Em 1971, Lira muda-se para um lote grande, havia uma residência simples uma meia água de três cômodos amplos, porém melhor do que viver de favor em terras de sua irmã. Sentiu total liberdade em agir sem precisar perguntar se podia fazer isso ou aquilo, o aluguel razoável às posses de Sílvio que no momento trabalhava na Jotalar, uma loja de móveis. Com o primeiro pagamento comprou uma geladeira ”Climax”, logo depois comprou uma televisão “Advance”. Para completar sua alegria o pai fazia longas visitas, seu desejo era que ficasse sempre junto dela.
Sílvio falou da possibilidade de terem o segundo filho, alegando que gostaria muito de ter o prazer em acompanhar do começo da gravidez até o nascimento. Lira sentindo-se lisonjeada em ser a pessoa que podia fazê-lo passar por esses momentos tão sublimes pediu um tempo para pensar. A alegria e o prazer do entendimento, a deixava perplexa. Certo dia a levou para assistir na loja Ducal no Centro comercial de Campo Grande a Festa da uva que seria transmitida pela primeira vez, diretamente do Rio Grande Sul para todo o país. Nem as dificuldades da transmissão e o sinal deficiente da região ora colorido ora preto e branco os desapontou. Ficaram radiantes pelo avanço que o país dava na área tecnológica e da comunicação.
Nesta ocasião Lira fazia tratamento para extrair as amídalas. Quanto à gravidez Lira concordou, com uma ressalva, seria após a cirurgia mais queria uma mobília nova para o quarto, estava chateada em dormir numa cama que foi dos seus sogros. Lira não só ganhou a mobília como também à televisão a cores de vinte e seis polegadas.
Em outubro Lira pára de tomar o anticoncepcional. Em virtude da anestesia que deveria tomar na cirurgia, que recebia grátis ao fazer o acompanhamento ginecológico na igreja de Santo Antônio na Curva do Matoso aos cuidados de Dr. Rocco.
Sílvio acompanha Lira até o hospital Ordem Terceira da Penitência. Do centro cirúrgico sai operada, mole, na boca o gosto de anestesia, língua pesada sem movimento. Parecia não haver muito a fazer. Esperar. E esperar talvez fosse à última alternativa. A única verdade é esperar, porque se deu certo só o tempo dirá. Lira não podia falar! Deitada, o corpo quase rígido. A cama na altura da janela aberta distrai-se olhando o vai-e-vem dos moradores do morro. As moradias, umas sobre as outras pareciam à distância um castelo com várias torres, viajou por segundos por conta da medicação , quando novamente olhou, fixou nas moradias parecia uma ilha grega caiada da cal então foi subindo o olhar. Subindo... O sangue descendo para o estômago, não há muito que ela possa fazer para deter, passa o lenço na boca, a saliva está clara, transparente. Torna-se difícil conter a velocidade com que o sangue corre para o estômago. O nariz com cheiro de anestesia. Os ouvidos captam sons de fora e de dentro da enfermaria. Vê a enfermeira arrumando as medicações para as doze camas da enfermaria. Não pode falar se levantasse o braço às colegas poderiam ver, mas não podiam falar, todas tinham sido operadas. Espera uma oportunidade para dar um sinal. Não encontra forças para ir até a enfermeira e mesmo que tentasse levantar poderia não conseguir. Por instantes sentiu sua existência inútil, insignificante. Deitada de lado continua. Não fala. Pensa. Faz o movimento de engolir, não precisa, o sangue desce à revelia. O estômago defende-se, parece contrair-se e uma ânsia de vômito quebra o silêncio. A enfermeira vira-se e briga, diz que ela está provocando hemorragia. Lira faz sinal que não, e mostra o caminho que fazia o sangue, apontando para o estômago cheio. A enfermeira duvida, não dá atenção. Pede para cuspir na escarradeira. A saliva grossa, porém limpa. Então diz: “se forçar vou chamar o médico. Não force a hemorragia. Cuidado, se voltar para o centro cirúrgico vai ser pior”. Lira não sabe, mas pressente. Questiona-se. Apavora-se diante da situação que se forma, a certeza vai crescendo, devorando a vontade de continuar quieta o que quer que fosse aquela descida para o seu estômago. Nem sabia ao certo o que era. Coração apertado. Pediu a Deus que resolvesse a situação. E fica quieta na esperança de que o socorro chegue. Depois de alguns minutos o estômago novamente se contrai. Sem alarido o sangue começa a subir o esôfago e o jato sai. Postas e postas de sangue coagulado espalham-se pelo chão. A enfermeira corre... Mas é tarde. Lira está aliviada. Com ajuda da enfermeira senta-se na cadeira. O médico chega correndo, porque está no fim do plantão, Lira está tranqüila, sabe que não havia forçado nada. Depois de examinar, o médico aliviado fala: _Tivemos sorte menina, não arrebentou nenhum ponto.
À noite, morrendo de fome, olhos voltados para o copo gelado de suco de laranja. Alimentou o sorriso de ainda criança quando sorrateira tinha vontade de comer alguma coisa que não estivesse em seu alcance. O morro todo iluminado. A visão aos seus olhos parece clara, servirá de companhia por toda noite. Na manhã o Sílvio esperava sua alta...
|