o fincamento das raízes apesar da ida e da perda. A distinta presença da natureza no poema de Cruz e Sousa explicita que a humanidade é indissociável a ela. Ou seja, é infrutífero não se visualizar a partir da perspectiva natural, visto que a compomos tanto quanto ela nos habita. Isso é uma lei eterna e imutável.

O poema se encerra ao refletir o eixo principal sobre o qual a temática poética se debruça, versando sobre o “contraste incomparável” que guiou a construção dos símbolos e significados que desnudam os acontecimentos de uma vida. Ao utilizar especificamente a palavra “incomparável”, o autor apresenta mais um de seus antagonismos, já que valeu-se de comparações ao longo de todo o poema com o intuito de esclarecer palpavelmente os sentidos que buscou exprimir. Desse modo, conceitua a passagem do tempo com todas as suas particularidades temporais como uma “eterna lei, ciclópica ironia”, enfatizando a constante eternidade dos fluxos e ciclos, como uma imutabilidade aceitável do movimento vital, e o conformismo de que a vivência sempre será desta maneira: norteada pela natureza, que faz-se imutável e impassível a tudo o que se deleita com a sua força de presença. No presente, no passado e no futuro, eternamente. Eterno tal qual esse pujante poema, de admirável profundidade e de beleza inconfundível.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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